quarta-feira, 30 de junho de 2021

Pincéis e tintas

Tá puxado, mas não vou esmorecer. Ando tão descrente de tudo isso que tá aí que me deu vontade de reler um texto publicado aqui neste espaço há mais de dois anos, quando praticamente ninguém antevia o que iria acontecer a partir de um surto viral.

 

Transcrito adiante, o texto nasceu a partir de uma mensagem recebida de um amigo (Artur Roman) e de uma imagem captada por outro amigo, que fez brotar margaridas no asfalto duro e seco de Brasília:

 

Imagem: Dedé Dwight

Afinal, por que ainda sorrimos?

 

Anteontem, um velho amigo me escreveu lembrando que vivemos um tempo em que as imagens tomaram conta das redes sociais. O texto escrito estaria se acomodando à função de simples legenda. Para ele, isso se deve à facilidade de se produzir e compartilhar fotografias, especialmente porque imagens exigem menos esforço cognitivo para sua apreensão. Disse, no final, que produzir textos escritos é uma forma de resistência, o que, para mim, soou como estímulo para seguir adiante com os textos aqui publicados.

Dedé Dwight, outro amigo, minutos antes havia compartilhado comigo a imagem de uma mãe, com a filha nos braços, em um ponto nobre do Distrito Federal onde pedia esmolas. Quando delas se aproximou com a câmera na mão, a mãe se preocupou: “a gente vai sair feia...” Ele prometeu que não.  Ao ver o resultado, emocionou-se, catou sem pensar os trocados que tinha e perguntou ao "fotógrafo" quanto custou o trabalho dele.

A primeira reação de Dedé Dwight, óbvio, foi rejeitar qualquer pagamento, mas lembrou que a imagem que buscava captar era justamente para falar de dignidade –amor-próprio, consciência do próprio valor, honra, brio. Não lhe restou alternativa senão aceitar a oferta.

Ao opinar sobre a fotografia, eu lhe disse que, em si, é pura arte, crônica sem palavras do cotidiano das grandes cidades. Pena que as pessoas costumam generalizar e rotular como exploradoras todas as mães que se valem de crianças nos braços, sob sol ou chuva, para comover a população e pedir esmolas com maior chance de êxito. 

Vi outro dia na TV que em algumas capitais brasileiras, com a proximidade do Natal, a mendicância envolvendo meninos e meninas, expostas a drogas e violência, aumenta em até 80% e existem mulheres que chegam a conseguir R$ 30,00 por dia. É muito difícil extrair dignidade em "escolas" desse tipo.

Evidente que se houvesse oportunidades de emprego, creches e escolas públicas em número compatível com os impostos pagos por todos os brasileiros, seria praticamente impossível para  Dedé Dwight conseguir captar aquela imagem.  

Mas o fato concreto é que ele conseguiu e aí cabe a pergunta: quanto de bem e de paz um sorriso de criança – onde o acaso congelou emoção numa pequena língua – pode trazer para o coração de uma mãe que não possui quase nada além de um peito cheio de amor e leite?

Por isso o "fotógrafo" considerou o pagamento mais honroso que já recebeu por algo que realizou. Impressionado com a atitude digna daquela mãe, resolveu doar os honorários recebidos à própria pagadora, cuja vida continua num ponto qualquer da capital de uma das nações mais desiguais do mundo.

Pobre nação. Estaria seguramente entre as principais potências econômicas se lhe fosse possível engarrafar e exportar a dignidade, a resiliência e a alegria gratuita de seu povo.



Pois bem. Onde andarão aquelas brasileirinhas? Será que sobreviveram à tragédia político-sanitária que nos embrutece como nação ou ao alargamento do fosso de desigualdades de uma pátria-mãe nada gentil?

 

Será que aquela mãe pegou o vírus implacável que já matou mais de meio milhão de brasileiros? Se pegou, será que produziu anticorpos suficientes para derrotá-lo ou foi convencida a engolir logo o kit Covid (hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina etc.)? 

 

Se escapou, será que não comprometeu a saúde de sua criança ao cultivar bactérias super-resistentes, segura de que derrotou o vírus com antibiótico (que só deve ser prescrito para infecção bacteriana), em meio à fumaça do obscurantismo tosco que encobre o céu de anil da pátria amada?

 

Talvez nada disso tenha acontecido. Talvez a imagem que ilustra o texto não passe de uma visão contemporânea de uma santa com uma criança nos braços, encarnadas naquelas figuras frágeis que vagam pelas ruas a pedirem um futuro que nunca chega. 

 

Daquelas que de tanto ver nosso olhar banaliza, vê sem ver, como diria Otto Lara Resende. E deixamos que uma certa indiferença tome assento em nossa sala como se não dependesse de nós pegar pincéis e tintas e dar novas cores à paisagem triste e sem graça que tá aí.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Alex, cabra safado

Todos os seres vivos, inclusive aqueles que são tidos como racionais, já nascem com certos reflexos, isto é, são programados para reagirem diante de algumas circunstâncias.


Quase todo governante, quando pressionado a explicar seus atos e omissões, desequilibra-se, fica tenso. Vê conspiração em cada canto e classifica as pessoas em dois grupos: quem o segue e quem o persegue.


No começo do século passado, o fisiologista e médico russo Ivan Pavlov andou treinando alguns cachorros para que salivassem sem que houvesse nenhuma comida por perto. 

 

Funcionava assim: toda vez que oferecia ração, ele tocava um sino. Depois de alguns dias, os bichos passaram a associar as badaladas à comida. E babavam famintos só de ouvir o sino, mesmo quando as vasilhas estavam vazias. 


Claro, Pavlov não queria apenas sacanear a cachorrada. Fez isso quando revelou à comunidade científica de seu tempo a chamada Teoria dos Reflexos Condicionados.
 

