quarta-feira, 10 de março de 2021

Ouro Branco

Próximo ao lago Paranoá, sob a vigília do céu anil da capital da República, o condomínio Ouro Branco acaba de receber seu mais novo morador. Não fosse pelo sobrenome e pelo tino para negócios imobiliários (que invejosos promotores públicos chamam de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa), ninguém prestaria muita atenção à compra, por 6 milhões de reais, de uma mansão de 2.500 metros quadrados, com quatro suítes, piscina e spa com aquecimento solar, espaço gourmert, home theater e academia.

 

Às vésperas de mais uma Páscoa sem chocolates nem netos por perto, antes de qualquer comentário mais amargo, preciso resgatar que esse foi o 20º imóvel que esse abençoado cristão negociou nos últimos 16 anos. Aliás, em declaração à Justiça Eleitoral, há dois anos, ele jurou de mãos levantadas e pés juntos ter patrimônio de 1,74 milhão de reais, quantia compatível com seu atual salário líquido, de 25 mil reais. 

 

Para os que duvidam do talento comercial desse cidadão latino-americano, com dinheiro no banco e parentes importantes, ele justificou que adquiriu sua nova morada no Ouro Branco após vender um imóvel e uma franquia no Rio de Janeiro. Referia-se à prodigiosa loja de chocolates Kopenhagen, que, de acordo com o Ministério Público, teria sido usada para mascarar desvios de recursos de assessores, já que boa parte das compras foram feitas em dinheiro vivo. 

 

“Está tudo como dantes no quartel d'Abrantes”, dirão alguns com antolhos ideológicos, argumentando que quase todos no recinto agem assim. “Não configuraria infração penal, pois é prática socialmente aceita por aqui”, diriam outros, convictos de que expressam notável saber jurídico com suas togas encardidas e mal pagas.   

 

Lembrei-me de antigos programas humorísticos de televisão, onde os bordões pegavam de tal forma que, décadas depois, ainda latejam em minha memória. Ultimamente, então, alguns me ocorrem com relativa assiduidade. Rebrotam como ervas daninhas diante de novas e tantas besteiras que assolam o país, como nos tempos de Stanislaw Ponte Preta.

 

Nos anos 80, Tavares era um personagem de Jô Soares, em Viva o Gordo, que tinha orgulho do seu filhote Dorival, enaltecendo as qualidades másculas e ideológicas do rapaz. Quando conversava com os amigos, não cansava de elogiar o rebento, sem perceber que tudo o que dizia denotava que seu filho não tinha a orientação sexual e política que ele supunha. Os amigos ficavam sem jeito, mas não diziam nada, preferindo contar os feitos de seus próprios filhos, ao que Tavares, desconfiado, dizia: “cala-te boca, tem pai que é cego!”. Numa época, claro, em que esse tipo de abordagem, mesmo que de mau gosto, ainda não beirava o crime.

 

Havia também o macaco Sócrates, interpretado por Orival Pessini no humorístico Planeta dos Homens, que buscava entender a condição humana em pequenas esquetes, as quais fechava assim: “Não precisa explicar, eu só queria entender.” Por exemplo, se visse no jornal que a lei nº 9.613 descreve o crime de “lavagem” como o ato de ocultar ou dissimular a origem de bens, direitos ou valores que sejam frutos de infração criminal, perguntava: “será que todos são iguais perante a lei?” E antes que alguém respondesse, emendava de primeira: “Não precisa explicar, eu só queria entender.” 

 

O macaco Sócrates, inclusive, quando era detido pela polícia por alguma falcatrua, antes mesmo de recorrer a algum ministro de tribunais superiores ávido pelos 15 minutos de fama a que se referiu Andy Warhol, olhava à sua volta e procurava outros que tinham feito a mesma coisa que ele, sem encontrar ninguém. Nesse ponto, indagava: “Só eu? Cadê os outros?”. 

 

Ainda no Planeta dos Homens, havia um sujeito que não era político, no entanto era casado com uma mulher espetacular – não se sabe se era sócia de uma franquia de chocolates extremamente rentável ou coisa parecida. Os amigos, que não se conformavam quando o viam na noite sem a companhia da esposa, o aconselhavam a voltar o mais rápido possível: “Vai pra casa, Padilha!”

 

Ao mencionar Padilha (que poderia ser chamado de Queiroz, por exemplo), lembrei-me de Kate Lyra, atriz e modelo norte-americana que fez carreira por aqui, participava da Praça da Alegria, onde contava casos em que a prestimosidade dos brasileiros lhe ajudava nas tarefas do dia a dia. Claro, todos eles com terceiras e explícitas intenções, mas ela, um pote de candura e inocência, não percebia e exalava gratidão por todos os poros: “brasileiro é tão bonzinho!” 

 

Lembrei-me ainda dos olhos arregalados sob as sobrancelhas peludas de Francisco Milani, no Viva o Gordo, a questionar o conceito de normalidade das pessoas. Se dissesse algo absurdo – como, por exemplo, que vira um militar numa guerra que jurava estar vencendo, mas vinha perdendo 2.000 soldados por dia, perguntar à tropa: “Vão ficar chorando até quando? Chega de frescura e mimimi” –, e se as pessoas ficavam olhando pra ele, arrematava na lata: “Tá me olhando por quê? Eu sou normal!”.

 

O Brasil definitivamente perdeu a graça. Vivemos tempos amargos feito chocolate com 70% de cacau, sem o lado bom da coisa. Poderia ser menos triste se fôssemos unidos e as autoridades encasteladas estivessem à altura do caos instalado. Em alta por aqui só o escárnio dessa gente inepta e a indignação nossa (e do resto do mundo) de cada dia.

 


Tô ficando rabugento! Sou do tempo em que Ouro Branco na boca me fazia dançar de olhos fechados, sem música nem medo de cara feia, glicose ou triglicerídeos. Não sei se agora, feito Cazuza, adianta disparar contra o sol minha metralhadora cheia de mágoas. Mas vou continuar correndo na direção contrária, mesmo vendo o futuro repetir o passado nesse museu de grandes novidades.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Essa gente não toma jeito!

Se ainda estivesse entre nós, Nerival, um sergipano narigudo, sobrancelhas espessas, a cara do feiticeiro Gargamel (aquele do gato Cruel!), de Os Smurfs, certamente teria boas histórias para contar. 


Trabalhamos juntos no início dos anos 90, em Salvador, quando ele me contou de uma memorável carteirada em que se envolveu, em Aracaju, onde passava os fins de semana com a esposa e os filhos


Se fosse vivo, morreria agora de rir daqueles que, neste momento, sob inconfessáveis meios e modos, sonham com um tiro certeiro capaz de furar a fila da vacina contra a covid-19. "Essa gente não toma jeito!", diria ele.
 
