terça-feira, 16 de abril de 2019

Os afilhados de Dona Canô


Chegava à Bahia em maio de 1999, vindo de Pernambuco. Na primeira conversa com os gerentes sobre o papel do Banco do Brasil na virada do século 21, recorreu à questão filosófica que abre “Cajuína”, canção com a qual o filho de Dona Canô, a mais ilustre moradora do Recôncavo baiano, havia expressado sua angústia diante da morte do poeta Torquato Neto: “existirmos: a que será que se destina?”

Achava absurdo que o volume de empréstimos concedidos no maior estado do Nordeste estivesse bem abaixo dos depósitos ali captados. Exportar essa diferença de recursos para estados mais desenvolvidos só iria ampliar o imenso fosso de desigualdades regionais no país.

Como alertara nos anos 80 o ex-superintendente Nivaldo Alencar, a grande ameaça à sobrevivência do bancão seria perder a sua identidade  e "bradescalizar-se". Isto é, passar a fazer apenas aquilo que seu maior concorrente privado já fazia muito bem e a custos menores. Acabaria tornando-se descartável.

Mas o que poderia e deveria ser feito? "Caminhe sempre com um saco de interrogações numa mão e uma caixa de possibilidades na outra", diria Nizan Guanaes.

Antes de tudo, reaproximar-se das pessoas, das prefeituras, principalmente nas cidades menores, aquelas que mais sofreram com ameaças de fechamento de agências, demissões ou transferências compulsórias de funcionários durante o ciclo de recuperação do banco nos anos 1995/96.


Havia em algumas regiões pelo menos 60% de analfabetos – zona rural de Jacobina, por exemplo. Embora subutilizado, dormia em berço esplêndido na prateleira um santo remédio para curar a dor desse flagelo humano: o
BB Educar, programa de alfabetização de adultos, criado em 1992 pela área de RH do bancão, com base no método Paulo Freire.

O filósofo e pedagogo Paulo Freire (1921 – 1997) desenvolvera seu método de alfabetização no início dos anos 60. Não utilizava cartilhas para ensinar coisas como “o boi bebe e baba” ou “vovó viu a uva”.

Preferia termos comuns no dia a dia das pessoas. Pescadores deveriam aprender a escrever: “peixe”, “canoa”, “anzol”; já agricultores aprenderiam: “enxada”, “terra”, “plantio” etc. A partir da decodificação fonética desses termos, o repertório seria ampliado com outras palavras e suas conexões.

Coordenada por Vânia Venâncio e Avelar Matias, hoje diretor de gestão de pessoas do bancão, nasceu uma poderosa networking, envolvendo líderes comunitários de todo o estado. É bom lembrar que ainda não existiam: FaceBook, Twitter, Whatsapp etc.  

Sem as plataformas de hoje nas redes sociais, era importante escolher uma madrinha carismática e respeitada para despertar na população o interesse pelo BB Educar na Bahia e ajudar a esclarecer os formadores de opinião sobre o propósito de tudo.

Falou-se à época em Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Zélia Gattai etc. Acabou sendo convidada Dona Canô que, aos 92 anos, com sangue nos olhos, topou na hora: “é isto mesmo que estou ouvindo? o grande Banco do Brasil quer que eu seja a madrinha de um programa lindo como este?!”

Logo depois, no lançamento em Santo Amaro da Purificação, lembrava a seus afilhados, a maioria na casa dos 40 a 50 anos: “... minha gente, temos mais é que agradecer a Deus por essa oportunidade, porque quem aprende a ler, mesmo depois de velho, deixa de querer advinhar o que está escrito nos livros e nos jornais...”

Depois do almoço, ao retornar para Salvador pela BR-420, trazia a certeza de que tudo  acabaria bem – empresas desse tipo nunca serão descartáveis  – quando ouviu no rádio do carro a voz marcante de uma filha de Dona Canô, que assim cantava outros versos do irmão querido:

“...Eu sou o cheiro dos livros desesperados,
sou Gitá gogoia, seu olho me olha, mas não me pode alcançar.
Não tenho escolha, careta! vou descartar:
quem não rezou a novena de Dona Canô,
quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor,
quem não amou a elegância sutil de Bobô,
quem não é Recôncavo nem pode ser reconvexo...”

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Pelé não sabia de nada


A última explosão genuína de felicidade de meu pai aconteceu na sala da casa em que morávamos na Rua da Vitória, em Maceió(AL), quando juntos vimos Pelé, aos 29 anos, no auge da maturidade esportiva, receber o passe de Rivellino sobre a grande área, saltar mais alto que o zagueiro Burgnich e cabecear no canto esquerdo do goleiro Albertosi, marcando o primeiro gol da goleada de 4x1 do Brasil sobre a Itália que garantiu a conquista da Copa do Mundo 1970, no México. Era o tricampeonato mundial e a primeira copa transmitida pela TV, ao vivo,  para todo o Brasil. 

Vários torcedores alagoanos comemoravam a conquista na Praça dos Martírios em junho de 1970, em frente ao Palácio do Governo, quando o governador Lamenha Filho,  entusiasmado com a vitória e com o “carnaval” fora de época, abriu mão da homenagem que iria receber — daria nome ao estádio em reta final de construção no Trapiche da Barra — e decidiu ali mesmo batizar a obra reverenciando o melhor jogador do mundo: estádio Rei Pelé.

Meu pai e eu, aos 12 anos, pretendíamos assistir ao jogo de abertura do novo estádio "ao vivo e a cores, sem direito a replay", como se dizia naquela época. Contávamos os dias que faltavam para ver de perto o rei do futebol, mas isso acabou não acontecendo. O dinheiro que seria gasto com as entradas foi  utilizado no sustento da família  pai, mãe e nove filhos

Pelé, claro, não sabia de nada.