Alex é um velho jornalista acostumado aos bastidores políticos do Distrito Federal. Outro dia me contou que guarda bem vivo um período tórrido de sua vida, embora não admita que se trate de memória "pavloviana". 

 


Dizia ele que, em 1954, o suicídio do presidente Getúlio Vargas pautava o tom do noticiário da Voz do Brasil. Seus pais, durante semanas, assim que jantavam, corriam para o sofá da sala-de-estar e ali ficavam grudados ao rádio.

 

Quando soavam na abertura do noticiário os acordes iniciais da ópera O Guarani, do compositor Carlos Gomes, Alex, que tinha 12 anos, escapulia ligeiro feito um gato até o quarto dos fundos, onde encontraria Elizete, costureira que auxiliava a mãe dele, no calor de seus 17 verões. 

 

No começo, o casal não tinha tanta prática naqueles movimentos exploratórios que já se nasce mais ou menos sabendo, mas o cotidiano no terreno das carícias mútuas favoreceu o avanço das manobras. 

 

Desconfiada, a mãe de Alex toda noite especulava com o marido sobre o sumiço do filho, sempre no mesmo horário, ainda que duvidasse da astúcia de quem mal conseguira ser aprovado no exame de admissão ao ginásio. 

 

O pai acabaria envolvido pelas conjecturas da mãe. O moído diário no ouvido fizera efeito. Um dia, abriu mão dos primeiros minutos do jornal radiofônico e seguiu o rebento para não ter que adotar medida mais drástica, desprovida de uma prova irrefutável. 

 

Encontrou-o em atitude suspeita (alegação bastante comum, na era Vargas), nas apalpações preliminares daquela noite, a alisar as mãos de Elizete onde havia pequenas marcas de pano branco:

— Epa! Que diabo é isso? 

— Nada do que o senhor tá pensando! — apressou-se a moça.

— Tô lendo a mão dela, pai — arriscou o menino.

— Deixe de ser mentiroso, cabra safado! Você é cigano, por acaso! Vá já pro quarto estudar!

  

Mas voltemos a Pavlov, que legou ao mundo a evidência científica de que o condicionamento de reflexos pode ser a base do comportamento humano e de vários problemas mentais. 

 

Para ele, psicóticos sofrem mais do que as pessoas comuns justamente por causa disso. Eles enxergam qualquer estímulo externo — um comentário indesejado, por exemplo — como uma ofensa. E reagem, muitas vezes, de forma desproporcional.

 

Existe em vários países um suporte (com dinheiro público e privado) a blogs e perfis em redes sociais que foram condicionados a disseminar ataques à reputação de adversários, em represália a qualquer crítica que se faça ao establishment. 

 

Esses pelotões de choque se aproveitam da inocência ou estupidez com que muitos embarcam na primeira canoa que passa e no engajamento que postagens desse tipo geram para fazer política de um jeito medíocre e perigoso, fragilizando a própria democracia.

 

Hoje, aos 80 anos, Alex nem parece um jornalista, com um papel importante numa nação carente em todos os sentidos como a nossa. Virou um desses “zé-vai-com-os-outros” e continua sem acreditar "nessa coisa de reflexo condicionado”. Nega a teoria pavloviana, mas diz que ainda fica "em posição de sentido, todo duro", quando escuta O Guarani


O cabra safado segue mentindo. E ja não tem quem lhe mande pro quarto estudar e aprender que ciência não é opinião. É o que se aprende sobre como não se deixar enganar a si mesmo.  

quarta-feira, 16 de junho de 2021

A saga da praga

Era natural que ela estivesse inconformada, depois de três carnavais em Pernambuco, a sentir o asfalto chacoalhar quando o bloco Parceria atravessava a orla de Boa Viagem ou quando despertava ao primeiro canto do Galo da Madrugada, sacudindo pontes e ruas estreitas do Recife Antigo.


Dois carnavais depois na Bahia, a escutar a batida do Olodum e aspirando a poeira que subia quando Chiclete, Brown ou Ivete atiçavam a multidão, era normal que ela sofresse tendo que passar o Carnaval de 2001 em Brasília. Aliás, tanto faria se fosse lá, em Cubatão, Chernobyl ou Calcutá.

 

Compreendi perfeitamente. Na antevéspera do feriadão, ela pedia a todos os santos de prontidão que ele conseguisse passagens aéreas para qualquer capital nordestina, nem que fossem de Vasp ou Varig. Àquela altura, era difícil. 

 

Assim como eu, ele também não era chegado a chuva, suor, cerveja e Engov, ao longo de quatro intermináveis dias de folia e agonia. Ela teria que se conformar. Quem sabe, no sábado estaríamos juntos desossando um pernil de cordeiro na brasa, no quintal de uma casinha em Pirenópolis, no interior de Goiás.

 

Deu tudo errado. Ele conseguiu um par de bilhetes para a capital pernambucana, para imensurável felicidade dela, que lamentava apenas não poder levar-me junto. Eu ficaria bem, me disse, hospedado numa confortável residência de amigos, à beira do Lago Paranoá. 

 

Logo cedo, na sexta-feira, os dois nem se deram conta da tristeza que havia em minha cara quando me deixaram naquele local estranho, entre desconhecidos, antes de sumirem. 


Com o coração partido, injustamente tratado feito cachorro, só me restava, no silêncio de minha revolta, torcer para que a viagem deles fosse “inesquecível”.

 


Soube depois que o comandante da aeronave, após 40 minutos de decolagem, pediu aos passageiros que mantivessem a calma e comunicou que tinha problemas. Iria reduzir altitude e velocidade ao mínimo para poder retornar ao aeroporto de origem.

