quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Um viciado a menos

Circulou há pouco tempo um texto que mexeu com a tribo dos sexagenários em diante, exaltando a capacidade produtiva de quem atingiu essa faixa etária. Parecia o preâmbulo de um informe publicitário da indústria farmacêutica anunciando um nova pílula milagrosa.

Dizia o seguinte: 

(...) Um grande estudo nos Estados Unidos descobriu que a idade mais produtiva na vida de um homem é de 60 a 70 anos. Setenta a 80 anos é a segunda idade mais produtiva. A terceira idade mais produtiva é de 50 a 60 anos.

A média de idade de um ganhador do Prêmio Nobel é de 62 anos. A média da idade de um CEO em uma empresa da Fortune 500 é de 63 anos. A média da idade dos pastores das 100 maiores igrejas da América é de 71 anos.

A média da idade de um papa é de 76 anos. Isso nos diz de alguma forma que Deus planejou que os melhores anos da sua vida sejam 60-80!  É quando você faz o seu melhor trabalho.

Um estudo publicado no NEJM descobriu que aos 60 anos o ser humano atinge seu potencial máximo e continua até os 80! Portanto, se você tem entre 60-70 ou 70-80, você tem o melhor e o segundo melhor ano de sua vida com você! 

Fonte: New England Journal of Medicine 70.389/2018 (...)

É mais um capítulo da antiga novela “Me engana que eu gosto!” Não creio que ninguém trabalhe por diletantismo ou prazer depois dos 65, sobretudo se a correria começou cedo, ali entre 15 e 16 anos. Só por necessidade. Ou vício. 

Vício é hábito repetitivo que pode degenerar ou provocar algum tipo de prejuízo tanto ao viciado como aos que convivem com ele. Vem do termo latino "vitium", que significa "desvio", “defeito". Necessidade é outra coisa.

No começo do ano passado, o chefão de um grupo econômico encantou um amigo meu ao convidá-lo para implantar um projeto-piloto de escola de negócios, no Sudeste, para jovens de 14 a 15 anos, a serem selecionados do último ano do ensino público fundamental. 
— Que beleza! Fico feliz em voltar a trabalhar em algo desse nível, num país com tantas iniciativas e tão poucas poucas “acabativas” nessa área — entusiasmou-se meu amigo.
— Tudo bem, mas veja que não estou aqui falando em caridade — ponderou o chefão.
— Sei... Há incentivo fiscal para ensino profissionalizante... 
— ... Isso! E os melhores alunos, depois de três anos de teoria e prática, acabarão nas empresas do grupo. É o nosso futuro que está em jogo.

Meu amigo era visto pelo ex-chefe como a pessoa mais capacitada para tocar o projeto-piloto.  Criativo, pós-graduado em administração e ex-diretor de RH de uma grande empresa, gozava de sua confiança desde que trabalharam juntos por mais de uma década.


Mas no dia seguinte meu amigo amanheceu indeciso se toparia ou não. Depois de dois anos aposentado, sem residência fixa em canto algum, viajando metade do tempo pelo exterior e a outra metade pelo país, não quer mais prender-se a agenda, horários, hierarquia, metas, reuniões e pressão por resultados a curto prazo. 

Iria recusar o convite e buscava apenas uma forma honrosa de fazer isso sem deixar transparecer covardia ou que estava esnobando a oferta. Diria ao ex-chefe que já dedicara mais de 40 anos a uma pesada rotina de trabalhos e que seria insensatez mergulhar novamente numa roda-viva.

Também não queria negar à mulher — parceira de toda a vida e, como ele, agora aposentada — a sua companhia numa fase em que se completam desde os cuidados com alimentação e saúde até nos pequenos prazeres como fazer caminhadas matinais na praia, dividir um rosbife acebolado no restaurante da esquina, ir ao cinema ou flanar pelos corredores dos shoppings até tarde, antes de retornarem ao aconchego dos lençóis.  

Por que mexer naquilo que vinha dando certo? Logo ele que, havia anos, defendia com unhas e dentes o sacrossanto direito de não fazer nada de muito estressante no último quarto da vida, escorado num bom plano de saúde e numa aposentadoria suficiente, sem preocupar-se com contas a pagar no fim do mês.

Andava cismado também desde que soube da morte de um colega de infância, vítima de um derrame cerebral sentado no sofá da sala de estar. Chegou a comentar comigo:
— Quem diria, hein?! Ele se cuidava tanto. Todo dia caminhava na orla. Como é que o sujeito morre tentando cortar as unhas dos pés? 