Quatro meses depois, em outubro de 1970, diante de quase 46 mil torcedores, o Santos FC inaugurava o Estádio Rei Pelé goleando por 5x0 a Seleção Alagoana, com gols de Douglas (2), Pelé (2) e Nenê. 

Além dele, perdemos a oportunidade única de ver em ação craques como Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Cejas, Djalma Dias, Joel Camargo, Ramos Delgado e Rildo, todos com passagem pelas seleções de Argentina ou Brasil.

Em menos de dois anos (maio de 1972), meu pai partiu sem nunca ter visto de perto Pelé. E eu só fui conhecê-lo em junho de 2013, na área nobre multiuso do Estádio do Morumbi, em São Paulo, quando do lançamento do projeto Brasil... um país, um mundo, exposição itinerante de acervo de peças históricas, como camisas usadas em jogos oficiais, troféus, medalhas e chuteiras, que passaria pelas 12 cidades-sede da Copa do Mundo 2014.

Pelé, mesmo sem coroa, naquele dia entrou no salão de forma soberana,  atraindo para si todas as atenções. Havia certo alvoroço, barulho surdo e confuso, onde várias pessoas falavam ao mesmo tempo, mas em voz baixa, com todo o respeito. Ali estava um herói na acepção da palavra,  alguém que mudou o rumo da história de sua nação e será sempre lembrado por seus feitos. 

Tanto pelo Santos FC, onde conquistou todos os títulos possíveis — estaduais, nacionais, sul-americanos, mundiais —,  como pela Seleção Brasileira, pela qual é até hoje o único atleta três vezes campeão do mundo, em 1958, 1962 e 1970. De quebra,  ninguém conseguiu marcar quase 1300 gols em pouco mais de 1300 partidas, números que traduzem quem foi o Atleta do Século 20 de todos os esportes,  segundo o jornal francês L'Equipe

Até nos Estados Unidos, em seu último contrato profissional com o New York Cosmos,  entre 1975 e 1977, ele atraía todas as atenções. A ponto de um certo senhor grisalho, ao recebê-lo na Casa Branca, ter a humildade de reconhecer: “Muito prazer, eu sou Jimmy Carter, presidente dos Estados Unidos. Você não precisa se apresentar. Pelé todo o mundo conhece.”

Nem tanto, Mr. Carter! Eu era parte de “todo o mundo” e, como muita gente, nem sequer havia chegado perto dele. Por isso, aproveitei alguns minutos de sua atenção naquela manhã de terça-feira no Morumbi para, numa rápida conversa ao pé do ouvido, contar o que acontecera comigo e meu pai em 1970, quando não pudemos vê-lo atuar em Maceió com a camisa branca mais famosa do planeta

Pelé, óbvio, nunca soube de nada.

Reencontramo-nos no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, no final de 2013, na abertura oficial da exposição  Brasil... um país, um mundo, em Brasília. 

Pelé já sabia de tudo. Como se fosse um velho amigo, o rei me trouxe uma versão nova, autografada, do manto sagrado com que encantou plateias pelo mundo afora, que guardo comigo para o resto da vida. Afinal, como dizia o falecido craque húngaro Ferenc Puskas, “o melhor jogador de todos os tempos foi Di Stefano; Pelé não era deste mundo”. 

Noutro plano qualquer do universo, meu pai certamente ficou feliz, como se estivesse na sala da casa em que morávamos na Rua da Vitória, em Maceió, há quase meio século. "O passado não reconhece seu lugar: está sempre presente", diria o poeta Mario Quintana

Eu bem queria tê-lo a meu lado quando estive com Pelé! Teria sido perfeito. Mas a vida, que sempre faz da gente o que bem quer, quis de outro jeito.


quinta-feira, 4 de abril de 2019

E se essa história fosse outra?

Outro dia o presidente do Banco do Brasil requentou em forno microondas o debate sobre privatização ao declarar que se isso acontecer a empresa se tornará mais eficiente, embora reconheça que o tema não está na agenda do atual governo. Foi o bastante para reaparecer na mídia e nas redes sociais discussões acaloradas, cada lado com suas verdades inflexíveis. 

 

A declaração me fez refletir sobre os graves problemas na educação pública brasileira, onde ainda existem crianças no 6º ano do ensino fundamental que não sabem ler nem escrever. Esse fato, inclusive, para mim reflete a atual estrutura educacional do país, caracterizada por um círculo vicioso que começa em baixa remuneração, passa por despreparo de professores e diretores, instalações precárias, evasão escolar, até omissão de pais na educação de seus filhos, como se essa tarefa fosse exclusivamente da escola.

 

Sem desmerecer o papel do banco na história do desenvolvimento econômico nacional, pode-se indagar: e se D. João VI, depois de algumas garrafas de vinho na noite anterior ao dia 12 de outubro de 1808, decretasse a abertura do que chamarei EducaBrasil S/A, empresa fictícia de economia mista que passo a detalhar mais adiante, em alternativa à criação do banco?

 

Claro que era importante a abertura de um banco para atender às demandas iniciais de uma economia incipiente, mas já existiam banqueiros europeus que enxergavam boas perspectivas de negócios com a chegada no Brasil da família real. E duvido que esses banqueiros falissem por conta dos elevados saques realizados quando do retorno de D. João VI a Portugal, como aconteceu com a instituição duas décadas depois, em 1829. 

 

E se durante os últimos dois séculos todos os recursos públicos e privados investidos no banco (humanos, materiais e tecnológicos) fossem direcionados para a educação, de primeiro e segundo graus, em “agências” de ensino-aprendizagem estruturadas do Oiapoque ao Chuí?

