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Embalos de um sábado à noite

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Desde cedo dava para ver que o dia não acabaria bem após um desarranjo daqueles que acontecem de três em três anos, com chispas, faíscas e cólicas lancinantes, obrigando-me durante toda a manhã a não me afastar mais que 20 metros do banheiro. Aprendi a duríssima  pena que não se deve comer na rua com congestão nasal, resfriado. Que convém nunca esquecer de que antes da primeira garfada, olfato é sentido mais importante do que paladar. Qualquer animal sabe disso, menos os tidos como racionais.   À base de chá de camomila, soro caseiro, maçã e torradas sem fibras, fiz de tudo para me recuperar a tempo e não perder o casamento de uma velha amiga. De tardezinha, apesar das olheiras e da tontura resultante da dieta, lá estava eu belo e perfumado, de terno e gravata, sapatos engraxados e pronto para a noitada. Foi só chamar minha mulher, certificar-me de que estava de posse do kit “c”  (carteira, celular e chaves) e partir no rumo do Lago Sul. Próximo ao local da cerimônia e dos cumprimento

Perdão, delegado!

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Na primeira sexta-feira do ano, um Zé qualquer invadiu e furtou uma escola estadual no Morro Grande, zona norte da capital paulista. O furto só foi percebido na manhã de segunda-feira, quando os empregados chegaram ao local e ainda encontraram um bilhete, possivelmente escrito por ele. Numa folha de caderno, com os deslizes gramaticais de quem não teve o ensino fundamental obrigatório e gratuito assegurado pela Constituição de seu País, ele fez singelo apelo: “Me desculpe mesmo, de coração, por fazer isso, não tive escolha, [foi] precisão [necessidade]”, diz trecho do recado, assinado por “desesperado”.  E a mensagem prossegue, com o autor pedindo “misericórdia” e “perdão” ao “senhor Jesus”. No boletim de ocorrência de furto e vandalismo, registrado no Distrito Policial, relata-se que uma porta foi arrombada e foram levados três televisores, um computador e uma panela de pressão.  Enquanto apuravam extensão dos prejuízos, encontrou-se o bilhete com o pedido de desculpas ao lado de uma

Capiba que cupim não rói

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Na virada do ano novo, meu amigo Francicarlos Diniz, jornalista e escritor, postou nas redes sociais:   “Em busca do seu ninho    Há 23 anos, morria o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa, o eterno "Capiba".   O maestro pernambucano gravou mais de 200 composições, entre boleros e inesquecíveis frevos-canção que tantos carnavais animaram.    Repórter da revista "Fenabb Notícias", escrevi o texto... em homenagem a Capiba, publicado na edição de fevereiro de 1998.    Os discos de Capiba sempre fizeram parte da antiga radiola da minha casa. Suas canções ainda hoje ecoam na memória dos meus tempos de criança vendo minha saudosa mãe, animadíssima, cantando e dançando músicas como "Oh, bela”.    "Bela é ver o passarinho / Oh! Bela / Indo em busca do seu ninho / Oh! Bela / Todo mundo se amando / Com amor e com carinho / Uns sorrindo, outros chorando de amor...”. “   Com o encolhimento de três bancos tradicionais que operavam em Pernambuco –  Bandepe, Banorte e M

Mamulengos

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Na última cena do documentário “Vinicius” (2005), de Miguel Faria Jr., brilhante reconstituição da vida e da trajetória artística do poeta, compositor e diplomata Vinicius de Moraes, seu amigo Chico Buarque gargalha alto ao lembrar de comentário feito pelo Poetinha sobre como gostaria de reencarnar: “Do mesmo jeito que sou, levando a mesma vida, mas com um pinto um pouco maior!”.   Gaiatice pura numa conversa pra lá de etílica entre gênios. Ambos, certamente, sabiam que o tamanho padrão do pinto (quando pronto para ciscar, dizem os especialistas no tema, varia de 10 a 16 cm) nunca foi nem será decisivo para a apoteose dos prazeres. “Todo o corpo é um órgão sexual, com exceção talvez das clavículas”, garante Verissimo, outro gênio.   Pois bem.  Notícia recente sobre as sequelas a longo prazo da covid-19, veiculada no  MedRXiv   (site que distribui versões preliminares de artigos sobre ciências da saúde), diz  que a doença pode diminuir o tamanho do pênis. O trabalho investigou as conseq

Juntando os cacos

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Há menos de três semanas ela e eu traçávamos planos modestos para a noite de Natal de um ano pra lá de medonho, ano que não acabará tão cedo em nossas cabeças torturadas pela agonia de cada dia. Tudo dentro do que planejamos, comida apenas para um casal resignadamente confinado há nove meses: frango com recheio de quatro queijos, arroz de lentilhas, cuscuz marroquino e batatas ao murro. Ela e eu, pela primeira vez e m quase 49 anos de mútua tolerâ ncia, sem pais, irmãos, filhos, netos nem amigos   por perto, diante de nossa ceia de Natal, tocados pela esperança de que duas picadas em cada um de nós possam redesenhar este cenário com cores, sons e cheiros diferentes no ano que vem.  Nem a pressa ditada pela fome de quem almoçara ao meio-dia me impediu de, antes da primeira colherada, esquentar os pratos no forno por volta de nove da noite. Enquanto isso, conversávamos com filhos e netos debruçados nas janelinhas do aplicativo de encontros virtuais dos dias de hoje, satisfazendo, no que