 

Soube ainda do tititi que se instalou entre os viajantes. Ela, no desespero, chegou a questionar os céus: 

– É isso mesmo? Tanta coisa por dizer, pedir, fazer... Reza, véio, me ajuda! – suplicava, agarrando-se à mão dele. 

– O que cê acha que tô fazendo?

 

A aterrissagem limpa e suave, 55 minutos mais tarde, levou o eufórico comandante à estupidez de afirmar que, felizmente, ninguém teria o nome citado no Jornal Nacional, o que lhe rendeu estrepitosa vaia. 

 

A aeronave passaria por ampla revisão e, caso não fosse possível o reparo, seria substituída. Enquanto isso, os passageiros deveriam aguardar, no restaurante do aeroporto, os procedimentos para reembarque.

 

Ela foi a primeira a se insurgir contra a possibilidade de novo embarque no mesmo avião. E angariou adesões entre as sócias de infortúnio, contando com a persuasão delas sobre seus respectivos parceiros. 


Então decidiu-se entre os viajantes: ou a companhia trocava o equipamento ou teria que devolver os valores recebidos. Na dúvida, dizem, o consumidor sempre tem razão.  

 

Ao meio-dia, um representante da empresa comunicou que a aeronave estava em perfeitas condições e que daria início ao reembarque. O bafafá foi enorme, mas não adiantou. 


Como não deve ter adiantado para ele explicar a ela,  indômita líder da rebelião, que a tripulação não seria louca a ponto de arriscar o próprio pescoço se não estivesse tudo em ordem.

 

Metade dos passageiros desistiu, pediu a devolução das bagagens despachadas e protocolou pedido de reembolso. A outra metade, porém, embarcou. 


Ofereço aqui dois confeitos de hortelã a quem acertar: qual a primeira criatura a chegar ao pé da escada, com medo de ter que apontar para cima os dedinhos fura-bolos, na Esplanada dos Ministérios, atrás do bloco Pacotão

 

Ela me contou depois que, logo após a nova decolagem, pegou no sono. Quando acordou, a aeronave já taxiava na pista do aeroporto de destino, sob os acordes de “voltei, Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço!”

 

De tardezinha, sol a magoar a ferida de minha saudade, uivando as dores de inesperado desprezo, não me envergonho de confessar: eu pulei a cerca! Cometi a maior loucura de minha vida ao decidir atravessar o Lago Paranoá, com destino à Asa Sul, onde morávamos. 

 

Contaram-me mais tarde que os responsáveis por minha hospedagem entraram em pânico, moveram fundos e raimundos antes de noticiarem o meu sumiço. Ela e ele, provavelmente arrependidos do que fizeram, voltaram à Brasília na manhã seguinte, em pleno domingo de Carnaval

 

Assim que pousaram, eles correram e vasculharam cada  quadra do Lago Norte à minha procura. E distribuíram cartazes e faixas pela cidade, chegando a oferecer boa grana a quem desse pistas sobre o meu paradeiro, como se remorso fosse indenizável. 


Só na boca da noite da terça-feira, três dias depois do desaparecimento, souberam que eu fora encontrado, ainda no sábado. Um cidadão, que curtia o anoitecer com seu jet ski no Lago Paranoá, me resgatara semimorto e decidiu aguardar um pouco. 


Nó na madeira, lenha na fogueira que não queria apagar, escapei. Só São Francisco de Assis sabe como.

 

De volta para casa – afinal, errare humanum est, perdoar é canino , fui submetido a terapia intensiva à base de afagos, água fresca e peito de frango com arroz puxado na casca do alho, até me recuperar das lesões resultantes da prova de Triathlon.

 

Guiness Book não homologou o possível recorde – é bem verdade, faltou a etapa do ciclismo –, mas a notícia correu solta na quinta-feira pelos canteiros da Asa Sul, onde voltei a fazer minha caminhada matinal, demarcando meu território a cada poste que encontrava pelo caminho.

 

Aproveitei, é claro, para me gabar junto a algumas amiguinhas peludas, lépidas e perfumadas, confidenciando-lhes detalhes da saga da praga que roguei naquele Carnaval de 2001. Sozinho, nunca mais!

quarta-feira, 9 de junho de 2021

O preço do sossego

Talvez o maior obstáculo que encarei em minha carreira tenha sido administrar uma pequena agência bancária na avenida Durval de Góes Monteiro, no bairro do Tabuleiro dos Martins, principal via de acesso e saída da capital alagoana.


Depois de minha primeira passagem pela Bahia, no início dos anos 90, voltava a Alagoas. A agência era instalada em local bastante visado pela bandidagem por conta do volume circulante de dinheiro numa área em acelerada expansão econômica. Além das facilidades de escape pela rodovia BR-101. 

 

Os bancos, há três décadas, não dispunham de sistemas de capturas de imagens, câmeras de visão noturna, reconhecimento facial e sensores que identificam situações incomuns, como alterações abruptas na temperatura do ambiente. 

  

A Segurança Pública estadual, sabedora de que a maioria dos assaltos acontecia na abertura ou no fechamento das agências, estabelecera uma ronda ostensiva no principal corredor de entrada e saída de Maceió. 

 

Quatro policiais a bordo de uma viatura equipada com rádio e sirene, das 9 às 17 h, cobriam os 12 km entre a antiga rotatória da Polícia Rodoviária Federal e a praça do Centenário, no bairro do Farol.  

 

Ainda assim, o medo era grande porque nunca consegui memorizar o segredo do cofre da tesouraria. Nem faria sentido, claro, anotá-lo em pedaço de papel para consulta quando eventualmente fosse necessário. 


Isso me roubava a paz de espírito para trabalhar, além de algo que não tinha preço: a esperança de ver meus filhos crescerem e, um dia, os netos chegarem. O desassossego nos rouba inclusive os sonhos.

