dezembro 17, 2025

Livro não é brinquedo

LIVRO NÃO É BRINQUEDO 
Hayton Rocha

Ainda com o eco da quarta-feira vibrando no peito, tento dar forma à emoção que me acompanhou depois do lançamento, em Brasília, de O silêncio das tartarugas. Não foi só um livro apresentado: houve cuidado nos detalhes, acolhimento e uma delicadeza rara, dessas que não se aprendem em manuais, mas se anunciam no modo como um espaço estende a mão a quem chega com palavras debaixo do braço. A ANABB me recebeu assim: não como sigla, mas como casa — daquelas que sabem que cultura também precisa de abrigo.

Do sorriso na portaria ao reencontro de rostos amigos, passando pela atenção generosa de quem conduz a Casa, ficou claro que ali não se promovia apenas um evento. Havia intenção. A de transformar encontros em permanência, afetos em projeto. Por isso me ofereci, por inteiro, para ajudar a construir esse espaço que se abre não só em Brasília, mas pelo país inteiro, a quem deseja semear movimentos culturais. Não à toa, acaba de ser anunciada a criação do Clube de Escritores da ANABB 70+. Escrever, afinal, também é uma forma de permanecer no mundo.



Semanas antes, conversava com um grande escritor, dos que ainda acreditam que enfileirar palavras é um ofício de resistência, mesmo quando não rende pão nem vinho sobre a mesa, muito menos prestígio na aldeia. Perguntei como tinha sido o lançamento de seu livro mais recente. Ele foi direto:

— Pouca gente. Um tanto frustrante. Mas passa. Os poucos amigos que foram salvaram a noite. Teve abraço, conversa, risos. Valeu por isso.

 

Depois soltou, quase num sopro, a sentença que me acertou como uma martelada no polegar:

— Livro não é brinquedo.

 

E puxou o fio, lembrando que, em muitos lugares, livro sempre foi castigo:

— Vai ler até aprender!

 

Quando a educação vem pela bronca, o cérebro acusa o golpe, como quem mastiga cebola crua às sete da manhã numa aula de geometria.

 

Disse também que já nem se chateia com quem não aparece em lançamento. Não é desfeita. É desinteresse pelo objeto.

— Não é que não gostem de mim. É que não gostam de livro.

 

Vieram então os argumentos: se fosse cantor, teria fila na porta do teatro; se jogador de futebol, plateia cheia só para ver se ainda é artilheiro; se deputado, até inimigos de infância apareceriam na posse. E se anunciasse churrasco, surgiria até vegano dizendo que foi “só pela companhia”. Mas livro… livro não acende a brasa de quase ninguém.

 

Em seguida, trouxe uma imagem definitiva: caminhão tomba numa curva. A carga se espalha no asfalto. Até manco larga a bengala e corre para saquear. Se for cerveja, some em três minutos. Se for cigarro, em dois. Se for adubo, ração ou remédio, quase tudo desaparece em segundos. Agora, se for livro… ninguém toca. Capas intactas brilhando ao sol, enquanto o povo passa olhando como quem vê cadarço em liquidação.

 

Livro não é objeto de desejo. Até de graça, é caro para alguns. Ele lembrou que hoje alguns pais, como punição, dizem:

— Agora você vai ler esse livro todinho!

Se fosse prêmio, a frase seria outra:

— Este ano você se comportou tão bem que vai ganhar três livros do Papai Noel!

 

Esse tipo de prêmio, aliás, quase não existe. Só em casas com duas estantes por cômodo e uma gata chamada Tieta.

 

Livro, insiste ele, é coisa de poucos. A tecnologia só agravou o quadro. Todo mundo carrega o mundo no bolso, piscando, vibrando, exigindo atenção. A brisa das paixões que vinham de dentro virou vendaval de estímulos. E para ler, antes de tudo, precisa-se de paz de espírito — artigo de luxo.

 

Fiquei mudo. Não de constrangimento, mas da mudez de quem não discorda de nada. A alegria do lançamento está mais no encontro que no objeto. O livro é pretexto para o abraço. É convite, não espetáculo.

 

Ele tem razão: livro não é brinquedo. Quem escreve esperando aplauso coletivo se frustra cedo. Livro é resistência em papel, passando de mão em mão quase clandestino, até encontrar quem o recolha, mesmo ignorado por muitos no caminhão que tomba e engarrafa o trânsito.

 

Escrever é conversar com quem ainda não chegou. Talvez nem chegue. Ainda assim, acendemos a luz da sala e deixamos a porta só encostada. Se vier alguém, que puxe uma cadeira e fique. Se não vier, a casa não ficou vazia. Estivemos lá.

 

Todo livro é uma garrafa lançada ao mar. Não sabemos quem vai encontrá-la, nem quando. Mas, se um dia alguém abrir, a mensagem ainda estará ali — intacta, respirando.

