quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Catita

Quinze anos atrás conheci Catita, copeiro vinculado a uma firma terceirizada, para mim um sábio na arte de arejar ambientes corporativos. 

Aos 35 anos, 1,65 m de altura, queimado feito um boi de barro ou O lavrador de café de Portinari, seu charme, segundo ele mesmo, estava nas sobrancelhas de taturanas e na gravata borboleta a lhe adornar os três dedos de pescoço.

Quando cheguei, já estava no local em que trabalhamos juntos por dois anos. Soube que um antecessor meu, que se queixava do excesso de pretendentes a determinado cargo, teria recebido de Catita uma ajuda importante para pré-selecionar os candidatos. 

No dia da entrevista, Catita entrou sorridente na sala de espera, com bandeja, bule, xícaras e copos, a perguntar em voz alta, repetindo o que havia decorado de véspera:
— Would you like some coffee? Do you like sugar?

Logo depois voltaria à área interna a espalhar que metade dos interessados desistiu porque seria complicado trabalhar num lugar onde até o cafezinho era servido em inglês. “A outra metade preferiu um copo d’água gelada”, dizia ele, lacrimejando de tanto rir.

Flamenguista abusado (pleonasmo?), Catita mexia com meio mundo de gente quando chegava eufórico com mais uma vitória de seu time. Perdia a noção do perigo a rebolar pelos corredores imitando Tetê Espíndola, querendo alcançar o timbre e a extensão vocal da cantora: Você pra mim foi o sol de uma noite sem fim...

De Brazlândia (cidade-satélite onde morava) ao Plano Piloto, eram quase duas horas de ônibus para chegar ao trabalho, mas nunca aparecia triste, calado. Numa quinta-feira em que chegou espirrando, a reclamar de dor de cabeça e coriza, fiz o que qualquer um faria: aconselhei-o a voltar para casa. E quando liguei no domingo para saber se estava melhor, antes de responder comentou com alguém que devia estar a seu lado:
— Cê pensa que só tenho amigo “urêa” seca, é? Fale aqui com meu chefe!
Foi como Catita, por telefone, me apresentou a seu sogro, com quem bebia uma cerveja no quintal de casa, a curtir o domingo em família.

Por falar no sogro, Catita morria de medo da esposa, por quem sempre teve o maior carinho e respeito. Mesmo assim, um dia, dando a entender que fora casado outras vezes, falou sério:
— Tô doido pra arranjar mais uma P.A.
— Que diabo é isso, Catita? — indagou uma inocente recepcionista.
— Pensão alimentícia! — disse com a cara mais cínica do mundo, a imitar Amelinha com a voz em falsete: Mulher nova, bonita e carinhosa, faz o homem gemer sem sentir dor

Catita não tinha pressa. Levava mais de hora para servir uma rodada de café num salão interno com menos de 40 pessoas, parando aqui e ali para contar a última novidade, mexer com alguém mais carrancudo, comentar um lance do futebol ou arremedar alguma figura pública. 

Já perto de minha transferência para outro local de trabalho, aconteceu outro lance memorável. Eu saía para almoçar num rodízio de carnes que havia em Brasília quando nos encontramos no hall dos elevadores:
— Chefe, também tô indo almoçar no Porcão.
— Quer carona? — perguntei, sem entender como ele sabia do meu itinerário. 
— Precisa não! O Porcão é aqui perto.
— Que Porcão tem aqui perto, Catita? 
— É um branquelo, chefe, buchudo — disse sorrindo — E faz um PF, ó, de primeira. Bem aqui na Rodoviária.

Andei noutros lugares, depois me aposentei, mudei de  cidade e há mais de 15 anos não via Catita. Outro dia descobri o seu paradeiro e fiquei feliz por vê-lo em paz. Mora agora na cidade-satélite de Santa Maria (a 26 km do Plano Piloto) e trabalha como recepcionista de um centro médico na Asa Norte. 

Quis saber dele como estavam seus filhos e vi que a língua continua afiada como lâmina de barbear:
— Chefe, meu moleque tá a cara do Gabigol, mas não joga nada! Desse jeito não vai jogar nem no Vasco! — respondeu, dobrando-se de gargalhar.

Sinto, não nego, uma falta danada dessas catitices depois que me aposentei.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Ernesto e seu magote de cornos

Passava das dez da noite de sexta-feira quando Ernesto chegou em casa. Largara às seis. Com cuidado para não fazer barulho, abriu a porta bem devagar, descalçou os sapatos e seguia em direção ao quarto quando da escuridão fez-se a luz. Sua mulher, de origem germânica, forte e brava feito onça da pata torta, sentada no sofá, acionou o quebra-luz:
— Bonito! Isso é hora de pai de família chegar em casa? Que exemplo dá para os filhos, hein?
— Peraí... Quem disse que eu cheguei? Vim só buscar o violão.
— Como é? Quando é que cê vai parar com essa vida?
Minutos depois lá estava ele a fechar o ferrolho do portão do jardim, ganhando a calçada onde os amigos o aguardavam na esquina.