Entrei de gaiato no “navio" quando meu amigo ligou-me, interrompendo o cochilo após o almoço. Contou da proposta que havia recebido e quis saber:
— Véi, você concorda comigo? Acha que estou certo em abrir mão dessa oportunidade?
— Prefiro não opinar, cara. Isso é como hemorróidas: coisa íntima, pessoal... 
— Peraí, véi, se peço sua opinião é porque tô indeciso...
— Você parece minha mulher: faz pergunta mas já tem na cabeça a resposta que quer ouvir.
— É meu jeito de checar se estou no rumo certo. Deixe de ser ranzinza, véi!
— Se você insiste, que tal a gente sentar para conversar mais tarde, quando o sol esfriar? Pode ser numa barraca aqui na orla, tomando chope com casquinha de siri ou caldinho de camarão.
— Não posso... Fiquei de apanhar meu neto no inglês e depois passar na lavanderia. A mulher também quer pegar um cineminha mais tarde...
— Cê que sabe!  Pode ser amanhã, às oito? Enquanto a gente bate um papo, toma um café com tapioca lá na padaria... 

Na dúvida se ele iria e para não ser chamado novamente de ranzinza — coisa de velho, o que absolutamente não condiz com a “criança” aqui! , cuidei de adiantar, em rápidas palavras, pelo menos três motivos pelos quais não quero voltar a trabalhar por dinheiro nenhum nesse mundo:
  1. Tenho ossos, articulações e músculos desgastados pelo uso e sei disso. Corro maior risco, portanto, de sofrer deformações, fadiga muscular e prejuízos à qualidade da vida que me resta, a depender do que tiver que encarar.
  2. Sei também que as pressões do mundo corporativo de hoje podem me trazer mais problemas: dor de cabeça (há muito tempo não sei o que é isso!), insônia, tontura, irritabilidade, dificuldade de concentração e memorização e, portanto, queda na qualidade de vida. Tem mais: podem causar outros distúrbios psicológicos, como: frustração, insegurança, medo e tristeza.
  3. Sessentões como nós que fumaram, beberam e comeram nos anos 80 e 90 como se não houvesse amanhã têm coração, pulmões, fígado, rins, estômago e intestinos num ônibus desgovernado descendo ladeira abaixo, por mais que os freios da medicina tenham evoluído. O desafio que nos resta é prolongar a agonia, com bom humor e resignação, até a chamada falência de múltiplos órgãos. Depois dos 90, se a decisão for minha.

Não faço a mínima ideia do que aconteceu com meu amigo após aquela conversa. Sumiu e nunca mais tocou no assunto. Talvez seja alérgico a frutos do mar ou, quem sabe, enjoou tapioca. Nunca se sabe. Depois de certa idade, quando um de nós desaparece por alguns dias das caminhadas no calçadão, a gente pensa logo no pior. 

Ouvi dizer que teria viajado com a mulher para São Paulo, em novembro passado, sem data prevista para retorno. Mas não ficaram nem duas semanas por lá e já voltaram. Foram vistos na praia do Francês, Litoral Sul alagoano, no último réveillon.

Vai-se ver é outro que andou refletindo e, sem precisar ouvir ninguém, acaba de livrar-se do vício. Fiz bem em não me meter na vida dele. Poderia ficar chateado comigo. 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

“Urtigão" é culpado

Quando me perguntam sobre o que me levou a criar este blog, no começo de 2019, onde tenho compartilhado crônicas e contos com alguns fiéis leitores e leitoras, digo que só pode ter sido uma troca de e-mails, há cinco anos, com meu velho e bom amigo Pedroso "Urtigão", paulista radicado na Bahia a quem provoquei dessa forma: 

14/02/2015

Meu amigo, meu maninho eremita Pedroso!

A vida e as escolhas que fizemos acabaram por nos colocar em caminhos diferentes, mas você sabe o quanto lhe respeito, quero bem, sou grato e torço pelo seu bem-estar. Afinal, não foi à-toa que um dia nos encontramos no já distante ano de 1990.

Depois que me aposentei, em novembro passado, eu e a mulher decidimos cumprir promessa feita a nossa caçula e estamos passando uma temporada com ela nos Estados Unidos (arredores de Boston) desde o final de 2014, quando nasceu nossa quinta neta.

Não tem sido fácil porque a temperatura aqui anda sempre bem abaixo de zero grau (ontem chegou a 16 graus negativos, mesmo sob sol intenso) e, com a criança recém nascida, restam poucas alternativas afora cuidar dela e da casa. Consequência disso, seu amigo aqui está virando um autêntico cozinheiro, expert no trivial variado, com a inestimável ajuda da mãe de todas as conquistas: a necessidade.

Até a caminhada diária tem sido feita no subsolo, numa esteira, o que faço como quem toma remédio. É dureza, amigo, não poder tomar sol caminhando pelas ruas, sonhando em criar coisas, mudar o mundo, vendo gente passar e constatando o estrago que o tempo impõe a cada rosto desconhecido que passa encabeçando um corpo qualquer. Vou acabar virando hamster, mas é o preço que temos que pagar pela conquista de uma velhice mais saudável.

