“Mamãe... Mamãe!” – gritava a criatura na fila de caixas do banco, no supermercado ou no meio da rua toda vez que encontrava “nossa” mãe. Isso, claro, antes do confinamento dos dias de hoje. Era o jeito carinhoso com que ele declarava a quem quisesse ouvir que me tinha como irmão desde que nos conhecemos na metade dos anos 1970.
Cristiano não fuma, não bebe, mas jogava muito. Como jogava! Meu armador predileto – assim me refiro a ele – nos tempos do Cantareira, timeco sem-vergonha que juntava o que de pior havia em termos de peladeiros, do faxineiro ao gerentão da empresa. Sabia como ninguém cadenciar o jogo, aguardar o momento exato para, à moda Gérson, enfiar uma bola longa entre os zagueiros, colocando os atacantes cara-a-cara com o goleiro adversário. Pena que os pernas de pau quase sempre vacilavam, mas, para todos, ganhar ou perder era irrelevante. Bom era ter um pretexto para reunir os amigos nas tardes de sábado em torno do mais apaixonante dos brinquedos: a bola.
Ele nunca se queixou por não exercer altos cargos, nem deter poder sobre outras pessoas ou ganhar menos do que merecia. Como se fora um treinador com uma prancheta de sonhos nas mãos e um colar de medalhas no peito, trazia de berço dentro de si a escalação de um timaço imbatível, do goleiro ao ponta esquerda: Amizade; Disciplina, Determinação, Respeito e Lealdade; Otimismo, Paciência e Humildade; Tolerância, Gratidão e Honestidade.
A prontidão para servir a quem dele precisava o levou a criar um bordão maravilhoso que virou sua marca registrada. Até hoje, ao concluir qualquer trabalho, antevendo o que certamente lhe dirá o destinatário da encomenda ou o beneficiário de seu esforço, antecipa-se e arremata de primeira: “Obrigado... De nada!”. E gira sobre os calcanhares, sumindo no mundo em meio a outros afazeres.
Tenho meus motivos para desconfiar de que ele sonhava ser poeta e sanfoneiro. Digo isso porque, em janeiro passado, soube por Didi, que trabalhou em Alagoas nos anos 1980 e nunca mais o reencontrou, que ele lhe encomendou um poema para a namorada. Aconteceu então uma troca vantajosa para ambos: decidiram ir à barraca Ipaneminha, na orla, onde Didi conheceria a moça e rabiscaria algo para a competente assinatura do "autor". “Não bebo, mas vou pagar a despesa!”, teria dito meu armador predileto.
Foi assim que Célia, cara-metade e musa inspiradora de Cristiano, com quem trocava olhares enternecidos na igreja do Livramento antes mesmo de alinharem os ponteiros, recebeu este apressado mimo poético no dia de seu aniversário, sem papel celofane nem laço de fita, mas com dedicatória, abraço e beijo:
Dezoito anos
Mundo colorido, sol distorcido,
Horizonte infinito, mar repartido,
Cores moldadas, rosa adornada.
E a alegria de ter dezoito anos,
E a certeza de não ter planos
Reclama da demora da maioridade,
Mas que um dia vai sentir saudade.
Novos tempos, entretanto, hão de vir
Quando se tem a vida a somar e dividir.
É hora de olhar na mesma direção
Com a pessoa que lhe toca o coração:
Fazer de dois mundos uma só nação!
Célia deve ter desconfiado, tanto que a carreira do "poeta" encerrou ali. Ele nunca foi de mentir. Quanto à música, se a sanfona não lhe deu muita trela, tomou gosto e passou a tocar triângulo como gente grande, chegando a acompanhar grupos de forró que se apresentaram em Maceió. Até a orquestra da Polícia Militar de Alagoas, que anima crianças e idosos nas manhãs de domingo à beira-mar, recebe canja do ilustre triangulista (assim escrevo, tal como baterista, violinista etc.). Se duvidar – eu não duvido de nada! –, ele é capaz de entortar um triângulo num telecoteco de deixar o ferro em brasa sem queimar os dedos nem largar o batedor.
Soube outro dia que Daniel, 5 anos – filho da jornalista Cris Calaça e sobrinho de Crisinho Gambiarra, um tecladista de primeira –, o único netinho de Cristiano e Célia, tem neste momento uma missão bastante nobre e delicada: manter aquecido o coração do avô enquanto a danada da vacina não dá as caras por aqui e acaba de vez com a pandemia que ameaça recrudescer na virada do ano. Mas nem disso ele se queixa.
Se bem conheço a criatura, assim que a tempestade passar vai trocar de roupa, descer de novo a ladeira no rumo do trabalho, encarar na esquina o bicho que o confinou a pulso a quem dirá que o mundo é grande e o destino lhe espera, que não será ele que vai lhe dar na primavera as flores lindas que ainda sonha pro seu verão. Com o triângulo, claro, num telecoteco de arrepiar o calçadão da rua do Livramento.