quarta-feira, 31 de março de 2021

Goiabinha, o doce teimoso

A professora Inacinha ouviu baterem palmas à porta de casa, próxima à Praça da Faculdade e ao Cemitério São José, no Prado, em Maceió. Lá fora, deu de cara com Baiano e Fumanchu quicando bola na calçada, a recrutarem interessados no racha das quatro da tarde:

– Goiabinha tá aí? – quis saber um deles. 

– Aqui não mora nenhum Goiabinha! – respondeu uma zelosa tia – O nome é Paulo Fernando Paraíso de Carvalho, por sinal, um bonito nome.


Órfão de mãe, criado pela tia com açúcar, afeto e seus livros prediletos, Paraíso queria ser jogador de futebol, como tantos meninos que ouviram pelo rádio o maior drama do Brasil até o vexame de 2014: a derrota para o Uruguai por 2 a 1, na final da Copa do Mundo de 1950, no Maracanã. 


Anos depois, já funcionário do Banco do Brasil, lembrava disso toda vez que seu nome completo era mencionado no ambiente de trabalho e os colegas – inclusive alguns comparsas de infância – completavam numa só algazarra:

– Por sinal, um bonito nome! 


Aposentado há 28 anos, Paraíso não sabe a origem do “Goiabinha” que lhe tatuaram quando endoidecia os zagueiros do Universal, de Pai Manu, como atacante do Arsenal, de Zé do Biu. Talvez o gosto pelo fruto da goiabeira, árvore típica da América tropical, muito comum naquele tempo de pardais, de verde nos quintais. 

  

Teimoso como poucos, sim, mas nunca deu motivos para queixas sobre pontualidade, lisura ou desempenho no trabalho, embora não tolerasse usar gravata. Como não podia mudar o padrão de vestuário estabelecido pelas normas da empresa, cortava-a pela metade, a tesoura, e amarrava o resto ao pescoço sem o menor compromisso com a elegância. 

 

Fazia sentido. Por que alguém, lutando pela sopa de cada dia numa cidade litorânea, com temperatura média de 26ºC, deveria macaquear um hábito europeu? A gravata (cravate, que no idioma francês significa “croata”) surgira na França do final do século 17. Os gauleses, conhecidos pela afeição à moda, adaptaram uma indumentária do regimento croata, de passagem por Paris em 1668. Usava-se cachecol de lã ou linho para aquecer o pescoço nos dias de inverno. 

 

Goiabinha, porém, já fora bem mais teimoso. Contam antigos companheiros – com quem dividiu uma república em Viçosa, interior de Alagoas, no início da carreira profissional – que certa noite, após o jantar, ele se preparava para descascar a sobremesa quando começou a discutir com alguém sobre política ou futebol, com a banana em riste. O tempo passava e nada. Pouco antes de dormir, ele ainda argumentava balançando a fruta, àquela altura imprestável até para vitamina com farelo de aveia.  

 

Sindicalista de fibra – louve-se, sem qualquer filiação político-partidária com agenda de interesses particulares –, daqueles que escaparam por um triz de cassetetes, choques elétricos e paus-de-arara, nem a gagueira lhe inibia de proferir inflamados discursos nas assembleias dos bancários. Quando subiam a temperatura e o tom, então, batia duro com a língua na perereca móvel sem medo de terminar banguela ou de perder o cargo de confiança que exercia. 

 

A fama de teimoso tornou-se lendária quando Goiabinha, contrariando a opinião de vários amigos, decidiu não assinar o termo de opção pelo Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS), sob o argumento de que sua liberdade não estava à venda por dinheiro nenhum no mundo. “Dinheiro só compra pessoas baratas”, pregava.

 

Resgato que o FGTS foi criado em 1966, a pretexto de assegurar ao trabalhador demitido sem justa causa certa segurança financeira (cada ano trabalhado equivalia ao salário de um mês). Em contrapartida, o empregado abriria mão da chamada estabilidade decenal (quem atingia 10 anos de trabalho só podia ser demitido por justa causa) prevista na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), regra que só seria extinta em 1988. 

 

Algo que deixava Goiabinha furioso eram as chamadas propagandas enganosas que infestavam jornais, rádios e tevês, na segunda metade dos anos 1970. E uma livraria e papelaria famosa na Rua do Livramento, além de popularizar slogan de terrível mau gosto (“se no Recife tem, na Casa... também tem”), pisoteando os calos de quem vivia numa capital de menor porte, orientou as balconistas a nunca admitirem a falta de um produto. Quando se pedia uma mercadoria em falta, respondiam sem qualquer pudor: “não tem, mas vai chegar”. 

 

Aborrecido com aquilo, um dia dirigiu-se ao balcão da famosa loja e falou alto a ponto de ser escutado por outras pessoas presentes:

– Aqui tem o livro Anatomia Patológica?

– Qual o autor?

– Paulo Fernando Paraíso de Carvalho.

– Não tem, mas vai chegar! – disse a atendente, quase acrescentando "por sinal, um bonito nome".

– Vai chegar uma porra! – protestou Goiabinha, para espanto geral – Quem lhe disse que escrevi algum livro?! 

 

Com o passar dos anos, perdi o contato com ele. Há duas semanas, contudo, um amigo em comum compartilhou comigo áudio-mensagem onde Goiabinha, visivelmente comovido, celebra ter escapado das garras cruéis da covid-19. Teimou tanto, imagino, que o abominável vírus das trevas desistiu. 

 

Dá para imaginar o desfecho da encrenca no hospital, ele relutando com a besta-fera, com o dedo indicador da mão esquerda em riste:

– Nem vem que ainda tem querosene em minha lamparina!

– Deixe de ser teimoso! Quem você pensa que é?

– Não sou ninguém, mas não abro nem para um trem sem freio quando entro numa briga! Sai pra lá, fi-da-peste, infeliz-das-costas-ocas! Tá aqui pra você! – e encerra a prosa com uma banana daquelas de estalar a palma da mão direita na dobra do antebraço esquerdo, de punho cerrado. 


 

Domingo que vem, 4 de abril, Goiabinha completa 82 anos muito bem vividos. Deve almoçar com a mulher Lúcia, os filhos Paulo, Eduardo, Andreia e Adriana; as netas Caroline, Beatriz e Larissa, além dos três bisnetos Lucas, Téo e Dante. Por sinal, bonitos nomes, como diria tia Inacinha.

