quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Quando a vida pede passagem



Em sua crônica “Antes que eles cresçam”, o escritor e poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna foi muito feliz ao dizer que “… O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco…”

Com apenas 27 semanas de gravidez, Renata teve que se submeter a uma cesariana bem antes da hora para receber meus primeiros netos, Breno e Camila. O rompimento acidental da bolsa, aliado à perda de líquido, a colocava com os filhos em extremo risco de infecção se nada fosse feito.


Ao nascer, cada bebê pesava menos que 1 kg e ambos poderiam ser transportados numa caixa de sapatos. Eram o que chamam de prematuros extremos. Médicos dizem que bebê que nasce antes das 36 semanas é considerado prematuro. Antes de completar 28, como meus netos, é prematuro extremo – os órgãos já estão formados, mas são muito imaturos.

Na agonia daquelas primeiras horas, para mim foi um tiro no pé recorrer a experts no assunto em busca de maior conhecimento. Fiz isso e entrei em pânico ao saber que prematuros extremos têm maior taxa de mortalidade e podem apresentar problemas na visão, dificuldades na alimentação e para respirar, além do risco de contrair infecções, dada à imaturidade do sistema imunológico.

Meu filho Leopoldo e sua mulher, Renata, viveram semanas de angústia e incerteza, de luta e esperança. Após o parto, durante o Carnaval de 2008, foram 46 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI neonatal) do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, com toda sorte de intercorrências.

Breno não amadurecera por completo o aparelho respiratório e teve até pneumotórax. Camila, o aparelho digestivo. A ponto de, por muito tempo, não digerir sequer uma gota de leite materno.

Toda noite pedia em minhas orações que ficasse conosco pelo menos uma das crianças para que o sofrimento de todos não fosse tão pesado, como se a dor pudesse ser repartida, atenuada, se o pior viesse a acontecer. No desespero, não sabia nem rezar direito. Deus que se virasse para entender pedidos tão confusos.

Foi quando Zé, um velho amigo mineiro, dotado de muitos saberes mas leigo em ciências médicas, perguntou como estavam os recém-nascidos e compartilhei com ele aquilo que se passava, inclusive minha pouca fé na sobrevivência dos dois. Então me disse algo mais ou menos nessa linha: “não fique tão preocupado... a vida quando brota faz de tudo para vingar...”

Arrepiei. Impressionou-me o fato de um ateu convicto como ele ter feito um milagre naquele instante: reabastecer meu estoque de esperança, que já andava na reserva. Quando a gente muda o jeito como encara as coisas, o que vemos acaba mudando de lugar.

A vida pedia passagem. Já era Páscoa quando Breno e Camila finalmente chegaram em casa, com saúde e em paz. Hoje, quase 12 anos depois, continuam muito bem, a viverem agora em São Paulo no esplendor da pré-adolescência, com as cores, os amores e os humores da hora.

Semana passada toquei no assunto com Zé. Indaguei se, após tanto tempo, ainda recordava de nossa conversa, ao que respondeu que lembrava sim, perfeitamente. Disse ainda que cada vez que vê fotografia dos gêmeos, conscientiza-se do “milagre”, como que reafirmando a força e os mistérios da vida, insondáveis para nós.

Garantiu de novo que há coisas que não dominamos, não podemos racionalizar. Que não podemos querer ter o controle de tudo. A vida tem seus caprichos e desígnios. Essa seria sua beleza!

"...Todos nós dançamos numa melodia misteriosa, entoada à distância por um músico invisível...", diria o físico Albert Einstein (1879 – 1955).

Era madrugada. Fui para a varanda e deitei na rede, a esperar o sol nascer, rever fotografias de Breno e Camila na linha do tempo e a ouvir Caetano Veloso: “...o tempo não pára e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são, é o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão...”

Logo depois o sol nasceria na hora certa, maduro, como sempre acontece. Na leveza do primeiro sono, cheguei a ver o vulto de meu velho amigo Zé emergindo das águas da praia de Pajuçara, em Maceió, a cantarolar: “...Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar...”

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Menino Maluquinho



Mineiro de Caratinga, 86 anos, cartunista, desenhista, dramaturgo, escritor, jornalista e pintor, conheci o grande Ziraldo pouco antes do Natal de 2004, em Brasília, na entrega de uma decoração bem tupiniquim que havia preparado para a fachada da principal agência do Banco do Brasil. 

Naquele ano, o tradicional Papai Noel de barbas brancas, botas pretas e roupão vermelho, dividiria o cenário com a Turma do Pererê, que marcou época nas histórias em quadrinhos no Brasil. 

Além do folclórico Saci Pererê, integrava o grupo um índio e vários animais (macaco, coelho, onça, jabuti e tatu) de uma floresta que nunca será queimada pela ganância dos homens porque vive no coração da criança que ainda existe dentro de muitos de nós: a Mata do Fundão. 

No meio daquela tarde, confesso que tive pena de Fonseca, meu velho e bom parceiro de tantas lutas, que por algum motivo besta – trabalho, por exemplo – não pôde ir ao evento comigo ver de perto, em carne e osso, um de nosso ídolos. Nunca mais teríamos outra oportunidade.

Ziraldo também é "pai" de outro personagem maravilhoso, bem urbano, criado na metade dos anos 60: Jeremias, o bom. Diferente do famoso Amigo da Onça, de O Cruzeiro – revista semanal de cabeceira de meu pai –, era generoso, humilde, solidário, e suas tiras me encantavam, ainda que não tivesse maturidade suficiente para entender o conteúdo político delas. 

Assim que pude, puxei conversa perguntando se recordava uma tira em que Jeremias, sensibilizado com tantas crianças a vender confeitos na porta do cinema, comprara o estoque geral da molecada e acabou diabético. Ele sorriu, respondeu "sim" e quis saber como eu lembrava daquilo. Aí a conversa pegou pressão de vez.