Alto, elegante, cara de cacique apache, na casa dos 45 anos, Ernesto era motorista do gerente de um banco na capital alagoana, ali na metade dos anos 70. Guiava um Chevrolet Opala SS 1974, 6cc, preto, das 8h às 18h de segunda a sexta-feira, vestido num impecável terno azul marinho, sempre bem barbeado e com todos os fios da cabeleira no lugar, retrato dos tempos da brilhantina. 

Quando o conheci, já não bebia uma gota de álcool sequer. “Tomei tudo o que tinha direito na mocidade”, dizia. Lembro-me dele no clube, numa mesa próxima da piscina, o cigarro no canto da boca e as mãos com os dedos compridos a extraírem acordes de violão ou cavaquinho. A seu lado, o copo de soda limonada com gelo e o tira-gosto. 

Numa segunda-feira, era tanta a ressaca decorrente de noites mal dormidas e de petiscos gordurosos que Ernesto, a derreter no vaso sanitário em náuseas e cólicas, assustou-se quando lhe avisaram que o chefe estava de saída para um compromisso externo. Na pressa de vestir as calças, as chaves do carro caíram dentro do vaso e veio o desespero. “Achei que o chaveiro ia descer com tudo para a fossa”, contava.

Não lhe restou alternativa: prendeu a respiração, meteu a mão na massa e conseguiu resgatar o chaveiro com as pontas dos dedos antes de a descarga concluir o seu carrossel sonoro. Demoraria mais uns cinco minutos a lavar bem as mãos antes de encontrar na garagem o chefe, a quem se justificou: “Ontem à noite comi alguma porcaria que me fez mal”. O suadouro não deixava dúvidas quanto à veracidade do fato. 

A mulher de Ernesto, adepta da Igreja Adventista do Sétimo Dia, levava uma vida devotada a Deus nos aspectos físico, psicológico e espiritual. Queria a todo custo, por isso mesmo, convencer marido e filhos a adotarem estilo de vida parecido, com base em oito remédios para ela santificados: fé em Deus, água, alimentação saudável, ar puro, comedimento, exercício físico, luz solar e repouso. 

Demônios da Garoa
Nunca conseguiu, pelo menos em relação ao marido. Por conta das restrições do seu credo religioso, a esposa guardava o sábado sobre todas as coisas. Ernesto acabou se juntando a alguns colegas de trabalho (Nelsinho, no violão; Paulo Neto, no tantã; Alvacyr, no pandeiro; entre outros) e criaram um grupo musical inspirado no famoso Demônios da Garoa.  Sem fins lucrativos e apenas para animar as "reuniões", o nome escolhido era injusto com as respectivas caras-metades: Ernesto e seu Magote de Cornos.

Numa manhã de sábado, um espírito de porco qualquer deve ter telefonado para a casa de Ernesto para dedurar que o grupo musical estaria se exibindo numa farra em Santa Luzia do Norte, pequeno município da região metropolitana de Maceió. Pouco depois, sua esposa chegou num táxi e foi logo armando o maior escarcéu. 

Quase todos os frequentadores do bar se assustaram com a repentina aparição daquela senhora exaltada, de dedo em riste, dirigindo-se ao líder do grupo musical.  Menos Ernesto. Calmamente, ele largou por um instante o cavaquinho, levantou-se do tamborete, pegou uma canoinha de palha de coqueiro, fez um risco no chão com o bico e disparou:
— Volte para casa, agora! Se você passar deste risco, não me responsabilizo por mim.
— Como? Eu não tenho dinheiro para pegar outro táxi — retrucou a esposa.
— Você não veio sozinha me desmoralizar na frente de meus amigos? Então, se vire.
E puxou um longo trago no cigarro, antes de voltar a dedilhar o cavaquinho.

Na segunda-feira, Ernesto apareceu no trabalho com o semblante sereno de sempre, mesmo com escoriações generalizadas no pescoço e nos braços. Parecia que tentara capar um gato com um bisturi cego. Disse que sofrera uma queda ao consertar goteiras no telhado.  

Nenhum dos colegas ousou duvidar do líder. Afinal, o importante era que o grupo Ernesto e seu Magote de Cornos, com chuva ou sol no próximo final de semana, animaria nova farra num boteco qualquer. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

À beira do açude de Quixeramobim

Sentado à beira do açude de Quixeramobim, no Sertão cearense  terra natal de Antonio Tertulino, meu sogro , vimos alguns meninos pulando do sangradouro:
– Por que não eu? – pensei alto, seguro de que minha mulher me demoveria da bravata, coisa de rapaz novo e encantado, com vinte e um anos de amor.
– Por que não? – ela me devolveu, já pronta para o clique com sua velha Kodak Instamatic.


Demorou uma semana o tempo entre o parapeito da barragem e a pancada na água da planta de meus pés. Não seria o disparo do coração ou a secura da boca que me fariam desistir do salto e de nadar até a margem para recuperar o fôlego.  

Quarenta anos depois, continua bem fresquinha em minha memória a overdose de endorfina (o hormônio do prazer) que tomou conta de meu corpo naquela manhã de sol, cerveja e piabas crocantes, temperadas com limão, sal e pimenta.