 

Antes do cafezinho, com os bisnetos no paraíso da sala de estar, cairia bem uma colherada de doce de goiaba em calda com creme de leite. Sobremesa mais que merecida. 

quarta-feira, 24 de março de 2021

Coisas de pai

Há pelo menos duas décadas ele reveza estadias na Zona Sul do Rio de Janeiro com temporadas cada vez mais longas no interior da Bahia, onde cria galinhas, cultiva cocos e fotografa “os bêbados e as crianças mais lindas da região”, como diz.

 

Quando adolescente, queria ser músico. Mas o pai, ouvindo-o cantar certo dia, foi sincero como todo pai deve ser (um pouco mais, talvez): “Filho, me poupe os ouvidos”. Assim, engoliu como pôde a sentença paterna – um nem tão diligente servidor público, vinculado ao Ministério das Relações Exteriores – e desistiu da música.

 

Talvez, para seu pai, ele devesse concluir os estudos básicos e prestar concurso público para ingressar numa daquelas instituições que ofereciam salários generosos e pagos em dia, garantindo uma vidinha sem sobressaltos com mulher, filhos, sogra, igreja e praia ou zoológico aos domingos.


Natural que fosse assim. Pai da gente, até uma certa idade nossa, está sempre certo. Só começa a vacilar feio depois que aprendemos a andar com as próprias pernas. 

 

De tanto prestar atenção nas coisas à sua volta, aos 12 anos ele se interessou por fotografia. Autodidata, inspirou-se no trabalho de dois primos em segundo grau, figuras de destaque na incipiente publicidade brasileira da metade do século passado. 

 

Com a militância política no ambiente doméstico, era esperado que desenvolvesse o gosto pela fotografia voltada para o social. Tanto que, mais tarde, os protestos contra a morte do estudante Edson Luís, em 1968, foram decisivos para que ele trocasse o estúdio pelas ruas.

 

Sua obra aponta várias direções, mas possui foco bem definido: um olhar às vítimas de uma sociedade autoritária e desigual. Em mais de 50 anos, registrou manifestações contra a ditadura, instantâneos da vida boêmia do Rio, artistas no palco e em bares, festas populares, adultos e crianças anônimas nas ruas, nos becos ou no trabalho pesado, fora das escolas. 

 

Na mais recente exposição, realizada há dois anos, reuniu acervo de 80 imagens que traduzem um pouco de tudo o que já fez na vida, a começar pela fotografia que deu nome à mostra (Pic-nic no front), em que um jovem queima a bandeira norte-americana na sede da União Nacional dos Estudantes, ao lado do anúncio da peça em cartaz no local. 

 

Havia outras imagens belíssimas que retratavam desde a Ipanema dos anos 1960/70 até os operários que abriram o Túnel Rebouças, no Rio, passando por pequenos carvoeiros na Bahia, em flagrante afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Ele não tem a visibilidade internacional de Sebastião Salgado, que trouxe à luz quatro décadas dos horrores cometidos pelo ser humano e as grandes belezas naturais do planeta. Salgado que, após sair do Brasil fugindo da ditadura, em 1969, esteve em mais de 130 países e alcançou todos os prêmios e reconhecimentos possíveis na arte da fotografia.

 

Não, definitivamente não é um gênio desse calibre. É bem mais simples, feito do mesmo barro de um servidor público com uma aguçada veia poética que, antes de partir, deixou-lhe a carta-testamento mais intensa e visceral que já vi e que me permito citar alguns trechos: 

 

“... Como eu nunca lutei para deixar-te nada além do amanhã indispensável: um quintal...  um teto simples onde possas ocultar a terrível herança que te deixou teu pai apaixonado  a insensatez de um coração..."

"...Muitas noites, me debrucei sobre o teu berço e verti sobre teu pequenino corpo adormecido as minhas mais indefesas lágrimas de amor, e pedi a todas as divindades que cravassem na minha carne as farpas feitas para a tua..."

"...E minha vida, mais que ser um templo, é uma caverna interminável, em cujo recesso esconde-se um tesouro que me foi legado por meu pai, mas cujo esconderijo eu nunca encontrei, e cuja descoberta ora te peço..." 

"... Por isso que eu chorei tantas lágrimas para que não precisasse chorar, sem saber que criava um mar de pranto em cujos vórtices te haverias também de perder..."

"...E assim como sei que toda a minha vida foi uma luta para que ninguém tivesse mais que lutar... Assim é o canto que te quero cantar, Pedro, meu filho..."

 


Aos 78 anos, Pedro de Mello Moraes, além de freelancer em publicidade, arquitetura, moda, jornalismo e cinema, é pai 
da cantora Mariana de Moraes (veja aqui)a quem um dia deve ter dito: “Filha, nunca me poupe os ouvidos...” 

E deu razão à sentença paterna que ouvira no começo dos anos 1950. Seu velho pai também sabia das coisas

quarta-feira, 17 de março de 2021

Camisas coloridas

A rainha Vitória, do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda – tataravó da atual monarca , cujo reinado duraria 63 anos, tomou uma decisão em 1861 pra lá de radical. Com a morte de seu marido, o príncipe Albert, resolveu guardar luto pelo resto de sua vida usando roupas pretas nos 40 anos seguintes, isto é, até 1901, ano em que faleceu.


Não se sabe se a medida alcançou sutiãs, espartilhos, anáguas, combinações e calçolas. A história não se intromete nessas intimidade
s e relata apenas que passou a vigorar naquele tempo uma regra vitoriana determinando que as viúvas usassem o preto como luto. 

A mulher que perdesse seu marido, portanto, teria que usar vestes negras – inclusive véu para cobrir o rosto, daí surgindo jóias e outros acessórios na mesma tonalidade – por, no mínimo, dois anos e meio. Jornais da época também estimularam o uso da cor escura em ocasiões como a morte da sogra ou do sogro de seus filhos casados, por seis semanas. 

 

No começo do século 20, com a morte da rainha Vitória, aos poucos o luto tornou-se mais flexível. Nem por isso o antigo costume deixaria de ser observado até aqui no Brasil. A diferença é que, hoje, já não é preciso entulhar o guarda-roupas com peças escuras por tanto tempo após a morte de um ente querido. 

 

Em 1972, no dia seguinte à morte de meu pai, minha mãe – registre-se, ainda hoje soberana no reino dos Juremas que migrou da Paraíba para Alagoas no final da década de 1960 – também adotou medida drástica ao jogar no caldeirão e tingir de preto todas as roupas dela e dos nove filhos, inclusive minhas camisas coloridas e uma calça boca-de-sino com gravuras de marcas de cigarros que, para mim, fazia enorme sucesso junto à namorada.