Havia lido em algum lugar que os nomes do casal Zizinha e Geraldo deram origem ao nome do filho.  Talvez por isso, achava que o personagem fosse inspirado no "velho". Mas Ziraldo esclareceu que nunca se inspirava numa única pessoa: "...todos nós conhecemos alguém daquele jeito... tanto que na época em que foi criado, muita gente ganhou apelido de Jeremias...”. Coisa de gênio. Recordei na hora de almas boas que cruzaram meu caminho – Albanise, Arnaldo, Cristiano, Tania Santos, entre outras – e me ensinaram a seguir em frente com mais leveza.

Conversamos também sobre a crise que acabou fechando as portas da editora Codecri, cujo carro-chefe era O Pasquim, o semanário mais bem-humorado do Brasil que, no início dos anos 70, chegou a vender 250 mil exemplares por semana.

Se sobrava talento artístico e literário na turma de O Pasquim – ele, Henfil, Jaguar, Millôr, Francis, Claudius, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Luís Carlos Maciel, Sérgio Cabral (o pai), Miguel Paiva, entre outros , faltava maior traquejo de gestão, organização. Segundo Ziraldo, a Codecri chegou a ter cinco obras no ranking Veja dos livros mais vendidos. Mas o que faturava, sumia em brigas internas, processos judiciais, multas e farras. Muitas farras. 

Da editora Codecri – acrônimo de "Comissão de Defesa do Crioléu", inventado pelo magistral cartunista Henfil , além de uma dívida enorme, impagável, restou o legado de O Pasquim, que se tornaria símbolo do jornalismo irreverente e contestador ao regime militar. 

Ziraldo passaria a escrever livros infantis e, em 1980, lançou O Menino Maluquinho, um dos maiores fenômenos editoriais brasileiros de todos os tempos. Obra que já foi adaptada para cinema, teatro, ópera infantil e até videogame, já ultrapassou a 100ª edição, com mais de 2,5 milhões de exemplares vendidos, em 11 idiomas e 21 países. Além do papel, tem versão digital e é o terceiro e-book mais baixado do país.


Dia desses correu o boato nas redes sociais da morte de Ziraldo. Ele mesmo desmentiu ao postar foto no Instagram,  vivo e brincalhão como sempre. Andava sumido desde que sofreu derrame em 2018, quando foi internado em estado grave mas conseguiu recuperar-se, recebendo alta um mês depois.


Boato é coisa de gente ruim, sem coração. Ziraldo não morrerá jamais. Pelo menos enquanto houver por perto de nós um menino maluquinho com "o olho maior que a barriga, fogo no rabo e vento nos pés". Que ri dos outros, cria estórias, sabe de tudo, menos ficar quieto, vendo o tempo passar na janela. Que vive se machucando, inclusive por dentro. Como qualquer um de nós.


quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Chatice tem cura

Ninguém discorda de que hoje em dia anda muito chato ver futebol, tanto nos estádios quanto pela TV, principalmente depois que apareceu o árbitro assistente de vídeo (VAR, em inglês), que busca justiça no resultado sem tirar a graça do esporte, mas que joga água fria na fonte primária de onde emana o calor do jogo: o grito de gol, agora solto em duas parcelas.

Sei que muito dessa chatice tem a ver com o reduzido número de gols por partida. Também com o fato de o jogo ser paralisado a todo instante por conta da evolução física dos atletas e pela mistura de covardia e vaidade do árbitro, a recorrer à cabine do VAR mesmo quando convicto de lances óbvios. Claro, ele precisa de exposição midiática "espontânea" onde antes não havia. Foram transformados em totens de "merchandising" e o anunciante cobra com razão a visibilidade de sua marca.

Gols não deveriam ser escassos. Se a dose certa de adrenalina provoca êxtase, ninguém deveria ficar satisfeito com escore abaixo de 3x3, isto é, um mísero gol marcado a cada 15 minutos. A emoção do basquete com seus placares elásticos é  indício de que o momento de gozo do futebol nunca será vulgarizado se acontecer com maior frequência.

Três remédios me ocorrem para arejar o ambiente: a) o lateral poderia ser cobrado com os pés, assim como acontece com os escanteios; b) os escanteios deveriam ser cobrados do ponto em que a linha de fundo é interceptada pela linha da grande área; c) após cinco faltas coletivas, poderia ser marcado tiro livre direto da meia lua do infrator, sem direito a barreira, admitindo-se, contudo, que o goleiro possa sair da baliza quando autorizada a cobrança da infração.

Mais três receitas simples para intensificar a dinâmica do jogo, com reflexo direto nas situações de gol: a) a partida deveria ser disputada em dois tempos cronometrados de 30 minutos, com intervalo para descanso de 10 minutos; b) as equipes contariam apenas com 10 jogadores (inclusive o goleiro), permitidas até cinco substituições; c) o time com a posse da bola, ao ultrapassar a linha central, ficaria impedido de retornar ao próprio campo, sob pena de tiro livre direto.

Há até quem defenda acabar de vez com a regra mais difícil de ser aplicada: a do impedimento. Discordo.  Seria chato  – e basta de chatice! – ver um brucutu colado no goleiro adversário durante toda a partida. Mas entendo que a regra poderia ser aplicável apenas a partir de uma linha intermediária, a ser introduzida nas duas metades do campo de jogo, entre as linhas de fundo e divisória do campo. 

Sobre o VAR, reconheço: é a credibilidade do futebol que está em jogo. Mas concordo com um amigo quando diz que, assim como no vôlei, deveriam deixar com os treinadores a prerrogativa de pedir a revisão eletrônica. Cada time teria o direito de acionar o árbitro de vídeo por duas vezes a cada tempo. Ficaria menos midiático e acabaria com a mistura de covardia e vaidade que se vê atualmente. 

Estou seguro de que essas modificações teriam o condão de estimular o surgimento de novas estratégias e táticas de jogo, de preparação física, por combinar redução do número de atletas na disputa, ampliação de espaços e maior tempo de bola em jogo. Com um detalhe muito importante: a implantação não implicaria gastos adicionais com aumento de campo, balizas ou aparato tecnológico. 