A carteirada a que ele se referiu não foi do tipo em que o sujeito exige privilégio por conta do cargo, profissão ou posição social que ostenta para obter vantagens não financeiras (cortesias, favores etc.), inacessíveis aos anônimos mortais. 


Como fez há poucos meses um certo "deusembargador" ao atropelar no grito um guarda municipal – “veja com quem você está se metendo, seu analfabeto?!” – após ser multado por não utilizar máscara numa caminhada no litoral paulista, em plena pandemia.

 

Era Sábado de Aleluia, véspera da Páscoa. Nerival bebia cerveja com uns amigos na sala de estar quando a mulher lhe pediu para substituir o botijão de gás do fogão onde, com sal e afeto, ela cozia um chambaril com linguiça, alho, pimenta-do-reino, cebola, louro, tomate, coentro, batata doce, cenoura, couve, jerimum e banana-da-terra. 

 

Para infelicidade de ansiosos comensais, que pelo cheiro já intuíam o sabor da primeira garfada, o bujão reserva também estava vazio. Coube ao dono da casa pegar as chaves da Belina e ir até a revendedora de gás que, de imediato, não tinha como providenciar a entrega em domicílio. 

 

Nerival subia a rua principal do bairro ao ouvir o barulho dos botijões despencando do porta-malas do veículo, em movimento. Ultrapassara no pé da ladeira, havia poucos segundos, um caminhão que transportava soldados da Polícia Militar. O motorista freou bruscamente ao ver os “gordinhos metálicos”, velozes e furiosos, rolando em sua direção.

 

Enquanto alguns cachorros latiam no desmantelo daquele começo de tarde, militares pulavam da carroceria prontos para enfrentarem o responsável pelo atentado à viatura em pleno processo de redemocratização do país, que mal havia escolhido o primeiro presidente civil desde a ditadura. “Só pode ser coisa de petista!”, vociferava alguém.

 

De boné e bermudas, descalço, barba rebrotando, hálito  de quem, hoje, sopraria a contragosto o bafômetro numa eventual blitz da Lei Seca, Nerival procurou manter a calma diante dos indômitos guerreiros, vestidos de fardas cáqui e coturnos engraxados, todos de armas em punho para o revide à suposta agressão, no cassetete, na ponta do punhal ou na bala.

 

Gaguejou ao explicar-se e o caldo só engrossava pro seu lado, prestes a empelotar e descer raspando goela abaixo:

– Saia do carro com as mãos pra cima! – um militar ordenou, já partindo para a revista de praxe.

– Calma! Foi a corda que arrebentou...

– E se esta merda explodisse?!

– Mas tão vazios...

– Me dê seus documentos...

 

Sem poder avisar a ninguém do acontecido – não tinha ficha telefônica nem orelhão próximo, nem existiam celulares à época –, Nerival esperava o golpe final, o nocaute. Mas ao entregar os documentos, veio o estalo:

– O senhor acha que um gerente do Banco do Brasil, com mais de 20 anos de carreira, faria uma desgraça dessas com um pelotão da PM? – disse, exibindo a sua nova carteira de identidade funcional, com fotografia 3x4 recente, barbeado, de paletó e gravata.

– Tá bom... E daí?

– Veja, tenente – argumentou Nerival, exagerando de propósito na patente de seu interlocutor –, se tem aqui neste estado duas instituições respeitadas, uma é a PM e a outra é o BB, concorda? Nós dois pertencemos a elas. Foi acidente... Me desculpe, por Nossa Senhora. Só vejo aqui pai de família igual a mim...


O sargento conferiu a carteira identidade funcional – nem reparou direito no documento do veiculo e na habilitação do motorista – e, com o dedo indicador, chamou um dos soldados:  

– Ei, você aí! Ajude o rapaz... Amarre os bujões, viu? 

 

Menos de uma década mais tarde, soube de outra carteirada que aconteceu na região metropolitana de São Paulo, envolvendo um determinado dirigente do BB, conhecido pela empáfia travestida de franqueza com que se mostrava feito um pavão imperial. Omito o nome para não requentar episódio incompatível com a imagem da instituição que ele representava. 

 

Numa blitz, com a arrogância escorrendo pelo colarinho engomado e branco, o dirigente desceu do carro com o queixo apontando para o horizonte e partiu com tudo na base do “você sabe com quem tá falando?” O policial estimou o diâmetro da cauda do pavão e foi claro, curto e reto:

– Levante os braços e abra as pernas, agora! 


O baculejo não poderia ter sido mais longo e constrangedor, na presença de outros membros da comitiva (dirigentes da empresa e seus motoristas), todos liberados, digamos assim, de uma abordagem mais profunda como aquela.

 


Pois é, Nerival, essa gente não toma jeito mesmo! Li outro dia que 22 de abril de 1500 marcou oficialmente a chegada dos portugueses à costa brasileira, porém só no dia seguinte foram feitos os primeiros contatos entre visitantes e nativos. Pero Vaz de Caminha, na célebre carta ao rei D. Manuel I, o Venturoso, relatou que “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas...” 
Minutos depois, imagino, começaram as carteiradas na Ilha de Vera Cruz. 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A criança que não fui

Uns juram que morri, virei pó, há quase meio século. Outros, não. Dizem que vivo em meus filhos, netos e bisnetos. Sei que aqui, sentado à beira do caminho por onde tudo passa, vez por outra retrocedo o filme e posso revê-lo, cena a cena.



Sei que parece difícil de acreditar, mas nunca aprendi a jogar futebol, pedalar, cavalgar ou nadar, mesmo tendo morado quase quatro décadas em pequenas cidades do interior. Nem a abraçar e beijar meus filhos.

Tive que encarar outros medos, como viver longe de meus pais e irmãos menores, do chão onde nasci. Mais tarde, virei bancário, casei-me e pude ver de perto os primeiros passos de meus filhos. Relaxava ouvindo músicas, lendo livros, revistas e jornais. Às vezes, até colecionava figurinhas. 

Foi diferente com ele, meu segundo filho. Mal aprendeu a andar e a falar, ganhou uma bola e o afeto recíproco instalou-se entre eles. Não era nenhum Ademir Queixada ou Vavá, mas posso revê-lo correndo no calçamento ou nos terrenos baldios, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar.