 


Se ocorresse um assalto, dificilmente os bandidos acreditariam que o gerente desconhecia o segredo do cofre. Uma coronhada, na melhor das hipóteses, 
estragaria de vez o que restava de meus miolos em agonia. 


Pior que os iniciantes no antigo ofício de roubar eram mais perigosos que os profissionais cascudos. Temendo perder a liberdade ou ser engolidos pelos "concorrentes de mercado", abusavam de crack e maconha antes do serviço. Um espirro poderia resultar em disparos contra inocentes. 

 

Vi, no entanto, que os policiais que faziam a ronda diária e vinham confirmar conosco se estava tudo sob controle, portavam, à moda “Rambo”, coletes à prova de balas, fuzis, pistolas, cassetetes, baionetas e óculos de sol

 

Mas não conseguiam esconder os sinais de quem não tomava um café-da-manhã reforçado, digno de quem saía cedo pro trabalho sem a menor convicção de que jantaria mais tarde. 

 

O egoísmo, pelo menos em relação a outros bancos e comerciantes das redondezas, acabou falando mais alto. Antes que nos acontecesse o pior, chamei no canto para uma conversa aquele que parecia líder dos demais policiais e propus uma troca bem objetiva: 

— Tá vendo aquela padaria ali na esquina? 

— Tô. 

— A partir de agora ela vai preparar lanche para vocês duas vezes ao dia. De manhã e de tarde. 

— Como assim? 

— Se vocês pararem o Gol aqui na frente, no canteiro central, todo dia às 9h45 e às 15h45 (minutos antes da abertura e do fechamento da agência), cada um vai receber um pão na chapa com queijo, presunto, ovos, tomates e um copo de leite com café. 

— Começa quando? — quis saber o policial, denotando que topara o acordo proposto.

— Hoje mesmo. Mas tem uma coisa: será servido aqui na cantina. Vem uma dupla e a outra fica na viatura lá fora. Depois, trocam de lugar. 

 

Funcionou com a precisão de um Rolex durante alguns meses. Sossego não tem preço. Tem custo, irrisório certas horas.  

 

Um dia, porém, uma quadrilha aos gritos invadiu a agência, ameaçando de morte meio mundo de gente. Eu estava fora, viajando havia dois meses, em missão na cidade-sede da empresa. O lanche fora suspenso por determinação superior, por contenção de despesas ou falta de amparo regulamentar para a sua contabilização. 

 

Soube depois que o chefão da quadrilha arrastou o meu substituto até a tesouraria, sob a mira de uma pistola. Aberto o cofre, só faltou usar detergente e álcool em gel para a limpeza ser completa. Nem moedinhas sobraram.

 

Se estivesse no recinto, não estaria aqui contando o caso, 30 anos depois. Os marginais não engoliriam o argumento de que a memória tende a ser seletiva e só guarda o que lhe convém. Decorar segredo de cofre nunca foi importante para mim. 

 

A parafernália eletrônica disponível nos dias de hoje, se inibe os bandidos menos organizados, ainda não é suficiente para barrar o "cangaço" moderno que volta e meia inferniza cidades e populações em todas as regiões brasileiras.

 

Noto, contudo, que quadrilhas mais sofisticadas têm preferido ações menos cinematográficas, via crimes cibernéticos ou, muito em moda ultimamente, via custeio "complementar" de campanhas políticas, "por fora" do fundão partidário. A reciprocidade compensa.

 

Aliás, é discutível essa história de que o crime não compensa. Isso diz respeito apenas aos que foram descobertos. Nada fala sobre os que nunca foram esclarecidos, seja por ignorância, negligência, má-fé ou conveniência política de interessados.

 

Que os bandidos que circulam por aí, inclusive aqueles que se disfarçam de xerifes acima do bem e do mal, nem tentem me roubar o sossego e a esperança de ver meus netos crescerem num planeta mais arejado, feito de ideias, compaixão e tolerância. O desassossego passou. 

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Vá entender...

Cruzam por acaso no Dique do Tororó, próximo à Fonte Nova, em Salvador, e interrompem a caminhada por causa dos pingos da chuva que engrossam. Há muitos anos não se viam.

– Aguilar?

– Sim! Perdi os cabelos, tô pesadão, mas... Evaldo, né?

 É. De hoje que quero te ver, meu velho. Acabei de ler o livro. Venha cá, quando tu começaste a escrever?

– Rapaz, bote tempo nisso... 

– Tu eras ruim de redação, no ginásio, hein?! 

– Melhorei. Tinha que escrever quase todo dia, no trabalho. Me ajudou muito.

– Agora, sim, tá brocando. Aliás, só tu mesmo, Aguilar, com esta cabeçona da zorra pra me explicar o que tá acontecendo no mundo. 

– Tá me tirando, é?

– De jeito nenhum! Tô é virado no cão. Ó paí ó! – aponta Evaldo para a notícia na telinha.

 

Yuri Tolochki, renomado fisiculturista do Cazaquistão, que já conquistou duas vezes o título Master of Sports, fala sobre a discriminação que vem sofrendo no meio esportivo depois que se casou, em 2020, com uma boneca sexual.




Algum tempo depois do casamento, o bodybuilder se separou da então esposa, Margo e, para espanto da comunidade, agora se relaciona simultaneamente com duas outras bonecas sexuais: Luna e Lola. 

 

Yuri se queixa de que vem sendo hostilizado pelos colegas de profissão, os quais pressionam a federação de seu país a excluí-lo das competições.

 

Acontece que os colegas entendem que o caso é ofensivo à moral e aos bons costumes, e que a associação do nome dele à federação fere sentimentos religiosos, além de manchar a imagem de outros atletas “dignos”.

 

Tudo me leva a crer que o ser humano é um bicho que ainda não deu certo. Todos os outros pensam, exceto o que fala, lê e escreve. 