Você, que, assim como eu, já viveu um pouco mais, deve lembrar de "General", personagem de “Viva o Gordo”, da “TV Globo”, criado por Jô Soares. Amigo do então presidente Figueiredo, sofrera um acidente e passara seis anos em coma. Ao despertar, ligado a aparelhos hospitalares, descobriu que já não havia ditadura e que seu amigo não ocupava mais a presidência; pior, quem sentava na cadeira agora era Sarney, um civil. "General" enlouquecia toda vez que era contrariado pela realidade dos fatos: “Me tira o tubo! Me tira o tubo!”

Do jeito que o futebol anda chato, se nada for feito para soprar as brasas dessa paixão, daqui a pouco todos nós, amantes do esporte, teremos que macaquear o personagem inconformado de Jô Soares e pedir que nos desliguem os aparelhos.

Pode ser melhor assim. Nem teria mais que ouvir Tite falar das  "sinapses no último terço" ou dos "extremos desequilibrantes". Haja saco!    

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Papo reto


Era o próprio coronel Amaral, ex-secretário de Segurança Pública de Alagoas, que, no final do século passado, já se dizia adepto do discutível lema “bandido bom é bandido morto” ou “direitos humanos só para humanos direitos”. Ai de quem duvidasse disso!

Conheci-o em meados de 1995. Acompanhava numa audiência, que me solicitara no dia anterior, seu velho amigo oficial da reserva do Exército, coronel Humberto Bezerra, sócio-proprietário e então presidente do BicBanco, credor de várias operações vencidas em nome de prefeituras alagoanas.

Embora o Banco do Brasil fosse responsável pelo pagamento  do Fundo de Participação dos Municípios – por ordem do Tesouro Nacional –, esclareci que não seria possível retirar das contas das prefeituras os valores em atraso sem expressa autorização. Mas me dispus a orientar nossos gerentes para que tentassem convencer os prefeitos a renegociarem as dívidas atrasadas.

Satisfeito com o desfecho da audiência, o coronel Amaral fez questão de registrar na saída: “Soube que você chegou criança aqui em Alagoas e vejo que é gente boa. Se precisar de mim, é só ligar. Nada como uma conversa franca pra conhecer uma pessoa...”. Devia falar daquilo que hoje em dia a molecada chama de um papo reto.

No dia seguinte, chegou à recepção da superintendência um pacote em meu nome, contendo algo incomum: um revólver calibre 38, prateado, seis balas, com documento de porte, segundo o remetente para “minha defesa pessoal”. Do seu jeito, quis o coronel apenas ser gentil, retribuindo a atenção dispensada a seu antigo colega de farda.

Com três filhos menores e sem nunca haver disparado um tiro sequer – a não ser de espingarda de ar comprido em "tiro ao alvo" de festas no Interior –, pensei em me desfazer do “mimo” mas logo percebi que não seria tão simples. Estava registrado em meu nome e poderia me complicar em eventual exame de balística, caso fosse utilizado de forma criminosa por terceiros.

Devolver poderia ser interpretado como desfeita de minha parte. Resolvi então separar os projéteis da arma de fogo e escondê-los até o dia em que deixasse Alagoas. O sossego só reapareceu lá em casa bem mais tarde, quando da campanha nacional de desarmamento da população.

Menos de três meses depois recebi o gerente de uma de nossas agências, bastante assustado com uma ameaça de morte que teria sofrido naquela manhã. Ele vinha conduzindo inquérito administrativo para apuração de irregularidades que poderia resultar na demissão de uma pessoa.

Contou-me que alguém ligou perguntando se ficara satisfeito com a peixada que comeu no almoço do dia anterior (um domingo), ao lado da mulher e dos filhos pequenos, num restaurante próximo de sua casa. Em seguida, perguntou se não temia o que pudesse acontecer, caso insistisse em prejudicar a vida dos outros.

Ouvi o relato e questionei se por acaso fazia ideia de quem estaria por trás daquela ameaça. Disse que desconfiava que poderia ser algum parente da pessoa que estava respondendo ao inquérito administrativo. Mas como não havia provas, não queria, óbvio, fazer ilações, levantar falso testemunho. 

Não era a primeira nem seria a última vez que me procuravam em pânico, sob ameaça, mas algo me dizia que se tratava de coisa mais séria. Era nessas horas que me perguntava diante do espelho: isso aqui é mesmo atividade bancária? Quem disse que "cão que late não morde"?

Lembrei do coronel Amaral, peguei o telefone e pedi sua opinião sobre o caso. Contei os fatos rigorosamente como me foram relatados. No mesmo dia, foram intimados a comparecer à Secretaria de Segurança Pública:  o gerente que se sentia ameaçado, a pessoa que poderia ser demitida e alguns de seus familiares, escolhidos, claro, nem tanto aleatoriamente.

Conhecido por seu temperamento imprevisível, o coronel começou a reunião em tom amistoso, falando sobre a enorme admiração que nutria pelo BB, do respeito pelo superintendente que conhecera havia pouco tempo, até chegar à ligação que recebera, reproduzindo-a passo-a-passo, esmiuçando cada detalhe de forma mansa e didática.

De repente, seu rosto transfigurou, ficou encarnado. Voltou-se então para os familiares – que ouviam a tudo com ar de “onde ele quer chegar com essa conversa mole?” –, deu um tapa na mesa e esbravejou: “se não for nenhum de vocês, procurem e achem quem anda fazendo isso com o gerente do BB, se não todos irão prestar contas comigo, fui claro?!” 

De fato, nada como um papo reto. Não sei se foi apenas coincidência, mas o gerente pôde concluir em paz o trabalho que vinha fazendo. E nunca mais me procurou para falar de ameaças. Só de atividades bancárias.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Fantasmas não existem


Nomes agora não vem ao caso, mas tudo aconteceu ali na metade de 2002. 

Minha secretária sentiu-se aliviada quando lhe pedi que passasse a ligação telefônica de uma mãe desesperada, a dizer que só faria uma denúncia gravíssima se falasse diretamente com o diretor.