Nos anos 1960, quando O Cruzeiro, editora do grupo Diários Associados, encartou nos gibis que distribuía uma coleção de figurinhas de aviões, encontrei o que procurava para estimular em meus filhos o gosto pela leitura. Toda semana, ficava com as figurinhas e oferecia à minha primeira filha os gibis Bolinha e Luluzinha; a ele, Dom Pixote e Pimentinha; ao seguinte, Brasinha e Gasparzinho

 

Mais adiante, o susto foi grande quando o vi pedalando, sua bicicleta sem as rodas de apoio, na calçada da rua em que morávamos. Foi como se a vida, duas décadas antes, nos antecipasse a emoção da cena de Spilberg em que um menino foge da polícia e cruza a mata voando com um pequeno extraterrestre no bagageiro, tendo a lua por testemunha. 


Depois, ao visitar um sítio, o dono quis apenas ser gentil ao me convidar para um passeio num cavalo selado, manso. Sabia qual seria a resposta de quem nunca montara nem em carrossel de festa natalina. Espantei-me quando ele entrou na conversa e se ofereceu: 

– Eu quero!

– Onde você aprendeu a montar? 

– Na rua...

– Como? 

– Na burra de seu Jorge, da água.

 

Não havia água potável, encanada, na cidade em que vivíamos. Duas vezes por semana, Seu Jorge, um cafuzo risonho, parrudo, maneta – perdera uma mão numa briga de foice de que nunca contou detalhes, nem perguntei para não reabrir cicatrizes –, trazia água da cacimba de um sítio que arrendara nos arredores, onde plantava hortaliças, inhame, macaxeira e criava galos-de-briga para apostas em rinhas clandestinas.  

 

Revejo agora meu filho perguntando a Seu Jorge se poderia acompanhá-lo até a cacimba onde encheria as latas para suprir potes e garrafas de uma casa vizinha à nossa. Ele não só consente como o ajuda a montar e segurar no cabeçote da cangalha para não cair. Dias depois, o menino, juntamente com alguns colegas de rua, negociava com um fazendeiro o banho de cavalos e éguas. Cobravam pouco: o direito de suar cada animal em meia hora de galope no osso (sem selas nem estribos), tendo por cabresto uma corda laçada no focinho. Montar cavalo selado, manso, virou garapa.

 

De tanto ir ao rio banhar animais, imerso até a cintura e com inveja do destemor dos colegas, um dia ele arriscou saltar de uma pedra em águas mais profundas, mergulhar, voltar à tona e bater braços até a margem para não se afogar, escondendo dos outros o pavor de cair em buracos e ser engolido pela correnteza ou pelos redemoinhos. 

 

Só quando nos mudamos para a capital e o matriculei num curso de natação ele se deu conta de que aquilo que faziam no interior era rascunho do nado livre ou crawl. Havia outras modalidades de nado como costas, peito e borboleta. Aprendeu a respirar e alternar movimentos de cabeça, tronco, braços e pernas, mas nada que o transformasse em nadador olímpico. 

 

Mesmo assim, revejo que carrega bem vivo na memória seu único triunfo esportivo digno de nota. No verão de 1971, nas provas finais, com as cercanias da piscina do clube coalhadas de gente, não gostou de ver a imensa torcida por um adversário na raia a seu lado, em prova de peito clássico, enquanto apenas mãe e irmãos, sumidos no oceano de cabeças, tentavam encorajá-lo para não passar vexame.

 

Venceu por uma braçada – sabe Deus como! E, do alto de dois engradados de cerveja que serviam de pódio, engoliu o choro ao receber de minhas mãos, então secretário do clube, a única medalha de natação que pendurou no pescoço. Disseram-lhe que homem não chorava. Nem menino mudando de voz, com pedras nos peitos e pelos até nos sovacos. 

 

Ninguém dá o que nunca teve. Ninguém ensina o que não sabe. Nunca aprendi a jogar futebol, pedalar, cavalgar ou nadar, mas revejo daqui, sentado à beira do caminho por onde tudo passa, que pude dar a meu filho outros saberes. E me faz bem vê-lo agora ouvindo músicas, lendo livros e revistas, vendo filmes, escrevendo crônicas, entre outras brincadeiras que lhe dão prazer. 


Revejo ainda que poderia tê-lo abraçado mais, dito o quanto era importante para mim. Ele aprenderia e faria o mesmo com meus netos e bisnetos. Mas, de novo, ninguém dá o que nunca teve, nem ensina o que não sabe.


Quanto a jogar futebol, pedalar, cavalgar e nadar, noto que já não lhe fazem falta, como nunca me fizeram. Dormem no limbo onde ficaram os medos e brinquedos da criança que não fui.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Maior de todos

Quem de vocês nunca viu mãe ou pai pegando a mão de sua cria a dizer e perguntar: “Dedo mindinho, seu vizinho, maior-de-todos, fura-bolo e mata-piolho... Cadê o bolinho que tava aqui?” O riso frouxo de quem pressente cócegas é uma das primeiras e inesquecíveis trocas de amor e afeto entre os envolvidos. Vem de lá, imagino, a aptidão para os múltiplos usos dos dedos, que passam a ser conhecidos pelos respectivos nomes.


No começo deste mês, em Torino, capital da região italiana do Piemonte, Antonio Conte, antigo meio-campista e símbolo da poderosa Juventus dos anos 90, hoje treinador da Internazionale de Milão, foi visto mostrando o "maior de todos" (aquele entre o “seu vizinho” e o “fura-bolo”) para Andrea Agnelli, presidente da Juve, na saída para o vestiário após a semifinal da Copa da Itália. 

Agnelli cuspiu ouriços. Depois do apito final, desceu as arquibancadas e, com todas as letras e um contundente ponto de exclamação, mandou Conte para certo lugar. Não foi obedecido, claro.

Rusga entre buona gente. Conte justificou-se aos jornalistas dizendo que sofrera vários insultos durante o jogo. Agnelli calou-se. Vivendo desde criança o dia a dia do clube que preside há mais de década, ele conhece Conte desde a época em que era o capitão da Juve, entre 1991 e 2004. 

 

O gesto de erguer o dedão para outra pessoa tem a ver com costume bastante comum entre macacos. Isso porque, na hora de uma encrenca entre bandos e para marcar território, mostram o pênis para seus oponentes. A adaptação pelo homem, então, foi uma forma mais civilizada e racional de fazer o mesmo gesto de “poder”, só que com o dedo (ainda bem!).

 

Descobri que um dos primeiros registros escritos sobre essa antiga prática aparece no ano de 423 a.C, quando o grego Aristófanes, dramaturgo e poeta, escreveu a peça As nuvens, onde o personagem Estrepsíades acaba fazendo a comparação, em meio a uma piada, entre o dedo do meio e o pênis. A ofensa, então, migrou da Grécia para Roma, onde passou a ser conhecida como digitus infamis (dedo obsceno).

