sábado, 26 de janeiro de 2019

Versões de nós mesmos


Toda quarta-feira eu e meu irmão Agostinho (Nena, para mim, porque quando nasceu eu não sabia pronunciar “nenê”) íamos ao mercado público do Parque Rio Branco, em Maceió, comprar carne, frutas e verduras, ali no início dos anos 70. Saíamos de casa ansiosos nem tanto pelos 6 km que separavam a Gruta de Lourdes - bairro onde morávamos - da feira livre na Levada, mas porque a revista “Placar”, para nós a revista mais importante daquela época, chegava às bancas justamente às quartas-feiras. 

Teríamos que subtrair do dinheiro da feira alguns trocados para comprá-la e devorar cada página, da capa à contracapa, muitas vezes ainda no ônibus que nos levaria de volta para casa. Nossa mãe, apesar do orçamento apertado - éramos nove filhos, sete em idade escolar - nunca percebeu a malandragem, mas nosso pai, tenho certeza, fazia vista grossa,  tão interessado quanto nós na leitura.

Até hoje o cheiro de tinta que saía da revista permanece intacto dentro de nós como um perfume caro. Sempre fomos apaixonados por futebol, desde os rachas diários nos campinhos de terra batida com amigos de infância, passando pelas noites de domingo, quando esperávamos até tarde da noite que a extinta TV Tupi exibisse os gols do final de semana no programa  “Ataque e Defesa”, sob o comando de Rui Porto.  E como esquecer as disputas de times de botão, com “craques” de acrílico feitos por nós mesmos? Bastavam dois discos, um colorido e outro translúcido, a imagem do craque recortada de “Placar”, seu nome de “guerra” e o número que usava na camisa do clube a que pertencia.

Certo dia apareceu no mercado um feirante vendendo frascos de uma mistura de álcool comum com gasolina, como se fosse um brinquedo. Com um chumaço de algodão, molhava uma folha de papel e, usando o fundo de uma colher de sopa, decalcava imagens de revistas velhas, reproduzindo-as de forma invertida, como se estivessem refletidas em um espelho. Balançamos quando vimos aquilo, naqueles tempos em que microcomputadores e impressoras não existiam nem em filmes de ficção científica.

Foi assim que descobrimos, por acaso, do que precisávamos para fazer a “cobertura jornalística” de nossos torneios de futebol de botão. Com folhas de cadernos de desenho e imagens extraídas das páginas de “Placar”, criamos “jornais” para um único leitor: eu lia o “Jortebol”, editado por ele, que lia o “Destaque”, feito por mim. 

O bicampeonato paulista de 1970-71, conquistado pelo São Paulo F.C., fez Nena virar tricolor doente, inspirando a confecção de seu timaço de botões: Sérgio, Forlan, Jurandir, Arlindo e Gilberto; Edson e Gerson; Terto, Pedro Rocha, Toninho e Paraná. Eu já era vascaíno, depois de ver nosso pai vibrar com a conquista do campeonato carioca de 1970, embalado pela magia da narração de Waldir Amaral e Jorge Cury, da Rádio Globo, que deu origem a meu time de botões: Andrada, Fidélis, Moisés, Renê e Alfinete; Alcir e Buglê, Luiz Carlos, Valfrido, Silva e Gilson Nunes.

Depois de uma partida de futebol de botões entre nós, Nena usava uma régua para alinhar a escrita com caneta esferográfica abaixo de algumas imagens decalcadas de “Placar”, e escrevia, por exemplo:
“ATAQUE FUNCIONA E TRICOLOR GOLEIA - O São Paulo massacrou o Vasco da Gama por 5 a 1, na noite de ontem, no Morumbi, com gols de Pedro Rocha (2) e Toninho (3). Buglê fez um gol de honra vascaíno. O tricolor fez mais uma partida espetacular, deixando os cariocas a ver navios ao assumir a liderança do torneio...”  

Na outra cabeceira da mesa de jantar, utilizando os mesmos recursos “técnicos”, eu escrevia sobre a mesma partida: 
“EM NOITE INFELIZ, VASCO PERDE - Numa noite marcada por vários gols perdidos por seus jogadores, e por erros grosseiros do árbitro da partida, o Vasco da Gama não teve como evitar a derrota para o São Paulo por 5x1, placar injusto e que de forma alguma traduz o que foi a disputa...”