– Bom dia, posso ajudá-la?
– Não acredito! É o senhor mesmo?
– Claro. Pode falar, por favor.
– O senhor sabia que meu filho está perdendo o emprego porque é negro?
– Isso é muito sério. Conte mais, por favor.
– Ele é bom filho, estudioso, inteligente, mas trabalha no meio de gente metida a besta... Sofre muito. Sabe que vai ser demitido.
– Qual o nome completo dele? Vou ver o que está acontecendo e falo de novo com a senhora ainda hoje.
– Moço, me ajude! Meu filho não pode perder esse emprego. A gente é pobre, ele é nossa esperança...

Vi que se tratava de funcionário no último mês do chamado estágio probatório de 90 dias – processo que visa aferir se a pessoa aprovada em concurso público possui aptidão e capacidade para o desempenho do cargo no qual ingressou – que antecedia o ingresso em definitivo na empresa.


Morador de Samambaia, fora chamado rigorosamente dentro da ordem classificatória de aprovação no concurso público.  Preencheria vaga na unidade instalada no Itamaraty, Esplanada dos Ministérios, em Brasília.


A cidade-satélite de Samambaia, hoje com mais de 230 mil habitantes, nasceu oficialmente em 1985, com a remoção de áreas ocupadas de forma irregular, como Invasão da Boca da Mata, Asa Branca e outras. Era parte do Núcleo Rural de Taguatinga que, desmembrada, passou a ter administração própria no Distrito Federal.

Itamaraty é o nome do palácio que abriga o Ministério das Relações Exteriores, responsável pelo contato diplomático com governos estrangeiros e organizações internacionais, serviços consulares e toda a burocracia relacionada à proteção da imagem do Brasil no exterior.

Pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, código do consumidor, avaliação de desempenho, tarefas escolares na faculdade etc. –, o rapaz acabou desorientado, perdido.


Já não interagia de forma espontânea com clientes – boa parte engravatada, culta, poliglota, natural no recinto – nem com colegas de trabalho. Também demonstrava insegurança ao prestar esclarecimentos, pouca iniciativa e, por isso, havia "dúvida quanto à aptidão para a carreira”, no entender de seu chefe imediato.


À noite, retomei a conversa por telefone com a mãe aflita e disse sem muita convicção  que para mim o caso não envolvia preconceito. Não consegui enxergar com segurança,  naquele dia, se cor da pele, traje humilde e sotaque também  estavam de fato pesando na avaliação preliminar que se fazia.


Mas assegurei à mãe que, se o filho dela fosse bom mesmo, teria noutro ambiente mais duas semanas para provar isso. Já havia orientado meu pessoal a flexibilizar a regra – por minha conta e risco – para que o garoto concluísse o estágio probatório em Samambaia, onde nasceu e se criou.


Duas semanas adiante, liguei pro novo chefe dele para saber o desenrolar dos acontecimentos. A resposta me impressionou:

– O moleque já é o melhor funcionário que temos. A clientela gostou dele, é ligeiro, trabalha feliz e ainda ajuda os colegas porque conhece do serviço como nenhum outro.

Nem recordava mais do caso quando, meses depois, já como superintendente do Distrito Federal – havia sido exonerado do cargo de diretor em meio ao turbilhão de mudanças que sacudiu o país e a empresa no começo de 2003 –, participava de um café da manhã com clientes em Samambaia.


Na ocasião, falaram de uma pessoa que queria me conhecer. Fui até o rapaz que conversava com uma senhora na plataforma de atendimento. Ao me ver, levantou-se e estendeu a mão:

– Muito prazer! Eu queria apresentar minha mãe e agradecer o que o senhor fez por mim.
– Se você quer agradecer a alguém, dê um abraço em sua mãe, uma mulher corajosa, determinada, que nos poupou de um vexame, de cometer uma injustiça.
– Mas se o senhor não ouvisse o que ela tinha a dizer...
– Olhe bem: importante é você perceber que na empresa não existe preconceito. Surgem oportunidades todo dia e para quem quer crescer, o céu é o limite.
– Sei disso...  – respondeu, afagando os cabelos da mãe orgulhosa de seu rebento.

O tempo passou e a última notícia que tive desse colega foi em 2013, mais de 10 anos depois do episódio. Ocupava cargo de confiança na Ouvidoria Interna, canal de comunicação direta dos funcionários, especializada em receber denúncias sobre conflitos, desvios de conduta ética e descumprimento de normas.


Talvez veja fantasmas onde nunca existiram, mas continuo sem respostas para algumas perguntas que me fiz a vida inteira: por que não vi um presidente negro em mais de 40 anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só houve um em mais de dois séculos de história? 


Deve ser por isso que me assombram mais os vivos  com seus preconceitos de cor, gênero, origem, classe social, religião etc.  do que os mortos.      




sábado, 10 de agosto de 2019

O mito Miguel Arraes


Sufocada por dívidas, a Usina Catende teve sua falência decretada pelo Tribunal de Justiça de Pernambuco em 1995, agravando ainda mais o quadro de miséria instalado na Zona da Mata nordestina, com o fechamento de diversas unidades nos anos 90.


O então governador Miguel Arraes, preocupado com sinais iminentes de convulsão social numa das regiões mais desiguais do país, telefonou para o presidente do Banco do Brasil, Paulo César Ximenes, a quem pediu para que a instituição, como maior credora bancária, aceitasse ser representante do síndico da massa falida, única forma que enxergava de recuperar a velha fábrica de açúcar. ”Tudo bem, governador, se é pra tentar manter viva a usina e preservar centenas de empregos, vamos em frente, mas que fique bem claro: não podemos mais emprestar nenhum centavo de dinheiro novo!”, teria dito Ximenes.

Conheci Miguel Arraes de Alencar alguns meses depois, no início de 1996, quando cheguei em Pernambuco para trabalhar na superintendência estadual do BB e fui convidado por ele para conversar sobre o caso “Catende” no Palácio Campo das Princesas. Sabia que se tratava de um advogado, economista e ex-exilado político, que fora prefeito da cidade de Recife, deputado estadual, deputado federal e por duas vezes governador do estado, no exercício do terceiro mandato.