– Diga aí, qual é o problema? – provoca Aguilar. 

– Oxe! Nossa Senhora me defenda! O mundo tá perto de acabar!

– Isso acontece, Evaldo. Tudo muda, mas nem sempre para pior.

– Como assim?

– Repare bem: o cara tá casado com duas mulheres que não reclamam de nada! Nem do mijo na borda do vaso sanitário, das meias desemparelhadas na gaveta, da toalha molhada na cama, do cabelo no ralo do banheiro, do aipim com casca que ele traz da feira, do farelo de bolacha na sala, da casca de laranja no balcão da pia, da lixeira cheia, da lâmpada queimada, da tesoura cega, do sinal de internet, da água fria do chuveiro...

– Rapaz, juro que não tinha me tocado! Tem mais: duvido que uma dessas mulheres peça a ele para desentupir boca de fogão, aguar jardim, enxugar panelas, levar cachorro pra passear, consertar varal de teto, torneira pingando, telha quebrada ou curto-circuito na rede elétrica, sabendo que o miserável passou a vida ralando como bancário ou professor, por exemplo. 

 

Surpreso com o rumo da conversa, Aguilar ainda tenta segurar a onda:

– Peraí, Evaldo, tô brincando com você. Acabei cutucando o ogro que tem aí dentro, né?

– Porra, velho, a conversa tá mexendo comigo. Tô aqui só castelando na cara de felicidade do fortão. Nenhum pé de sogra, tia, prima, cunhada ou sobrinha dando pitaco na estampa do sofá, no modelo de geladeira, tevê ou abajur. Nem na pintura ou no piso da casa.

– Pegaste ar, hein?! – ri Aguilar, agora surfando na onda que se formava  Será que as bonecas, daqui a 10 ou 15 anos, vão perguntar se o cara ainda sente a mesma coisa que sentia antigamente?

– Aonde, rapaz? E se o cara encher o saco, resolver se picar, nada de ouvir conselho de ninguém, de discutir relação, divórcio litigioso, briga na partilha de bens, guarda de filhos, pensão alimentícia... Tudo na paz, na boa.

– Olhe só, depois nego diz que escritor viaja demais. Quando pensa que não, é o leitor quem lê o que quer, quando quer, como quer e distorce tudo. Fui tirar onda, ó...

– Me poupe. Mas quem sabe este papo rende uma história porreta. Por que não escreves?

– Melhor não. Vai que acordo com um corte na garganta ou uma chaleira de água quente nos ouvidos. Às vezes, minha mulher fica retada com o que escrevo.  

– Acho que me lembro dela. Não é a...

– Sim, ela mesma! Lá do colégio.

– Achava linda.

– Vai dizer que...

– Bronzeada, bocão vermelho, cabelos encaracolados...  E aquele biquini branco que ela usava lá em Stella Maris, hein?!

– Né possível... Tu nunca...

– De jeito nenhum, irmão! Nada de chouriço. Seria crocodilagem. 

– Ah, bom! Ó... Vai fazer o quê no feriadão?

– Nada...

– Aluguei casa de praia lá em Itaparica. Bora ficar de prega, comer moqueca e jogar baralho? Minha mulher vai comigo. Leve a patroa, Evaldo.  

– Aí me quebra, Aguilar. Vou não. O colesterol e a glicose tão lá em cima. Se não fosse a patroa cuidando de mim, de minha comidinha, sei não... Mas reclama de tudo, viu?!

– Aí é lenha...


A chuva passa. Os dois se levantam com um "a gente se vê". E eu, que a tudo assisti por acaso, até tentei alcançar o que aconteceu e traduzir aqui o que escutei. Vá entender esses animais racionais.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Águas de maio

Vi o mar pela primeira vez aos 12 anos, na Avenida da Paz, em Maceió. Meus pais também: ele aos 38 e ela, aos 31 anos. Tudo era novo e deslumbrante para nós, pais e filhos matutos, vindos do interior, naquele verão de 1970.


Ao ver o mar, lembrei-me do açude do Jatobá que abastecia a cidade de Patos, no Sertão paraibano — chão de meus primeiros 10 anos — e onde quase morri afogado, por absoluta inépcia no uso de uma boia de câmara de ar. 

 

Mais que do rio Mundaú, que deslizava entre os partidos de cana-de-açúcar dos tabuleiros de União dos Palmares, na Mata alagoana. Rio cuja água doce e morna me legou boas memórias, mas também ancilostomíase (amarelão) e esquistossomose (doença do caramujo).  

 

A diferença entre o açude, o rio e o mar estava nas águas. No mar, tinham gosto de choro.

 

Sentados na areia, ouvíamos o burburinho do vai-e-vem sem fim das águas. O mar, por mais que fingisse não ver que estava sendo observado por nós, de repente veio de tudo que era lado nos salgar.

 

Meu pai, de calças arregaçadas, nu cintura acima, tomava conta dos primeiros sete filhos, espalhados na areia. Uns rolavam, outros construíam castelos e os mais afoitos, afeitos à correnteza do Mundaú, arriscavam molhar braços e canelas na espuma das marolas.

 

De pouca conversa, como de costume, às vezes penso que ele buscava na linha onde as águas tocam o céu um sinal qualquer que lhe apontasse como calafetar o barco de sua existência, àquela altura fazendo água por todos os furos.

 


Ancorado sob o peso de uma dívida que só crescia desde que perdera um cargo importante em seu trabalho, viu reduzido pela metade o salário até então na medida exata dos gastos com sua prole.

Minha mãe, naquele dia, tinha olhos e braços para o casal caçula de filhos. Cuidava também da provisão de bananas-prata, goiabas e mangas-espada, além de algumas garrafas de água potável. Não havia como dar de comer e beber a tantos nos bares da orla.