A ideia é voltarmos para o Brasil em junho, deixando nossa filha um pouco mais madura para cuidar sozinha de sua cria, junto com o marido. É também um período sabático em que reflito sobre os próximos passos que darei na terceira etapa de minha vida, sem paletó, gravata, nem puxa-sacos por perto.

Para ser sincero, do Brasil sinto falta apenas de filhos, netos e de poucos amigos como você. Pena que nossa convivência foi curta, mas sempre intensa nos raros momentos em que pudemos conversar mais de perto. Quando vejo o noticiário político, econômico, policial, fico cada vez mais chateado com tanto desperdício de recursos numa terra que tinha tudo para ser um oásis num mundo caótico.

E você, e Ana Isa, como estão? Mande notícias, coração gelado! Não quero nem posso imaginar que nos vimos pela última vez nem mais lembro onde. Precisamos, como nunca, compartilhar dores, rabugices, frustrações, desencantos e dar gargalhadas sobre como tudo isso nos incomodava, mas não incomoda mais...

     
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Algum tempo depois ele resolveu sair da toca em que,  ainda hoje,  passa a maior parte do tempo escondido —  fazenda em Coaraci, no Sudeste baiano, onde cultiva cacau e cria gado leiteiro — e devolveu este petardo:
     
"(...) 08/07/2015

Querido amigo Hayton,

Acredite nisso ou não, para mim você é e será sempre um grande e inesquecível amigo. Muitas qualidades, grande exemplo. De minha parte, nunca fui grande coisa, nem disciplinado; sequer bom aluno. Por isso, admiro mais ainda sua generosidade comigo.

Entretanto, apesar da ausência, busco na “Canção da América”, as palavras certas: '... Mesmo que o tempo e a distância digam 'não'/Mesmo esquecendo a canção/O que importa é ouvir/A voz que vem do coração...'
  
Soube pelas boas línguas que você se aposentou. Pronto. Finalmente estamos agora iguais (salário não conta!). Agora você também tem um nariz!

Espero, embora sem acreditar nisso, que você tenha saído por sua livre e espontânea vontade, de bem com tudo. Você gostava demais do Banco para ir tão cedo. O Banco sempre foi uma casa boa. Os inquilinos é que muitas vezes eram ruins.

Mas, de qualquer modo, meus sinceros e sinceros e mais sinceros parabéns. Você que tem alma e bagagem, tem muitas coisas pra fazer. 

Aconselho a não fazer duas:  
1. Comprar um sítio, roça, rocinha, fazenda, chácara etc. Vira cachaça. Nunca fica pronta, come todo seu tempo, seu dinheiro, paciência e todos aqueles que gostam da sua companhia ficarão com ódio do negócio, porque ele vai lhe consumir por inteiro.
2. Comprar uma casa de praia. Você vai achar bom no início. Todos irão achar bom. Depois, você vai passar a semana inteira esperando chegar o final de semana e as pessoas. Com o tempo umas irão; outras, não. Você vai acabar preparando um churrasco para dez, vão acabar indo quatro e você vai beber pelos onze!

Tiro por mim: arrume algo pra fazer. E venda para todos como a coisa mais importante e absorvedora do mundo, senão você vai virar o quebra-galho da família.

Não pense em ler todos aqueles livros, juntados ao longo de toda a vida, que você comprou pela indicação dos amigos, das revistas especializadas, pelo título, pela orelha, na aflitiva infinitude do tempo de espera dos horários de voo.

Não se disponha a ir a supermercados. Vicia. Daí todos os dias você acabará indo lá. Da pimenta do reino ao queijo suíço, você vai acabar dando pitaco em tudo, comprando todos os dias.

Se for andar, nunca faça os mesmos percursos. Além de ser bom para prevenir o Alzheimer, evita que você encontre as mesmas pessoas todos os dias, sobretudo os saudosistas, que vão lhe contar como era a contabilidade bancária quando trabalhava.

Evite os colegas chatos. Um chato a gente não pode ter como amigo. Só como colega. Um chato sem ter o que fazer mata a gente. Logo chama pra ir para a casa dele, abre um litro de uísque 12 anos ou um vinho de R$ 150,00 e faz a gente ficar vendo seus álbuns de fotografia, principalmente das viagens que fez para o exterior, tentando explicar um mundo que viu por alguns instantes.

Não vá aos encontros de ex-colegas de trabalho. Normalmente eles marcam um almoço mensal, quinzenal ou semanal e ficarão o tempo todo falando do Banco, de quem ficou, de quem se separou, de quem morreu, dos tempos da posse, do tempo da agência... Ah! que preguiça!

Procure conhecer pessoas novas e mais novas que você. Pessoas mais velhas são cheias de dores e pruridos. Se falam em política ou de futebol, ficam dogmáticas e insuportáveis. Tudo vira religião para elas.