 

Eu já cogitava voltar às cores habituais logo depois da missa de sétimo dia, embora não fosse possível adquirir novas peças de vestuário. Aos 14 anos, estudar e trabalhar ao mesmo tempo não passava de um desejo que só se realizaria dois anos mais tarde. 


Vasculhei então as roupas deixadas por meu pai e descobri algumas camisas coloridas de mangas curtas que me caíram bem. Para mim, luto não era casca; era caroço. Haveria expressão maior de sentimento do que usar o que lhe pertencera, inclusive o relógio? 



Quem se sentiu desconfortável foi a namorada. Cheguei a pensar que fosse o desodorante que não estaria dando conta do cheiro de cebola que emanava dos sovacos após os rachas de fim de tarde. Não era. Alegou que, ao ver o relógio e as camisas coloridas de mangas curtas, era como se meu pai estivesse ali conosco. 

Disse-lhe então que não deveria preocupar-se com os mortos; que eles teriam mais o que fazer onde estivessem e não perderiam tempo com os vivos; que não dão a mínima para o destino de roupas, livros, escovas, sapatos e sandálias que deixam.
 


Balançando-se numa rede, no terraço, a mãe dela entrou na conversa que ouvira “por alto” e passou a contar uma breve história de família sobre o destino de coisas pertencentes aos mortos. Queria ajudar-me a convencer a sua filha de que camisas eram apenas camisas, nada mais. Conseguimos.

 

Dizia ela que, em 1941, dois de seus irmãos, ainda crianças na cidade alagoana de União dos Palmares, foram testemunhas de uma das piores enchentes do rio Mundaú, por conta do excesso de chuvas na cabeceira de seus afluentes. O mais velho dos meninos, beirando os 10 anos e criado solto feito garrincha (ou corrupião, rouxinol etc.), saíra logo cedo para assistir à correnteza de águas barrentas arrastando o que encontrava nas margens.

 

O nível do rio subiu de forma rápida e barulhenta, ameaçando a única ponte da cidade. Passava de duas da tarde e nada de o menino chegar para o almoço. Não faltavam transeuntes na calçada a comentar que vira mais um corpo a descer boiando. Angústia e ansiedade instaladas, a família perdeu a fome, desabou no choro e acendeu velas suplicando a intervenção de Santa Maria Madalena, padroeira palmarina, junto aos céus. 

Foi quando um dos irmãos do desaparecido, um ano mais novo que ele e que mais tarde se tornaria respeitável frei capuchinho na região, irrompeu na sala e habilitou-se sem qualquer pudor perante os demais membros da família quase enlutada: “Vou logo avisando a todos: se ele morrer, a camisa vermelha é minha!” 


No fim da tarde, o menino sumido reapareceu descalço, nu cintura acima – camisa suja, enrolada no pulso , suor descendo no espinhaço, a chupar um caroço de manga. De barriga cheia, resolveu tomar banho de caneco no quintal enquanto o sol morno desbotava a paisagem, que se vestiu de luto como as águas do rio à espera das cores do dia seguinte. 



quarta-feira, 10 de março de 2021

Ouro Branco

Próximo ao lago Paranoá, sob a vigília do céu anil da capital da República, o condomínio Ouro Branco acaba de receber seu mais novo morador. Não fosse pelo sobrenome e pelo tino para negócios imobiliários (que invejosos promotores públicos chamam de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa), ninguém prestaria muita atenção à compra, por 6 milhões de reais, de uma mansão de 2.500 metros quadrados, com quatro suítes, piscina e spa com aquecimento solar, espaço gourmert, home theater e academia.

 

Às vésperas de mais uma Páscoa sem chocolates nem netos por perto, antes de qualquer comentário mais amargo, preciso resgatar que esse foi o 20º imóvel que esse abençoado cristão negociou nos últimos 16 anos. Aliás, em declaração à Justiça Eleitoral, há dois anos, ele jurou de mãos levantadas e pés juntos ter patrimônio de 1,74 milhão de reais, quantia compatível com seu atual salário líquido, de 25 mil reais. 

 

Para os que duvidam do talento comercial desse cidadão latino-americano, com dinheiro no banco e parentes importantes, ele justificou que adquiriu sua nova morada no Ouro Branco após vender um imóvel e uma franquia no Rio de Janeiro. Referia-se à prodigiosa loja de chocolates Kopenhagen, que, de acordo com o Ministério Público, teria sido usada para mascarar desvios de recursos de assessores, já que boa parte das compras foram feitas em dinheiro vivo. 

 

“Está tudo como dantes no quartel d'Abrantes”, dirão alguns com antolhos ideológicos, argumentando que quase todos no recinto agem assim. “Não configuraria infração penal, pois é prática socialmente aceita por aqui”, diriam outros, convictos de que expressam notável saber jurídico com suas togas encardidas e mal pagas.   

 

Lembrei-me de antigos programas humorísticos de televisão, onde os bordões pegavam de tal forma que, décadas depois, ainda latejam em minha memória. Ultimamente, então, alguns me ocorrem com relativa assiduidade. Rebrotam como ervas daninhas diante de novas e tantas besteiras que assolam o país, como nos tempos de Stanislaw Ponte Preta.

 

Nos anos 80, Tavares era um personagem de Jô Soares, em Viva o Gordo, que tinha orgulho do seu filhote Dorival, enaltecendo as qualidades másculas e ideológicas do rapaz. Quando conversava com os amigos, não cansava de elogiar o rebento, sem perceber que tudo o que dizia denotava que seu filho não tinha a orientação sexual e política que ele supunha. Os amigos ficavam sem jeito, mas não diziam nada, preferindo contar os feitos de seus próprios filhos, ao que Tavares, desconfiado, dizia: “cala-te boca, tem pai que é cego!”. Numa época, claro, em que esse tipo de abordagem, mesmo que de mau gosto, ainda não beirava o crime.

 

Havia também o macaco Sócrates, interpretado por Orival Pessini no humorístico Planeta dos Homens, que buscava entender a condição humana em pequenas esquetes, as quais fechava assim: “Não precisa explicar, eu só queria entender.” Por exemplo, se visse no jornal que a lei nº 9.613 descreve o crime de “lavagem” como o ato de ocultar ou dissimular a origem de bens, direitos ou valores que sejam frutos de infração criminal, perguntava: “será que todos são iguais perante a lei?” E antes que alguém respondesse, emendava de primeira: “Não precisa explicar, eu só queria entender.” 