 

E se os professores, bedéis e diretores dessas agências fossem capacitados não para distribuir crédito rural subsidiado na abertura de fronteiras agrícolas  um dos motivos da brutal concentração de renda neste país , mas sim para discutir no meio rural coisas como: manejo de águas e solos, controle de pragas, diferença entre plantar para vender e vender para plantar?

 

E se outros colaboradores fossem treinados não para abrir contas correntes ou fazer pagamentos e recebimentos, mas sim para disseminar no meio urbano coisas como: mapeamento de ameaças e oportunidades de negócio, gestão de recursos escassos, redução de desperdícios, diferença entre causa e consequência de problemas econômico-financeiros?

 

E se a proposta didático-pedagógica da EducaBrasil S/A incorporasse algumas ideias de Frei Betto abordadas em seu artigo A escola de meus sonhos? Para ele, na escola ideal não haverá temas tabus. “Todas as situações-limites da vida devem ser tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, enfermidade, sexualidade e espiritualidade... o texto dentro do contexto: a matemática busca exemplos na corrupção... o português, ...nos textos de jornais; a geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a física, nas corridas da Fórmula 1 e pesquisas do telescópio Hubble; a química, na qualidade dos cosméticos e na culinária; a história, na violência de policiais a cidadãos, para mostrar os antecedentes na relação colonizadores-índios, senhores-escravos...”

 

Com esse caldo de cultura devidamente encorpado ao longo de dois séculos por colaboradores fiéis, certamente a EducaBrasil S/A teria contribuído bem mais que um banco para alçar o país a degraus mais elevados de desenvolvimento socioeconômico. 


Colaboradores fiéis não só por conta da missão de educar gerando cidadania e resultados tangíveis para a sociedade, de receber por isso bons salários e benefícios, mas principalmente porque acionistas e empregados, juntos, haveriam de estruturar um grande fundo de pensão, aposentadoria e saúde, que seria percebido como o maior fator de atração e retenção de pessoas na empresa.

 

E se alguém cogitasse privatizar a EducaBrasil S/A, a própria sociedade estaria madura e preparada para dizer se vinha sendo bem servida, ou não. Afinal, como disse Deng Xiaoping (1904  1997), líder político que fez da China o país de maior crescimento econômico do planeta, “não importa se o gato é preto ou branco, desde que pegue os ratos”.


sexta-feira, 29 de março de 2019

Detalhes tão pequenos de nós dois

Quem de nós não viveu um grande amor nos anos 70 ou 80 e não temia ver tudo acabar da noite pro dia? 

Quem de nós não ouviu a voz dele no toca-fitas dizendo que não adiantava nem tentar esquecer, pois durante muito tempo em nossa vida ela (ou ele) iria viver? 


Quem de nós nunca parou para ouvir aquela canção simples, ingênua até, onde ele nos alertava de que pequenos detalhes seriam coisas muito grandes pra esquecer? Mais que isso: que a toda hora iriam estar presentes. E ainda ameaçava: "você vai ver..."



Como quase todo moleque, eu era inseguro, ousado e presunçoso. Tinha lá meus medos mas era meio convencido. Pensava: e se outro cabeludo aparecesse na Rua Goiás - Farol, em Maceió, quando tudo estivesse acabado entre nós, será que isso lhe traria saudades minhas? E quando ela ouvisse o ronco barulhento do ônibus que antes me trazia da Gruta de Lourdes, vestindo minha velha calça desbotada ou coisa assim, será que lembraria de mim?

Era difícil admitir que um outro pudesse falar ao seu ouvido palavras de amor como eu falava, mas duvido que esse alguém tivesse tanto amor e até os erros de meu português ruim! Nessa hora, era possível, ela iria lembrar de mim.

De noite, no silencio do seu quarto, antes de dormir ela iria procurar o meu retrato, mas na moldura não seria eu quem estaria a lhe sorrir, ainda que visse minha cara abusada mesmo assim. Tudo isso, era provável, lhe faria novamente lembrar de mim.

E se alguém tocasse seu corpo como eu? Ela não deveria falar nada! Seria arriscado dizer meu nome sem querer à pessoa errada. Poderia até pensar que havia amor nesse momento e tentar, desesperadamente, até o fim, mas até nesse momento, com certeza, ela lembraria de mim.


Claro que eu sabia que esses detalhes iriam sumir na longa estrada do tempo que transforma todo amor em quase nada. Mas “quase” também era mais um detalhe, porque um grande amor não morreria assim. Se isso um dia viesse a acontecer, eu tinha certeza: ela iria lembrar de mim para sempre. Não, não adiantaria nem tentar me esquecer, porque durante muito tempo em sua vida... 

"O jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da inexperiência..." diria Nélson Rodrigues (1916 - 1980). Tudo não passava dos temores sem motivo que nos atormentam quando ainda somos apenas uma mistura de devaneios, hormônios e incertezas. 




O tempo voa, a vida passa e 40 anos depois, na noite da última sexta-feira de agosto de 2013, surge a oportunidade de uma breve conversa nos camarins do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, que se desenrolou mais ou menos assim:

Eu - Posso lhe contar uma coisa? Suas canções estão em nossas vidas desde o começo dos anos 70, com aquele disco lançado antes do Natal de 1971.
Ele - É mesmo, bicho? Quais você recorda daquele tempo?
Eu - "Traumas", "Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos", "Amada Amante"... mas "Detalhes" era especial. Cheguei a tentar cantar para ela, dedilhando o violão de meu cunhado.
Ele (voltando-se para ela) - E esse cara cantava bem?
 