Todo prazer vicia e tudo aquilo que qualquer ser humano mais deseja é poder prová-lo de novo, se possível  elevando o sarrafo. Poderia, portanto, tentar adiante algo mais radical como o bungee jump, esporte onde se salta de um barranco, uma ponte ou coisa parecida, amarrado por um elástico. Ao ser alongado até o seu ponto máximo, tal elástico puxa o corajoso para cima.  

Acontece que não havia de onde retirar tanta coragem. Tratei logo de arranjar para mim mesmo a desculpa esfarrapada (Freud explicaria fácil!) de que não valeria à pena investir tanto em tão poucos minutos de gozo e pânico. 

Com o correr dos anos, esses rompantes passaram. No começo de 2012, porém, recebi de João Comaru,  à época aposentado havia mais de 10 anos, sua imagem sobrevoando de asa delta a cidade do Rio de Janeiro. Me contou que saltara da rampa do Morro da Pedra Bonita, pousando na praia do Pepino, em São Conrado. 

A asa delta, que usa como fonte de energia apenas as correntes de ar, está na imaginação de muita gente e era sonho relativamente fácil de realizar. Claro, na opção pelo chamado voo duplo, onde um piloto experiente conduz o "pássaro" novato pelo céu, diminuindo os riscos da aventura.
Se a experiência vivenciada à beira do açude de Quixeramobim me deixara tão grata lembrança, imaginei como me sentiria após uma experiência dessa envergadura, com direito a imagens de vídeo para ilustrar as histórias que contaria a netinhos orgulhosos da façanha do avô.

Li o que pude a respeito desses voos e descobri que havia boas empresas especializadas no assunto. Escolheria uma das melhores em termos de segurança, ainda que não exista prazer que não diminua quando livre do perigo. 

Com tudo sob controle, inclusive o checkup médico anual e a grana no bolso para a estrepolia num final de semana no Rio, de repente as duas partes de mim – a que pesa, pondera, almoça e janta; e a que delira, se espanta e só se sabe de repente, como diria um certo poeta conterrâneo de meu pai –, entraram em rota de colisão e quase trocam tapas:
– Faz sentido? – perguntava a primeira. 
– Se não vai me ajudar a voar, libere o céu – rebatia a outra.
– Saltar ou não, o que muda? 
– Só se sabe depois.
– E se não saltar, a frustração será grande?
– Talvez sim, talvez não.
– Tá bom. Então, vamos lá?
– Não sei... Faz sentido mesmo?

Depois que passar a pandemia que estamos vivendo, quero voltar à beira do açude de Quixeramobim para ver a molecada de hoje pulando do sangradouro. Quem sabe encontre de novo por lá o que havia de melhor dentro de mim.

Difícil será encontrar resposta para algo mais ligado ao céu de Ícaro do que ao de Galileu: para onde foram as coisas que poderiam ter acontecido em minha vida e não aconteceram?

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Bigodes nunca mais!


Berço do ex-senador Teotônio Vilela  o menestrel das Alagoas  e de seu irmão cardeal primaz do Brasil, Dom Avelar Brandão, a alagoana Viçosa, com pouco mais de 25 mil habitantes, está encravada no Vale do Rio Paraíba do Meio, a 86 km da capital.

Lá o escritor Graciliano Ramos viveu e inspirou-se para escrever São Bernardo, obra-prima publicada em 1934 em que o personagem Paulo Honório faz reflexões sobre sua vida, de guia de cego no interior até se tornar um grande e inescrupuloso latifundiário. 

Lá também viveu Seu Vilaça, caminhoneiro trabalhador como poucos, olhos apertados, sobrancelhas grossas, bigodinho bem aparado, casado com Lourdes, paixão antiga com quem trouxe ao mundo 15 filhos, metade meninas.

O sustento da prole dependia de um caminhão Ford 46 de dois eixos carinhosamente apelidado de "Bigode", cuja partida dependia de uma manivela conectada ao virabrequim. Até que fossem criadas as primeiras baterias, o motorista desse tipo de veículo toda manhã rezava e ensopava de suor girando a tal manivela para fazer pegar o motor. 

De setembro a abril do ano seguinte  período de moagem da safra canavieira no Nordeste —,  Seu Vilaça transportava a produção de pequenos fornecedores de cana-de-açúcar das redondezas para a Usina Boa Sorte, pertencente ao então senador Teotônio Vilela.

O sábado era dedicado ao “descanso”, isto é, a lavar o veículo e a fazer pequenos reparos. E já a partir das três da madrugada do domingo, reunia vendedores ambulantes na periferia de Viçosa para transportá-los à feira livre da vizinha cidade de Capela.

Com a família numerosa e a necessidade cada vez maior de fazer carretos para que nada faltasse “às meninas”  Seu Vilaça não ligava muito para os meninos porque, dizia ele, “quem tem filho de bigode é gato” —,  essa rotina não poderia ser quebrada. 

Mas foi. Numa manhã de domingo, Zé Alves, político e grande fazendeiro na região, bem cedinho deslocava-se para suas terras a fim de vistoriar lavouras e rebanhos quando avistou Seu Vilaça, no meio da neblina que cobria a rua, a soltar labaredas pelas narinas peludas. 