 

Mais adiante, ao tentar demonstrar seu desprezo por um político bom de garganta e péssimo de entregas – algo comum no meio –, um intelectual também recorreu ao famoso gesto. Após exibir o dedo médio, ainda esculachou: "Tá aqui pr'ocê, seu feladaputa!" (claro, num linguajar mais chulo, da época). 

 

O fato não aconteceu em debate às vésperas de eleições ou na bancada do telejornal noturno, mas sim no século 4 a.C., em Atenas, quando o filósofo Diógenes disse o que pensava sobre o orador e político Demóstenes. Há dois milênios, portanto, o “maior-de-todos” exibido enquanto os demais dedos são seguros pelo "mata-piolho" foi catalogado pelos historiadores como gesto de insulto e menosprezo.

 

Os romanos chegaram a criar outra expressão para descrevê-lo: digitus impudicus (dedo indecente). Na obra Epigrammata, do poeta latino Marcial, no século 1 d.C., um personagem que é conhecido por ter boa saúde oferece "o dedo indecente" a seus médicos. 

 

Já os franceses foram inovadores e têm a sua própria saudação fálica. O brás d'honneur (braço da honra) é conhecido entre nós como a tropicalíssima banana. E nem se pode aqui culpar nossos antepassados primatas. O ato consiste em apoiar a mão na dobra do outro braço, mantendo o antebraço livre, ereto, de punho fechado, apontando pro céu.

  

Se tivesse que escolher entre palavrão e gesto ofensivo, considero a banana  incluído o estalo da palma da mão na dobra do outro braço  algo bem mais robusto e simbólico do que um simples dedão, ainda que pertença ao proctologista de Bagé (RS), parente de certo analista que labutava nos Pampas nos anos 70.

 

O "maior de todos" ultrapassou barreiras culturais e linguísticas. Para mim, deixou de ser obsceno e não representa o órgão sexual masculino coisa nenhuma. Antes da pandemia, já era visto com naturalidade e graça em tudo que é lugar, de feiras livres a estádios de futebol, passando por shows musicais. 

 

O gesto ganhou sentido bem mais amplo no cotidiano de vários países, inclusive o Brasil. Pode traduzir decepção, desprezo, insatisfação, mágoa, protesto, raiva ou revolta. Não deve ser representado pelo órgão inoperante de alguns machões, sobretudo membros nada viris de um grupo prioritário na ansiosa fila da vacina contra a covid-19. Eu que o diga!

 

Se você acredita nisso e quer estruturar partido politico, seita ou bloco carnavalesco, atrair defensores para a causa, além de expressar sua mais absoluta indignação com “tudo isso que tá aí” (ou com "tudo aquilo que esteve aí"), talvez esta humilde crônica lhe inspire a criar a logomarca. 


Lembre-se: o design deve ser conciso e memorável. Quem sabe escorado em slogan do tipo: “Aqui pra eles, ó!”

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Do pescoço para cima

Semana passada resgatei aqui breve conversa que tive, há 20 anos, com o jornalista Armando Nogueira, quando  lhe ofereci, em vão, mote para que escrevesse acerca de “rostos do futebol”. Dei exemplos, citando os ex-jogadores Edmundo (“É a cara do sujeito atormentado, confuso, furioso, a ponto de explodir...”), Sávio (“Triste, depressivo, parece que vai desabar no choro a qualquer momento...”) e Dodô (“Vive rindo com as sobrancelhas o tempo todo...). Achei que seria relativamente simples para quem, como ele, conhecera figuras marcantes no universo do futebol, como Heleno de Freitas, Manga, Garrincha, Pelé e Marinho Chagas.


Alguns leitores e leitoras que me cotam bem acima de minhas próprias convicções me lançaram o desafio de desenvolver o assunto sugerido lá atrás ao mestre da crônica esportiva. Um deles, inclusive, em mensagem à parte, propôs que ampliasse o tema para “traços da personalidade de ídolos do esporte em geral, a partir da expressão fisionômica sob a pressão da disputa”. 



De cara – sem trocadilho! –, lembrei-me do sorriso largo e pleno de Daiane dos Santos ao aterrissar de um perfeito duplo twist carpado. E do olhar glacial e oscilante de Mike Tyson, no canto do ringue, com as pálpebras apertadas, cubando sua presa antes do bote fatal. Lembrei-me também das orelhas de Michael Phelps, feito asas de um caça supersônico ajustando-se às correntes de vento na iminência do mergulho definitivo. E ainda do jeitão debochado de Usain Bolt, antes de partir como um míssil em direção à linha do horizonte. 

Por preguiça de pensar ou sei lá o quê, contudo, atenho-me ao futebolzinho que vejo desde os anos 70, ao vivo ou pela tevê. E alerto que meus conhecimentos de psicologia igualam-se pelo rodapé com os saberes primários de certas figuras públicas que, sem o menor pudor, desconhecem o tamanho da poltrona em que sentadas e da encrenca histórica em que podem se meter.


Limito-me a uma abordagem meramente especulativa, daquelas de arquibancada no intervalo de uma partida ou de mesa de boteco onde quase tudo se sabe. Nenhum rigor científico. Tudo a ver apenas com o hábito de rabiscar bocas e caras, enquanto usava telefone fixo, antigamente, para ordenar os pensamentos.

 

Filósofos gregos importantes dedicaram-se ao estudo das aparências. Aristóteles e alguns de seus discípulos, por exemplo, chegaram a elaborar teorias sobre como as feições de alguém refletiam seu estado de espírito. “Cabelos macios são indícios de covardia, enquanto fios mais grossos são um sinal de coragem”, afirmavam. O atrevimento, segundo eles, podia ser lido numa pessoa com “olhos brilhantes, bem abertos e com pálpebras injetadas de sangue”. Já um nariz largo, como o focinho de uma vaca, era visto como indicativo de preguiça. Ideias próprias de sábios de uma época e de beócios de hoje (para ficarmos na mesma geografia).
 

Descobriu-se, por exemplo, que as pessoas com níveis mais altos de testosterona tenderiam a ter rostos mais largos, com bochechas maiores, e personalidade mais assertiva, até agressiva. A relação entre o formato do rosto e a dominância era algo bem aceito, tanto num macaco-prego – quanto mais larga a sua cara, mais chances ele teria de ocupar o topo na hierarquia do bando – como no ser humano.

