Próximo ao lago Paranoá, sob a vigília do céu anil da capital da República, o condomínio Ouro Branco acaba de receber seu mais novo morador. Não fosse pelo sobrenome e pelo tino para negócios imobiliários (que invejosos promotores públicos chamam de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa), ninguém prestaria muita atenção à compra, por 6 milhões de reais, de uma mansão de 2.500 metros quadrados, com quatro suítes, piscina e spa com aquecimento solar, espaço gourmert, home theater e academia.
Às vésperas de mais uma Páscoa sem chocolates nem netos por perto, antes de qualquer comentário mais amargo, preciso resgatar que esse foi o 20º imóvel que esse abençoado cristão negociou nos últimos 16 anos. Aliás, em declaração à Justiça Eleitoral, há dois anos, ele jurou de mãos levantadas e pés juntos ter patrimônio de 1,74 milhão de reais, quantia compatível com seu atual salário líquido, de 25 mil reais.
Para os que duvidam do talento comercial desse cidadão latino-americano, com dinheiro no banco e parentes importantes, ele justificou que adquiriu sua nova morada no Ouro Branco após vender um imóvel e uma franquia no Rio de Janeiro. Referia-se à prodigiosa loja de chocolates Kopenhagen, que, de acordo com o Ministério Público, teria sido usada para mascarar desvios de recursos de assessores, já que boa parte das compras foram feitas em dinheiro vivo.
“Está tudo como dantes no quartel d'Abrantes”, dirão alguns com antolhos ideológicos, argumentando que quase todos no recinto agem assim. “Não configuraria infração penal, pois é prática socialmente aceita por aqui”, diriam outros, convictos de que expressam notável saber jurídico com suas togas encardidas e mal pagas.
Lembrei-me de antigos programas humorísticos de televisão, onde os bordões pegavam de tal forma que, décadas depois, ainda latejam em minha memória. Ultimamente, então, alguns me ocorrem com relativa assiduidade. Rebrotam como ervas daninhas diante de novas e tantas besteiras que assolam o país, como nos tempos de Stanislaw Ponte Preta.
Nos anos 80, Tavares era um personagem de Jô Soares, em Viva o Gordo, que tinha orgulho do seu filhote Dorival, enaltecendo as qualidades másculas e ideológicas do rapaz. Quando conversava com os amigos, não cansava de elogiar o rebento, sem perceber que tudo o que dizia denotava que seu filho não tinha a orientação sexual e política que ele supunha. Os amigos ficavam sem jeito, mas não diziam nada, preferindo contar os feitos de seus próprios filhos, ao que Tavares, desconfiado, dizia: “cala-te boca, tem pai que é cego!”. Numa época, claro, em que esse tipo de abordagem, mesmo que de mau gosto, ainda não beirava o crime.
Havia também o macaco Sócrates, interpretado por Orival Pessini no humorístico Planeta dos Homens, que buscava entender a condição humana em pequenas esquetes, as quais fechava assim: “Não precisa explicar, eu só queria entender.” Por exemplo, se visse no jornal que a lei nº 9.613 descreve o crime de “lavagem” como o ato de ocultar ou dissimular a origem de bens, direitos ou valores que sejam frutos de infração criminal, perguntava: “será que todos são iguais perante a lei?” E antes que alguém respondesse, emendava de primeira: “Não precisa explicar, eu só queria entender.”
O macaco Sócrates, inclusive, quando era detido pela polícia por alguma falcatrua, antes mesmo de recorrer a algum ministro de tribunais superiores ávido pelos 15 minutos de fama a que se referiu Andy Warhol, olhava à sua volta e procurava outros que tinham feito a mesma coisa que ele, sem encontrar ninguém. Nesse ponto, indagava: “Só eu? Cadê os outros?”.
Ainda no Planeta dos Homens, havia um sujeito que não era político, no entanto era casado com uma mulher espetacular – não se sabe se era sócia de uma franquia de chocolates extremamente rentável ou coisa parecida. Os amigos, que não se conformavam quando o viam na noite sem a companhia da esposa, o aconselhavam a voltar o mais rápido possível: “Vai pra casa, Padilha!”
Ao mencionar Padilha (que poderia ser chamado de Queiroz, por exemplo), lembrei-me de Kate Lyra, atriz e modelo norte-americana que fez carreira por aqui, participava da Praça da Alegria, onde contava casos em que a prestimosidade dos brasileiros lhe ajudava nas tarefas do dia a dia. Claro, todos eles com terceiras e explícitas intenções, mas ela, um pote de candura e inocência, não percebia e exalava gratidão por todos os poros: “brasileiro é tão bonzinho!”
Lembrei-me ainda dos olhos arregalados sob as sobrancelhas peludas de Francisco Milani, no Viva o Gordo, a questionar o conceito de normalidade das pessoas. Se dissesse algo absurdo – como, por exemplo, que vira um militar numa guerra que jurava estar vencendo, mas vinha perdendo 2.000 soldados por dia, perguntar à tropa: “Vão ficar chorando até quando? Chega de frescura e mimimi” –, e se as pessoas ficavam olhando pra ele, arrematava na lata: “Tá me olhando por quê? Eu sou normal!”.
O Brasil definitivamente perdeu a graça. Vivemos tempos amargos feito chocolate com 70% de cacau, sem o lado bom da coisa. Poderia ser menos triste se fôssemos unidos e as autoridades encasteladas estivessem à altura do caos instalado. Em alta por aqui só o escárnio dessa gente inepta e a indignação nossa (e do resto do mundo) de cada dia.
Tô ficando rabugento! Sou do tempo em que Ouro Branco na boca me fazia dançar de olhos fechados, sem música nem medo de cara feia, glicose ou triglicerídeos. Não sei se agora, feito Cazuza, adianta disparar contra o sol minha metralhadora cheia de mágoas. Mas vou continuar correndo na direção contrária, mesmo vendo o futuro repetir o passado nesse museu de grandes novidades.