Com o capô aberto, mexendo em tudo que era peça do "Bigode", tentava em vão dar partida no motor girando a manivela:
 Oh, meu Bom Jesus do Bonfim, a bobina tá bobinando, o carburador tá carburando, o relê tá relando, todo domingo eu vou à missa com Lourdes e este caminhão não quer pegar!
 Calma, Seu Vilaça...  quis desanuviar Zé Alves.
 Eu tô calmo! Não é você que tem um magote de mangaieiros pra levar pra feira de Capela!
 Tô vendo a calma... Tenha cuidado com o coração!
 Que coração coisa nenhuma! Ninguém merece uma vida de aperreio dessas.
Pouco tempo depois o motor do caminhão pegaria e ele pôde, mais uma vez, cumprir sua rotina semanal junto aos pequenos feirantes. 

De noite, ajoelhado na igreja, ao lado da mulher, diante da imagem do santo padroeiro, suplicou perdão pelos impropérios ditos pela manhã:
 Pelo amor de Deus, meu santo, fazei com que nenhuma de nossas filhas se apegue a um homem com um "Bigode" velho feito o meu... 

Mal acabou a oração, virou-se de lado e deu de cara com um bancário recém-chegado na cidade, do bigodão preto, com um olhar de luxúria para uma de suas filhas. Quis esconder sua satisfação com a rapidez do santo padroeiro  já ouvira falar daquele cidadão respeitável , mas ao notar que ali o motor da paixão já faiscara mesmo sem ajuda de manivela, chamou o moço na porta da igreja e puxou conversa: 
 Só trisque o dedo nela se for pra casar, ouviu bem?!
 Claro, Seu Vilaça.
 Me disseram que você tem medo de sapo cururu. É verdade?
 Nao é medo... é nojo. Coisa de menino criado em beira de rio. 
 Sei... Me diga outra coisa: um passarinho me contou que, além de trabalhar no banco, cê toca uma sanfona arretada. 
 Tô parado. Tive que me dedicar aos estudos para o concurso. Mas um dia eu volto...

Nunca voltou. Poucos meses depois, Seu Vilaça levaria a filha até o altar onde o bancário do bigodão preto a esperava. O casal foi passar a lua de mel na Bahia e gostou tanto do dique do Tororó, do acarajé de Amaralina, do afoxé Filhos de Gandhy, do caranguejo da Pituba, da ladeira do Pelô e do pôr do sol no Farol da Barra, que resolveu não voltar ao interior de Alagoas. 

Morto de saudade da filha que deixara a casa paterna e o torrão natal, Seu Vilaça espairecia na boleia do "Bigode" assobiando coisas como o baião Boiadeiro, de Gonzagão: 

"(...) De tardezinha quando venho pela estrada 
A fiarada tá todinha a me esperá 
São dez fiinho é muito pouco é quase nada 
Mas num tem outros mai bonito no lugá (...)"

Algum tempo depois, num dia útil qualquer, o “Bigode" foi nocauteado, com manivela e tudo, por falência de múltiplas peças corroídas pela ferrugem. Seu Vilaça, de faróis baixos para seguir adiante na escuridão do futuro, com os filhos crescidos e os olhos embotados de poeira e lágrima, raspou o bigodinho já grisalho e sentou de vez para descansar como se fosse sábado. 

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Tom Zé e o jogo da mãe de Amaro

Chuviscava na tarde em que Tom Zé e seu amigo Catatau foram ao Maracanã assistir a Vasco e Bangu, na abertura do 2º turno do Campeonato Carioca de 1969. Mesmo com o aguaceiro, passaram antes na casa de Amaro, em Irajá, para apanhá-lo. 

Ao chegarem lá, a mãe de Amaro recebia algumas amigas, com quem praticava o jogo do copo, que lembra o Tabuleiro Ouija, criado pelo espiritualismo, um movimento que varreu a Europa no século 19 conhecido pela visão otimista sobre o futuro e a vida após a morte.  

Era novidade para Tom Zé e Catatau aquele círculo de pessoas em torno da mesa da sala de jantar, com um copo emborcado no centro e as letras do alfabeto dispostas ao redor. De olhos semicerrados, sob a luz de velas, as mulheres colocavam as mãos sobre o copo, que deslizava em direção às letras, formando palavras ou frases curtas. 

Ao ver que o filho Amaro amarrou os cadarços e dava os últimos retoques no topete antes de sair com os amigos — todos eles na casa dos 15 anos de idade , a mãe cuidou de “ouvir o espírito” sobre o programa da rapaziada. O copo, então, apontou quatro consoantes: C, G, R e V. 

Ninguém entendeu nada. Tom Zé, contudo, vascaíno crônico, deduziu que o “espírito” estaria profetizando a vitória do Clube de Regatas Vasco da Gama. Ficou cismado porque aquelas mulheres não tinham a menor intimidade com o mundo do futebol

Os rapazes deveriam pegar o ônibus na avenida Brasil em direção ao centro da cidade, onde saltariam em frente à estação da Leopoldina e seguiriam a pé até o estádio. Com o chuvisco intermitente, optaram pela linha Irajá/Cascadura até Madureira e, de lá, foram de trem para a estação Derby Club, em frente ao Maracanã.