Acerto de contas no Natal

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Quando comecei a me dar conta dos pecados do mundo – no catecismo preparatório para a primeira eucaristia, em Patos (PB) –, logo percebi a facilidade com que se profanava certo mandamento bíblico: “Não cobice a casa de outro homem; não cobice a sua mulher, os seus escravos, o seu gado, o seu jumento ou qualquer outra coisa que seja dele”. Não havia escravos, gado ou jumento em minha casa  – havia, isto sim, uma escadinha de  crianças!  – , mas via que meu pai despertava um misto de curiosidade e inveja. Franzino, compenetrado a maior parte do tempo, de riso difícil e usando lentes grossas que destoavam de seu rosto miúdo, ele não era exatamente um Adonis ou Apolo, deuses da beleza na mitologia grega. Porém, quando passeava pelas calçadas de braços dados com minha mãe, bonita, risonha e mais alta que ele, atiçava a cobiça desmedida de alguns profanos. Ou de muitos. Em 1967, eu tinha entre oito e nove anos quando voltava da bodega com uma encomenda de minha mãe e passava em frente à casa

Desonestos

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Há oito anos viralizou nas redes sociais um vídeo em que o atleta espanhol Ivan Fernandez abriu mão de vencer a prova de  cross country  de Burlada, em Navarra, mas até hoje é enaltecido por sua honestidade durante o evento. Abel Mutai, atleta queniano, que tinha tudo para ganhar a corrida, parou no lugar errado, achando que alcançara a linha de chegada. Ivan Fernandez, que vinha em segundo lugar, podia ultrapassá-lo e conquistar a prova, mas optou por alertá-lo sobre o vacilo e o incentivou a confirmar a sua vitória. E algo que deveria ser padrão no ser humano acabaria virando notícia. No começo deste viral e inesquecível 2020, circulou nas redes sociais outro vídeo contendo novo gesto digno de nota, por coincidência envolvendo outro esportista espanhol. Aconteceu durante uma partida de futsal em que o jogador Francisco Solano, do  FS Cartagena , ao ver o seu adversário sofrer uma lesão importante numa disputa de bola com ele, optou por não marcar o gol quando já estava diante do gole

Telecoteco

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  “Mamãe... Mamãe!” – gritava a criatura na fila de caixas  do banco, no supermercado ou no meio da rua toda vez que encontrava “nossa” mãe. Isso, claro, antes do confinamento dos dias de hoje. Era o jeito carinhoso com que ele declarava a quem quisesse ouvir que me tinha como irmão desde que nos conhecemos na metade dos anos 1970.  Ano que vem serão 70 anos de idade e meio século de trabalho na mesma empresa, fazendo as mesmas coisas – amizade, suporte administrativo, recepção e distribuição de documentos, encomendas etc. –, com o mesmo apetite do início de tudo na cidade de Batalha, no Sertão alagoano, onde nasceu e criou-se à base de tareco, amor e mariola até mudar-se para Maceió.    Cristiano não fuma, não bebe, mas jogava muito. Como jogava! Meu armador predileto – assim me refiro a ele – nos tempos do Cantareira , timeco sem-vergonha que juntava o que de pior havia em termos de peladeiros, do faxineiro ao gerentão da empresa. Sabia como ninguém cadenciar o jogo, aguardar o momen

Bola na trave

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O  Prêmio Jabuti é considerado o mais tradicional e importante reconhecimento literário do País, sendo anualmente concedido pela Câmara Brasileira do Livro a figuras da comunidade intelectual brasileira. Foi c riado em 1958, ano em que quase tudo deu certo para o Brasil, desde a primeira conquista da  Copa do Mundo , passando pelo lançamento de  Chega de Saudade , de João Gilberto, disco-base da  Bossa Nova , até o espanto universal causado pela arquitetura de Niemeyer. Concorria este ano, na categoria “Crônicas”, a obra   O dia em que achei Drummond caído na rua  ( Editora Zarte) , de autoria de meu amigo Marcelo Torres, o menino tabaréu do Junco (hoje Sátiro Dias, a 200 km de Salvador) que conheci na virada do século, jornalista e escritor adaptado a Brasília.  Trata-se de um livro fabuloso onde grandes escritores como Amado, Cecília, Drummond, Graciliano, Marquez e outros tornaram-se personagens bem construídos de 26 histórias curiosas, hilárias ou mesmo trágicas – as minhas preferi

Donas do amanhã

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Gostei da notícia de que um pé de pequi, que dá frutos há mais de 10 anos, foi deixado no meio da rua recém-asfaltada pela prefeitura de Araguaína, no estado do Tocantins. Crianças ficaram apreensivas com a possibilidade de a árvore, tida como “de estimação”, ser derrubada na execução do serviço. A prefeitura reconheceu o clamor popular e que o pequizeiro não trará prejuízos ao trânsito. Uma ilha de concreto será instalada ao redor, além de sinalização no local.   Tirante eventual exploração político-marqueteira, é elogiável o incentivo à preservação ambiental, fruto do carinho de uma comunidade para com seu querido pequizeiro. E isso me faz recordar dois casos que já estavam devidamente arquivados no gavetão de minha memória.   Lembrei-me de uma velha estaca de madeira fincada próximo à linha lateral imaginária de um campinho de futebol que serviu de cenário para alguns rachas de minha infância. Fazia-se de surda e nunca ninguém conseguiu convencê-la a mudar de lugar para não atrapalh