quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Minha mãe deve gostar

Dia desses ela me ligou com a voz de quem estava prestes a chorar:

– Meu filho, você viu?

– O quê, mãe?

– Ele morreu... E agora, o que vai ser de Glória?

 

Lamentava a morte do ator Tarcísio Meira, aos 85 anos, vítima da Covid-19. Sua mulher, a atriz Glória Menezes, também fora internada com a doença, mas teve sintomas leves. O casal já havia sido vacinado, porém a situação do marido agravou-se porque, além de cardiopata, sofria de enfisema e insuficiência renal.

 

Minha mãe é daquelas que não conseguem separar a realidade da ficção quando se trata de telenovelas. Se fosse possível, de máscara e devidamente lambuzada de álcool em gel, levaria pessoalmente seu abraço à família enlutada. 

 

Lembrei-me dela no bairro da Gruta, em Maceió, há 45 anos, assistindo ao último capítulo da novela Pecado Capital, da TV Globo. O taxista Carlão (Francisco Cuoco) tentava livrar-se de uma mala de dinheiro – deixada em seu carro, havia meses, por assaltantes em fuga – nas obras do metrô para, em seguida, fazer uma denúncia anônima à polícia. Não deu tempo: foi morto a tiros por um sujeito chamado Tonho Alicate, que rapidamente fugiu do local. Minha mãe não se conteve:

– Pega esse cachorro miserável! 

 

Já vinha indignada porque a suburbana Lucinha (Beth Faria), o grande amor da vida de Carlão, o trocara pelo milionário Salviano (Lima Duarte). O taxista “herdara” por acaso o butim largado em seu carro e resolveu investir numa frota o que antes cogitou devolver à polícia. Pretendia enriquecer e reconquistar a sua amada. E minha mãe virou profetisa:

– Carlão vai acabar se lascando. Essa moça é interesseira, oportunista... Quer é o dinheiro desse velho feio! – referindo-se a Salviano. 

 

Em Pernambuco, 20 anos depois, quando visitava a Usina Pumaty, conheci um de seus principais acionistas, que agia bem parecido com minha mãe. Olhava com insistência para o relógio, enquanto explicava o processo de destilação de álcool, até revelar que tinha pressa. Todo dia, pontualmente às cinco da tarde, voltava para a casa para tomar banho, jantar e ver novelas.

 

Ele havia assistido Ídolos de Pano (1975), exibida pela TV Tupi, onde o vilão Jean (Dennis Carvalho) queria afastar o mocinho, seu próprio irmão Luciano (Tony Ramos), da linha sucessória familiar. Os dois eram os únicos herdeiros de uma rica empresária muito doente. 

 

Dois anos depois a TV Globo exibiria Locomotivas, onde Netinho (o mesmo Dennis Carvalho), sufocado por Margarida (Mirian Pires), sua devotada e humilde mãe, tratava-a muito mal. O usineiro não aguenta e desabafa:

– Esse rapaz nunca me enganou. Não vale nada! 

– Isso é novela! – diz alguém.

– Sei não... Ninguém faz um papel desses com a própria mãe se não for um cabra safado!

 

O poeta Carlos Drummond de Andrade, bem no começo dos anos 70, também revelava grande interesse nos folhetins eletrônicos, mas por outro motivo. Era a época da famosa "gripe" de O Pasquim, ironia com que se justificava a ausência de vários jornalistas presos durante o governo Médici, quando alguns intelectuais (Antonio Callado, Chico Buarque, Drummond, Glauber Rocha e outros) mantiveram "vivo" o jornal com seus textos.

 

Diferente da chamada elite intelectual – que via as telenovelas com reservas –, o poeta percebeu a influência que poderia ter na educação política da sociedade. Só aqui a ficção era consumida diariamente no horário nobre e com tanto espaço. No resto do mundo, foram os livros que saciaram a fome por ficção. 

 

A TV aqui chegou antes de o povo se alfabetizar. Sempre prevaleceu uma tradição mais oral que escrita. Prefere-se ouvir o padre ou o pastor falar a interpretar a Bíblia. Opta-se por contar um caso ao pé-de-ouvido a escrever. Em vez de ler, assiste-se às novelas, o que leva o brasileiro a se identificar bastante com alguns personagens.