Chegaram cedo, no momento em que começava a segunda etapa da partida preliminar entre os times juvenis de Vasco e Bangu. Nem prestavam tanta atenção no desenrolar do jogo até que, de repente, na área banguense, um moleque espigado driblou dois defensores adversários e arrematou forte no canto do goleiro, fechando o placar em 3 a 0 para o Vasco.

No mesmo instante, Tom Zé sentiu um calafrio no espinhaço e achou que fosse febre, sintoma de resfriado. Mas logo depois desconfiaria de algo sobrenatural, por conta do jogo do copo da mãe de Amaro. Ficou quieto, entretanto. Não era chegado a superstições ou crendices populares. 

Além de futebol, Tom Zé gostava mesmo de música, cinema e leitura, sobretudo de Drummond, que deu voz a muita gente boa ao confessar: "Não digo que sou vascaíno doente, pois doente é quem não é vascaíno". Gente do naipe de Aldir Blanc, Camila Pitanga, Danuza Leão, Edu Lobo, Francis Hime, Gonzaguinha, João Ubaldo Ribeiro, Luís Melodia, Martinho da Vila, Pixinguinha, Sonia Braga e outros.

Vida que segue, naquele dia no Maracanã a partida principal acabou sendo desastrosa para o Vasco, que perdeu por 1x2, com o desempate no último minuto, através de um obscuro ponta-direita banguense, chamado Mário. E na volta para Irajá, os vascaínos tiveram que engolir a zoação de Catatau, que não perdoou nem mesmo a profecia furada do jogo do copo da mãe de Amaro.   

Para Tom Zé, no entanto, só depois de dois anos cairia a ficha sobre a premonição do "espírito". Em 24 de novembro de 1971, véspera de uma partida entre Vasco e Internacional, pelo Campeonato Brasileiro, um jornalista que trabalhava no Jornal dos Sports buscava inspiração para a manchete de capa. Ao saber que um juvenil de 17 anos, que tinha uma “bomba nos pés”, poderia sair jogando, arriscou: “Vasco escala o Garoto-dinamite”.

No dia seguinte, o novato justificaria a chamada promocional. O Vasco já vencia por 1 a 0 (gol de Buglê) quando ele entrou em campo, substituindo Gilson Nunes. Na primeira bola que recebeu, livrou-se do zagueiro gaúcho Pontes e, da entrada da grande área, acertou um chutaço na gaveta esquerda do goleiro Gainete, provocando nova manchete, agora em letras garrafais: “Garoto-dinamite explodiu!” 

Tom Zé — Antônio José Santos Fonseca, meu velho amigo Fonseca estava no Maracanã e viu de perto o alvorecer de uma lenda chamada Roberto Dinamite (clique e veja aqui), que marcaria ao longo da carreira 708 gols em 1.110 partidas. O primeiro deles, um golaço no jogo do copo da mãe de Amaro.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

O mutante

Ele mantinha uma conversa esfumaçada consigo mesmo toda sexta-feira à noite na esquina onde fica um boteco próximo de sua casa, na Gruta de Lourdes, em Maceió. Com um cigarro numa mão e um copo de cerveja na outra, tinha virado rotina, de hora em hora, o isolamento voluntário  para fazer uma “inalação reflexiva”, como dizia, longe dos demais frequentadores.

Enquanto isso, a mulher, cantora de uma dupla “voz e violão”, em tom resignado soltava o vozeirão na mesma toada de Alcione: “Sabe, meu menino, sem juízo, eu já aprendi a te aceitar assim” .

O boteco, como todos os bares e restaurantes da cidade, baixou as portas há mais de 100 dias.
  
Aos 61 anos, com 1,69 metro e 68 kg, se alimentava na base do trivial arroz, feijão e bife. Dormia feito criança, de sete a oito horas todo dia. Mas, além de sedentário, fumava e bebia desde os 13 anos. 

Tal como seus irmãos, nos anos 60 contraiu e escapou sem sequelas de todas as doenças típicas da criançada: gripe, catapora, tosse comprida, sarampo e papeira.

Quase aposentado – bancário e professor de Finanças –, amigos e familiares viviam a lhe cobrar mais assiduidade de consulta a médicos. O aperto era tanto que, mesmo a contragosto, chegou a fazer uma série de exames no final do ano passado.

Os resultados, felizmente, não surpreenderam ninguém. Apenas confirmaram o que já se imaginava: tudo absolutamente normal. Sua cunhada, médica, bem resumiu o quadro: "É caso a ser esmiuçado pela comunidade científica internacional”.

Tratava-se de um raro sessentão desinteressante para a indústria farmacêutica. Nada de diabetes ou problemas cardiovasculares e respiratórios. Nem enxaqueca, dores de barriga ou de dente. Tampouco unha encravada. 

Parecia mais um daqueles machos-jurubeba descritos nas crônicas de Xico Sá. Dos que respeitam o valor do dinheiro, mas nunca deu valor para ele. Até pouco tempo usava capanga, pente, espelho, palito e cuspia no chão. Garantia que “paraibano criado em Alagoas, nem vírus e bactérias chegam perto”.

Mesmo assim, andava preocupado com a chegada da pandemia. Por reconhecer que os idosos são mais vulneráveis, adotou o isolamento social, o trabalho em casa, além do uso de máscara nas raras vezes em que saía de casa para ir ao supermercado ou à padaria. Seu temor, na verdade, era mais com a saúde da esposa, portadora de doenças crônicas. 