Descrente quanto ao sucesso do processo em andamento, tentei ser objetivo, indo direto ao ponto já na abertura da reunião: ”governador, com todo respeito que o senhor merece, não vejo como o banco possa evitar a falência da usina, que está devendo a trabalhadores, fornecedores de cana, governo, previdência e bancos, o equivalente a dez vezes o valor das máquinas e das terras que possui.”


Arraes acendeu o cachimbo, deu duas ou três baforadas, olhou firme para mim e sentenciou: “o senhor está enganado! Essa usina já foi a maior do Brasil e chegou a fabricar um milhão de sacos de açúcar por safra. Teve a primeira destilaria de álcool do país, 40 mil hectares de terras, 170 quilômetros de estradas de ferro e 80 engenhos de cana. Só na fábrica já trabalharam mais de 700 operários. E ainda tem uma vila operária com 200 casas e uma escola para 50 alunos. A Catende não pode nem vai desaparecer!”


Pensei: não vale a pena contra-argumentar agora, por exemplo, que sucesso no passado não assegura êxito no futuro. Àquela altura, a eventual saída do BB do processo teria consequências imprevisíveis. Minutos antes, tinha visto na antessala do gabinete uma gravura do governador Arraes, feita em naquim, a bico de pena, onde escrito na base o verso drummondiano “Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”.


O governador, consciente de que os empregados da usina eram credores privilegiados da massa falida, queria organizá-los numa grande cooperativa. Com o afastamento por determinação judicial dos ex-proprietários da “Catende”, o Bandepe, banco estadual, já havia até adiantado um crédito por conta da venda de açúcar da safra 95/96, para que fossem feitos os tratos culturais nas lavouras de cana e o chamado “apontamento” da fábrica - reparo de caldeiras, limpeza, substituição de peças gastas etc.


O BB já vinha tocando a gestão do dia a dia com a plena confiança do juiz responsável pela condução do processo falimentar, mantendo acesa a esperança de diversos interessados na sobrevivência da empresa - empregados, cortadores e fornecedores de cana, compradores de açúcar, governos municipal e estadual, além da própria comunidade do município de Catende(PE).


Em outubro de 1996, o que parecia um grande delírio ganha corpo e alma: a usina iria de fato esmagar a safra de cana-de-açúcar da região. Fim de tarde, sol desaparecendo no horizonte, palanque armado na carroceria de um caminhão, Arraes, aos 80 anos de idade, pega o microfone e com sua voz rouca se dirige a centenas de pessoas que esperavam por aquele momento: “Eu prometi, eu cumpro: a Catende vai moer, a Catende continua e o emprego de vocês também!”


Aquela gente humilde e suada, espremida próxima ao caminhão, quase não se continha de ansiedade e excitação. Era homem, mulher, menino, chorando, sorrindo, todos movidos pela esperança de dias melhores. Falou-se até que um antigo foguista da usina, já trôpego por conta da cachaça ao longo da tarde, teria dito em alto e bom tom: “Pode falar quem quiser, mas quando ‘Pai Arraia′ é governador, chove mais por aqui.” Ai de quem duvidasse disso!


Na euforia daquele momento faria todo o sentido reler o poema do pernambucano Ascenso Carneiro Gonçalves Ferreira (1895-1965), que narrou, na metade do século passado, uma viagem de trem de Maceió para Catende, ao som do sino, do apito e das rodas de ferro sobre os trilhos, falando de quem fica, do que fica e da vontade de chegar.


Três anos depois, em 1999, o BB, sem nenhum desgaste com o governo estadual, conseguiu renunciar ao cargo de representante do síndico da massa falida, com todos os seus atos sendo aprovados, com louvor, pelo juiz de falências. A Usina Catende, então, passou a ser administrada pela Cooperativa Harmonia, formada por ex-empregados.


Estabeleceu-se nos anos seguintes o maior projeto de autogestão e economia solidária da América Latina - nada menos que 4 mil famílias foram assentadas em 26 mil hectares de terras no denominado Assentamento Coletivo Governador Miguel Arraes.


O processo de falência, envolvendo apenas o que restou do parque industrial, arrastou-se por mais alguns anos, até 2018. Máquinas e veículos acabaram sucateados e a cada leilão frustrado, houve sensível desvalorização dos bens da massa falida. No final, apurou-se menos de 1% do montante da dívida atualizada.


E a Usina Catende foi varrida do mapa, como eu desconfiava, mas continua sobrevivendo a maioria dos trabalhadores rurais, como queria o governador. Para Aristóteles, “a politica não deveria ser a arte de dominar, mas sim a arte de fazer justiça”. Miguel Arraes transformou-se em mito porque pensava assim.



Mitos também vacilam

Em maio de 1997, naquele cipoal de problemas em que se debatia a agroindústria canavieira em Pernambuco, no final dos anos 90, foi feito um acordo inédito na Zona da Mata Sul, envolvendo Banco do Brasil, Ministério de Política Fundiária, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Usina Central Barreiros S.A. e Cia. Açucareira Santo André do Rio Una. O desfecho, porém, poderia ter sido bem melhor.

As duas usinas do Grupo Othon Bezerra de Melo eram responsáveis por dívidas atrasadas no montante de R$ 16 milhões e, depois de longa conversa, toparam pagar a conta cedendo sete mil hectares de terras, a maior parte com canaviais desde 1885, ano da fundação da Central Barreiros, ou, quem sabe, desde a época da Carta de Doação da capitania de Pernambuco, assinada em 1534 por D. João III, em favor do capitão donatário Duarte Coelho, que se destacara nas campanhas lusitanas na Índia.

Cinco mil hectares seriam repassados para o Ministério de Política Fundiária – que compensaria o banco com Títulos da Dívida Agrária, TDA – para assentamento, de forma pacífica, de 145 famílias sem-terra. Essas famílias, sob orientação técnica do Incra, passariam a explorar lavouras alternativas à monocultura da cana-de-açúcar. E os dois mil hectares restantes, localizados em áreas urbanas, seriam loteados para venda em condições normais de mercado.