 

É para esse alguém, mesmo que não chegue, que escrevemos.










dezembro 10, 2025

Pecado quase fatal

PECADO QUASE FATAL   
Hayton Rocha

De volta a Brasília, passarei alguns dias revendo amigos  e amigas, lugares memoráveis — sobretudo para comer. E se existe um alimento capaz de dar ideia de céu, de plenitude dos gozos, atende pelo singelo nome de pastel.


Ilustração: Uilson Morais (UMOR)


Mas nem tudo são azeitonas   ou ervilhas  na minha relação com a iguaria. Talvez eu devesse, por prudência, retirá-la do altar dos meus desejos. Não consigo. E se você quer saber o motivo, conto mais uma vez, confirmando que coração e estômago têm razões que desafiam a própria razão.

Era um sábado qualquer de 2008. Almocei, cochilei e, ao acordar, saí de casa de fininho para cometer um pecado quase fatal. Fui ao encontro de um dos maiores prazeres que o ser humano, a partir de certa idade — se é que você me entende —, ainda pode experimentar sem remorso: pastel de carne moída com azeitonas.

Na primeira mordida eu já deveria ter desconfiado do sabor. Mas a gula é cega e surda. E, enquanto eu mastigava, em silêncio um atentado contra a minha flora intestinal se armava.

Passei o resto do fim de semana xingando uma certa padaria da Asa Norte. Vieram cólicas, enjoos, perda de apetite, o que, no meu caso, sempre configura sinal de alerta. Não houve diarreia nem vômitos. Ainda havia a esperança de que o miserável agente causador sumisse.

Mas na manhã de segunda chegaram os calafrios. E com eles, o pânico. Febre é febre. Apavorado, chamei um táxi às pressas e fui bater na emergência de um dos maiores hospitais de Brasília.

O antiespasmódico no soro, para aliviar as dores, desencadeou um quadro que me fez refletir sobre o quão breve é esse sopro a que chamamos de vida. Ela não manda aviso-prévio, não se desculpa e ainda nos pega de surpresa no meio de um pastel.

O remédio praticamente zerou meu peristaltismo intestinal — movimentos que empurram a comida pelo corpo — e, em minutos, instalou-se o que os médicos chamam de GECA: Gastroenterocolite Aguda. Aprendi a sigla ali, entre uma pontada e outra.

Mesmo sonolento, ouvi o cochicho entre dois deles:
— O que achou da GECA? Será Salmonella?
— Não estou ouvindo sinais de luta…

Ainda quis perguntar, no fiapo de humor que me restava, se havia algum conflito ideológico entre meus órgãos internos. Ou se GECA era nome artístico de alguma dupla caipira. Nada disso. Era apenas o dialeto deles assumindo que, felizmente, não havia “nó nas tripas”.

Veio a bateria de exames: endoscopia, tomografia, ultrassom. A barriga distendia, a pele amarelava, mãos e pés gelavam.

— Vamos transferir o senhor para a UTI. Lá é melhor do que aqui no ambulatório — disse alguém, com a naturalidade de quem sugere trocar de mesa no restaurante.

A escuridão e o frio dos corredores até a UTI encheu minha cabeça de interrogações. A lucidez insistia em lembrar que a vida — esse “jogo de culpa que faz tanto mal”, como dizia Gonzaguinha — talvez estivesse perto do fim.

Nunca havia deitado numa maca nem para sair de um campo de futebol. E, de repente, aquela estreia podia ser a despedida. O corpo admitia que sim. A alma, inconformada, gritava que não.

Percebi que amigos e familiares chegavam para ver com os próprios olhos o que um pastel era capaz de fazer a um seminovo no esplendor dos cinquenta anos.

Entre gemidos e lamentos, me instalaram monitores. Até que surgiu um moleque de vinte e poucos anos, barba por fazer, jaleco amassado. Sem cerimônia, me enfiou um cateter goela abaixo, num avanço tão decidido que achei que sairia do outro lado.

Santo remédio.

Um jorro de vômito escuro inundou a cama. Em minutos, veio o alívio. Fui ao banheiro e tomei um banho restaurador, desses que nos fazem sair recém-nascidos, só que com mais cicatrizes.

Enquanto isso, um porta-voz do hospital foi até a sala de espera e, talvez para desanuviar o ambiente, anunciou:
— O pior aconteceu… Ele vai sobreviver!

Passei a noite inteira com uma sonda nasogástrica no subsolo das vísceras, sugando tudo o que o agente causador havia produzido para tentar me impedir de assistir ao crescimento dos meus netos gêmeos, hoje com quase dezoito anos.

Recebi alta setenta e duas horas depois. Caminhava em frente a uma lanchonete quando a balconista, talvez comovida com minha expressão de fome — mas ignorando meus antecedentes intestinais — tentou ser gentil:
— Vai um pastel de carne moída com azeitona aí, moço?

Recusei com dor no coração. Pela forma como me olhou, minha mulher me internaria — noutro tipo de hospital, bem verdade — se soubesse que ainda tive dúvida. Confesso que cogitei, por segundos, uma mordidinha. Só na casca crocante.