 

O macaco Sócrates, inclusive, quando era detido pela polícia por alguma falcatrua, antes mesmo de recorrer a algum ministro de tribunais superiores ávido pelos 15 minutos de fama a que se referiu Andy Warhol, olhava à sua volta e procurava outros que tinham feito a mesma coisa que ele, sem encontrar ninguém. Nesse ponto, indagava: “Só eu? Cadê os outros?”. 

 

Ainda no Planeta dos Homens, havia um sujeito que não era político, no entanto era casado com uma mulher espetacular – não se sabe se era sócia de uma franquia de chocolates extremamente rentável ou coisa parecida. Os amigos, que não se conformavam quando o viam na noite sem a companhia da esposa, o aconselhavam a voltar o mais rápido possível: “Vai pra casa, Padilha!”

 

Ao mencionar Padilha (que poderia ser chamado de Queiroz, por exemplo), lembrei-me de Kate Lyra, atriz e modelo norte-americana que fez carreira por aqui, participava da Praça da Alegria, onde contava casos em que a prestimosidade dos brasileiros lhe ajudava nas tarefas do dia a dia. Claro, todos eles com terceiras e explícitas intenções, mas ela, um pote de candura e inocência, não percebia e exalava gratidão por todos os poros: “brasileiro é tão bonzinho!” 

 

Lembrei-me ainda dos olhos arregalados sob as sobrancelhas peludas de Francisco Milani, no Viva o Gordo, a questionar o conceito de normalidade das pessoas. Se dissesse algo absurdo – como, por exemplo, que vira um militar numa guerra que jurava estar vencendo, mas vinha perdendo 2.000 soldados por dia, perguntar à tropa: “Vão ficar chorando até quando? Chega de frescura e mimimi” –, e se as pessoas ficavam olhando pra ele, arrematava na lata: “Tá me olhando por quê? Eu sou normal!”.

 

O Brasil definitivamente perdeu a graça. Vivemos tempos amargos feito chocolate com 70% de cacau, sem o lado bom da coisa. Poderia ser menos triste se fôssemos unidos e as autoridades encasteladas estivessem à altura do caos instalado. Em alta por aqui só o escárnio dessa gente inepta e a indignação nossa (e do resto do mundo) de cada dia.

 


Tô ficando rabugento! Sou do tempo em que Ouro Branco na boca me fazia dançar de olhos fechados, sem música nem medo de cara feia, glicose ou triglicerídeos. Não sei se agora, feito Cazuza, adianta disparar contra o sol minha metralhadora cheia de mágoas. Mas vou continuar correndo na direção contrária, mesmo vendo o futuro repetir o passado nesse museu de grandes novidades.

quarta-feira, 3 de março de 2021

Essa gente não toma jeito!

Se ainda estivesse entre nós, Nerival, um sergipano narigudo, sobrancelhas espessas, a cara do feiticeiro Gargamel (aquele do gato Cruel!), de Os Smurfs, certamente teria boas histórias para contar. 


Trabalhamos juntos no início dos anos 90, em Salvador, quando ele me contou de uma memorável carteirada em que se envolveu, em Aracaju, onde passava os fins de semana com a esposa e os filhos


Se fosse vivo, morreria agora de rir daqueles que, neste momento, sob inconfessáveis meios e modos, sonham com um tiro certeiro capaz de furar a fila da vacina contra a covid-19. "Essa gente não toma jeito!", diria ele.
 
A carteirada a que ele se referiu não foi do tipo em que o sujeito exige privilégio por conta do cargo, profissão ou posição social que ostenta para obter vantagens não financeiras (cortesias, favores etc.), inacessíveis aos anônimos mortais. 


Como fez há poucos meses um certo "deusembargador" ao atropelar no grito um guarda municipal – “veja com quem você está se metendo, seu analfabeto?!” – após ser multado por não utilizar máscara numa caminhada no litoral paulista, em plena pandemia.

 

Era Sábado de Aleluia, véspera da Páscoa. Nerival bebia cerveja com uns amigos na sala de estar quando a mulher lhe pediu para substituir o botijão de gás do fogão onde, com sal e afeto, ela cozia um chambaril com linguiça, alho, pimenta-do-reino, cebola, louro, tomate, coentro, batata doce, cenoura, couve, jerimum e banana-da-terra. 

 

Para infelicidade de ansiosos comensais, que pelo cheiro já intuíam o sabor da primeira garfada, o bujão reserva também estava vazio. Coube ao dono da casa pegar as chaves da Belina e ir até a revendedora de gás que, de imediato, não tinha como providenciar a entrega em domicílio. 

 

Nerival subia a rua principal do bairro ao ouvir o barulho dos botijões despencando do porta-malas do veículo, em movimento. Ultrapassara no pé da ladeira, havia poucos segundos, um caminhão que transportava soldados da Polícia Militar. O motorista freou bruscamente ao ver os “gordinhos metálicos”, velozes e furiosos, rolando em sua direção.

 

Enquanto alguns cachorros latiam no desmantelo daquele começo de tarde, militares pulavam da carroceria prontos para enfrentarem o responsável pelo atentado à viatura em pleno processo de redemocratização do país, que mal havia escolhido o primeiro presidente civil desde a ditadura. “Só pode ser coisa de petista!”, vociferava alguém.

 

De boné e bermudas, descalço, barba rebrotando, hálito  de quem, hoje, sopraria a contragosto o bafômetro numa eventual blitz da Lei Seca, Nerival procurou manter a calma diante dos indômitos guerreiros, vestidos de fardas cáqui e coturnos engraxados, todos de armas em punho para o revide à suposta agressão, no cassetete, na ponta do punhal ou na bala.

 

Gaguejou ao explicar-se e o caldo só engrossava pro seu lado, prestes a empelotar e descer raspando goela abaixo:

– Saia do carro com as mãos pra cima! – um militar ordenou, já partindo para a revista de praxe.

– Calma! Foi a corda que arrebentou...

– E se esta merda explodisse?!

– Mas tão vazios...

– Me dê seus documentos...

 

Sem poder avisar a ninguém do acontecido – não tinha ficha telefônica nem orelhão próximo, nem existiam celulares à época –, Nerival esperava o golpe final, o nocaute. Mas ao entregar os documentos, veio o estalo:

– O senhor acha que um gerente do Banco do Brasil, com mais de 20 anos de carreira, faria uma desgraça dessas com um pelotão da PM? – disse, exibindo a sua nova carteira de identidade funcional, com fotografia 3x4 recente, barbeado, de paletó e gravata.