Eu jurava ter ouvido Magdala responder algo como "nem era necessário...", mas parece que ela apenas sorriu. Acho que estou ficando velho,  o ouvido anda mais seletivo - só escuta o que lhe convém - e a memória já não é a mesma. Se bem que isso é só mais um pequeno detalhe nessa longa história.


sábado, 23 de março de 2019

Que fim levou a caneta do flautista?

Conheci o músico e compositor Altamiro Carrilho (1924 - 2012) na manhã de uma sexta-feira, em 1998, no Recife. À noite, ele exibiria sua arte com a flauta transversal para um grupo de clientes especiais do Banco do Brasil, no auditório do prédio-sede, no cruzamento da Av. Rio Branco com o Cais do Apolo, centro da capital pernambucana.

Com mais de 100 discos, fitas e compact discs gravados em nada menos que 60 anos de carreira, Altamiro Carrilho, junto com outros grandes instrumentistas - Armandinho, Dominguinhos, Paulinho Nogueira, Nivaldo Ornellas, Raphael Rebello, Wagner Tiso etc. -, dois anos antes havia participado do Projeto Tom Brasil, ação de marketing cultural que resultou na gravação e distribuição de caixas-brindes com obras primas daquele timaço de craques da Música Popular Brasileira.

Ao recebê-lo e conversar por mais de hora, percebi que, antes do famoso instrumentista, estava diante de um homem em paz consigo mesmo, ainda entusiasmado, aos 74 anos, com aquilo que fazia, espirituoso, bem humorado, além de protagonista de boas histórias.

Contou que certa noite, sofrendo muitas dores por força de uma apendicite aguda, teve que ir às pressas para o hospital particular mais próximo de sua casa, onde se submeteu a uma cirurgia de emergência. Até desfalecer sob efeito da anestesia, não pensava noutra coisa a não ser sobre como pagaria os honorários do cirurgião, dado que vivia financeiramente sufocado,  como quase todos os músicos brasileiros.

A primeira pessoa que viu ao acordar foi o médico: “doutor, e agora, como vou pagar o senhor?” O médico, sorrindo, teria dito: “o senhor já me pagou há muito tempo e ainda lhe devo troco. Escuto seus discos desde criança e aprendi a gostar de música ouvindo sua flauta maravilhosa”. Óbvio, todo exagero deve ser perdoado quando se trata de gratidão. 

Quando lhe dei de presente uma caneta de luxo com a logomarca do banco, recordou como tornou-se conhecido internacionalmente na década de 60, depois de apresentar-se em vários países: Alemanha, Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, México, Portugal e União Soviética, entre outros.

Numa turnê em 1963, Boris Trisno, um dos mais conceituados maestros russos, após assistir a uma extraordinária exibição dele em Moscou, afirmou que “havia visto um dos músicos mais afinados do mundo e um dos melhores solistas de flauta do planeta”. Resultado: precisou estender a permanência por três meses nas repúblicas soviéticas, por conta de vários convites recebidos para outros shows.

Um dia antes de retornar para o Brasil, o maestro o convidou para o café-dá-manhã, fechando a temporada de forma singular. O russo, encantado com o talento de um dos principais intérpretes de Brasileirinho, Um a Zero e Urubu Malandro, ofereceu-lhe uma velha caneta-tinteiro, “de estimação”, com inusitada dedicatória: “com esta caneta eu assinei o diploma de alguns dos maiores músicos de meu país; ela agora é sua.”

Ao desembarcar no Galeão, no Rio de Janeiro, ainda comovido com tudo o que vivenciara em terras tão diferentes da sua, Altamiro Carrilho tomou um choque quando percebeu que sua mala havia sido violada. Pior, à época ainda não havia câmeras de segurança para flagrar o gatuno que lhe furtou três camisas, duas calças, um par de sapatos e a velha caneta-tinteiro que, por precaução, escondera entre as roupas, temendo perdê-la se a trouxesse no bolso. 

Decepcionado e triste, um dos mais importantes divulgadores do gênero musical de maior brasilidade - o choro ou o chorinho - tomou um táxi, seguiu no rumo de casa e, sem fome ou sede, trancou-se em seu quarto, onde chorou até esgotar seu estoque de lágrimas.

Que fim levou a caneta do flautista desaparecida há mais de meio século? Quando nos conhecemos, 35 anos depois do episódio no Galeão, Altamiro Carrilho acabou esquecendo na sala onde estávamos a caixinha, revestida de veludo azul, contendo a luxuosa caneta que lhe dei de presente. Para mim, agora faz todo sentido. "O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem..." (Fernando Pessoa)

domingo, 17 de março de 2019

Minha contribuição à MPB

Numa manhã chuvosa no Sertão da Paraíba,  no final de 1967, um homem de rosto familiar, usando camisa estampada de mangas compridas, calça de linho e alpercatas, aproximou-se da mesa onde meu pai recebia alguns clientes e pediu: “meu patrão, o senhor me autoriza oferecer este livro ao pessoal do banco?”

O vozeirão denunciou na hora quem chegava, trazendo numa mala de couro vários exemplares de O Sanfoneiro do Riacho da Brígida: Vida e andanças de Luiz Gonzaga. Em final de carreira, o Rei do Baião já vivia uma fase marcada pelo desânimo, apresentando-se em pequenos cinemas e teatros do interior, emissoras de rádio de menor expressão, bem diferente do estrelato de décadas passadas.

Obra do paraibano Sinval Sá (1922 - 2014), foi escrita na primeira pessoa, com base no repertório de palavras do próprio Luiz Gonzaga (1912 - 1989), em narrativa cronológica desde a infância no Exu(PE) entre familiares, passando pela descoberta da música, a fuga de casa depois de uma surra da mãe, a vida militar no Ceará, o início e o apogeu da trajetória artística, incluindo as letras das principais canções, história e estórias até 1966. 