 

Pois bem. Dos que vi jogar futebol, ao vivo ou pela tevê, impressionava-me o rosto fleumático, soberano, dominador de figuras cintilantes como: Ademir da Guia, Alex (ex-Cruzeiro e Palmeiras), Beckenbauer, Carlos Alberto Torres, Falcão, Figueroa, Pelé, Pirlo, Roberto Menezes (ex-CRB), Seedorf, Sócrates e Zidane. 


De outro ângulo, apesar do indiscutível talento, notava o semblante frágil, conformado, avesso a protagonismo, de craques como: Bebeto, Dirceu Lopes, Iniesta, Jorge Mendonça, Kaká, Luizinho (ex-Atlético/MG), Messi, Modric, Sávio, Silas, Valdo e Zé Carlos (ex-Cruzeiro). 


No vértice final de meu triângulo, retratos de uma loucura mal disfarçada em anjos tortos, leves ou furiosos, como: Dadá Maravilha, Diego Maradona, Edilson, Denner, Djalminha, Dunga, Éder, Edmundo, Marinho Chagas, Pepe (ex-Real Madrid), Serginho Chulapa e Vampeta.

 

De uns tempos para cá, com cirurgia plástica e outros procedimentos afins, tornou-se mais complicado, à distância, especular sobre o rosto humano. Além de alterar a história esculpida na face, as mexidas nos traços originais podem interferir na personalidade. Diz um amigo meu, cirurgião plástico, que “uma leve mudança no ângulo do nariz transmite arrogância ou brejeirice”. E que, com frequência, escuta coisas como: “agora, sim, tenho o meu verdadeiro nariz”.

“Cabeças grotescas”, de L. da Vinci

 

Vê-se agora nos estádios, apesar de vazios, um desfile de rostos desfigurados por retoques cosméticos, cortes e pinturas de cabelo e sobrancelhas, tatuagens no pescoço e piercings em orelhas, línguas e narizes – guardados a contragosto apenas durante as partidas , num desfile de gosto duvidoso que atiça a disputa entre egos inchados e motiva torcedores a reverenciar algumas cabeças grotescas, tanto pela arte que praticam como pela forma de se pavonear. Às vezes, mais pela segunda do que pela primeira. 

Nunca se disse a Bruno Henrique, Cristiano Ronaldo, Daniel Alves, D'Alessandro, Gabigol, Guerrero, Ibrahimovic, Neymar, Sérgio Ramos etc., que, de perto, os olhos sempre serão janelas abertas da alma. Que, de forma mais humilde e madura, podem expressar suas histórias de vida, alegrias, coragem, força, espiritualidade, independência, poder e riqueza. Hoje, eles já nem se imaginam noutro patamar em relação aos colegas de profissão. Têm certeza disso.

Anda difícil enxergar o que vai na cabeça e no coração de figuras dessa cepa. Quer dizer, na cabeça, nem tanto. Armando Nogueira deve rir de mim, talvez comentando com outro cronista genial como ele: “Este rapaz não leu o que você escreveu, meu querido anjo pornográfico, quando disse que só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu”. 

 

O pior é que li. 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Pintor de palavras

Ele chegou ao Rio de Janeiro – na época, capital da República – antes dos 20 anos de idade. Pretendia cursar Direito. Muito maior que a expectativa racional de grandes embates nos tribunais, o coração o levaria ao jornalismo, à literatura e ao Botafogo, suas primeiras paixões. 

Acriano de Xapuri, Armando Nogueira (1927 – 2010) é considerado o pai do jornalismo esportivo moderno, o poeta das crônicas esportivas. É reconhecido também como o homem que criou o padrão de telejornalismo que se conhece por aqui e que colocou o Brasil no mesmo patamar das grandes nações no quesito. 

 


Dono de um estilo elegante e original de escrever e falar, escapulia dos lugares-comuns que caracterizavam o texto de boa parte da crônica esportiva brasileira e, sem pressa, catava com a ponta dos dedos e os olhos do coração a figura de linguagem mais apropriada para embalar o seu deslumbramento. 

Disse, por exemplo, que “para Garrincha, a superfície de um lenço era um latifúndio”. Sobre outra cena que lhe comoveu, pintou em cores vivas: “Tu, em campo, parecias tantos, e, no entanto, que encanto! Eras um só: Nilton Santos”. 

 

Diante de um artista desse naipe de prosa, verso, chutes, passes e dribles, não sabia como puxar conversa com ele que, por acaso, se sentara a meu lado nas arquibancadas do clube Marapendi, na Barra da Tijuca, no Rio, naquele tórrido fevereiro de 2001, onde em poucos minutos assistiríamos à primeira partida do confronto entre Brasil e Marrocos pela Copa Davis, entre Gustavo Kuerten (Guga) e Karim Alami.

 

Lembrei-me então de que dissera na tevê que o futebol não aprimorava os caracteres de ninguém, mas os revelava. E que também não gostava de Fórmula 1 porque o capacete escondia a emoção do esportista aprisionado no cockpit de uma máquina. 


Em cima disso, e com a ousadia natural de um aprendiz diante do mestre, arrisquei:

– Bom dia! Gosto muito de seus textos. 

– Que bom! Bom dia.

– Posso dar uma dica?

– Claro!

– Por que não escreve sobre os rostos do futebol?

– Como?

– Veja o Edmundo. É a cara do sujeito atormentado, confuso, furioso, a ponto de explodir...

– Quem mais?

– O Sávio, que jogou no Flamengo e tá no Real Madrid. Triste, depressivo, parece que vai desabar no choro a qualquer momento...

– Interessante...

– E o Dodô, ex-São Paulo? Vive rindo com as sobrancelhas o tempo todo. Parece um moleque com seu brinquedo, mesmo quando apanha dos zagueiros.

– É... – admitiu o cronista, com um sorriso curto.

– E o olhar gelado de Romário? E o Dunga, hein?! 

 

Nada comentou. Dunga havia se aposentado no ano anterior. Ainda que monossilábico, parecia concordar com minha tese de que o tema poderia render uma boa crônica. Achei que aproveitaria a sugestão e produziria outro de seus textos primorosos. Seria fácil para quem, como ele, conheceu outros rostos com traços singulares do mundo do futebol, como: Heleno de Freitas, Manga, Garrincha, Pelé, Marinho Chagas, entre outros.

 

Esperei em vão durante algum tempo. Não deu em nada. O poeta das crônicas esportivas, elegante e educado como poucos, ouviu-me apenas por generosidade e carinho de um ídolo para com seu fã, ou talvez estivesse concentrado na partida de tênis que começaria em instantes. 