– Tá bom... E daí?

– Veja, tenente – argumentou Nerival, exagerando de propósito na patente de seu interlocutor –, se tem aqui neste estado duas instituições respeitadas, uma é a PM e a outra é o BB, concorda? Nós dois pertencemos a elas. Foi acidente... Me desculpe, por Nossa Senhora. Só vejo aqui pai de família igual a mim...


O sargento conferiu a carteira identidade funcional – nem reparou direito no documento do veiculo e na habilitação do motorista – e, com o dedo indicador, chamou um dos soldados:  

– Ei, você aí! Ajude o rapaz... Amarre os bujões, viu? 

 

Menos de uma década mais tarde, soube de outra carteirada que aconteceu na região metropolitana de São Paulo, envolvendo um determinado dirigente do BB, conhecido pela empáfia travestida de franqueza com que se mostrava feito um pavão imperial. Omito o nome para não requentar episódio incompatível com a imagem da instituição que ele representava. 

 

Numa blitz, com a arrogância escorrendo pelo colarinho engomado e branco, o dirigente desceu do carro com o queixo apontando para o horizonte e partiu com tudo na base do “você sabe com quem tá falando?” O policial estimou o diâmetro da cauda do pavão e foi claro, curto e reto:

– Levante os braços e abra as pernas, agora! 


O baculejo não poderia ter sido mais longo e constrangedor, na presença de outros membros da comitiva (dirigentes da empresa e seus motoristas), todos liberados, digamos assim, de uma abordagem mais profunda como aquela.

 


Pois é, Nerival, essa gente não toma jeito mesmo! Li outro dia que 22 de abril de 1500 marcou oficialmente a chegada dos portugueses à costa brasileira, porém só no dia seguinte foram feitos os primeiros contatos entre visitantes e nativos. Pero Vaz de Caminha, na célebre carta ao rei D. Manuel I, o Venturoso, relatou que “eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as vergonhas...” 
Minutos depois, imagino, começaram as carteiradas na Ilha de Vera Cruz. 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

A criança que não fui

Uns juram que morri, virei pó, há quase meio século. Outros, não. Dizem que vivo em meus filhos, netos e bisnetos. Sei que aqui, sentado à beira do caminho por onde tudo passa, vez por outra retrocedo o filme e posso revê-lo, cena a cena.



Sei que parece difícil de acreditar, mas nunca aprendi a jogar futebol, pedalar, cavalgar ou nadar, mesmo tendo morado quase quatro décadas em pequenas cidades do interior. Nem a abraçar e beijar meus filhos.

Tive que encarar outros medos, como viver longe de meus pais e irmãos menores, do chão onde nasci. Mais tarde, virei bancário, casei-me e pude ver de perto os primeiros passos de meus filhos. Relaxava ouvindo músicas, lendo livros, revistas e jornais. Às vezes, até colecionava figurinhas. 

Foi diferente com ele, meu segundo filho. Mal aprendeu a andar e a falar, ganhou uma bola e o afeto recíproco instalou-se entre eles. Não era nenhum Ademir Queixada ou Vavá, mas posso revê-lo correndo no calçamento ou nos terrenos baldios, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar.


Nos anos 1960, quando O Cruzeiro, editora do grupo Diários Associados, encartou nos gibis que distribuía uma coleção de figurinhas de aviões, encontrei o que procurava para estimular em meus filhos o gosto pela leitura. Toda semana, ficava com as figurinhas e oferecia à minha primeira filha os gibis Bolinha e Luluzinha; a ele, Dom Pixote e Pimentinha; ao seguinte, Brasinha e Gasparzinho

 

Mais adiante, o susto foi grande quando o vi pedalando, sua bicicleta sem as rodas de apoio, na calçada da rua em que morávamos. Foi como se a vida, duas décadas antes, nos antecipasse a emoção da cena de Spilberg em que um menino foge da polícia e cruza a mata voando com um pequeno extraterrestre no bagageiro, tendo a lua por testemunha. 


Depois, ao visitar um sítio, o dono quis apenas ser gentil ao me convidar para um passeio num cavalo selado, manso. Sabia qual seria a resposta de quem nunca montara nem em carrossel de festa natalina. Espantei-me quando ele entrou na conversa e se ofereceu: 

– Eu quero!

– Onde você aprendeu a montar? 

– Na rua...

– Como? 

– Na burra de seu Jorge, da água.

 

Não havia água potável, encanada, na cidade em que vivíamos. Duas vezes por semana, Seu Jorge, um cafuzo risonho, parrudo, maneta – perdera uma mão numa briga de foice de que nunca contou detalhes, nem perguntei para não reabrir cicatrizes –, trazia água da cacimba de um sítio que arrendara nos arredores, onde plantava hortaliças, inhame, macaxeira e criava galos-de-briga para apostas em rinhas clandestinas.  

 

Revejo agora meu filho perguntando a Seu Jorge se poderia acompanhá-lo até a cacimba onde encheria as latas para suprir potes e garrafas de uma casa vizinha à nossa. Ele não só consente como o ajuda a montar e segurar no cabeçote da cangalha para não cair. Dias depois, o menino, juntamente com alguns colegas de rua, negociava com um fazendeiro o banho de cavalos e éguas. Cobravam pouco: o direito de suar cada animal em meia hora de galope no osso (sem selas nem estribos), tendo por cabresto uma corda laçada no focinho. Montar cavalo selado, manso, virou garapa.

 

De tanto ir ao rio banhar animais, imerso até a cintura e com inveja do destemor dos colegas, um dia ele arriscou saltar de uma pedra em águas mais profundas, mergulhar, voltar à tona e bater braços até a margem para não se afogar, escondendo dos outros o pavor de cair em buracos e ser engolido pela correnteza ou pelos redemoinhos. 

 

Só quando nos mudamos para a capital e o matriculei num curso de natação ele se deu conta de que aquilo que faziam no interior era rascunho do nado livre ou crawl. Havia outras modalidades de nado como costas, peito e borboleta. Aprendeu a respirar e alternar movimentos de cabeça, tronco, braços e pernas, mas nada que o transformasse em nadador olímpico. 