Não é à toa que se diz que todos os fatos possuem três versões: a sua, a minha e a verdadeira. No nosso caso, o que de mais verdadeiro havia entre nós era o respeito ao que o outro escrevia, ainda que o desejo de rasgar a folha de papel que lia estivesse latente. A leitura e a escrita, assim, tornavam-se praticamente uma coisa só em nossas vidas, influenciados por jornalistas lendários como José Maria de Aquino, Lemyr Martins, Michel Laurence e Teixeira Heizer, todos de “Placar”.

Em março do ano passado li esta notícia que mexeu no baú dessas memórias: “Virtual Reality Football Club, primeiro jogo de futebol em realidade virtual, chega oficialmente nesta terça-feira. Desenvolvido e publicado pela Cherry Pop Games, o game inclui partidas online para até oito jogadores, partidas ranqueadas online e uma funcionalidade para criar jogos privados. Além das funcionalidades multiplayer, o título traz um modo offline de treinamento para que jogadores aprendam as principais jogadas, dribles e como se locomove pelo game. VRFC chega para o HTC Vive, PlayStation VR e Oculus Rift.”

O mundo mudou, eu e Nena mudamos. Fazer com lixa d’água botões de acrílico há quase meio século e disputar partidas inesquecíveis, dar asas à imaginação e fantasiar a realidade, nada disso nos transformou em jornalistas, escritores ou publishers, como sonhávamos. 


Resolvemos, alguns anos depois, ser bancários como foi nosso pai. Em todas as escolhas que fazemos, mesmo nas melhores, há perdas. Ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Bolacha de Leite de Mãe de Jacaré



Nos anos 60, pelo menos uma vez por ano, papai, eu e meus irmãos esperávamos na plataforma da estação ferroviária de Patos (PB) o facho de luz e o apito do trem que traria nossa avó materna – mãe, para diferenciar de mamãe e porque nunca gostou de ser chamada de vovó – para ficar conosco algumas semanas no Sertão, longe do Sítio Jacaré, onde morava às margens do Rio Paraíba, na zona rural de Pilar (PB).


Vinha como de costume, com o coração dividido entre matar as saudades da filha e dos netos e deixar em casa seu primo e marido, nosso avô, que não arredava o pé do chão onde nascera por nada nesse mundo. Sofria também por ter que largar por alguns dias o tititi com que distribuía milho para galinhas e pintos em seu quintal.
Como não podia nos oferecer presentes caros, trazia sempre uma sacola com algumas broas escuras e cheirosas, embrulhadas em papel grosso, a que dava nome de “bolacha de leite”. Ela nunca concordou com os nomes pelos quais aquela iguaria que levava para seus netos era chamada na região: sorda, soda preta, bolacha preta, engasgador ou mata-fome.
Muito tempo depois, morando em Brasília (DF), já no final dos anos 80, presenciei meus filhos, entre beijos e abraços com minha sogra, receberem alguns brinquedos eletrônicos caros, e concluí que a felicidade deles em nada diferia da minha quando diante das tais bolachas de leite. Na semana seguinte, contudo, recebi a notícia de que Mãe de Jacaré havia falecido de repente e que já fora até sepultada. Lembro como hoje do travo em minha garganta e de algumas lágrimas que molharam os papéis com que trabalhava.
Ano passado, perambulando na Feira de Ceilândia, no Distrito Federal – espaço criado, em 1971, para reduzir a ocupação de áreas próximas ao Plano Piloto descobri que a bolacha que tomou muito mais doce minha infância ainda hoje é fabricada artesanalmente no Nordeste e não leva uma gota de leite sequer. E feita de farinha de trigo, mel de rapadura, manteiga, cravo, canela e gengibre.
Já na primeira mordida, a mesma sensação prazerosa de meio século atrás, mas com um ingrediente adicional: a lembrança do carinho com que Mãe de Jacaré, com sua marrafa nos cabelos longos, o olhar cintilante sob duas sobrancelhas espessas e o sorriso iluminado que me fazia esquecer todos os aperreios de criança, me abraçava apertado até doer às costelas.
Sabe-se que a angústia é uma sensação de vazio no peito, uma dor difusa que alcança a alma, aperta o coração, embrulha o estômago, às vezes mexe até com os intestinos, mas nunca se sabe de onde vem. Chega quando menos se espera, acompanhada de outros maus sentimentos tais como o medo, a ansiedade, o desassossego e a insegurança. Mas posso garantir que até hoje a indústria farmacêutica não criou remédio para essa agonia tão poderoso quanto a bolacha de leite de Mãe de Jacaré.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Capita... para sempre!