Aos nove anos de idade, aquele foi o primeiro livro  - grosso, sem gravuras, igual aos que meu pai enfileirava na estante - que li do começo ao fim, imaginando as cores, os cheiros e os sons do universo sertanejo. Em linguajar matuto, como ouvia meus avós maternos falarem, cheguei a decorar Assum Preto bem antes de ouvir a música pela primeira vez: 

“Tudo em vorta é só beleza

Sol de abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dô

Tarvez por ignorança

Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió 

Assum Preto veve sorto

Mas num pode avuá
Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá 

Assum Preto, o meu cantá

É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amô
Que era a luz, ai, dos óios meu.”

Ao ver aquele interesse todo pelo livro, meu pai deve ter pensado: este menino leva jeito para a música. Resolveu então adquirir um acordeon de 80 baixos e contratar a professora Teresinha, de Patos(PB), para ensinar teoria e prática musicais, inclusive a minha irmã Haydeé, com base no famoso Método de Acordeão Mascarenhas.

Sem o dom natural nem o entusiasmo necessários aos intermináveis exercícios de repetição, mexendo apenas com algumas teclas e baixos, o martírio com pentagramas, claves de sol, bemóis e sustenidos não durou mais que quatro meses. Além disso, lembro até agora do peso do instrumento sobre minhas pernas de criança durante uma hora, três vezes por semana, e da marcha preguiçosa dos ponteiros do velho relógio de parede da casa da professora de música.

A bem da verdade, eu já acusava os primeiros sintomas de uma doença contagiosa que circulava pelo país naquele tempo: o rock’n’roll dos Beatles e a Jovem Guarda de Roberto, Erasmo Carlos e Wanderléa. Queria mesmo era aprender a tocar guitarra elétrica, instrumento à época duramente criticado pelos amantes, como meu pai, da música genuinamente brasileira.

Haydeé ainda estudou piano no Colégio Cristo Rei, mas isso nem de longe passava por minha cabeça. Apesar do sucesso de algumas canções da Bossa Nova que se ouvia na Rádio Espinharas de Patos, tinha certeza de que a molecada da rua em que morávamos não me daria sossego. Para eles, piano era coisa de menina; menino jogava bola, criava passarinhos...

Muito tempo depois, nos anos 90, conheci um paraibano, assim como eu, também nascido nos anos 50, que começou a cantar e tocar acordeon ainda na infância, influenciado por nomes como Luiz Gonzaga e Dominguinhos. Precoce, já aos 10 anos tocava o seu pequeno fole de 24 baixos, animando festinhas na região do Cariri.

Era Flávio José, como eu, ex-menor aprendiz do Banco do Brasil.  Aprovado depois em concurso público, virou funcionário de carreira por mais de 20 anos, até que se demitiu quando sua atividade secundária - o banco, óbvio - começou a atrapalhar sua a dedicação à música.

Intérprete da música romântica nordestina e acordeonista de primeira grandeza, é hoje considerado o nº 1 do xote e do forró pé-de-serra, graças a uma voz afinada e poética, além da criteriosa escolha que faz de compositores parceiros como: Petrúcio Amorim, Flávio Leandro, Nando Cordel, Jorge de Altinho, dentre outros. Com dezenas de álbuns lançados e milhares de shows em mais de 40 anos de carreira, sua arte extrapolou as fronteiras do Nordeste e encanta multidões por todo o Brasil.

Outro dia eu escrevi que ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir. Flávio José é mais uma prova evidente disso. No meu caso, devo reconhecer, minha maior contribuição à MPB foi nunca haver aprendido a tocar um instrumento. 

quinta-feira, 14 de março de 2019

Afinal, por que ainda sorrimos?


Anteontem, um velho amigo escreveu-me lembrando que vivemos um tempo em que as imagens tomaram conta das redes sociais. O texto escrito estaria se acomodando à função de simples legenda. Para ele, isso se deve à facilidade de se produzir e compartilhar fotografias, especialmente porque imagens exigem menos esforço cognitivo para sua apreensão. Disse, no final, que produzir textos escritos é uma forma de resistência, o que, para mim, soou como estímulo para seguir adiante com os textos aqui publicados.

Dedé Dwight, outro amigo, minutos antes havia compartilhado comigo a imagem de uma mãe, com a filha nos braços, em um ponto nobre do Distrito Federal onde pedia esmolas. Quando delas se aproximou com a câmera na mão, a mãe falou preocupada: “a gente vai sair feia...” Ele prometeu que não.  Ao ver o resultado, emocionou-se, catou sem pensar os trocados que tinha e perguntou ao "fotógrafo" quanto custou o trabalho dele.

A primeira reação de Dedé Dwight, óbvio, foi rejeitar qualquer pagamento, mas lembrou que a imagem que buscava captar era justamente para falar de dignidade  amor-próprio, consciência do próprio valor, honra, brio. Não lhe restou alternativa senão aceitar a oferta.

Ao opinar sobre a fotografia, eu lhe disse que, em si, é pura arte, crônica sem palavras do cotidiano das grandes cidades. Pena que as pessoas costumam generalizar e rotular como exploradoras todas as mães que se valem de crianças nos braços, sob sol ou chuva, para comover a população e pedir esmolas com maior chance de êxito. 

Vi outro dia na TV que em algumas capitais brasileiras, com a proximidade do Natal, a mendicância envolvendo meninos e meninas, expostas a drogas e violência, aumenta em até 80% e existem mulheres que chegam a conseguir R$ 30,00 por dia. É muito difícil extrair dignidade em "escolas" desse tipo.


Evidente que se houvessem oportunidades de emprego, creches e escolas públicas em número compatível com os impostos pagos por todos os brasileiros, seria praticamente impossível para  Dedé Dwight conseguir captar aquela imagem.  