 

Mesmo assim, revejo que carrega bem vivo na memória seu único triunfo esportivo digno de nota. No verão de 1971, nas provas finais, com as cercanias da piscina do clube coalhadas de gente, não gostou de ver a imensa torcida por um adversário na raia a seu lado, em prova de peito clássico, enquanto apenas mãe e irmãos, sumidos no oceano de cabeças, tentavam encorajá-lo para não passar vexame.

 

Venceu por uma braçada – sabe Deus como! E, do alto de dois engradados de cerveja que serviam de pódio, engoliu o choro ao receber de minhas mãos, então secretário do clube, a única medalha de natação que pendurou no pescoço. Disseram-lhe que homem não chorava. Nem menino mudando de voz, com pedras nos peitos e pelos até nos sovacos. 

 

Ninguém dá o que nunca teve. Ninguém ensina o que não sabe. Nunca aprendi a jogar futebol, pedalar, cavalgar ou nadar, mas revejo daqui, sentado à beira do caminho por onde tudo passa, que pude dar a meu filho outros saberes. E me faz bem vê-lo agora ouvindo músicas, lendo livros e revistas, vendo filmes, escrevendo crônicas, entre outras brincadeiras que lhe dão prazer. 


Revejo ainda que poderia tê-lo abraçado mais, dito o quanto era importante para mim. Ele aprenderia e faria o mesmo com meus netos e bisnetos. Mas, de novo, ninguém dá o que nunca teve, nem ensina o que não sabe.


Quanto a jogar futebol, pedalar, cavalgar e nadar, noto que já não lhe fazem falta, como nunca me fizeram. Dormem no limbo onde ficaram os medos e brinquedos da criança que não fui.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Maior de todos

Quem de vocês nunca viu mãe ou pai pegando a mão de sua cria a dizer e perguntar: “Dedo mindinho, seu vizinho, maior-de-todos, fura-bolo e mata-piolho... Cadê o bolinho que tava aqui?” O riso frouxo de quem pressente cócegas é uma das primeiras e inesquecíveis trocas de amor e afeto entre os envolvidos. Vem de lá, imagino, a aptidão para os múltiplos usos dos dedos, que passam a ser conhecidos pelos respectivos nomes.


No começo deste mês, em Torino, capital da região italiana do Piemonte, Antonio Conte, antigo meio-campista e símbolo da poderosa Juventus dos anos 90, hoje treinador da Internazionale de Milão, foi visto mostrando o "maior de todos" (aquele entre o “seu vizinho” e o “fura-bolo”) para Andrea Agnelli, presidente da Juve, na saída para o vestiário após a semifinal da Copa da Itália. 

Agnelli cuspiu ouriços. Depois do apito final, desceu as arquibancadas e, com todas as letras e um contundente ponto de exclamação, mandou Conte para certo lugar. Não foi obedecido, claro.

Rusga entre buona gente. Conte justificou-se aos jornalistas dizendo que sofrera vários insultos durante o jogo. Agnelli calou-se. Vivendo desde criança o dia a dia do clube que preside há mais de década, ele conhece Conte desde a época em que era o capitão da Juve, entre 1991 e 2004. 

 

O gesto de erguer o dedão para outra pessoa tem a ver com costume bastante comum entre macacos. Isso porque, na hora de uma encrenca entre bandos e para marcar território, mostram o pênis para seus oponentes. A adaptação pelo homem, então, foi uma forma mais civilizada e racional de fazer o mesmo gesto de “poder”, só que com o dedo (ainda bem!).

 

Descobri que um dos primeiros registros escritos sobre essa antiga prática aparece no ano de 423 a.C, quando o grego Aristófanes, dramaturgo e poeta, escreveu a peça As nuvens, onde o personagem Estrepsíades acaba fazendo a comparação, em meio a uma piada, entre o dedo do meio e o pênis. A ofensa, então, migrou da Grécia para Roma, onde passou a ser conhecida como digitus infamis (dedo obsceno).

 

Mais adiante, ao tentar demonstrar seu desprezo por um político bom de garganta e péssimo de entregas – algo comum no meio –, um intelectual também recorreu ao famoso gesto. Após exibir o dedo médio, ainda esculachou: "Tá aqui pr'ocê, seu feladaputa!" (claro, num linguajar mais chulo, da época). 

 

O fato não aconteceu em debate às vésperas de eleições ou na bancada do telejornal noturno, mas sim no século 4 a.C., em Atenas, quando o filósofo Diógenes disse o que pensava sobre o orador e político Demóstenes. Há dois milênios, portanto, o “maior-de-todos” exibido enquanto os demais dedos são seguros pelo "mata-piolho" foi catalogado pelos historiadores como gesto de insulto e menosprezo.

 

Os romanos chegaram a criar outra expressão para descrevê-lo: digitus impudicus (dedo indecente). Na obra Epigrammata, do poeta latino Marcial, no século 1 d.C., um personagem que é conhecido por ter boa saúde oferece "o dedo indecente" a seus médicos. 

 

Já os franceses foram inovadores e têm a sua própria saudação fálica. O brás d'honneur (braço da honra) é conhecido entre nós como a tropicalíssima banana. E nem se pode aqui culpar nossos antepassados primatas. O ato consiste em apoiar a mão na dobra do outro braço, mantendo o antebraço livre, ereto, de punho fechado, apontando pro céu.

  

Se tivesse que escolher entre palavrão e gesto ofensivo, considero a banana  incluído o estalo da palma da mão na dobra do outro braço  algo bem mais robusto e simbólico do que um simples dedão, ainda que pertença ao proctologista de Bagé (RS), parente de certo analista que labutava nos Pampas nos anos 70.

 

O "maior de todos" ultrapassou barreiras culturais e linguísticas. Para mim, deixou de ser obsceno e não representa o órgão sexual masculino coisa nenhuma. Antes da pandemia, já era visto com naturalidade e graça em tudo que é lugar, de feiras livres a estádios de futebol, passando por shows musicais. 

 

O gesto ganhou sentido bem mais amplo no cotidiano de vários países, inclusive o Brasil. Pode traduzir decepção, desprezo, insatisfação, mágoa, protesto, raiva ou revolta. Não deve ser representado pelo órgão inoperante de alguns machões, sobretudo membros nada viris de um grupo prioritário na ansiosa fila da vacina contra a covid-19. Eu que o diga!

 

Se você acredita nisso e quer estruturar partido politico, seita ou bloco carnavalesco, atrair defensores para a causa, além de expressar sua mais absoluta indignação com “tudo isso que tá aí” (ou com "tudo aquilo que esteve aí"), talvez esta humilde crônica lhe inspire a criar a logomarca. 