Não tente virar um vovô garotão. Tem gente que ao acordar aposentado se olha no espelho e se convence de que está bonitão, cheio de vida, com uma boa estampa. Sai de casa, matricula-se numa academia, compra um monte de cremes e fica pensando em fazer uma tatuagem. Bem discreta, bem pequena. Apenas um símbolo de liberdade.

Não tente fazer agora tudo que você sonhou uma vida inteira e o trabalho não deixava. Comprar uma moto, por exemplo. Uma moto estradeira, tipo “Harley Davidson”, uma jaqueta de couro dos “Hells Angels”, alguns filmes do Marlon Brando e do James Dean, e sair por aí feito um rebelde sem causa.

É tarde para aprender a fumar, andar de patins, andar de “skate”, surfar, saltar de “buggie jump”. Se quiser tentar, faça umas sessões de psicoterapia antes. Se resolver que, definitivamente, vai andar de “bike”, vá a um provador de roupas e vista-se com toda a parafernália que utilizam para isso (Tire uma foto e me mande. Não ponha no “Facebook”). Se, mesmo assim, continuar firme nesse propósito, repita a fórmula usando terno, gravata, mochilinha e capacete. Se o desejo persistir, vá a um psicólogo e pague adiantado umas vinte sessões. 

Não fique o tempo todo na Internet. O pior é que dá para fazer isso. Também vicia. A gente acaba viajando pelo computador e some para o mundo.

Se você resolver arrumar um novo emprego, procure saber antes como está a saúde financeira da empresa e da sua necessidade ou dependência de crédito bancário, para que você seja o contratado e não o seu potencial de interferência junto ao ex-patrão.

Não se irrite com a indiferença daqueles a quem você ajudou (não é o meu caso, não sou indiferente). Em Brasília você vai cansar de ver isso. Você deve ter encontrado muitas pessoas ao longo do caminho. Sinceros, hipócritas, convenientes, sabidos, dissimulados, copiadores repetitivos (copiam e colam suas palavras na língua deles), aproveitadores etc. Também haverá os honestos, que se contrapõem a todos esses. Trate-os com o mesmo sorriso e aperto de mão que lhe dispensarem. Na hora, é incrível como surge a diferença entre os casos.

Abrace os amigos e a família sempre que puder. Vivemos pra eles. A vida não tem sentido sem eles.

Se você concordar com tudo, não quiser se dedicar a atividades filantrópicas ou literárias, e não vê o que fazer com seu tempo livre, só lhe restará comprar um sítio, roça, rocinha, fazenda, chácara ou, então, comprar uma casa de praia. 

Mas não vá dizer que não avisei (...)”

                                                  ##############
      

Tomei nota, segui boa parte dos conselhos de meu amigo Pedroso “Urtigão” e lhe serei grato para sempre. Não doeu coisa nenhuma! Foi muito importante não ter feito nada sério de lá para cá. Exceto, talvez, o reconhecimento que acabo de fazer. 


quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

A bicicleta nossa de cada dia

Eu seria capaz de jurar que ganharia um par de tênis Bamba para jogar futebol de salão se, na União dos Palmares (AL) do final de 1968, fosse aprovado no 4º ano primário da professora Rosário, do grupo escolar Jorge de Lima, e no temido Admissão, espécie de “vestibular” de que participei aos 10 anos, também preparado pela professora Lindinalva, para acesso ao ginásio Santa Maria Madalena.

Pedir eu pedi, mas não deu certo. Éramos seis irmãos em idade escolar e, claro, não faria sentido premiar apenas o êxito de um. Acostumado a bater bola descalço com a molecada da cidade (Dudu, Toinho, Mano, Betinho, Zé Carlos "Rane", Geraldo, Loínho, Robinho, Pelé, Paulinho Baía, etc.), o jogo da vida seguiu, embora vez por outra o sangue fervesse quando sofria um pisão de alguém calçado.

Vinte e dois anos depois, em 1990, conheceria Carlos Roberto Rebouças na Bahia, com quem trabalhei poucos meses e que me contou uma história parecida que aconteceu com ele. Na ocasião, eu lhe antecipava que ele deveria ser nomeado chefe de gabinete na superintendência estadual do Banco do Brasil.

Responsável pela administração do aeroporto de Salvador (era funcionário do BB cedido à Infraero), Rebouças impressionava pelo modo ágil, cortês e bem-humorado com que resolvia os problemas cotidianos de passageiros e companhias aéreas, mas queria retomar a carreira bancária em sua empresa de origem.

Ele sorriu amarelo ao me contar que, quando criança, sua madrinha, viúva de um rico fazendeiro no interior baiano, ficara encantada com sua dedicação aos estudos, bem diferente dos filhos dela, seus colegas de turma. Em reconhecimento, prometeu-lhe uma bicicleta de presente caso fosse aprovado por média, desobrigando-se das provas finais. A mãe, por tabela, queria assim estimular os próprios filhos.