 

Quem não recorda o prefeito Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) e o pistoleiro Zeca Diabo (Lima Duarte), personagens de O Bem-Amado, novela de Dias Gomes exibida pela TV Globo em 1973? O autor, aliás, teve que mexer no roteiro por ingerência de Brasília. Proibiu-se que a palavra “coronel” fosse pronunciada. “Coronel” era a forma como o prefeito era tratado, principalmente por Zeca Diabo. 

 

Vedou-se também o termo "capitão" (como Odorico tratava Zeca Diabo). Alguém achou que "capitão" e "coronel" se referiam a patentes militares, quando, no caso, aludiam a políticos ou grandes fazendeiros e alguns capatazes detentores de poder junto aos currais eleitorais dos tempos do voto de cabresto.


Com seus protagonistas (do bem ou do mal), vejo que as telenovelas ainda tocam o coração de pessoas simples como minha mãe. 


Torço para que algum autor se inspire na biografia do irreverente jornalista Apparício Torelly (1895 – 1971), o Barão de Itararé, cujas tiradas ainda desnudam muita gente: 
“Todo homem que se vende recebe muito mais do que vale”. 
“Tambor faz muito barulho mas é vazio por dentro”.
“Se há um idiota no poder é porque os que o elegeram estão bem representados”. 


Como viu muita coisa nas últimas seis ou sete décadas, minha mãe deve gostar.

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O benefício da dúvida

Nunca tive o sono leve. Pelo contrário, trabalhando duro desde moço, batia na cama e só acordava no dia seguinte. Hoje, aos 86 anos, acordo ainda no breu pensando no que me resta por fazer. Velho não deve perder tempo. 

Aprendi que a morte não chega na velhice. Vem em prestações. Morri um pouco quando fiquei viúvo pela primeira vez, aos 50 anos e, pela segunda, aos 70. Minhas ex-mulheres partiram cedo, levando pedaços de mim. 

 

O que sobrou seguiu em frente. Mas já não faço planos para daqui a um, dois anos. Se alguém  me convida para viajar no próximo verão, disfarço ou invento uma desculpa qualquer e me pergunto: vai dar? 

 

Não sou de me queixar de nada, a não ser ter que aturar certas figuras públicas no último estágio evolutivo da imbecilidade humana. Uso meu tempo lendo bons livros, escrevendo memórias, ouvindo músicas, vendo futebol e telejornais. 

 

Antes da pandemia, costumava me reunir bem cedo com uns caras divertidos e desocupados como eu, das cinco às sete, no que chamamos de Senadinho  banca de revistas à beira-mar onde se debate desde a bunda de quem passa até as grandes questões nacionais. 


Veio o coronavírus e tive que me resguardar. Soube que os nobres "senadores" já voltaram do recesso. Com a paralisação de minhas caminhadas matinais, joelhos e tornozelos abriram falência, em conluio com a coluna lombar, dificultando-me até aparar as unhas dos pés ou amarrar o cadarço do tênis. 

Decidi contratar uma pessoa para não depender da ajuda de filhos e netos. Falo de Doralice, 35 anos, uma simpática pernambucana de Macaparana, indicada por meu geriatra de estimação (sim, há um estágio na vida em que o principal amigo da gente é o geriatra; o cachorro vem depois). 

Nunca havia trabalhado como cuidadora. Era diarista, mas pegou covid-19 e, mesmo curada, deixou de ser acionada pelas pessoas a quem servia. Resolvi então fazer uma experiência, por 90 dias, a partir de março deste ano.

 

Em abril, fui surpreendido por Doralice, preocupada com a possibilidade de ser substituída e alistar-se no indecente exército de 15 milhões de desempregados deste País:

– Seu Pinheiro, por tudo que é mais sagrado, não me demita!  

– O que houve, menina? 

– Eu não queria, mas...

– Aconteceu o quê?

– Tô grávida...

– Como foi isso?

– Vai dizer que o senhor não lembra mais como isso acontece?

– Não é isso...

– Meu namorado... Anda num fogo medonho, mesmo quando chego em casa morta de cansada.