Para fechar o acordo, o grupo Othon ainda exigiu novo crédito à “Santo André do Rio Una” porque, sendo mais moderna e melhor localizada, teria maiores chances de recuperação do que a antiga “Central Barreiros”. Buscaria, assim, reduzir de tamanho, ganhar eficiência operacional, sacudir a poeira e dar a volta por cima. E não foi difícil convencer a diretoria do BB de que o negócio era vantajoso para todas as partes. O financiamento foi então aprovado, mas limitado a 10% do montante que seria recebido, em títulos, do Governo Federal.

Embora o setor açucareiro estivesse cada vez mais decadente e os usineiros não fossem mais a expressão da elite empresarial dos tempos de “Casa Grande & Senzala”, sabíamos que mexer naquela estrutura fundiária teria seus riscos. Cogitava-se, pela primeira vez, conjugar reforma agrária em larga escala com efetiva assistência técnica e diversificação de lavouras na Zona da Mata, para que o estado superasse sua mais grave crise financeira na história. Por isso, assim como os dirigentes do grupo Othon e do BB, o então ministro de Política Fundiária, Raul Jungmann, considerou o acordo  “um marco histórico”

Quem discordou e nem foi à solenidade de assinatura do acordo foi o governador Miguel Arraes, alegando, no dia do evento, que "o fato principal não é a reforma agrária, mas o saneamento das usinas". Disse ainda ser contra a posição do BB, porque o acordo seria "meramente financeiro e parcial, por não envolver as dívidas com o Estado de Pernambuco". 


Todo ser humano um dia acorda indisposto, chateado, e acaba tomando decisões que normalmente não tomaria. O mal humor matinal, reflexo de noites mal dormidas, passa. Mas algumas decisões impactam para sempre a vida de muita gente.

Penso que o governador naquela manhã não percebeu - ou não foi bem assessorado nesse sentido - que a única chance do estado receber seus créditos seria manter “viva” uma usina daquele grupo econômico, para quem o acordo era caso típico de “vão-se os anéis, mas que fiquem os dedos”. Ou talvez não visse com bons olhos o protagonismo no assunto de Raul Jungmann, político pernambucano de origem socialista que ocupava com relativo destaque, nos anos FHC, ministério-chave para o sucesso do negócio.

O processo evoluiu no que foi possível entre o banco, o ministério, o Incra e as usinas, mas, sem o apoio do governo estadual na largada, não teve a velocidade nem a convergência de interesses que aceleram transformações sociais num piscar de olhos. E as duas usinas acabaram indo à falência, anos depois, engolidas pela crise que fechou as portas de várias delas.

Depois de mais 20 anos, vejo esta notícia que me fez relembrar o caso:

"Incra em Pernambuco entrega primeiros títulos definitivos de 2018 a assentados

A Superintendência Regional do Incra em Pernambuco (Incra/PE), sediada em Recife, entregou... os primeiros títulos definitivos deste ano a beneficiários da reforma agrária. No total, 60 documentos foram concedidos a moradores dos assentamentos Baeté, no município de Barreiros, e Campinas, em São José da Coroa Grande, ambos localizados na Zona da Mata Sul do estado.
Com os chamados títulos de domínio em mãos, as famílias passam a ser proprietárias das terras e podem acessar linhas de crédito mais robustas que permitam incrementar a produção (...)
(...) Saulo José da Silva foi um dos contemplados com o título de domínio. ‘É uma alegria muito grande poder dizer agora que sou dono de parte das terras onde eu nasci e me criei’, disse o assentado, que reside no Engenho Campinas, antiga Usina Central Barreiros.”

Quem leu meu último post (O mito Miguel Arraes) pode ter ficado com a impressão de que figuras lendárias são infalíveis e acertam sempre. Todos nós, seres humanos de carne e osso, acertamos e erramos todos os dias. "Só os médicos são profissionais de sorte. Seus acertos brilham ao sol. Seus erros, a terra cobre" (Molière)


Doidice de menino


Toda vez que perguntei a uma criança o que ela gostaria de ser quando crescesse, quase sempre ouvi respostas parecidas: advogado, médica, engenheiro, professora, policial. Natural que fosse assim. Afinal, são atividades ainda com certo glamour por envolver doses de heroísmo, vida e morte, justiça e liberdade, ensino e aprendizagem. Mereceram até grandes filmes como “A Sociedade dos Poetas Mortos”, “Patch Adams - O Amor é Contagioso”, ”A Ponte do Rio Kwai”, “Tempo de Despertar”, “12 Homens e uma Sentença”, “Cabo do Medo”...

Quando alguém dizia que gostaria de ser bancário, eu desconfiava: a bem da verdade, queria ser como o pai, o tio ou o primo. Virou profissão tão sem graça que está em processo de extinção e até hoje nem novela de TV foi feita tendo bancário como protagonista. Claro, não estou falando do mercado financeiro em si, que inspirou os ótimos “Wall Street - O Dinheiro Nunca Dorme” e “O Lobo de Wall Street”.



Afora meus primeiros anos de vida, quando disse a minha mãe que seria vaqueiro - até hoje, não posso negar, gosto de cheiro de curral, de capim molhado, de ouvir aboio e mugido de bezerro -, coloquei na cabeça desde cedo que iria trabalhar no Banco do Brasil. Não porque nasci para ser bancário, mas porque queria fazer o que fazia meu pai: receber gente que precisava guardar dinheiro no banco ou tomar empréstimos, escrever cartas com máquina de datilografia, carimbar e assinar papéis com caneta tinteiro Parker 51, tudo isso numa sala simples com mesa de trabalho, cadeira, arquivo com gavetas, ventilador e lixeira.


Mais tarde, quando a fome apertasse, iria para casa encontrar minha família  e almoçar bife “marinheiro” com arroz, feijão e farofa. Depois, cochilaria uns 20 minutos antes do segundo turno. Na boca da noite, ao retornar de vez, acharia graça vendo meus filhos disputarem o “direito” de trazer minhas sandálias, antes de lhes contar histórias de “O Mundo da Criança”. Todos dormiriam felizes, de banho tomado e barriga cheia, protegidos das almas penadas por mosquiteiros, lençóis cheirosos e pelos poderes do Sagrado Coração de Jesus da parede da sala de jantar.