Há dezessete anos ninguém me tira da cabeça que foi o enfeite de salsa mal lavada que arruinou aquele fim de semana. Pastel é do bem. Não faria uma maldade dessas com uma antiga paixão. 


É HOJE!



dezembro 03, 2025

A insustentável leveza de um cafuné

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE UM CAFUNÉ
Hayton Rocha 


No Japão, onde o tempo parece andar de quimono e sandálias de palha, já é possível alugar uma avó por hora. Sim, você não leu errado: avó por hora, como quem reserva mesa em restaurante ou carro de locadora. O kit inclui broncas embrulhadas em papel celofane, receitas de molhos seculares e aquele olhar que já viu o mundo desmoronar algumas vezes e, ainda assim, achou forças para varrer os cacos.


A agência anuncia uma centena de senhoras, entre 60 e 94 anos, como se fossem modelos de catálogo: “ideal para ajudar nas tarefas de casa, ensinar a costurar, reconciliar-se com a sogra ou apenas preencher o vazio deixado por uma pessoa querida que partiu”. A promessa é sabedoria, mas o que realmente se aluga é o antídoto contra a solidão.


 

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

Nesse contrato tácito, os netos terceirizados nada têm a perder: aprendem truques domésticos, recebem lições de sobrevivência conjugal e ainda podem ser embalados por histórias que misturam samurais heroicos com gueixas enigmáticas. Já as avós, protagonistas desse teatro doméstico, recebem o que mais lhes falta: olhos de ver, ouvidos de ouvir. Afinal, ninguém quer morrer sem testemunhas de suas versões, ainda que repetidas pela enésima vez.

 

A comédia, porém, flerta com a tragédia. Milhões de japoneses vivem sozinhos, destinados a morrer na invisibilidade. A solidão lá já tem até nome próprio: kodokushi, “morte solitária”. Uma epidemia traiçoeira, dessas que não pedem máscara nem respiradores, mas exigem coragem e resignação. Apartamentos trancados, celulares mudos, mensagens sem resposta. A nação que inventou robôs para servir água agora tenta preencher o vazio existencial com avós terceirizadas e cafunés tarifados.

 

As estatísticas, frias como sempre, sustentam o pano de fundo: daqui a pouco, um terço da população japonesa terá mais de 65 anos, a maioria mulheres. Vidas prolongadas pela medicina, mas encurtadas pelo deserto das relações. O que era bênção virou sentença: viver muito, por lá, é quase sinônimo de viver só.

 

E não se engane: o bilhete é de ida e já tem data marcada para o Brasil. Ainda temos avós no fogão a lenha, sustentando famílias com pensões minguadas. Mas o mesmo país que exalta a sabedoria popular de uma avó em propaganda de presunto é o que fecha a porta para quem tem mais rugas que curtidas nas redes sociais. Aqui, cabelos brancos assustam mais que juros de cartão de crédito em atraso.

 

Chamam de “autoetarismo” a praga que corrói por dentro: gente que se convence de que já está velha demais para aprender ou recomeçar. Como se a idade fosse sentença de morte civil. Esquecem que a velhice, quando bem vivida, é o único diploma que não se compra na internet. Maturidade e paciência são artigos de luxo, mas o mercado insiste em preferir um jovem ansioso que enfeita PowerPoint a um idoso sereno, vertendo sabedoria por todos os poros.

 

Daqui a pouco, seremos nós a adotar o aluguel de avós. Não para ensinar etiqueta social, mas para destrinchar manobras do submundo político, temperar o feijão no ponto ou explicar por que descobrimos rugas em lugares que nem sabíamos que existia. O risco é o mercado transformar essas mulheres em “influencers da saudade”, cobrando por hora de colo e minuto de cafuné. Carinho tabelado em Excel, com desconto progressivo para pacotes semanais.

 

E o problema não é cobrar pelo afeto — já fazemos isso com babás eletrônicas e lares de idosos. O problema é acreditar que esse simulacro resolve a orfandade social que nós mesmos fabricamos. A mesma sociedade que chama aposentado de peso é a que depois corre para alugá-lo quando percebe que, sem ele, a vida perde cheiro, sabor e até os macetes da língua pátria.

 

Se a humanidade precisa terceirizar até o amor que só uma avó sabe dar, o problema não está na falta de netos, mas no excesso de órfãos de convivência. Gente aparentemente viva, mas desconectada, perdida entre compromissos virtuais. Num mundo em que até dividir a senha do Wi-Fi virou sacrifício, talvez o maior luxo seja ter alguém que bata à porta sem mandar antes mensagem. Porque não há algoritmo que ensine a receita de sopa que cure mágoas, nem que borde ternura nas frestas do dia a dia. Isso só avó sabe fazer.

 

Nessa toada, um dia não restará avó nem para alugar. E quando estivermos sozinhos, com nossos celulares mudos, talvez notemos tarde demais que o verdadeiro luxo nunca foi o carro elétrico ou o último smartphone lançado no mercado, mas alguém que nos chamasse pelo apelido de infância enquanto nos fazia um cafuné.