Agradeci a atenção e o deixei mergulhado em suas abstrações. Afinal, tanto ele quanto eu estávamos ali para ver Guga que, naquele mesmo 2001, quatro meses mais tarde, gravaria a fogo, ferro e lágrimas, as quatro letras de um singelo apelido na história do tênis mundial ao vencer o espanhol Sergi Bruguera, tornando-se o primeiro brasileiro a conquistar por três vezes o lendário Torneio Roland-Garros, na França.

 

Essa conquista de Guga, aliás, inspirou Armando Nogueira a publicar um texto épico e ao mesmo tempo revelador, intitulado O Picasso do Tênis, em que distribuiu pinceladas de prosa e poesia com tons raros:  

  

“... Cada um com o seu sopro divino... Afinal, se Guga desenha mal, Picasso era péssimo tenista. Jamais acertou uma paralela de esquerda, nem uma deixadinha como a de Guga que goteja ao pé da rede, tênue, mínima. Uma obra de arte...” 





“... E, como no milagre dos pães, Guga começa a distribuir pelos quatro cantos da quadra uma vertiginosa multidão de bolas, cada qual com o seu matiz: as paralelas, como sempre, voluptuosas; as cruzadas, pra variar, românticas; os lobs são meio cínicos, glaciais; as deixadinhas, delicadas, sutis, quase eróticas; os aces – Deus do céu! –, haverá, no tênis, golpe mais perfurante que um ace de Guga?...” 

 

“...Hoje, o universo está aos pés de Guga. Melhor dizendo, nas mãos de Guga. Mãos que manejam o mundo. O Picasso do tênis...”

 

Para mim, estava claro porque o mote que ofereci ao mestre não lhe serviu. O amor por outros esportes, àquela altura, expandia à medida do seu desencanto com o futebol, em especial com o Botafogo dos Dimbas, Tailsons e Tingas de então. E o tênis, que passou a praticar já adulto, de todos os esportes era o que mais o enfeitiçava, graças, inclusive, a Guga. 

 

Guga que, lamentavelmente, ainda em 2001 seria diagnosticado com uma lesão no quadril que o fez se submeter a três cirurgias antes de aposentar-se, em 2008, aos 31 anos, sem recuperar a forma que o colocou no topo do universo.

 


Conheci Guga em 2008, recém-aposentado. Pensei em comentar com ele o histórico texto de Armando Nogueira. Não o fiz e me arrependo disso. Faria diferente, claro, se soubesse que, dois anos depois, o Picasso da crônica esportiva iria pintar em prosa e verso na eternidade
.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Embalos de um sábado à noite

Desde cedo dava para ver que o dia não acabaria bem após um desarranjo daqueles que acontecem de três em três anos, com chispas, faíscas e cólicas lancinantes, obrigando-me durante toda a manhã a não me afastar mais que 20 metros do banheiro. Aprendi a duríssima  pena que não se deve comer na rua com congestão nasal, resfriado. Que convém nunca esquecer de que antes da primeira garfada, olfato é sentido mais importante do que paladar. Qualquer animal sabe disso, menos os tidos como racionais.

 


À base de chá de camomila, soro caseiro, maçã e torradas sem fibras, fiz de tudo para me recuperar a tempo e não perder o casamento de uma velha amiga. De tardezinha, apesar das olheiras e da tontura resultante da dieta, lá estava eu belo e perfumado, de terno e gravata, sapatos engraxados e pronto para a noitada. Foi só chamar minha mulher, certificar-me de que estava de posse do kit “c”  (carteira, celular e chaves) e partir no rumo do Lago Sul.

Próximo ao local da cerimônia e dos cumprimentos aos noivos, embora fizesse aquele friozinho típico de julho no Planalto Central, já brotavam em minha testa algumas gotas de suor quando fui abordado numa blitz por um policial:

— Documentos, por favor...

— Boa noite... — respondi, ao repassar a papelada, seguro de que estaria no salão de festas em pouco tempo, com um banheiro limpinho, cheirando a lavanda ou eucalipto, à minha disposição. 

 

De nada desconfiei quando o policial que me abordou recorreu ao que parecia ser o líder da patrulha e começaram uma conversa cheia de gestos e olhares em minha direção. Aguardei o desenrolar da prosa ainda convicto de que os documentos estavam em ordem, embora uma parte importante de meu organismo, àquela altura, cobrasse celeridade no desfecho. Logo em seguida, os dois se aproximaram e o chefão foi direto ao ponto:

— O senhor não deveria ter feito isso... 

— Do que o senhor tá falando? — perguntei, já acionando o botão de culpa presumida que todos nós carregamos no subconsciente, mesmo sem motivo.

— O que significa este cheque aqui junto à CNH? 

 

Tive dificuldade em convencê-los de que, dois dias antes, para evitar que um colega de trabalho perdesse a chance de fechar a compra de um imóvel que negociava havia meses e que recebera ultimato para pagar a entrada, emprestara aquela quantia. Ele, inclusive, já pedira resgate de um investimento cuja liberação se daria em uma semana e, para não abrir mão dos rendimentos da aplicação financeira, solicitou-me antecipar o montante de que precisava, sob a garantia do cheque pré-datado, cruzado e nominal em meu favor. 

 

Prestes a ser injustamente acusado de crime de suborno — o que só agravaria o desarranjo contra o qual já se prenunciava o reinício de minha guerra visceral —, eu poderia, de molecagem, esclarecer aos policiais que uma "ajuda de custo" daquele tamanho só faria sentido se todos os estofamentos do carro, o porta-malas e o porta-luvas, estivessem abarrotados de cocaína e outras drogas alucinógenas como maconha, haxixe e ecstasy. Ou se escondessem armamentos pesados de uso privativo de traficantes e milicianos, com farta munição a granel. Afinal, além dos traços do arquiteto, até hoje tudo é possível sob o céu de Brasília. 

 

Poderia também ponderar o que se aprende em qualquer apostila básica de técnicas bancárias para concursos públicos: o cheque nominal, cruzado, só poderia virar dinheiro se fosse depositado numa conta bancária, em meu nome ou sob minha ordem. Portanto, seria pouco inteligente duvidar da quantidade de neurônios deles e pagar propina com cheque rastreável até por um velho bancário como eu, ali cada segundo mais apressado por conta de chispas, faíscas e cólicas lancinantes que reapareciam a todo vapor.

 

Com os embalos intestinais em franca evolução, lembrei-me de um conselho de um amigo meu, advogado em Alagoas, que certa vez foi abordado por um agente público que insistia em encontrar razão para lhe multar ou até mesmo reter o veículo, mas não conseguia. Ele só foi liberado ao dizer o que muitos querem ouvir quando se instala impasse nesse tipo de blitz

— Tá coberto de razão... Me desculpe! Em seu lugar, eu faria a mesma coisa. Com tanto bandido solto por aí, o que seria de nós sem profissionais como o senhor.