Sua mulher, depois de breves contatos “mascarados” com uma vizinha, assustou-se ao não sentir o perfume usado após o banho, ainda que não apresentasse febre, cansaço ou tosse seca, indícios clássicos do mal do século 21.
– Meu Deus, eu não tô sentindo cheiro de nada...
– Calma, minha filha! 
– Acho que o miserável me pegou. Nem chegue perto de mim!
– Como?! Vou pra onde?!
Casados há mais de 40 anos – filhos distantes, cuidando de suas respectivas vidas –, o espanto era compreensível. 

Para completar o drama, minutos depois apareceu no quintal um escorpião, e o macho-jurubeba da casa partiu com tudo para pisotear o bicho, como já fizera noutras oportunidades. Mas a sandália derrapou e veio a picada no dedão do pé.

Era o tal do Tityus serrulatus, conhecido como escorpião-amarelo, espécie que causa acidentes graves na região, responsável por amplo registro de óbitos, principalmente em crianças. 

A primeira providência seria procurar socorro para neutralizar o veneno, mas não se sabia o que era pior: o risco dos efeitos da peçonha ou de contrair (ou transmitir) o novo coronavírus na emergência hospitalar. 

Por teleconsulta, um médico decidiu acompanhar à distância a evolução do caso, prescrevendo analgésicos para diminuir o tormento do acidentado. Em 24 horas, desapareceram a vermelhidão e as dores da picada, sem intercorrências.

Nessa altura, a esposa acabou testando positivo para covid-19 e teria que iniciar imediatamente o tratamento. Optou-se então por tratar também o marido, preventivamente, mesmo sem sintomas.

Sete dias depois, ao fazer o teste para saber se de fato o casal teve a infecção (no caso dele, assintomático) e se já estava imunizado com a presença dos chamados anticorpos IgG, deu o que já era esperado: o mutante estava livre da peste invisível que continua a atormentar a maioria dos mortais. A mulher dele, coitada, ainda não. Só mais adiante viria a boa notícia para ela.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) listou recentemente 23 vacinas que estão sendo avaliadas em ensaios clínicos com seres humanos. Um terço desses testes está sendo realizado na China. O país – onde surgiram os primeiros casos da doença –  quer ser o primeiro a oferecer uma vacina e não hesita em ampliar suas pesquisas. 

Não tenho dúvidas de que daqui a pouco uma delegação chinesa chegará a Maceió para contratar a peso de ouro o mutante do meu irmão –  que já voltou a beber sua cervejinha no terraço de casa, ao som de Alcione e Emílio Santiago – para acelerar os trabalhos. Certamente – nunca se sabe! – levarão também alguns escorpiões-amarelos.
  

Difícil será convencer essa mutação da espécie humana de que os tempos mudaram e de que terá que suportar mais de 20 horas dentro de um avião, a caminho da Ásia, sem a “inalação reflexiva” de um maço de cigarros.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Pecados veniais


Já pesquei, mas hoje não pesco mais e tenho meus motivos. Coisa de criança que, aos 10 anos de idade, do nada começou a ter pena dos carás, dos jundiás (bagres) e das piabas (lambaris, manjubas ou piaus) que fisgava no rio Mundaú, na Zona da Mata alagoana, porque em minutos morriam asfixiados com as guelras secas.

Não vi mais graça alguma em acordar bem cedinho para procurar minhocas no jardim e juntá-las numa lata vazia de leite em pó, armar-se de caniço, linha, chumbada e anzol, seguir com os colegas da rua para beira do rio e disputar com eles quem faria a maior fieira de peixes. 

Também nunca fui de caçar, apesar da origem cabocla. Quando menino, até me orgulhava da pontaria com uma peteca (chamada assim somente em Alagoas; noutros lugares, é estilingue, atiradeira, balinheira, baladeira, badoque ou bodoque), a acertar calangos e lagartixas que tentavam fugir do predador nos monturos do Beco do Coité, em União dos Palmares. 

Desisti depois que matei por matar, numa poça d’água  no Beco do Coité, uma lavandeira (ou lavadeira-mascarada, noivinha), espécie de pássaro dócil que vive junto a rios e lagoas e vem com inocente frequência ao chão em busca de comida. 

Testemunha da crueldade, Pitôta, empregada doméstica lá em casa, foi juíza e educadora ao mesmo tempo. Quase me sufoca de remorso ao dizer que “a bichinha lavava a roupa de Nosso Senhor”. Chorei feito gente grande. No mesmo dia, joguei fora duas gaiolas e o alçapão com que pegava canário, galo-de-campina e papa-capim nos sítios que haviam no caminho da Ilhota e da Terra Cavada.

Pecados veniais. Menino tem o coração do tamanho do mundo, mas às vezes é bicho desalmado, “nação do desassossego”, como diz o poeta Jessier Quirino.

Talvez por saber que passei boa parte de minha vida morando próximo a rio e mar, semana passada meu amigo Blóton me questionou por nunca escrever sobre pescarias, paixão de outros amigos meus como Eilton, Ligabue, Rorato e Zé Ângelo. 