Sei que mais parece doidice de menino   - bem que meus avós diziam “esse menino é cheio de marmota!” -, mas lembro do tempo em que resolvi ser bancário toda vez que releio o poema “Infância”, de Carlos Drummond de Andrade.


“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.

Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu

a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo

olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava

no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.”

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Manias de uma paixão


O grande Graciliano Ramos (1892 – 1953) pisou na bola em sua crônica “Traços a esmo”, de 1921, publicada em “O Índio”, jornal do Agreste alagoano, ao profetizar: “... O futebol é uma moda fugaz; vai haver por aí uma excitação, um furor dos demônios, um entusiasmo de fogo de palha que não durará um mês...”

Monstros sagrados que surgiram por aqui na segunda metade do século passado – Pelé, Garrincha, Didi, Tostão, Carlos Alberto, Gérson, Rivellino, Ademir da Guia, Dirceu Lopes, Zico e outros – destruíram sem dó a profecia de Mestre Graça e me fizeram até sonhar ser como Roberto Dinamite, maior artilheiro da história do Vasco da Gama. Mas uma miopia acentuada, o início do curso científico (2º grau do ensino secundário) e o primeiro emprego, aos 16 anos, cuidaram de sepultar na origem o meu delírio. 

Minha cabeça, no entanto, já havia sido feita pelas transmissões esportivas da "Rádio Globo", da TV Bandeirantes e TV Educativa, e pelas matérias da revista "Placar" e do "Jornal dos Sports". O futebol – diria o poeta – era meu vício desde o início, meu bálsamo benigno, paixão e carnaval, meu zen, meu bem, meu mal.

Dos 10 anos de idade em diante, quase todo dia curtia rachas (peladas, babas) em campinhos de terra batida, gramados, quadras de cimento ou na areia das praias da Avenida ou de Paripueira, em Alagoas, até o anoitecer. E ainda cuidava com zelo e carinho de meu "bicho de estimação": um rádio “Phillips” com que seguia o CSA, em minha “aldeia”; e o Vasco, no resto do mundo. 

Mesmo depois de casado, com filhos para criar, permanecia horas em transe quase hipnótico ouvindo rádio, vendo TV ou lendo jornais e revistas, quando não estava no meio do mundo jogando bola com os amigos. Longe do que pensava Mestre Graça, comigo essa paixão sem limites por futebol nunca foi fogo de palha.

Diferente de mim, nada fazia com que minha mulher relaxasse e se desligasse totalmente do que estava acontecendo com o resto de nossa família. Só sossegava quando dormia ou alimentava nossos filhos. Mas até nessa hora era capaz de olhar o que estava escrito na palma da mão e lembrar que precisava estudar para uma prova, aguar o jardim, concluir um laudo no trabalho ou ir ao supermercado.

Aprendi há muito tempo que não existe nada nesse mundo que consiga fazê-la se concentrar numa única coisa. Se está com os filhos, pensa no marido; se está com o marido, pensa nos netos, e sempre com algum remorso, claro. Tudo me leva a crer que já nasceu com o chip da culpa instalado no cérebro.

Quando trabalhava fora, preferia estar viajando; se ficava em casa, tinha acessos nostálgicos relembrando os bons tempos em que, àquela hora, poderia estar tomando uma caipirosca com polvo ao vinagrete na Praia de Ipioca, em Maceió, a negociar com o sol o bronzeamento com o mínimo de manchas a serem eliminadas pelo dermatologista.

Isso acontece porque a imaginação feminina é bem mais fértil do que a de qualquer marmanjo. A maioria das mulheres é inquieta e falante. Não consegue jamais ficar horas vendo alguns bípedes esbaforidos a correrem atrás de uma bola, esgoelando-se em palavrões, a trocarem pontapés para, no fim do racha, discutirem sobre o que poderia ter acontecido ou não.

Deve ser difícil para qualquer mulher compreender como alguém consegue criar teias de aranha nos sovacos diante de uma TV, principalmente depois do apito final de um jogo, a ouvir desculpas esfarrapadas dos perdedores e ver a arrogância desmedida dos vencedores. Já não perco meu tempo com isso, mas ainda me flagro lendo o que disseram os "experts" em engenharia de obras feitas.

Fato é que, apesar de conformada com minhas manias, Magdala, minha mulher, nunca engoliu me ver deitado na sala, com um punhado de pipocas na mão e os olhos na tela, sacrificando nossas tardes de domingo. Tanto mais porque já não contava comigo nas noites de terça e quinta-feira, além das tardes de sábado, dedicadas aos rachas até o pôr do sol.

Mesmo depois de deixar as peladas há mais de 20 anos, ela insiste em dizer que para mim nada existe a não ser o futebol em suas variadas nuances. Chega a dizer que se houver plantão do JN dando conta de que há tsunami se formando no Atlântico, ou que vem aí um terremoto de oito graus na escala Richter, com epicentro no quintal de nossa casa, é provável que eu nada perceba se estiver vendo meu time jogar.

É capaz de jurar que se o telefone tocar e for minha mãe, eu lhe pedirei: "veja o que está acontecendo ou diz pra ligar mais tarde." Não passará pela minha cabeça, lógico, que minha mãe possa estar com um pico de pressão ou uma crise de labirintite, pelo menos antes do jogo acabar.

E se por acaso, só de brincadeira comigo, resolver fazer um teste e passar na frente da TV, diz que, no mínimo, correrá o risco de ouvir algo indelicado como: “Minha filha, saia da frente senão dá azar... Desse jeito meu goleiro vai acabar sofrendo um gol”. 

Exageros à parte, melhorei bastante. Ela também. Talvez até peça daqui a pouco a um de nossos netos para lhe explicar o que é “jogar sem a bola”, “cruzar no segundo pau”, “acertar chute de três dedos” ou "fazer gol do meio da rua". Pode até passar a gostar de ler Armando Nogueira (1927 – 2010): “No futebol, matar a bola é um ato de amor”.