 

Optei, porém, por dizer a verdade: que não tinha, como de fato nunca tive, cofre onde pudesse guardar o cheque e preferi mantê-lo em lugar seguro e de fácil acesso (meu bolso), para não correr o risco de escondê-lo e não saber depois onde fora parar quando chegasse a data do depósito. 

 

O ventinho cada vez mais congelante da noite, contrastando com o suadouro que já me encharcava, deve ter soprado dúvidas sobre meu argumento, o que levou o chefão da blitz a perguntar se poderia telefonar ao emitente do cheque e averiguar a veracidade do que eu afirmara. Creio que minha resposta, de tão direta e honesta, acelerou o desfecho do caso:

— Por favor, faça isso, mas corra senão quem vai fazer algo urgente aqui sou eu... — disse-lhe, segurando a barriga, dando pista de que o mais comum dos apertos a que sujeito qualquer animal estava prestes a produzir seus efeitos líquidos em plena via pública.

 

Deu certo. Dispensado, fui-me embora e mal cheguei à toalete do salão de festas, fiz o que precisava e deveria ser feito. Lá dentro, aliviado, deu para ouvir a  marcha nupcial embalando o desfile ao altar de minha velha amiga, a quem mais adiante me expliquei por deixar para trás o melhor daquele 17 de julho de 2004: 

— Ninguém merece... — balançava a cabeça minha mulher, a caminho de casa, com pena de mim ou, o que é mais provável, a lamentar a perda dos embalos de um sábado à noite inesquecível. 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Perdão, delegado!

Na primeira sexta-feira do ano, um Zé qualquer invadiu e furtou uma escola estadual no Morro Grande, zona norte da capital paulista. O furto só foi percebido na manhã de segunda-feira, quando os empregados chegaram ao local e ainda encontraram um bilhete, possivelmente escrito por ele.



Numa folha de caderno, com os deslizes gramaticais de quem não teve o ensino fundamental obrigatório e gratuito assegurado pela Constituição de seu País, ele fez singelo apelo: “Me desculpe mesmo, de coração, por fazer isso, não tive escolha, [foi] precisão [necessidade]”, diz trecho do recado, assinado por “desesperado”. 
E a mensagem prossegue, com o autor pedindo “misericórdia” e “perdão” ao “senhor Jesus”.


No boletim de ocorrência de furto e vandalismo, registrado no Distrito Policial, relata-se que uma porta foi arrombada e foram levados três televisores, um computador e uma panela de pressão. Enquanto apuravam extensão dos prejuízos, encontrou-se o bilhete com o pedido de desculpas ao lado de uma Bíblia. Além do furto, registrou-se ainda que todas as câmeras do sistema de monitoramento da escola foram quebradas.

 


Ao ler a notícia, pensei na hipótese do chamado furto famélico, praticado por quem, em estado de extrema penúria, é arrastado a contragosto pela mais elementar carência de todos os seres vivos: alimentar-se. Se configurado o estado de necessidade, tido como uma das causas capazes de excluir a ilicitude da conduta, não há, sequer, que se falar em crime. Tá lá no corpo do art. 24 estendido no Código Penal.

 

Pensei também na sentença curta e certeira do escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina: “a justiça é como uma serpente; só morde os pés descalços”. Há várias formas de se dizer isso, porém, para mim, ninguém o fez com tanto veneno e precisão. Na mosca! 

 

Quem é o delegado responsável pelo inquérito policial? Não sei. Certamente outro brasileiro – com nome, sobrenome e um pouco mais de sorte do que o autor do bilhete  que tentará por todos os modos descobrir a autoria do furto e como foi praticado. Tomará depoimentos, reunirá provas e fará seu relatório ao órgão encarregado de promover ou não a denúncia.

  

Aqui entre nós  e o resto do universo , o que representam três televisores, um computador e uma panela de pressão em terra de mensalões, sanguessugas, petrolões e rachadinhas? Que país é esse cujos homens públicos se aproveitam do pânico instalado por um monstro que já engoliu sem palitar os dentes mais de 211 mil vidas e, à luz do dia, roubam com sofreguidão em obras e compras emergenciais de bens e serviços?

 

O abominável vírus das trevas, que nos assombra desde o começo do ano passado, além de desmascarar a insensatez daqueles que subestimaram o seu potencial de letalidade, acordou aos berros um ancestral com múltiplas cepas variantes (admitindo-se que dormia, o que é controverso, reconheço) que se reproduz por aqui desde a descoberta e o sucesso do pau-brasil no mercado consumidor europeu: o vírus da corrupção. 

 

E em meio à avalanche de brasileiros infectados e mortos nos dias de hoje, escorrem pelo esgoto bilhões de reais em contratos investigados pelas polícias Federal e Civil e pelo Ministério Público, com indícios peludos de apropriação indébita, desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, prevaricação e outras práticas já corriqueiras.

 

Pois bem. Volto ao Zé qualquer – por certo, um dos 14 milhões de brasileiros na fila em busca de trabalho – que será identificado e chamado a depor sobre furto e vandalismo, ainda que, sem qualquer hesitação, tenha, na mesma hora, demonstrado arrependimento ao pedir desculpas, sobretudo às crianças, imagino, que ficariam sem os favores e os sabores da panela de pressão. Os aparelhos de televisão e o computador já não têm tanta serventia nestes tempos sombrios sem atividades em sala de aula. 

 

A pronta decisão do Zé qualquer de se desculpar, pressionado apenas pela própria consciência, deve ser filha do propósito de não reincidir. Talvez isso, quem sabe, desperte no delegado a sede por um copo onde se misturem, ainda que em doses mínimas, cautela, compaixão, coragem, intuição e senso de justiça. Sem gelo, claro. 

 

Se o delegado levar em conta as sutilezas e o contexto em que os vacilos foram cometidos, reconhecerá que não há, sequer, que se falar em crime. Dará o assunto por encerrado e lavará as mãos com álcool em gel. No máximo, aconselhará o Zé qualquer a não se envolver com certas figuras públicas que circulam por aí livres e leves – afinal, pouco pesam as tornozeleiras que serpenteiam alguns pés muito bem calçados. 

 

E se aceitar um conselho do enxerido aqui, que mete a colher numa caçarola cujo desfecho parecia fadado a repetir-se, o delegado deveria pedir desculpas por amolar mais um sobrevivente – não sem arranhões!  da caridade de uma minoria que o detesta. 