Mas o fato concreto é que ele conseguiu e aí cabe a pergunta: quanto de bem e de paz um sorriso de criança – onde o acaso congelou emoção numa pequena língua  pode trazer para o coração de uma mãe que não possui quase nada além de um peito cheio de amor e leite?


Por isso o "fotógrafo" considerou o pagamento mais honroso que já recebeu por algo que realizou. Impressionado com a atitude digna daquela mãe, resolveu doar os honorários recebidos à própria pagadora, cuja vida continua num ponto qualquer da capital de uma das nações mais desiguais do mundo.

Pobre nação. Estaria seguramente entre as principais potências econômicas se lhe fosse possível engarrafar e exportar a dignidade, a resiliência e a alegria gratuita de seu povo.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Jaguar, a lenda ainda ruge


Jaguar (Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe), um dos maiores cartunistas do jornalismo brasileiro, chorava muito numa sala de cinema, no Brasília Shopping, na Capital Federal, onde em 2006 passava alguns dias. Havia acabado de assistir ao documentário Vinícius, dirigido por Miguel Faria Jr., belíssima reconstituição da vida e da trajetória artística do poeta, compositor e diplomata Vinícius de Moraes, com depoimentos de alguns amigos seus em comum com o Poetinha: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar.

Um cinquentão que deixava o cinema, sem se dar conta do que estava acontecendo nem de quem se tratava, perguntou: “já lhe disseram que o senhor é a cara do finado Jaguar?” Na mesma hora, as lágrimas deram lugar a uma sonora gargalhada e o cartunista, ao lado da esposa, foi implacável: “mulher... eu morri e não sabia!”.

Quem me contou isso foi o próprio Jaguar, numa manhã de domingo, na recepção de um hotel na Bahia, enquanto aguardávamos o ônibus que nos levaria ao aeroporto. Ele, a quem me apresentei como admirador de seus cartuns e personagens, achou interessante me ver recordar detalhes esquecidos de alguns de seus trabalhos, graças à concentração com que eu lia toda semana O Pasquim, jornal alternativo de sátira política e contracultura que aprendi a gostar, ainda adolescente, em 1973, com meu cunhado João Veras.

Eu sabia que Jaguar criou O Pasquim, ao lado de Henfil, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Sérgio Cabral, Tarso de Castro e Ziraldo. Comentávamos sobre as reflexões de Sig, ratinho-mascote do jornal inspirado  em Sigmund Freud, fundador da psicanálise,  quando ele cravou morrendo de rir:   “...é meu alter-ego, um ratinho atormentado, cheio de crises existenciais e apaixonado pela atriz Odete Lara, que vivia na maior fossa...” Falamos ainda de Gastão, o vomitador; e de Bóris, o homem tronco. Aí a conversa engatou de vez.

Jaguar lembrou que foi escriturário do Banco do Brasil por mais de 15  anos, emprego que abandonou em 1971. Seu primeiro chefe foi Sérgio Porto (1923 – 1968) que, sob o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, publicou vários livros sensacionais, todos ilustrados por ele: Tia Zumira e Eu; Primo Altamirando e Elas; Rosamundo e os Outros; Garoto Linha Dura; Febeapá – Festival de besteiras que assola o País; Febeapá 2; Na terra do Crioulo Doido; Febeapá 3; A máquina de Fazer Doido e Gol de Padre, dentre outros.

Recordou também da famosa "gripe" de O Pasquim, ironia com que se justificava naquela época a ausência de vários jornalistas presos durante o governo Médici, quando alguns intelectuais (Antonio Callado, Glauber Rocha, Chico Buarque e outros) se juntaram para manter "vivo" o semanário da chamada esquerda festiva carioca.

Um desses colaboradores foi o poeta e cronista Carlos Drumond de Andrade (1902 – 1987), que toda semana fazia questão de levar pessoalmente seus artigos à redação do jornal, na Ladeira Saint Roman, em Copacabana, no Rio. Segundo Jaguar,  “o velho também andava interessando numa boazuda com quem fui casado por uns 10 anos”.

Certo dia, depois de incontáveis doses de uísque, Jaguar encontrou por acaso Drumond  e "soltou os cachorros”, ameaçando-o de "boas pancadas" se insistisse em dar em cima de sua mulher. Assustado, o poeta que um dia escreveu “... O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar...” desapareceu e nunca mais voltou à redação, mas continuou mandando sua contribuição semanal para O Pasquim,  que cada vez mais vinha sendo mutilado pela censura, com cortes sistemáticos de textos, cartuns e charges.

Com seu afiado senso de humor, Jaguar despediu-se naquela manhã em que nos conhecemos com uma gozação típica dele: “como eu fui otário, meu amigo! Perdi a chance de entrar para a história sendo corneado pelo maior poeta da língua portuguesa!” E caiu na maior gargalhada.

Algum tempo depois, em 2012,  li numa entrevista dele a um jornal paulista em que estimava haver bebido, em mais de 60 anos, "uma piscina olímpica de cervejas, sem falar nos destilados: uísque, cachaça, conhaque, rum, vodka, absinto, bagaceira, grapa, sakê, tequila..." Era a explicação para a cirrose e o câncer de fígado que quase acabam antes da hora "o porre" do autor da coletânea de crônicas Confesso que Bebi - Memórias de um Amnésico Alcoólico. 