 

Nisso, uma das meninas, 6 anos, desaparece naquela profusão de corpos e rostos desconhecidos. Mãe e pai, aflitos, correm em direção às ondas traiçoeiras da praia do Sobral, temendo perdê-la. Todas as crias da ninhada tinham o seu valor. 

 

A paz só seria restabelecida minutos depois. A criança foi encontrada com vida e voltamos todos para o ninho, salgados e cansados, mas felizes. Foi a primeira e única vez em que, juntos, fomos à praia. 

 

Pouco mais de dois anos depois, numa sexta-feira de maio de 1972, meu pai deixaria um bilhete aos colegas — lido apenas na segunda-feira —, justificando-se por que nunca mais voltaria a encontrá-los. 

Não recebera um centavo sequer no contracheque do mês. Compras antecipadas em cooperativa de consumo, farmácia e lojas, mediante consignação em folha de pagamento, rasparam o tacho. Teria de novo pela frente 30 dias batendo à porta de agiotas.

 

Sentia-se, imagino, fatigado e incapaz de evitar o naufrágio a cada novo empréstimo que suplicava, mesmo a juros abusivos, em troca de cheques pré-datados. E se fosse demitido por emissão de cheques sem fundos, o que seria da mulher e dos nove filhos?

 

Na missa do domingo, exausto e vencido pela desesperança, imagino, de joelhos ele chorou diante do altar da capela do bairro da Gruta de Lourdes. Quem sabe, também pediu perdão pelo que faria a si mesmo (e a nós) na madrugada. 

 

Desde que o mundo é mundo, quando o mar está calmo, qualquer um pode ser timoneiro e tocar seu barco. Quando vem a tormenta, uns não conseguem lidar com os mistérios do vai-e-vem sem fim de suas águas.

 

Meio século já se passou e algumas pessoas não compreendem por que não sou — assim como alguns irmãos meus — de me sentar e relaxar na areia de uma praia, embora tenha morado em Recife e Salvador, além de voltar a viver em Maceió, em frente ao mar. 

 

Depois que cresci, rascunhava meu próprio roteiro de viagem quando a poesia de Pessoa me apontou um caminho, bem além da linha onde a águas tocam o céu

 

"Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena..."

 

Hoje, nem eu nem o mar que vi pela primeira vez no Verão de 1970 são os mesmos, mas ainda escuto rumores no vai-e-vem sem fim das águas — com gosto de choro.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Quem diria, hein?!

Era mais um encaixe em minha agenda naquela tarde de quinta-feira, a pedido de uma vizinha lá do bloco onde moro, em Brasília:

– Doutor Nélson, posso mandar entrar a próxima? – quis saber a assistente.

– Por favor...


Mônica, 50 anos, 170 cm e 60 kg – ainda poderosa, mesmo insegura disso , queixava-se de certo mal-estar, um desconforto no peito. Casada com Eduardo, 47, amigo meu desde que aqui cheguei, vindo do Rio.


Conversamos. Soube que é fluente em inglês e alemão, gosta de música (Caetano, Rita Lee), pintura (Van Gogh) e literatura (Bandeira, Drummond, Sartre). Tem também uma queda por magia e meditação. 


Eduardo é diplomata de carreira vinculado ao Itamaraty, desses que vivem em missões especiais no exterior. Viajara duas semanas antes para a China – há muito, a maior compradora e investidora direta no Brasil – e ficaria fora por dois meses.

  

Voltando à consulta, avaliei frequência, ritmo cardíaco, e não percebi batimentos irregulares. Chequei pressão arterial, auscultei coração e o trajeto das carótidas à procura de sopros. Nada. Revi os laudos de alguns exames que ela trouxera. Tudo em ordem. 

 

Orientei-a apenas quanto a atividades físicas e repouso. Ela mal conseguiu disfarçar a decepção:

– Não seria o caso de ressonância, doutor? – sugeriu, dando a entender que já "ouvira" o Google.

– Não precisa. Isso passa.

– Mas doutor, minha respiração anda acelerada. Estou suando frio sem motivo algum. As pernas tremem...

– Vai passar... 


Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração, como questionava um trovador solitário, nos anos 80, entre blocos e botecos do Planalto Central?  


Às dez da noite, após a sopa sem graça dos recém-descasados, eu folheava uma revista qualquer, recostado numa rede, quando me veio à mente minha vizinha, decepcionada com a consulta que me fizera. E mergulhei fundo em abstrações e conjecturas. 


Inspirada, quem sabe, numa página de Simone de Beauvoir sobre sua paixão por Sartre, naquela noite Mônica ligaria para a emergência e diria do calorão que estava sentindo: “Fogo! Fogo!”.  

 

Corpo de Bombeiros então deslocaria viaturas para o prédio onde morávamos, supondo escapamento acidental de gás ou fio desencapado em chamas. 


Os mais ágeis chegariam com suas mangueiras em punho: “Onde? Onde?” Ela, próxima à portaria, estaria sentada, sozinha, com uma taça de Terroir Chardonnay na mão à inútil espera do sono. E apontaria para o próprio peito: “Bem aqui!” 


Seus filhos gêmeos, enquanto isso, notívagos desde a pré-adolescência, curtiam cantos e encantos, bares e pubs de uma cidade iluminada e seca, ainda sem sinais de pandemia no horizonte. 

 

Às onze da noite, ela me contaria, pelo celular, que chegou a ser ameaçada de indiciamento por conta do trote. E aproveitaria para evidenciar sua frustração comigo: "Doutor Nélson Falcão Rodrigues Neto, não estou me sentindo nada bem. Me ajude. Preciso de um tarja preta”


É claro que aguçaria os ouvidos, como acontece toda vez que me chamam pelo nome completo. "Dê um pulinho aqui, no 606" – diria eu, em sinal de boa vontade e cuidado. 