Se já era quase certa a aprovação por média sem aquele prêmio, para o menino Carlinhos virou “uma mão na roda”. Dias depois, com o boletim azul de ponta a ponta, tomou coragem e foi até a única loja especializada que havia na cidade avaliar qual a bicicleta que melhor se adaptaria a um desajeitado pré-adolescente.

Como não havia bicicleta intermediária, testou primeiro uma pequena, que lhe deixou porém com as sandálias arrastando no chão. Partiu então para a de adultos, mas era grande demais e nem na ponta dos pés ele alcançava os pedais. Indeciso sobre qual escolher, foi convencido pelo dono da loja a aguardar o novo lote de bicicletas que estaria chegando do fabricante para as vendas de fim de ano.

Dali em diante, a ansiedade tomou conta de Carlinhos. Todo dia, mesmo debaixo de chuvas, deslocava-se à periferia da cidade. Como estudava à tarde, ficava até a hora do almoço sentado numa pedra à margem da estrada, a conferir de longe a carroceria de cada caminhão que trafegava.

Certa manhã, ao ver o furgão que trazia a esperada bicicleta apontar no trevo na entrada da cidade, saiu correndo feito um louco no rumo da casa de sua benfeitora para contar a novidade e convencê-la a ir à loja o mais depressa possível.

Caiu no choro, entretanto, quando ouviu da madrinha que não mais havia condições para cumprir a promessa feita. O excesso de chuvas naquele mês devastara as lavouras justamente na hora da colheita, frustrando a safra e o dinheiro apurado não dera nem para pagar o que devia ao banco. Quem sabe no ano seguinte, se as coisas melhorassem.

Por isso mesmo, anos depois, ao me ouvir adiantar que deveria ser nomeado, sorria sem graça: 
— Pois é... Vamos aguardar. Nunca mais acreditei em nada antes da hora. Cheguei a sentar no selim, dei umas pedaladas em "minha" Monark e a danada não chegou lá em casa!

Na semana seguinte, rimos quando lhe convidei para tomar um café em minha sala e abri a conversa em tom de brincadeira:
— Dê um “ciente” aqui neste ato de nomeação e pode   buscar sua bicicleta na loja que agora você tem como pagar sem depender da madrinha. 

Meses depois fui-me embora da Bahia, perdi contato e não soube mais do paradeiro dele. Nem depois que voltei a trabalhar por lá, uma década adiante. Mas desde então, quando me deparei no trabalho com pessoas ansiosas em demasia, com a cabeça e os pés nas nuvens, terceirizando a realização de suas próprias expectativas, não resistia e perguntava:
— Você conhece a história das pedaladas de Rebouças? Não? Tem um minutinho? 


Já se passaram quase 30 anos desde aquela nossa conversa. Soube outro dia, via Google, que o Dr. Carlos Roberto Rebouças agora administra a Sinart, empresa privada que cuida do aeroporto de Porto Seguro, no sul da Bahia. Tentei três vezes falar com ele, por telefone, mas não consegui. Deve andar muito ocupado nessa época do ano, com a chegada do Verão.

Nas horas vagas, imagino, é possível que relaxe pedalando uma Mountain Bike Caloi – aro 29, câmbio 27 marchas, pelas estradas, trilhas e praias da chamada Rota do Descobrimento, que vai de Prado a Arraial d’Ajuda, região que pouco mudou desde que Pedro Álvares Cabral e sua esquadra aportaram por lá há pouco mais de cinco séculos.

Ou não. Com o tempo, uma bicicleta (ou um par de tênis) que não nos chegou lá atrás vira fumaça, poeira. Fica apenas a lembrança fugaz dessas pequenas decepções infantis.


Mais tarde, a vida empurra-nos goela abaixo, em seco, frustrações bem mais encorpadas. A gente faz de conta que acostuma e vai em frente, pedalando a bicicleta nossa de cada dia. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Vai que dá certo ano que vem

Afague a cabeça de uma gata que ela é capaz de pegar no sono de tanto relaxamento e prazer. Depois de um carinho, até uma onça-pintada cochila com os olhos a meio-pau e a baba escorrendo no canto da boca. 


Milton Nascimento diz que “um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”. Afinal, dois dedos de atenção e carinho provocam aquele torpor gostoso que muda o dia.

Dia que, em meio ao pacote de motivos que estressam todos os viventes — principal causa mortis, inclusive dos que não sabem chorar como as plantas  — , traz consigo também pequenas coisas que têm o condão de produzir bem-estar não digo indescritível porque aqui estou a conjecturar sobre o assunto.

Falo de coisas simples como sentar à beira-mar e, depois de dois ou três goles de água de coco, cerveja gelada ou seja lá o que forenterrar o dedão do pé na areia úmida e buscar no horizonte algo além do que os olhos podem ver. Ou, por exemplo, tirar um cochilo de meia hora numa rede na varanda, depois do almoço, com um lençol sobre o rosto com cheiro de neto.