Carioca nascido em ano bissexto (1932), o lendário Jaguar jura de pés juntos que ainda não completou 22 anos de idade. A última notícia que tenho dele é que continua dando boas gargalhadas, viciado em livros e jornais de papel, em biriba com os amigos e em cervejas... agora, sem álcool. Afinal, a fonte de inspiração do ratinho Sig, seu alter-ego, explicava: "quando a dor de não estar vivendo for maior que o medo da mudança, a pessoa muda."


quinta-feira, 7 de março de 2019

Para o resto da vida


Tudo começou em maio de 1974, aos 16 anos de idade, como menor aprendiz para serviços gerais do Banco do Brasil em Maceió(AL). O que mais queria naquele instante era ser bancário como fora o pai e poder ir ao cinema, tomar sorvete com a namorada, comprar camisas, cuecas, Placar, O Pasquim e cigarros Hollywood, sem pedir dinheiro à mãe.

Gostava de vestir o uniforme azul com a logomarca da empresa no peito e caminhar pelas ruas do bairro onde morava até o ponto do ônibus que o levaria ao centro da cidade. No trabalho, fazia de tudo um pouco, com curiosidade e prazer, desde arquivar títulos e fichas gráficas, organizar filas, fotocopiar contratos, até distribuir documentos entre os diversos setores instalados nos treze andares do prédio da Rua Senador Mendonça  nº 120. E ainda lhe pagariam 327,00 cruzeiros todo dia 20, quase um salário mínimo (Cr$ 376,80, à época). Para Shakespeare, "...são os pequenos acontecimentos diários que tornam a vida espetacular".


Em um final de tarde, sem nenhuma pendência sobre a mesa, assoviava sossegado Wave, de Tom Jobim, quando recebeu de um colega mais velho sua primeira lição corporativa: “Meu filho... quem assovia no trabalho é cortador de cana. Se você não tiver nada pra fazer, pegue algumas folhas de papel e escreva alguma coisa, beba um cafezinho, vá ao banheiro, mas assoviar na hora do trabalho, nunca!”.

Ainda no primeiro mês recebeu sua segunda lição quando um certo administrador lhe determinou: “vá ali na farmácia e compre esses remédios; depois, passe no Bar do Chopp e me traga duas carteiras de Carlton”. Inocente, respondeu da forma como costumava falar com seus colegas de escola: “ã-hã”. O chefão, que naquele momento recebia algumas pessoas a quem talvez precisasse demonstrar poder e força sobre os reles mortais, retrucou soberano: “ã-hã, não... responda: sim, senhor!”


A terceira lição veio quando ouviu seu chefe elogiando um velho colega investigador de cadastro e perito de balanços que, na semana anterior, fora ao cinema e, ao tentar estacionar, por descuido bateu seu carro noutro, parado. Procurou então pelo dono na área e, não o encontrando, deixou um bilhete preso ao limpador de pára-brisas: “Perdão, amigo, por bater em seu carro. Meu nome é... e aguardo seu contato (telefone...) para providenciar o reparo”.


Como ninguém o procurou, na semana seguinte dirigiu-se ao Detran (anotara a placa) e conseguiu identificar o dono que, ainda chateado com o ocorrido, foi direto ao ponto: “O sr. acha que eu seria idiota para acreditar naquele bilhete?” O velho colega, a ética em pessoa, sacou seu talão de cheques e ponderou: “Perdão de novo, meu amigo, mas se não pagar pelo prejuízo que lhe causei, não vou sossegar. Quanto lhe custou o conserto da porta?"


Na véspera do Natal de 1975, ao retornar para casa após seu último dia de trabalho como menor aprendiz, recapitulava sentado à janela do ônibus as múltiplas lições que havia recebido durante um ano e dez meses, desde a dica recebida sobre o assovio inocente de "...vou te contar/os olhos já não podem ver/coisas que só o coração pode entender..."


Tinha agora olhos e ouvidos para ver e escutar apenas o que melhor lhe convinha, sem nunca demonstrar tudo o que a cabeça sabia ou o coração sentia. Era finalmente o que chamam de adulto, essa mistura de sonhos, medos e ressentimentos em que as crianças se transformam para o resto da vida.



sábado, 2 de março de 2019

Lobão, Carnaval e Cinzas


Apareceu lá em casa em outubro de 1995. Meus filhos haviam convencido o avô, Seu Terto, a "financiar" a compra de um filhote poodle. Na loja, franciscanamente optaram pelo mais quieto e frágil da ninhada. “...Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome para lhe dar...”, diria Chico Buarque. Mas nada que amor, carinho, vacina e ração de boa qualidade não pudesse resolver.

Quando passamos a morar em Pernambuco, em 1996, a cada duas semanas levávamos Lobão - homenagem ao vilão de “Os Três Porquinhos”, de Walt Disney - para a Praia de Ipioca, em Alagoas, onde filhos e sobrinhos o desafiavam simulando afogamento, ao que aquele magricela corajoso reagia nadando contra a maré até “resgatar” todos os seus “amigos”.

Na véspera do Carnaval de 2001 já estávamos no Planalto Central, depois de breve temporada na Bahia, quando Magdala, minha mulher, tanto insistiu que embarcamos para Recife(PE) para assistir ao “Galo da Madrugada”, que prometia arrastar um milhão de foliões pelas pontes e ruas da cidade no dia seguinte, sábado de Zé Pereira.

Deixamos Lobão em um canil no Lago Norte até a quarta-feira de Cinzas, quando voltaríamos, mas fomos obrigados a retornar às pressas no domingo, após a notícia de que ele havia desaparecido. Da hora que pousamos em Brasília até a terça-feira de Carnaval, vasculhamos cada pedaço daquela região a sua procura, mas sem sucesso. Como último recurso, resolvemos distribuir cartazes e faixas do tipo “procura-se” no raio de 10 km do local de onde sumira.