 

Apesar do adiantado da hora, não me negaria a socorrê-la. Mas o que pensaria o porteiro se a visse batendo em minha porta quase à meia noite, sabendo que seu marido viajara e que os filhos só chegariam em casa às quatro da madrugada?

 

Para evitar mal-entendido, eu teria que dar um jeito de cobrir a câmera do hall dos elevadores com fita isolante ou esparadrapo. Mas como faria isso sem ser visto? Não seria prudente contar com a distração do porteiro, a cochilar na guarita ao som do último telejornal.

 

Pouco depois, lá estaria ela diante de mim. Eu buscaria no Spotify o melhor de Legião Urbana e, do meu jeito, tentaria convencê-la a evitar o ansiolítico:

– Tá bonita neste hobby de chambre, hein?

– Você acha? 

– Ele ligou?

– Ainda não.

– Tá mais calma, agora? 

– Mais ou menos.

 Precisa mesmo do Rivotril?

– Doutor  diria ela, sorrindo à Mona Lisa , vai me ajudar ou tá querendo outra coisa? 

  


Ah, se meu avô fosse vivo, se visse e ouvisse isso! Teria aqui mote perfeito para mais uma de suas obras. Escritor, dramaturgo e cronista de costumes, diria que tudo não passara de um enorme mal-entendido. Talvez arrematasse reafirmando que "os homens mentiriam menos se as mulheres fizessem menos perguntas".
 

Confesso que me sentiria o pior dos cafajestes se me aproveitasse da fragilidade dela naquele momento e colocasse em risco não só a minha reputação, como a amizade com o seu marido. Seria muita sem-vergonhice de minha parte. 


"A vida como ela é", diria meu avô, a esfregar as mãos enrugadas e sábias. E quem ousaria dizer que ele não tinha razão?


 


 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

Novas regras pro jogo

Pense: o que leva uma criatura a querer ser presidente de uma das repúblicas mais desiguais do mundo, em flagelo econômico-financeiro, ambiental e sanitário? A querer, não! A sonhar de olhos abertos, com dentes e unhas, em sentar-se no trono pela primeira, segunda ou terceira vez.    

Seja qual for o resultado, você tem dúvida de que a manifestação da soberania popular em 2022 deverá ser questionada? Que denúncias de supostas fraudes darão origem a novas feridas sobre antigas cicatrizes e a bate-bocas intermináveis nos tribunais de sempre?

 

Urnas eletrônicas existem há um quarto de século e fazem parte do sistema de votação mais informatizado do planeta. A confiabilidade é boa, tanto que virou referência mundial. Já aconteceu inclusive o empréstimo de urnas a Argentina, Costa Rica, Equador, Guiné-Bissau, Haiti, México, Paraguai etc.

 

Mas há quem defenda o retorno do voto em papel. Um dos candidatos disse outro dia que “pretende” mudar o processo a partir das próximas eleições, com a volta das cédulas impressas que, na opinião dele, seriam mais confiáveis e abririam menos espaço para fraudes. 

Ocorre que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) entende que retornar ao voto impresso seria “um retrocesso, como comprar um videocassete” e que “fraude havia com o voto impresso”.


Qual é a saída? A esta altura, quase todo mundo tem a sua opinião sobre cada uma das criaturas postulantes ao cargo. Elas, no entanto, tentarão construir uma imagem que oscilará entre o que são, o que gostariam de ser e o que gostariam que os outros acreditassem que são. 

 


Assim que o jogo – do qual você participa até quando se omite – começar pra valer, cada uma delas irá oferecer seu prato feito e tentará lhe convencer a engolir. E mais: a dizer que gostou. 

Como gostar de uma comida cujo tempero básico é exercitar o dom de iludir, onde se é livre para dizer e desdizer, fazer e desfazer o que bem entender? Como descobrir o que se esconde nas palavras ditas em desarmonia com o aquilo que se sente, pensa ou faz? 

 

Ano que vem, de novo, cada recanto da velha pátria mãe tão distraída vai se arrepiar. As praças e ruas estarão apinhadas de seguidores de variadas seitas, mascarados ou não, independente da variante viral da hora, a ruminarem sentimentos como inveja, ódio e vingança. 

 

Millôr dizia que a diferença entre Direita e Esquerda é que um lado acredita cegamente em tudo que ensinaram, e o outro acredita cegamente em tudo que ensina. Não existe nada mais inútil do que tentar convencê-las disso, imagino.

 

À parte a fratura de braços e pernas que hoje quebra a nação, ela também se divide em outros dois grupos: os que desprezam o Big Brother Brasil e os que não perdem (tribo bem maior) por nada nesse mundo um dia do reality show.

 

Com o final da edição de 2021, me contaram que foi feita uma pesquisa envolvendo 498 pessoas cujas características (idade, sexo, classe social, escolaridade etc.) refletiriam o universo brasileiro. Apurou-se que 80,8% vivenciaram emoções indesejáveis: indignação, nojo, raiva, repúdio, dentre outras. 


Mas para 60,6% dessas pessoas – números quebrados dão sempre maior credibilidade –, o melhor do jogo é poder bisbilhotar as entranhas dos jogadores, vigiados por câmeras 24 horas, sem se comunicar com ninguém ou usar qualquer outro meio para saber o que se passa fora do confinamento. 

 

Apurou-se ainda que, se o BBB desperta sentimentos ruins, propicia também entretenimento e prazer. E quem sou eu para questionar o subsolo das emoções de nosso heróico povo.

 

Dito tudo isso, não seria a hora de uma mexida nas regras do jogo para as próximas eleições presidenciais? Quem sabe confinar as criaturas interessadas, por 30 dias, numa versão especial do reality show, com direito a baixarias, edredons e paredões.