Conheço um ex-dirigente de banco que virou fã de um engraxate que trabalhava na entrada da Galeria dos Estados, no Setor Bancário Sul, em Brasília. Dizia ele que sentia calafrios quando o moço colocava em seus pés aqueles protetores de couro entre as meias e os sapatos. Quem sabe por conta disso, quase toda semana sentava naquele “trono” acolchoado, a suprir carências inconfessáveis enquanto fingia só observar na paisagem o vai-e-vem dos transeuntes.

Por falar em pés, lembrei-me de uma vizinha inconformada com a solidão dos sábados à tarde. Num deles, ao ver o marido por horas a fio diante do computador, queixava-se na minha frente de que nunca mais sentira prazer algum exceto quando coçava o entorno das frieiras entre os dedos. Na hora, confesso que tomei um susto medonho com a insólita revelação, mas nem ousei discutir. Quem sou eu para questionar o subsolo das emoções de alguém?

Verdade é que existem coisas tão simples que às vezes nos passam despercebidas. Quem não gosta, por exemplo, de “...um dia frio, um bom lugar para ler um livro...", como sugere Djavan? Quintana dizia que “... o livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado...” 

E do que mais se precisa para que o corpo e a alma entrem em perfeita harmonia? Nem pretendo aqui discorrer sobre a maior e melhor fonte de gozo e prazer dos animais entre o céu e a terra. Dispensa comentários. Mas cinema e música também serão sempre bem-vindos, claro. De bom gosto, por favor!

Os entendidos argumentam que existem vários caminhos para ser feliz proporcionados por um quarteto que mais parece o meio-campo da seleção feminina da Itália: endorfina, dopamina, serotonina e ocitocina. São neurotransmissores que circulam na corrente sanguínea, responsáveis por motivação, bem-estar, tolerância à dor ou confiança. Se entram em desequilíbrio, o corpo reage com insônia, estresse, sobrepeso, mau humor e até depressão.

Acontece que ninguém aguenta mais ouvir falar em comer, dormir e trabalhar apenas o suficiente, praticar alguma atividade física com regularidade e ter muitos momentos de lazer com amigos e amigas, ainda que via “celular”, como pré-requisitos para o equilíbrio do organismo. 

Como conseguir isso? Não sei. Quem conseguiu, imagino, talvez nem se dê conta do modus operandiNão existem à venda na farmácia da esquina frascos contendo cápsulas da felicidade. Simplesmente aprendeu de manhas e manhãs e toca a vida bem devagar porque um dia já teve pressa, diria Renato Teixeira. Enxergou a tempo que não vale a pena tanta correria.

Chega uma hora em que dois dedos de atenção e carinho (dar ou receber, tanto faz!) são as únicas coisas pelas quais vale a pena viver. Nem que seja apenas um cafuné na cabeça ou uma inesperada mensagem desejando-nos feliz ano novo. Vai que dá certo, não é mesmo?

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

A falta que elas me fazem

Quando ganhei de presente de Natal minha primeira bola “oficial nº 5”, senti pelo peso do embrulho que não era uma couraça daquelas com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la de arranhões nos campinhos de terra batida ou no calçamento da rua.

Era de material plástico (vinil), grosso. Doía demais quando batia nas costelas, na boca do estômago ou nas coxas. Devo ter corrido pela calçada com a “dente-de-leite”, superando adversários imaginários, tentando fintá-los um por um até a esquina.

Finta, para quem esqueceu, é aquela jogada individual em esportes como futebol, vôlei, basquete, handebol, boxe ou capoeira, em que bastam duas ou três gingas de corpo para desvencilhar-se do adversário. É fazê-lo acreditar num movimento de ataque ou defesa que não irá acontecer, dificultando sua reação ao que de fato vem em sua direção. 

Meu irmão Dula (Hélder), baixinho, canhoto, ligeiro, quatro anos mais novo que eu, era mestre na arte da finta, com um requinte cruel: o escárnio sobre os adversários que queriam parti-lo em pedaços após sofrerem com suas fintas e risinhos de deboche. Só não conseguiam por conta da providencial cobertura de três anjos da guarda maiores e afeitos a brigas de rua: seus irmãos mais velhos.  

Por falar em finta — que imortalizou gênios do quilate de Carlitos, Garrincha e Muhammad Ali em diferentes campos artísticos —, com o tempo percebi que se trata, na verdade, de uma dança lúdica que algumas crianças já nascem sabendo seus passos de cor e salteado, assim como choram, dormem, mamam ou urinam. Nunca fui bom nisso!

Esse “vou-não-vou... fui!” era aperfeiçoado na mais tenra idade. Quando o sol esfriava e desaparecia no horizonte, na porta de casa surgia sempre uma mãe cansada e impaciente com uma chinela na mão a dar seu ultimato, o que obrigava a molecada a correr para o chuveiro no melhor da brincadeira.