Página virada em minha vida, devo reconhecer que pescar até voltaria a fazer sentido para mim depois que li “O velho e o mar”, de Ernest Hemingway (1899 – 1961). 

O livro conta a história de um velho pescador com quase três meses sem fisgar nenhum peixe que resolve provar aos amigos que ainda é bom no ofício. Então se lança ao mar com pouca água para beber, quase nada para comer, aguenta firme o sol implacável, o vento noturno e a solidão dos desacreditados.

Conhecer de marés, mudanças climáticas, localização dos cardumes e do comportamento dos peixes dera a ele um passado de vitórias. No entanto, não lhe impediu de sofrer privações de toda ordem, a ponto de morar num casebre e dormir sobre uma cama de jornais velhos. 

Quando já perdia a esperança, o velho pescador consegue capturar o maior peixe que já havia visto na vida, com cerca de cinco metros de comprimento. Mas todo pescador sabe que fisgar é uma coisa, embarcar o animal é outra.

Foram dias e noites de luta, tentando vencer a força bruta e a resistência do peixe. Quase fica cego por conta da luz solar e sem o movimento de uma das mãos, cortada por conta do esforço feito para segurar o bicho pela linha. 

Depois de amarrá-lo ao barco, o velho é perseguido por tubarões até próximo da praia. Livra-se deles como pode, mesmo a todo instante correndo o risco de ser engolido vivo junto com a carcaça do peixão que havia capturado.

Chega em terra firme só o bagaço, esgotado, com fome, sede e sono. Ainda assim, aguarda medirem o que resta do esqueleto do peixe e então volta a ser admirado no meio dos pescadores. Mais do que a peleja no mar, vencera, no outono da vida, uma grande luta consigo mesmo. 

Eu até voltaria a pescar se fosse sempre desse jeito. Não é. Livros, assim como filmes, costumam mexer com quem já está sossegado, só apreciando a correnteza, à beira do rio que passou em sua vida e seu coração se deixou levar.  

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Era o amor, Margot!

Juro pelo cachimbo da velha parteira que cortou o meu umbigo que este caso é real. Pode ter uma coisinha a mais aqui, outra ali, mas Salomão, meu vizinho à época, me contou em detalhes o que lhe aconteceu quando morou na Quadra 114 Sul, em Brasília, na virada do milênio.

Margot, síndica do prédio, quase o levou à loucura. Criava confusão com os moradores por qualquer bobagem e fazia da vida de todos eles um inferno, inclusive dos prestadores de serviços, a reclamar do desodorante vencido de um, do cheiro de cigarro de outro e até do flerte inocente de uma babá com o porteiro da noite. 

A síndica era de morte! Um dia, mesmo percebendo pelo retrovisor que Salomão descia a rampa da garagem logo atrás do carro que ela guiava, fez-se de distraída e acionou o controle remoto para fechar o portão, espatifando o para-brisa do coitado. Irritado, ele quis dizer o que qualquer um diria, mas respirou fundo, contou até nove e percebeu a tempo a intenção dela: tornar-se vítima.

Certamente Margot diria que apenas cumpriu o regulamento da convenção de condomínio, que responsabilizava os moradores pelo fechamento do portão nas entradas e saídas da garagem. Salomão então teve que catar cacos de vidro espalhados do painel frontal até o porta-malas do carro durante horas, além de aturar a demora da oficina para repor a peça danificada e arcar com o custo da franquia do seguro. 

Ela tinha seus motivos
 para se sentir infeliz. Havia sido rejeitada pelo ex-marido, não conseguiu ser mãe nem contava com um cobertor de orelhas e braços para aquecê-la nas noites frias e secas do Planalto Central. Servidora pública, aposentou-se sem nada digno de orgulho em termos profissionais. Nem festinha de despedida fez por merecer de seus colegas de trabalho.

Caneta e prancheta nas mãos o dia todo, ela se portava como alguém acima do bem e do mal, a distribuir ordens e fazer ameaças até a Zezé, um caboclo magricela nascido na goiana Pirenópolis que vendia “frutos” do Cerrado  queijos, ovos, mel, linguiças, doces, broas e sequilhos — numa kombi enferrujada, de pneus arriados, havia anos parada no estacionamento público.

Ilustração: UMOR
Brasília continuava a mesma: quanto maior o poder, maior o abuso de autoridade. Quando tomava conhecimento dos chiliques de Margot, Salomão balançava a cabeça. Não entendia o porquê de tanta empáfia e rispidez no trato com as pessoas, principalmente as mais humildes. Apesar disso, não se encorajava a discutir o assunto nas reuniões de condomínio e tocava sua vida a fazer de conta que a síndica não existia, até que a danada pisou de novo no seu calo. 

Certa manhã, a filha de Salomão deixou o carro por alguns minutos próximo à guarita da portaria
 — na falta de vagas em frente ao prédio e sem tempo para descer à garagem no subsolo , enquanto pegava algo na geladeira para atenuar a fome. Foi o bastante para Margot acionar a fiscalização de trânsito, denunciar a infração e exigir que o agente público cumprisse o seu papel: aplicar a multa.