 

Arrepender-se e pedir perdão, delegado, não tem nada a ver com humilhar-se. É gesto de gente grande. Gente que não quer só comida, quer saída para qualquer parte, quer prazer para aliviar a dor. Quem sabe possa até inspirá-lo a doar à escola uma nova panela de pressão


Aí basta torcer para que a Máfia da Merenda, velha conhecida na região, não meta a sua colher imunda no caso, furte a panela nova e o que resta de esperança nos que têm fome desde criança, inclusive de justiça.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Capiba que cupim não rói

Na virada do ano novo, meu amigo Francicarlos Diniz, jornalista e escritor, postou nas redes sociais:

 

“Em busca do seu ninho 

 

Há 23 anos, morria o compositor Lourenço da Fonseca Barbosa, o eterno "Capiba".

 

O maestro pernambucano gravou mais de 200 composições, entre boleros e inesquecíveis frevos-canção que tantos carnavais animaram. 

 

Repórter da revista "Fenabb Notícias", escrevi o texto... em homenagem a Capiba, publicado na edição de fevereiro de 1998. 

 

Os discos de Capiba sempre fizeram parte da antiga radiola da minha casa. Suas canções ainda hoje ecoam na memória dos meus tempos de criança vendo minha saudosa mãe, animadíssima, cantando e dançando músicas como "Oh, bela”. 

 

"Bela é ver o passarinho / Oh! Bela / Indo em busca do seu ninho / Oh! Bela / Todo mundo se amando / Com amor e com carinho / Uns sorrindo, outros chorando de amor...”. “

 



Com o encolhimento de três bancos tradicionais que operavam em Pernambuco – Bandepe, Banorte e Mercantil – nos anos 1996/97, o Banco do Brasil buscava ocupar o vácuo. Se dependesse de alguns gerentes de sua rede de agências, eu estaria até agora às voltas com almoços e jantares com potenciais clientes, tentando convencê-los a migrarem seus negócios para o bancão.

 

Ocorre que nunca fui de almoços e jantares fora de casa, apesar das necessidades de relacionamento público-social dos cargos que ocupei. Não queria encurtar ainda mais o convívio com a mulher e os filhos. Pensava, por isso mesmo, em como fazer o que deveria ser feito, mas de forma objetiva, juntando mais interessados numa mesma oportunidade. 

 

Grandes instrumentistas como Altamiro Carrilho, André Geraissati, Armandinho, Dominguinhos, Hermeto Paschoal, Paulinho Nogueira, Nivaldo Ornellas, Paulo Moura, Raphael Rabello, Wagner Tiso etc., haviam participado, em 1995, do Projeto Tom Brasil/BB Musical, ação de marketing cultural patrocinada que resultara na distribuição a clientes de caixas-brindes (coletânea de 11 CDs, gravados ao vivo no Sesc Pompeiacom obras primas daquele timaço de craques da MPB instrumental

 

Como o prédio mais tradicional do bancão (ao lado da ponte Buarque de Macedo, sobre o rio Capibaribe, no lendário bairro do Recife Antigo) possuía na cobertura auditório com pé-direito alto, poltronas confortáveis, palco, iluminação e acústica excepcionais, nossa equipe desenhou uma espécie de pocket show, seguido de bebidas e canapés, onde traríamos a cada evento um daqueles instrumentistas. Azeitaríamos, assim, sempre na última sexta-feira de cada mês, o entrosamento com pelo menos 60 convidados especiais no mesmo momento de descontração.

 

Deu certo durante algum tempo, como quase tudo na vida. Um dia, Capiba aceitou nosso convite e, meia hora antes da abertura, lá estava ele sentado na primeira fila do auditório, com dona Zezita, musa com quem era casado havia quase quatro décadas. Conversávamos à espera dos demais convidados. A atração da tarde-noite seria Armandinho, instrumentista, cantor e compositor baiano filho de Osmar Macêdo (da lendária dupla Dodô e Osmar), idealizador do trio elétrico. 

 

Às seis, como anfitrião, subi ao palco para agradecer a presença de todos, esclarecer o objetivo do encontro e detalhar a programação. Naquele instante, achei que cairia bem reconhecer publicamente que nenhum de nós, funcionários da empresa, traduzia melhor o amor à MPB instrumental e o respeito aos músicos deste país do que a figura mítica que ali se encontrava na primeira fila do auditório, colega aposentado havia alguns anos.

 

De repente, fora do script, aparece no palco Armandinho com uma guitarra nas mãos e executa um solo maravilhoso de “Oh! Bela!”, o frevo-canção de autoria de Capiba mencionado por meu amigo Francicarlos Diniz. Em seguida, sob aplausos, Armadinho emenda com “Vassourinhas”, composto por Matias da Rocha e Joana Batista em 1909, conhecido no Brasil inteiro como o mais perfeito frevo de ruas e clubes, autêntico hino do carnaval pernambucano. 


Timidamente, Capiba apenas sorria e acenava. Parecia pressentir que, no último dia de 1997, a semente voltaria à terra, fechando o ciclo. O passarinho voltaria ao ninho da eternidade.

 

Recordo que em nossa conversa antes do pocket show, eu quis saber qual teria sido a obra que mais lhe dera prazer compor. Tinha quase certeza de que ele me falaria de “Maria Betânia”, imortalizada na voz de Nélson Gonçalves, em 1943:

 

“Maria Betânia

Tu és para mim

A senhora do engenho.

Em sonho te vejo

Maria Betânia

És tudo que eu tenho...”

 

Não era. Como todo pai, disse que canções são como filhas e não havia predileção de sua parte, mas lembrava com carinho da origem da marcha de blocos “Madeira que cupim não rói”, muito cantada nos dias de Carnaval do Recife e de Olinda.

 

“Madeira do Rosarinho

Venha à cidade sua fama mostrar

E traz, com o seu pessoal, seu estandarte tão original.

Não vem pra fazer barulho.

Vem só dizer,

E com satisfação,

Queiram ou não queiram os juízes

O nosso bloco é de fato campeão.

E se aqui estamos cantando esta canção,

Viemos defender a nossa tradição.

E dizer bem alto

Que a injustiça dói.

Nós somos madeira de lei que cupim não rói.”

 

Se já gostava dessa marchinha carnavalesca simples por conta daquela nossa breve conversa, passei a admirá-la ainda mais quando a ouvi pela tevê, há sete anos, no velório de Ariano Suassuna, numa homenagem ao escritor, dramaturgo e professor, que costumava usá-la em suas aulas-espetáculo como símbolo da resistência popular contra os maus tratos a suas raízes culturais.