Aos 12 anos, diante da TV em preto-e-branco, vendo a final da Copa do Mundo 1970, na Rua da Vitória, bairro da Levada, em Maceió(AL), eu não sonhava ser Pelé, Tostão ou Jairzinho. Queria mesmo é ser Carlos Alberto Torres, habilidoso, clássico, que sabia como ninguém retomar a bola dos adversários e sair jogando com elegância, e que beijou e levantou a Taça Jules Rimet após o chute fulminante com que fechara os 4x1 contra a Itália. Se nunca consegui ser jogador de futebol, restou-me o consolo de, quatro anos depois, iniciar minha carreira profissional como office-boy em um banco.

Ainda bem que pude contar esta história, 43 anos depois, ao próprio capitão do tricampeonato mundial, em junho de 2013,  quando o conheci no Estádio Morumbi, em São Pulo, no lançamento do projeto "Brasil... um país, um mundo", exposição itinerante de acervo formado por peças históricas, como camisas usadas em jogos oficiais, troféus, medalhas e chuteiras, que passaria pelas 12 cidades-sede da Copa do Mundo 2014.

Fanático por futebol desde criança, daqueles que  “via” tudo pelo rádio e nas edições semanais da revista “Placar”, comentei com Carlos Alberto Torres que, em 1970, além dos 22 campeões mundiais que foram ao México, ficara no Brasil pelo menos outro elenco impressionante de craques. Ele concordou e, juntos, começamos a “escalar” quem seriam os titulares e reservas alternativos:  Ubirajara (Cláudio), Fidélis (Murilo), Scala (Jurandir), Djalma Dias (Roberto Dias) e Rildo (Paulo Henrique); Zé Carlos (Nei Conceição) e Ademir da Guia (Bráulio); Natal (Zequinha), Alcindo (Toninho Guerreiro), Dirceu Lopes (Eduzinho) e Abel (Lula).

Conversa vai, conversa vem, provoquei o Capita, como carinhosamente era chamado: “... é preciso certa dose de sorte, alem de talento, para se dar bem no futebol. Você, por exemplo, por jogar no Santos, nunca precisou enfrentar Edu, um dos melhores pontas esquerdas do futebol brasileiro. Já o coitado do Pablo Forlan, do São Paulo...”. Ele sorriu e rebateu de primeira, provando que o topo da sabedoria é alcançar a humildade: “Você só diz isso porque não sabe o trabalho que me dava Abel nos treinamentos. Hoje, não consigo mais ficar de pé nem 20 minutos porque meus joelhos ‘apodreceram’ de tanto drible que levei dele, desde quando eu jogava no Fluminense e ele, no Ameriquinha.” 

Há dois anos, numa manhã de outubro como outra qualquer, confesso que quis chorar quando me contaram que havíamos perdido essa lenda, no esplendor de seus 72 anos, vítima de enfarte fulminante. Comovido, me veio na hora Mário Quintana: “uma vida não basta ser vivida; ela precisa ser sonhada...”

domingo, 20 de janeiro de 2019

Brinquedos



A gente descobre mais cedo ou mais tarde que o tempo para ser feliz é breve e cada minuto que passa, passou. Aprendi isso cedo, nos dois anos que vivi em União dos Palmares, Zona da Mata alagoana, onde cheguei com meus pais e irmãos, em 1968, aos 10 anos de idade.

Não tive todos os brinquedos que sonhei, mas tive bem mais do que precisei, até o dia em que mudamos para Maceió (AL). Brinquei demais, vivi como se não fosse envelhecer. Joguei futebol-de-mesa (botões de casca de coco seco ou de capa de relógio), chimbra (bola-de-gude), finca (espeto de ferro) no chão, bafo de figurinhas repetidas, pião e ponteira. Mas nada me dava mais prazer do que marcar gols pelo “dente-de-leite” do Zumbi Esporte Clube, nas tardes de sábado, e, depois do racha, comprar por dois cruzeiros uma cocada de coco e uma garrafa d’água gelada.