Na tarde de terça-feira veio o telefonema do canil nos avisando de que ele fora encontrado, ainda no sábado, por um garoto que se divertia com um jet ski no Lago Paranoá. Lobão bem que tentou atravessar aquele "oceano nada pacífico" no rumo da Asa Sul, onde morávamos. Muito debilitado, com todas as articulações lesionadas pelo esforço feito, com infecção intestinal, permaneceu horas a fio debaixo de uma cama onde residia o garoto que o abrigou, praticamente sem alimentar-se, até ouvir alguém chamá-lo pelo nome familiar aos seus ouvidos, descrito nos cartazes e faixas. 

De volta para casa, recuperou-se rapidamente. E a notícia da aventura correu pela Super Quadra Sul 114, na manhã de quinta-feira pós-Carnaval, onde um intrépido Lobão cuidava de remarcar seu território a cada poste que encontrava pela frente. Logo, viu-se apelidado pelos porteiros e zeladores do prédio de “Gustavo Borges”, nadador olímpico brasileiro medalha de prata nos 100 metros livres nas Olimpíadas Barcelona 1992 e nos 200 metros livres em Atlanta 1996, que participou de quatro Olimpíadas.

Vitima de edema agudo de pulmão, decorrência de uma gastroenterocolite bacteriana, o velho e destemido Lobão  - que já vinha recebendo cuidados especiais na condição de cardiopata e nefropata - tombou no Verão de 2013, aos 18 anos de idade. Foi sepultado com "honras militares e salva de tiros" no quintal de nossa casa, no Jardim Botânico, em Brasília, onde viveu seus últimos dias.

Eu sabia que desagradava algumas pessoas naquele tempo, mas juro que estava sendo absolutamente justo e sincero quando afirmava: “... quanto mais conheço o ser humano, mais admiro Lobão!”. Ele nunca foi ingrato, dissimulado, grosseiro ou desleal conosco. Mostrava-se sempre agradecido pelo carinho que recebia, era fiel, solidário e transparente. Um ser do bem, que tornou inesquecível o Carnaval de 2001 e, anos depois, deu o tom acinzentado definitivo, da cor de seu pelo,  à “Síndrome do Ninho Vazio” que se instalava em nossa casa.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Achados e perdidos


Quem nunca passou pela angústia de ter um filho ou um irmão perdido na multidão,  no shopping, na feira livre ou na praia? Para Einstein, "só há duas maneiras de viver a vida: a primeira é vivê-la como se os milagres não existissem; a segunda é vivê-la como se tudo fosse milagre." 

A primeira vez que vi o mar foi aos 12 anos, no início de 1970, em frente à AABB Maceió. Meus pais se esforçavam para cuidar de nove filhos espalhados na areia, onde uns rolavam, outros faziam castelos e os mais ousados, afeitos à correnteza do Rio Mundaú, arriscavam molhar os braços e as canelas finas na espuma das marolas, encantados com o céu e o sol daquela manhã de domingo. 


Minha mãe, responsável inclusive pela “segurança alimentar” daqueles matutos, trazia numa sacola mangas-espada e bananas-prata, além de algumas garrafas de água potável. Tudo transcorria muito bem até minha irmã Zuleide (Galega, seis anos) desaparecer naquela multidão de rostos e corpos desconhecidos.



“Galega! Galega!”, gritava uma mãe  desesperada com a possibilidade de nunca mais encontrar a filha, sem saber se corria no rumo da favela de Ouricuri, da Praia da Avenida ou, no pior dos mundos, se procurava a menina nas ondas traiçoeiras da Praia do Sobral, que já era tida como uma das mais perigosas da cidade. E os irmãos, assustados e confusos, entreolhavam-se sem saber o que fazer, temendo agravar o quadro numa eventual dispersão.

Três anos antes, numa daquelas comilanças ao ar livre na zona rural de Patos, no Sertão paraibano, a família já havia passado por agonia parecida quando meu irmão Hélder (Dula, cinco anos, à época), ao perseguir alguns perus, embrenhou-se na mata e não soube mais retornar. A aflição foi enorme porque não se tinha a mínima ideia de onde começar a procurá-lo naquela caatinga cheia de espinhos.

Milagres acontecem. Na praia, Galega foi encontrada meia hora depois nas proximidades do Club Fênix Alagoana, sob a proteção do Corpo de Bombeiros. Na mata, o caso Dula havia sido mais complicado. Meu pai precisou mobilizar alguns vaqueiros a fazerem uma varredura como se procurassem um bezerro desgarrado, até localizar a criança, de tardezinha, dormindo à sombra de um juazeiro, com fome, sede e cansado de tanto soluçar em vão.




Vinte e um anos depois, em 1991, foi a vez de Hélio (Lica, 31 anos). Ninguém desconfiava de que ele desenvolvera um aneurisma cerebral - dilatação anormal de um vaso sanguíneo por perda de elasticidade - que se rompeu justamente numa manhã de sábado, quando se divertia jogando futebol com colegas de trabalho no campinho do clube recreativo da Caixa Econômica, em Riacho Doce. Mesmo forte e novo, ele não conseguiu recuperar-se da intensa hemorragia craniana que lhe fez desaparecer para sempre da mesa em que almoçávamos, quase todo sábado, na velha casa da Gruta de Lourdes.

Todos nós sofremos e choramos, cada qual do seu jeito, o martírio daquele novo desaparecimento em nossa família, ainda que alimentássemos a esperança de que um bombeiro, um vaqueiro ou até mesmo um neurocirurgião nos traria ele de volta. Nem tanto por nós, que já éramos bem crescidos, mas pelos seus filhos inocentes que, assim como o próprio Hélio (Lica), ficaram órfãos de pai antes da hora. 


Milagres nem sempre acontecem. Viver é sobreviver para colecionar memórias  numa gaveta de achados e perdidos que temos dentro de nós.