 

Pós-graduado em Big Brother Brasil, duvida-se que um heróico e criativo povo, com seu brado retumbante, não descubra quem é quem e escolha a criatura mais interessante para subir a rampa do Planalto sob os raios fúlgidos do sol.


Não se sabe ainda quem vencerá o jogo com base nas novas regras, mas, pouco importa de que lado sopre o vento, o Centrão – outra criatura polêmica e insaciável, incrustada no Congresso Nacional – já esfrega as mãos nos bastidores. Tudo em nome da governabilidade, é lógico!


 


quarta-feira, 5 de maio de 2021

Água do mesmo pote

Descobri que a água do pote que bebia Raimunda e seu irmão Tonho Tertulino era a mesma que matava a sede de Hilda, prima deles e mãe de uma certa criança que nasceu pouco antes da metade do século passado e, aos 11 anos, deixou a pequenina Quixeramobim para morar em Fortaleza, capital cearense. 

 


Mais adiante, o filho de Hilda cursaria faculdade e, a partir de 1971, viveria entre Brasília, São Paulo e Rio, tornando-se, além de arquiteto e professor universitário, um infatigável operário das artes.

 

Tal como a prima Hilda e a irmã Raimunda, Tonho Tertulino (avô de meus filhos, mais tarde) trazia dentro de si uma alma generosa e modesta desde a mais tenra idade entre pedras que cantam, colinas escuras e quentes no Alto Sertão de seu Ceará. 

 

Ainda moleque, Tonho Tertulino foi dispensado pelo pai de trabalhar no balcão do armazém da família. Movido pela compaixão com o estado crônico de penúria de alguns conterrâneos, ele andava isentando de pagamento os mais frágeis que não tinham como levar o essencial. 

 

Buscou guarida no Seminário Diocesano de Quixadá, onde quase virou padre. Mas se deu conta de que a carne não era tão forte assim e destoava do sacerdócio exigido pela Igreja Católica. Resolveu então prestar concurso para o Banco do Brasil, migrando em seguida para Alagoas.

 

Lá encontrou sua cara-metade, com quem se casou, teve um filho e duas filhas. Desapegado de bens materiais e sem maiores ambições em termos profissionais, nunca correu atrás de cargos e poder. Foram 30 anos como simples escriturário até se aposentar, em agosto de 1975.

O aconchego da família, os cuidados com a comida e a bebida, a missa nas tardes de sábado, o riso frouxo com Os Trapalhões nas noites de domingo, a prosa com cachorros e gatos da vizinhança e o lenço branco, para assoar o nariz ou enxugar o suor, completavam seu kit felicidade.

Depois que se aposentou, houve até quem lhe prevenisse que não sobreviveria muito tempo, habituado que estava à rotina do trabalho bancário. Apenas sorriu a seu modo contido. Em silêncio, porém,  já havia costurado um arrojado projeto para a nova etapa: dar vida ao solo arenoso do quintal da casa em que morava no bairro do Farol, na capital alagoana, reciclando todo o lixo orgânico ali produzido. 

Menos de uma década depois, oferecia aos netos a fartura de cocos-da-baía, carambolas, goiabas, jambos e pitangas, além de roseiras e antúrios à sombra do pé de piriquiti. Isso sem perder de vista os cuidados com os filhotes de cágados que, tão distraídos quanto ele, a cada primeira trovoada de janeiro se arrastavam sem pressa de chegar.

 

Seus netos, hoje adultos, reconhecem que ele personificava o legítimo avô-raiz. Daqueles que, distante dos olhos da esposa-avó, lhes consentia correr pequenos riscos como alimentar cães e gatos de rua, trepar na goiabeira, tomar banho de chuva e acender fogueiras nas noites juninas.

 

Tonho Tertulino não quis acordar numa manhã de agosto de 2005, aos 86 anos, 30 depois de se aposentar. Tinha o rosto leve de quem fez quase tudo o que gostaria de ter feito. Sua alma, generosa e modesta, virou passarinho e bateu asas rumo ao céu, onde mais tarde reencontraria a irmã Raimunda e a prima Hilda. 

 

Semana passada descobri que o filho de sua prima Hilda está morando em Fortaleza. Chama-se Fausto Nilo, compositor, poeta e arquiteto, que entre as estrelas de meu drama foi anjo azul e parceiro de gente como Amelinha, Armandinho, Belchior, Dominguinhos, Elba Ramalho, Fagner, Gal Costa, Geraldo Azevedo, Moraes Moreira, Simone e Zeca Baleiro. A caravana do deserto que atravessa o coração dos migrantes lhe carregou de volta aos sete mares do seu Ceará. 

 


Descobri ainda que, mesmo sem ter convivido com os primos Tonho Tertulino e Raimunda, o filho de Hilda também bebeu água de pote, comeu pão e poesia, de um jeito todo quixeramobinense de ser:

 

“... Felicidade é uma cidade pequenina,
é uma casinha, é uma colina,
qualquer lugar que se ilumina
quando a gente quer amar.

 

Se a vida fosse trabalhar nessa oficina,
fazer menino ou menina, edifício e maracá,
virtude e vício, liberdade e precipício,
fazer pão, fazer comício, fazer gol e namorar...” 

 

“... Numa paisagem entre o pão e a poesia,
entre o quero e o não queria, entre a terra e o luar.
Não é na guerra, nem saudade, nem futuro,
é o amor no pé do muro sem ninguém policiar...”

 

Agora me pego aqui numa dúvida danada: e se a proximidade silenciosa entre eles tivesse sido maior? Pena que o “se” não conta nos encontros e desencontros pelo mundo afora. Nem mesmo para aqueles que beberam água de pote em Quixeramobim.