Também mergulhei e pesquei cará, jundiá e piaba no Rio Mundaú, “cacei” calango com peteca de forquilha de goiabeira (estilingue), armei alçapão para pegar papa-capim, galo-de-campina, canário-da-terra,  brinquei de faroeste no quintal, desci ladeiras de carrinho de rolimã, roubei caju, goiaba e manga no sítio detrás do cemitério,  quebrei dente chupando rolete de cana caiana, deitei galinha choca em ninho de ovos de pata para ver depois a “mãe” agoniada com os pintos nadando na lama e ainda arranjei múltiplos apelidos para sete irmãos menores, pra desespero deles.

Essa apertada “agenda de compromissos” só era interrompida nos dias em que, revezando com alguns irmãos, ia à feira livre ajudar minha mãe a fazer compras, à padaria, à bodega ou levar lanche pro meu pai no trabalho. Era interrompida também quando o puxão de orelhas,  a chinelada, o cascudo ou a surra de cinto de couro, quase sempre por um motivo besta qualquer, ardia e me arrancava lágrimas.

Mesmo sem meu boletim escolar ser motivo de preocupação para meus pais, apanhar quase todo dia tornou-se experiência corriqueira e traumática para mim, não apenas pela dor física, mas porque abalou a confiança que deveria haver entre nós, base para me sentir amparado. E eu não poderia me sentir seguro se minha segurança dependia de quem se descontrolava com os aperreios de adulto. Aos poucos, aprendi a enganar, dissimular, mentir. E descobri várias maneiras de esconder o que sentia ou fazia temendo novas surras. Ninguém percebia, mas “eu era uma criança, esse monstro que os adultos fabricam com as suas mágoas”, como escreveu Sartre.

Sobre escola, confesso que nunca gostei de fazer “dever de casa”, depois de um turno inteiro em sala de aula. No Primário, surpreendi minhas professoras, pois só precisava ouvir ou ler algo uma vez para aprender e conseguir notas altas. Tanto que fui aprovado no temido Exame de Admissão - espécie de “vestibular” que havia para ingressar no Ginásio Santa Maria Madalena - com relativa facilidade, em 1969. Do Ginasial em diante, aí sim, quando misturaram números de aritmética com algumas letrinhas para resolução de problemas algébricos, já não foi tão fácil, mas a má vontade com “dever de casa” e o gosto pelas molecagens de rua foram preservados.

Cuidados com a saúde se limitavam a tratar verruga com leite de avelós, colocar gelo sobre as canelas para aliviar queimadura de urtiga e pomada preta “iodex” no dedão do pé, quase todo mês estropiado, correndo atrás de uma bola nos campinhos de terra batida. Vivia assoando o nariz, sempre escorrendo catarro empoeirado. A ancilostomíase (amarelão) e a esquistossomose (barriga d’água, doença do caramujo), resquícios das águas mornas do Rio Mundaú, só foram descobertas e tratadas algum tempo depois, na capital.

No fim da tarde, muitas vezes vi o sol se pondo na Serra da Barriga e imaginava como teria sido Zumbi, símbolo da resistência negra à escravidão, que liderou o Quilombo dos Palmares, comunidade livre formada por escravos fugitivos dos engenhos de cana-de-açúcar da antiga Capitania de Pernambuco, de que fazia parte Alagoas. Na minha inocência, me perguntava: seria alguém como Pelé, só que mais alto e mais forte, feito Maciste ou Spartacus das matinês de sábado, no cinema? Nunca encontrei uma resposta convincente.

Hoje, é difícil não concordar com o que disse Saramago no final dos anos 80: “Quero é recuperar, saber, reinventar a criança que eu fui. Pode parecer uma coisa um pouco tonta... um senhor nesta idade estar a pensar na criança que foi. Mas eu acho que o pai da pessoa que eu sou é essa criança que eu fui. Há o pai biológico e a mãe biológica, mas eu diria que o pai espiritual do homem que sou é a criança que fui”.

A gente acaba convencido, mais cedo ou mais tarde, de que o velho que hoje nos olha no espelho do banheiro não passa da casca que envolve uma criança ainda bem viva dentro de nós, vestida para o espetáculo da vida com seus novos brinquedos que surgem a cada amanhecer.