Muitas vezes, o medo de molhar-se levava a dona da chinela — espécie de zagueira sem jogo de cintura — a desistir da perseguição, mas não da advertência de um jeito capaz de diluir a cera dos ouvidos daqueles que se faziam de surdos: "Tire o grude das orelhas, cabra safado, senão eu lhe pego depois..."

Além de motivar as primeiras fintas diante dos obstáculos da vida, a chinela tornou-se instrumento pedagógico bem mais razoável do que, por exemplo, a palmatória ou o cinturão. De ruim apenas o constrangimento quando a lapada na bunda acontecia ainda na calçada, sob o riso de uma plateia de maloqueiros da vizinhança nada solidária.

Ainda assim, com todo respeito a quem pensa diferente, devo admitir que a chinelada continha inegáveis atributos psicológicos: restabelecia limites esquecidos e estreitava laços de afeto entre mães e filhos. Tanto que, dos sons que todos nós guardamos na memória, um dos mais nítidos é, sem dúvida, o daquele corretivo nas nádegas. 

Sim, era necessário que fizesse o barulho clássico que todo mundo um dia já ouviu, sob pena de o corretivo não surtir o efeito desejado nem ficar retido na lembrança. O estalo inconfundível dava partida na trilha sonora do choro sentido que na maioria das vezes desaguava num abraço pleno de amor, lágrimas e remorso materno.

Voltando a minha primeira bola, há quem jure que são necessários pelo menos quatro séculos para que um objeto de plástico se decomponha e desapareça para sempre do meio ambiente. Se essa conta for verdadeira, exerço aqui o meu sagrado direito de interrogar a mãe-natureza: onde foi parar a minha primeira “amiga do peito”? 

Nunca ninguém me contou que fim ela teria levado. Se houve crime — furto? roubo? —, está prescrito, perdoado e vida que segue. No trem que partiu da estação de minha infância, há mais de meio século, só me deixaram trazer algumas imagens que vagam nas sombras de minhas recordações. 

Sei que uma hora dessas o trem vai chegar na última e definitiva estação. Enquanto isso — e tomara que demore bastante! —, seguirei em frente, superando obstáculos imaginários ou não, a driblar a falta que sinto de minha primeira bola e até das chineladas que por sua causa ganhei. 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Era Natal, ainda bem

Ela me contou que, pouco depois da noite de Natal do ano de 1995, ao ouvir um barulho estranho na porta da frente de sua casa, foi até lá e deu de cara com dois homens desconhecidos. Ficou preocupada com eles:
— O que cês tão fazendo aí fora nesse sereno? Entrem que essa friagem não vai fazer bem. 

Aos 90 anos, quase cega pelo avanço da catarata, vivia num casarão antigo e comprido cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam sua casa de porta a porta. 

Ilustração: Dedé Dwigth 
Morava com uma neta solteira na faixa dos 40 anos, cuja mãe, também criada por ela, morreu afogada muito tempo atrás numa rara enchente do rio, ao tentar atravessá-lo pouco antes de uma tromba d’água que surpreendeu todo mundo e devastou boa parte do lugarejo em questão de minutos. 

Quando estive na região por quatro dias avaliando o possível impacto do fechamento de agências bancárias, não foram duas ou três  vezes em que a ouvi perguntar aos que passavam:
— Tá com fome, meu filho? Vá lá na cozinha, fale com minha neta, coma alguma coisa, beba um caneco d’água... Puxe uma cadeira, descanse um pouco...

Vi ainda, numa manhã, acertar contas com o leiteiro. Quem pagava e quem recebia não tinha a menor intenção de enganar ninguém:
— Quanto tem aí? — Ela dizia, ao repassar uma cédula.
— Dez...
— E agora?
— Inteirou vinte... Faltam três.
— Pronto! Pegue mais essa nota.
— Sobrou, comadre. Tá aqui o troco.

Na noite em que os desconhecidos apareceram em sua porta, após acender a luz da sala e convidá-los a sentar, o tom teria sido maternal:
— Estão imundos! Precisam de banho. Venha cá, meu filho, pegue toalha e sabonete, vá pro banheiro. Cuidado para não escorregar!

Em seguida, acariciou a cabeça do outro:
— Coitado... Tá mortinho de fome. Vou esquentar a sobra do jantar. Tem guisado de galinha e macaxeira.

Eles entreolhavam-se sem saber o que dizer quando ela quebrou o silêncio:
— Cês vão dormir aqui na sala, um no sofá e o outro naquela rede. Olhe aqui o lençol. Agora vou rezar no meu quarto antes de pegar no sono. Boa noite!

Era madrugada quando eles acordaram com o bater de asas e o canto do galo no quintal. Na cozinha, a mesa já estava posta: cuscuz, pão, ovos e café com leite. Um quis abreviar a prosa:
— Quer dizer que a vó nem imagina o que a gente veio fazer aqui?
— Deixe de conversa fiada, filho... Deus castiga! Sente aí, coma e mais tarde cuide de procurar trabalho que é o melhor que cê faz. Mas bote chapéu que o sol anda um horror!