Depois de quase meio século de convivência, ela sabe que desfruta de cadeira cativa com estofo de pena de ganso em "meu estádio". Sabe também que, a esta altura do campeonato, no jogo da vida o placar é o que menos importa: 1 a 0, duas vezes por mês, é goleada. Sem direito a replay.


quarta-feira, 31 de julho de 2019

Não deu, Elis


Nunca fui de lamentar sonhos frustrados. Meu maior temor nunca foi de fracassos pontuais no dia a dia, mas de conquistas que não fizessem muito sentido para mim ou para quem estivesse a meu lado.

Na segunda metade de 2014, a turma que trabalhava comigo na diretoria de marketing do Banco do Brasil (Avelar Matias, Delano Valentim, Fernando Vieira, Gissanne Alves, Hugo Paiva, Márcia Veloso, Michele Domingues, entre outras pessoas) havia recebido a encomenda de criar algo na linha do chamado marketing de experiencia, direcionado ao segmento de alta renda do eixo Rio-São Paulo. 

Esse tipo de evento tem sido uma das principais estratégias das marcas que pretendem criar vínculos mais sólidos com seus clientes. A ideia é estabelecer conexões emotivas, o que vai muito além da obrigação da satisfazê-los com produtos e serviços.

É preciso oferecer algo que dinheiro nem sempre pode comprar como, por exemplo, jogar tênis numa manhã de sábado com Gustavo Kuerten (Guga), um dos maiores atletas da história do tênis mundial, tricampeão de Roland-Garros.  Ou assistir de camarote a U2, Rolling Stones e Paul McCartney, com direito à visitas aos camarins, entre outras ações que já haviam sido realizadas.

Das possíveis ações que discutimos, uma delas seria oferecer jantar em grande estilo para 80 pessoas, assinado por renomado chef, com direito a "pocket show" inédito, em termos de MPB.

Na ocasião recordei de uma passagem marcante do livro "Noites Tropicais", do escritor, compositor e jornalista Nélson Motta. Sugeri, então, que procurássemos a cantora Maria Rita e seu pai, o pianista e compositor César Camargo Mariano, para que pensassem sobre como resgatar um pouco da mística da mãe e esposa Elis Regina (1945 – 1982), que falecera prematuramente, aos 37 anos, no esplendor de sua carreira artística.  

Dez anos antes de sua morte, Elis estava se divorciando do compositor e jornalista Ronaldo Bôscoli (1928 – 1994), no começo de 1972, quando teria ouvido a primeira parte de uma canção que estava sendo composta por Chico Buarque e Francis Hime:

“Quando olhaste bem nos olhos meus/E o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei/Eu te estranhei, me debrucei/Sobre o teu corpo e duvidei/E me arrastei, e te arranhei/E me agarrei nos teus cabelos/Nos teus pelos, teu pijama/Nos teus pés, ao pé da cama/Sem carinho, sem coberta/No tapete atrás da porta/Reclamei baixinho...”

Tanto ela quanto César (nessa época, seu pianista e diretor musical) ficaram tão impressionados que a gravação foi marcada para três dias depois. Até lá, o produtor Roberto Menescal cobraria de Chico a segunda parte da letra da música.

Enquanto aguardava o dia da gravação, Elis convidou alguns amigos, entre eles o próprio César, para assistirem a um filme em sua casa. Durante a projeção, ela deu um jeito de entregar um bilhete a César, que leu e se assustou: era uma cantada explícita. César, embora interessado, ficou inseguro e desapareceu por 48 horas. Na hora da gravação, porém, chegou ao estúdio. 

Nélson Motta assim descreveu em seu livro este momento mágico: “...Elis sorriu sedutora. César dispensou os músicos, pediu para todo mundo sair, para colocarem o piano no meio do estúdio, baixarem as luzes e deixarem só ele e Elis, para a gravação do piano e da voz-guia de 'Atrás da porta'. Extravasando seus sentimentos, misturando as dores da separação com as esperanças de um novo amor, Elis cantou, mesmo sem a segunda parte da letra, com extraordinária emoção, com a voz tremendo e intensa musicalidade. Na área técnica, quando ela terminou, estavam todos mudos. Elis chorava abraçada por César. Juntos, César e Menescal foram levar a fita para Chico, que ouviu... e terminou a letra ali mesmo, no ato".

"... Dei pra maldizer o nosso lar/Pra sujar teu nome, te humilhar/E me vingar a qualquer preço/Te adorando pelo avesso/Pra mostrar que inda sou tua/Só pra provar que inda sou tua.”

Em outubro de 1980, oito anos depois da gravação original de "Atrás da Porta", quando o casamento de César e Elis estava por um fio de cabelo, eles protagonizaram juntos um capítulo singular da série "Grandes Nomes", exibida pela “Rede Globo”, que ficou tatuado na memória dos amantes da MPB: Elis cantou de forma tão intensa e visceral que, no fim, desabou no choro. 

O ponto alto do jantar em grande estilo que pretendíamos oferecer seria ver e ouvir pai e filha numa nova versão da música imortalizada pela mãe. Isso, tínhamos certeza, dinheiro não compraria!

Mas não deu certo. Maria Rita não pôde abraçar o projeto. Com o sucesso de seu álbum “Coração a Batucar”, andava totalmente envolvida numa edição especial em CD e DVD que lançaria no início de 2015. 

A alternativa que encontramos – Vanessa da Mata cantando o melhor de Gilberto Gil, em novembro de 2014 – , acabou sendo muito bem recebida pelos clientes, tanto no Rio como em São Paulo. Mas nada arrebatador, raro, capaz de ser lembrado dali a 10 ou 15 anos.

Não deu, Elis. Para mim, a experiencia vivenciada pelos clientes não se deu na dimensão que pretendíamos. Quando os últimos deixaram o recinto, ficou a sensação de que você, com seu sorriso largo e sua voz única, subiu ao palco para nos consolar cantando Guilherme Arantes "Vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar..."