Salomão não se conformava. Naquele dia, abriu a caixa de ferramentas, soltou o verbo e falou alto para quem quisesse ouvir: “Por que comigo, minha Nossa Senhora Aparecida, que todo sábado vou à missa? Quanto mais rezo, mais assombrações me aparecem!" 

Talvez Margot ainda estivesse cabreira por ele tê-la flagrado no elevador, às três da madrugada de uma sexta-feira, bocejando com os dentes arroxeados pelo excesso de vinho, a carregar uma sacola que se rasgou, derrubando alguns apetrechos íntimos. Muito íntimos, diga-se de passagem. Tanto que Salomão esquivou-se de ajudá-la para evitar maior constrangimento. 

Mas agora ela passara dos limites. Como diria tempos depois um certo deputado federal a outro parlamentar, ao vê-la mais uma vez criticando de modo grosseiro o trabalho das faxineiras, Salomão comentou com o porteiro: “Esta senhora desperta em mim os instintos mais primitivos!"
 

Foi quando ele decidiu colocar em ação um plano que já vinha arquitetando em suas noites insones: publicar um anúncio no Correio Braziliense mais ou menos assim: “Mulher madura, enxuta, bem de vida, procura alguém para relacionamento sem compromisso, solteiro ou casado. Guarda-se sigilo. Ligar para...”  

Claro que Margot iria cuspir escorpiões e desconfiaria de que a molecagem partira de Salomão, mas dificilmente conseguiria provar. Ele, ao planejar a ação em seus sórdidos detalhes, terceirizaria o anúncio no jornal através de uma amiga mineira de passagem por Brasília. E saberia ser cínico o bastante 
— em público, claro , para lamentar o ocorrido, inclusive colocando-se à disposição dela para auxiliar na identificação da origem daquela crueldade inaceitável, sem precedentes na história do prédio. 

Mas Salomão — como o personagem bíblico filho de Davi, fiel à origem de seu nome na palavra hebraica Shelomon, de Shalom, que significa paz — era homem de índole pacífica, ainda que à base de ansiolíticos, custou a pegar no sono naquela noite, a ruminar sobre os possíveis desdobramentos de seu audacioso plano. 

Pensava: e se Margot, carente como andava, caísse na conversa mole de um serial killer? E se mais adiante, no curso das investigações policiais, encontrassem a responsável pela publicação do anúncio a partir das imagens das câmeras de segurança do jornal? 

Na manhã seguinte, seu mundo mudara completamente. Salomão recebeu a notícia de que a nora estava grávida, o que fez seu coração pulsar noutra cadência, levando-o a abortar o plano e a desistir da vingança. Não pegaria bem para um avô de primeira investidura conhecer o neto apenas depois de uma temporada na Papuda, cumprindo sentença condenatória como mentor intelectual, por exemplo, de estrangulamento ou coisa parecida. 

Ocorreu que meia hora depois lá estava ele de novo pensativo, oscilante, insatisfeito com a possibilidade de ter que desistir do plano meticulosamente arquitetado como se nada lhe tivesse acontecido.
 “Ninguém sabe do que aquela mulher é capaz! Eu estou prestando atenção há muito tempo...”  comentou comigo.  

Se temia o que pudesse acontecer com Margot, por outro lado imaginava: a danada é tão ardilosa que será capaz de se deixar seduzir inicialmente para no primeiro vacilo do serial killer morder o seu pescoço, sugar o sangue, esquartejá-lo e embalar os pedaços em maletas. E na calada da noite, jogar tudo no Lixão da Estrutural ou no fundo do Lago Paranoá. 

Porém Salomão, definitivamente, não era de guardar raiva por mais de três dias. Acabou mais uma vez perdoando a infeliz.  Optou por mudar dali e, em duas semanas, foi morar no final da Asa Norte, próximo do filho e da nora que lhe dariam o primeiro netinho.

Só voltava à antiga morada para apanhar a correspondência na portaria e bater papo comigo. Foi o porteiro, inclusive, quem lhe contou que a síndica, dois meses após a saída dele, também foi embora sem deixar nem uma nota de duas linhas no quadro de avisos. Disse que iria visitar um tio adoentado no interior goiano, que fechara as contas do condomínio com o subsíndico na noite anterior e partiu com destino ignorado. 

Veio à tona então o que já se desconfiava da garagem à cobertura do bloco: Margot, no calorão da menopausa, resistiu o quanto pôde, mas acabou juntando as escovas de dentes e os trapos encardidos com o menino Zezé, que deixou de vender “frutos” do Cerrado para se dedicar de corpo e alma ao consumo do estoque de afetos represados da criatura.

O casal foi visto pela última vez na boca da noite de uma quinta-feira qualquer, no parque Dona Sarah Kubitschek, ela com os olhos fechados a alisar a barba rala de Zezé, que guiava um Chevette SL seminovo com o toca fitas a reproduzir É o amor,  canção de um xará e conterrâneo:

“(...) Eu não vou negar 
Você é meu doce mel
Meu pedacinho de céu
Eu não vou negar (...)”

Pois bem! Só agora, depois que resolvi contar essa história, minha mãe vem me dizer que a velha parteira que cortou o meu umbigo nunca fumou. Mas isso é o de menos nesse caso.