Do jeito que chegaram, partiram. Nunca mais foram vistos na região. 
— Esses moços são mal agradecidos. Somem no mundo e nem se despedem da gente. Que coisa, hein?! — queixava-se, a lembrar do ocorrido meses antes.
— A senhora, pelo menos, procurou saber o nome deles? — indaguei, a imaginar o que poderia ter acontecido com ela e a neta naquela noite.
— Carecia mesmo? Era Natal, meu filho... — respondeu, com os olhos opacos e o sorriso mais inocente do mundo sobre o rosto emagrecido. 

"Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir", diria Manoel de Barros (1916 — 2014). 

Fui-me embora impressionado com a generosidade dessas mulheres sertanejas. Querer compreender certas coisas só dificulta ainda mais a vida miúda que a gente leva.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Basta um caju

Na flor dos 69 anos de idade, o marido de uma amiga minha, morador do Lago Norte, em Brasília, no mês passado escorregou de uma escada apoiada no muro que dá para o quintal do vizinho, estatelou-se no gramado e fraturou a clavícula, além de sofrer uma forte pancada no rosto. Tentava de forma sorrateira afanar um suculento caju para presentear a amada. 

Inegavelmente, mais que carinho com segundas intenções, ficou claro para mim, de novo, que a criança que hiberna em cada adulto acorda quando menos se espera e apronta das suas. Cheguei a temer pela estrutura óssea do pobre gatuno de meia-idade, apaixonado, que felizmente só amargou alguns dias de tipóia, cama e anti-inflamatórios. 

Como uma coisa puxa a outra, lembrei-me do que aconteceu comigo por volta das quatro da tarde de um domingo, quando morei pela primeira vez na Bahia. Na época, no começo dos anos 90, aos 33 anos de idade, ocupava o cargo de superintendente estadual-adjunto do Banco do Brasil, até ali o maior desafio profissional de minha vida.

Voltávamos eu e meus dois filhos maiores (de 13 e 10 anos) para o estacionamento depois de um raro dia em que o sol resolveu fazer greve na praia de Vilas do Atlântico, em Lauro de Freitas (BA). Eles estavam exaustos dos mergulhos e da comilança à beira-mar; e eu, no agradável torpor de incontáveis cervejas desde as onze da manhã, andava feliz até com domingo chuvoso.

De repente, se tanto a trezentos metros de onde estava o carro, não me lembro por qual motivo bateu a vontade de aprontar uma inocente molecagem, incompatível, óbvio, com o que se espera de um pai mentalmente são: tocar a campainha de uma mansão daquelas do condomínio e sair correndo. De longe, assistiria ao morador, que relaxava na pérgula da piscina, vociferar palavrões enquanto não encontrasse quem lhe chamara ao portão.

Nada falei para meus filhos porque também queria surpreendê-los. Apertei a campainha e corri morrendo de rir, a imaginar o susto que tomariam com minha atitude inesperada. No mesmo segundo, teriam que desabar na carreira se não quisessem ser acusados pela insensatez paterna.

No corre-corre, segundos depois topei numa pedra saliente no meio da rua que quase me arrancou a cabeça do dedão, com unha e tudo. Levantei-me às pressas, com o pé esquerdo em petição de miséria, sangrando, e fui como pude até o estacionamento onde o restante da família me recebeu  com cara de quem pensou mas não perguntou: “Isso é papel de pai?”

Não precisava. Mais tarde, antes de dormir, ouvia a vinheta sem graça de um antigo programa de tevê a decretar a iminente chegada da segunda-feira e não sabia o que latejava mais: o dedo esfolado ou a ressaca moral após a molecagem, com o agravante de que logo cedo teria que vestir terno, gravata, sapato no pé direito e sandália no outro, por conta da liturgia do cargo.

Na primeira reunião pela manhã, ainda tentei convencer alguns colegas de que o curativo teria sido consequência de uma pelada (baba) com os pés descalços, no sábado. Um deles com falsa cara de espanto — participara comigo da farra e sabia de tudo  até cogitou emprestar um par de chuteiras para os próximos rachas. Na maior cara de pau! Cheguei a ver óleo de peroba escorrendo no riso sórdido do miserável!

Mas tudo acabaria bem. Dias depois a ferida estava cicatrizada e nunca mais se falou nisso. Se não fosse o que aconteceu com o marido de minha amiga, talvez nem lembrasse dessas coisas que perturbam o sono leve da criança que cochila dentro da gente e que, às vezes, basta um caju para despertá-la. 

Arte ou macacada?

Na última quinta-feira, enquanto tentava acompanhar uma aula por videoconferência, recebi de meu amigo, o espirituoso jornalista e escritor ...