Lembre-se: o design deve ser conciso e memorável. Quem sabe escorado em slogan do tipo: “Aqui pra eles, ó!”

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Do pescoço para cima

Semana passada resgatei aqui breve conversa que tive, há 20 anos, com o jornalista Armando Nogueira, quando  lhe ofereci, em vão, mote para que escrevesse acerca de “rostos do futebol”. Dei exemplos, citando os ex-jogadores Edmundo (“É a cara do sujeito atormentado, confuso, furioso, a ponto de explodir...”), Sávio (“Triste, depressivo, parece que vai desabar no choro a qualquer momento...”) e Dodô (“Vive rindo com as sobrancelhas o tempo todo...). Achei que seria relativamente simples para quem, como ele, conhecera figuras marcantes no universo do futebol, como Heleno de Freitas, Manga, Garrincha, Pelé e Marinho Chagas.


Alguns leitores e leitoras que me cotam bem acima de minhas próprias convicções me lançaram o desafio de desenvolver o assunto sugerido lá atrás ao mestre da crônica esportiva. Um deles, inclusive, em mensagem à parte, propôs que ampliasse o tema para “traços da personalidade de ídolos do esporte em geral, a partir da expressão fisionômica sob a pressão da disputa”. 



De cara – sem trocadilho! –, lembrei-me do sorriso largo e pleno de Daiane dos Santos ao aterrissar de um perfeito duplo twist carpado. E do olhar glacial e oscilante de Mike Tyson, no canto do ringue, com as pálpebras apertadas, cubando sua presa antes do bote fatal. Lembrei-me também das orelhas de Michael Phelps, feito asas de um caça supersônico ajustando-se às correntes de vento na iminência do mergulho definitivo. E ainda do jeitão debochado de Usain Bolt, antes de partir como um míssil em direção à linha do horizonte. 

Por preguiça de pensar ou sei lá o quê, contudo, atenho-me ao futebolzinho que vejo desde os anos 70, ao vivo ou pela tevê. E alerto que meus conhecimentos de psicologia igualam-se pelo rodapé com os saberes primários de certas figuras públicas que, sem o menor pudor, desconhecem o tamanho da poltrona em que sentadas e da encrenca histórica em que podem se meter.


Limito-me a uma abordagem meramente especulativa, daquelas de arquibancada no intervalo de uma partida ou de mesa de boteco onde quase tudo se sabe. Nenhum rigor científico. Tudo a ver apenas com o hábito de rabiscar bocas e caras, enquanto usava telefone fixo, antigamente, para ordenar os pensamentos.

 

Filósofos gregos importantes dedicaram-se ao estudo das aparências. Aristóteles e alguns de seus discípulos, por exemplo, chegaram a elaborar teorias sobre como as feições de alguém refletiam seu estado de espírito. “Cabelos macios são indícios de covardia, enquanto fios mais grossos são um sinal de coragem”, afirmavam. O atrevimento, segundo eles, podia ser lido numa pessoa com “olhos brilhantes, bem abertos e com pálpebras injetadas de sangue”. Já um nariz largo, como o focinho de uma vaca, era visto como indicativo de preguiça. Ideias próprias de sábios de uma época e de beócios de hoje (para ficarmos na mesma geografia).
 

Descobriu-se, por exemplo, que as pessoas com níveis mais altos de testosterona tenderiam a ter rostos mais largos, com bochechas maiores, e personalidade mais assertiva, até agressiva. A relação entre o formato do rosto e a dominância era algo bem aceito, tanto num macaco-prego – quanto mais larga a sua cara, mais chances ele teria de ocupar o topo na hierarquia do bando – como no ser humano.

 

Pois bem. Dos que vi jogar futebol, ao vivo ou pela tevê, impressionava-me o rosto fleumático, soberano, dominador de figuras cintilantes como: Ademir da Guia, Alex (ex-Cruzeiro e Palmeiras), Beckenbauer, Carlos Alberto Torres, Falcão, Figueroa, Pelé, Pirlo, Roberto Menezes (ex-CRB), Seedorf, Sócrates e Zidane. 


De outro ângulo, apesar do indiscutível talento, notava o semblante frágil, conformado, avesso a protagonismo, de craques como: Bebeto, Dirceu Lopes, Iniesta, Jorge Mendonça, Kaká, Luizinho (ex-Atlético/MG), Messi, Modric, Sávio, Silas, Valdo e Zé Carlos (ex-Cruzeiro). 


No vértice final de meu triângulo, retratos de uma loucura mal disfarçada em anjos tortos, leves ou furiosos, como: Dadá Maravilha, Diego Maradona, Edilson, Denner, Djalminha, Dunga, Éder, Edmundo, Marinho Chagas, Pepe (ex-Real Madrid), Serginho Chulapa e Vampeta.

 

De uns tempos para cá, com cirurgia plástica e outros procedimentos afins, tornou-se mais complicado, à distância, especular sobre o rosto humano. Além de alterar a história esculpida na face, as mexidas nos traços originais podem interferir na personalidade. Diz um amigo meu, cirurgião plástico, que “uma leve mudança no ângulo do nariz transmite arrogância ou brejeirice”. E que, com frequência, escuta coisas como: “agora, sim, tenho o meu verdadeiro nariz”.

“Cabeças grotescas”, de L. da Vinci

 

Vê-se agora nos estádios, apesar de vazios, um desfile de rostos desfigurados por retoques cosméticos, cortes e pinturas de cabelo e sobrancelhas, tatuagens no pescoço e piercings em orelhas, línguas e narizes – guardados a contragosto apenas durante as partidas , num desfile de gosto duvidoso que atiça a disputa entre egos inchados e motiva torcedores a reverenciar algumas cabeças grotescas, tanto pela arte que praticam como pela forma de se pavonear. Às vezes, mais pela segunda do que pela primeira. 

Nunca se disse a Bruno Henrique, Cristiano Ronaldo, Daniel Alves, D'Alessandro, Gabigol, Guerrero, Ibrahimovic, Neymar, Sérgio Ramos etc., que, de perto, os olhos sempre serão janelas abertas da alma. Que, de forma mais humilde e madura, podem expressar suas histórias de vida, alegrias, coragem, força, espiritualidade, independência, poder e riqueza. Hoje, eles já nem se imaginam noutro patamar em relação aos colegas de profissão. Têm certeza disso.

Anda difícil enxergar o que vai na cabeça e no coração de figuras dessa cepa. Quer dizer, na cabeça, nem tanto. Armando Nogueira deve rir de mim, talvez comentando com outro cronista genial como ele: “Este rapaz não leu o que você escreveu, meu querido anjo pornográfico, quando disse que só o rosto é indecente. Do pescoço para baixo, podia-se andar nu”. 

 

O pior é que li. 

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Pintor de palavras

Ele chegou ao Rio de Janeiro – na época, capital da República – antes dos 20 anos de idade. Pretendia cursar Direito. Muito maior que a expectativa racional de grandes embates nos tribunais, o coração o levaria ao jornalismo, à literatura e ao Botafogo, suas primeiras paixões. 

Acriano de Xapuri, Armando Nogueira (1927 – 2010) é considerado o pai do jornalismo esportivo moderno, o poeta das crônicas esportivas. É reconhecido também como o homem que criou o padrão de telejornalismo que se conhece por aqui e que colocou o Brasil no mesmo patamar das grandes nações no quesito. 

 


Dono de um estilo elegante e original de escrever e falar, escapulia dos lugares-comuns que caracterizavam o texto de boa parte da crônica esportiva brasileira e, sem pressa, catava com a ponta dos dedos e os olhos do coração a figura de linguagem mais apropriada para embalar o seu deslumbramento. 

Disse, por exemplo, que “para Garrincha, a superfície de um lenço era um latifúndio”. Sobre outra cena que lhe comoveu, pintou em cores vivas: “Tu, em campo, parecias tantos, e, no entanto, que encanto! Eras um só: Nilton Santos”. 

 

Diante de um artista desse naipe de prosa, verso, chutes, passes e dribles, não sabia como puxar conversa com ele que, por acaso, se sentara a meu lado nas arquibancadas do clube Marapendi, na Barra da Tijuca, no Rio, naquele tórrido fevereiro de 2001, onde em poucos minutos assistiríamos à primeira partida do confronto entre Brasil e Marrocos pela Copa Davis, entre Gustavo Kuerten (Guga) e Karim Alami.

 

Lembrei-me então de que dissera na tevê que o futebol não aprimorava os caracteres de ninguém, mas os revelava. E que também não gostava de Fórmula 1 porque o capacete escondia a emoção do esportista aprisionado no cockpit de uma máquina. 


Em cima disso, e com a ousadia natural de um aprendiz diante do mestre, arrisquei:

– Bom dia! Gosto muito de seus textos. 

– Que bom! Bom dia.

– Posso dar uma dica?

– Claro!

– Por que não escreve sobre os rostos do futebol?

– Como?

– Veja o Edmundo. É a cara do sujeito atormentado, confuso, furioso, a ponto de explodir...

– Quem mais?

– O Sávio, que jogou no Flamengo e tá no Real Madrid. Triste, depressivo, parece que vai desabar no choro a qualquer momento...

– Interessante...

– E o Dodô, ex-São Paulo? Vive rindo com as sobrancelhas o tempo todo. Parece um moleque com seu brinquedo, mesmo quando apanha dos zagueiros.

– É... – admitiu o cronista, com um sorriso curto.

– E o olhar gelado de Romário? E o Dunga, hein?! 

 

Nada comentou. Dunga havia se aposentado no ano anterior. Ainda que monossilábico, parecia concordar com minha tese de que o tema poderia render uma boa crônica. Achei que aproveitaria a sugestão e produziria outro de seus textos primorosos. Seria fácil para quem, como ele, conheceu outros rostos com traços singulares do mundo do futebol, como: Heleno de Freitas, Manga, Garrincha, Pelé, Marinho Chagas, entre outros.

 

Esperei em vão durante algum tempo. Não deu em nada. O poeta das crônicas esportivas, elegante e educado como poucos, ouviu-me apenas por generosidade e carinho de um ídolo para com seu fã, ou talvez estivesse concentrado na partida de tênis que começaria em instantes. 


Agradeci a atenção e o deixei mergulhado em suas abstrações. Afinal, tanto ele quanto eu estávamos ali para ver Guga que, naquele mesmo 2001, quatro meses mais tarde, gravaria a fogo, ferro e lágrimas, as quatro letras de um singelo apelido na história do tênis mundial ao vencer o espanhol Sergi Bruguera, tornando-se o primeiro brasileiro a conquistar por três vezes o lendário Torneio Roland-Garros, na França.

 

Essa conquista de Guga, aliás, inspirou Armando Nogueira a publicar um texto épico e ao mesmo tempo revelador, intitulado O Picasso do Tênis, em que distribuiu pinceladas de prosa e poesia com tons raros:  

  

“... Cada um com o seu sopro divino... Afinal, se Guga desenha mal, Picasso era péssimo tenista. Jamais acertou uma paralela de esquerda, nem uma deixadinha como a de Guga que goteja ao pé da rede, tênue, mínima. Uma obra de arte...” 





“... E, como no milagre dos pães, Guga começa a distribuir pelos quatro cantos da quadra uma vertiginosa multidão de bolas, cada qual com o seu matiz: as paralelas, como sempre, voluptuosas; as cruzadas, pra variar, românticas; os lobs são meio cínicos, glaciais; as deixadinhas, delicadas, sutis, quase eróticas; os aces – Deus do céu! –, haverá, no tênis, golpe mais perfurante que um ace de Guga?...” 

 

“...Hoje, o universo está aos pés de Guga. Melhor dizendo, nas mãos de Guga. Mãos que manejam o mundo. O Picasso do tênis...”

 

Para mim, estava claro porque o mote que ofereci ao mestre não lhe serviu. O amor por outros esportes, àquela altura, expandia à medida do seu desencanto com o futebol, em especial com o Botafogo dos Dimbas, Tailsons e Tingas de então. E o tênis, que passou a praticar já adulto, de todos os esportes era o que mais o enfeitiçava, graças, inclusive, a Guga. 

 

Guga que, lamentavelmente, ainda em 2001 seria diagnosticado com uma lesão no quadril que o fez se submeter a três cirurgias antes de aposentar-se, em 2008, aos 31 anos, sem recuperar a forma que o colocou no topo do universo.

 


Conheci Guga em 2008, recém-aposentado. Pensei em comentar com ele o histórico texto de Armando Nogueira. Não o fiz e me arrependo disso. Faria diferente, claro, se soubesse que, dois anos depois, o Picasso da crônica esportiva iria pintar em prosa e verso na eternidade
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