– E agora?

– Agora, tô eu aqui sem saber o que vai ser de mim.

– Por quê o medo?

– Sei lá! Como vou cuidar do senhor e da criança? 

– Tem jeito para tudo... Menos para morte.

 

Falei da boca para fora para aquietá-la. De fato, tínhamos um problema. As dores nas minhas articulações e na coluna lombar só aumentavam e minha dependência, também. O que ela fará quando tiver que escolher entre me ajudar a tomar meus remédios ou oferecer o peito à criança?

 

O namorado dela não conseguia emprego. Tinha antecedentes criminais. Tocava uma barraca de milho cozido e coco verde que ficou fechada por mais de seis meses por causa da pandemia. E mesmo com a reabertura na virada do ano, as vendas despencaram.

 

Apesar do risco, optei por ficar com Doralice. Cancelei o contrato de experiência e assinei sua carteira profissional por prazo indeterminado. Coincidiu que o namorado, na semana seguinte, sofreu uma denúncia anônima e está preso, cumprindo dura pena por tráfico internacional de drogas. Existe, pois, razoável chance de ele nem chegar a conhecer o filho.

 

Como nunca dei espaço a meus familiares para que se metam em minha vida, e sensibilizado com o completo desamparo de Doralice, ofereci a ela a possibilidade de prestar seus serviços morando em meu apartamento – com todo respeito, óbvio. Disse-lhe até que fazia questão, mais adiante e havendo tempo, de passear com o carrinho pelas calçadas do bairro com “meu” afilhado, o que vai me dar a sensação de eternidade e poder na área.  


Ela compreendeu perfeitamente. Nisso, bateu uma vontade danada de abrir uma garrafa de vinho e ouvir João Gilberto cantando Caymmi: 

"Doralice, eu bem que te disse

Amar é tolice, é bobagem, ilusão..."

 

Ilustração: UMor
Ilustração: UMOR

Três meses de fisioterapia depois, ando dormindo feito criança e, semana passada, com a ajuda dela, voltei às caminhadas matinais. Não vou negar, morro de rir só imaginando o que vai na cabeça dos curiosos, inclusive meus nobres colegas “senadores”, quando passamos de braços dados: eu, a disfarçar minhas dores e Doralice, com um barrigão daqueles. 

Como a dúvida me favorece, melhor deixar assim.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Anjos do bem-estar

– Meu filho, corte esse cabelo... Você tá parecendo um mascate!

– O que é isso? – perguntei.

– É aquele vendedor ambulante que oferece bugigangas de porta em porta, como o Ariovaldo – personagem de Gianfrancesco Guarnieri em “Meu Pé de Laranja Lima”, telenovela exibida no começo dos anos 70 pela extinta TV Tupi.

 

Deu-se assim meu primeiro contato com Dr. Casado, chefe do serviço médico da agência do Banco do Brasil, em Maceió. 


No horário comercial, o ambulatório atendia não só aos funcionários em suas pequenas queixas (resfriado, dor de cabeça, de barriga etc.), como também a familiares que precisassem de avaliação clínica ou serviços de enfermagem.

 

Ele e outros pelo País afora foram precursores do chamado médico de família no âmbito corporativo. Tinham o papel de evitar que as pessoas faltassem ao trabalho por uma tolice qualquer ou por conta de consultas, exames e procedimentos que pudessem trazer mais riscos do que benefícios. 

 


O tom paternal, a confiança que inspirava e o perfil generalista eram traços nítidos naqueles que atuavam "até" como médicos. Serviam, também, de confidentes, conselheiros, padres e psicólogos nas catedrais de antigamente, algumas com mais de 300 almas tecendo suas histórias.

Dr. Casado nunca prescreveu uma injeção para ninguém. Dizia, com a senioridade de pediatra  acostumado a lidar com seres humanos em construção, que o caminho natural para a entrada de medicamentos era a boca. Simples, não? E ai de quem duvidasse disso!

 

Certo dia uma mãe chegou com o filho no colo e lhe pediu que receitasse algumas vitaminas. Ouviu o que não queria ouvir: 

– Esqueça as farmácias. Vitamina para criança se compra no mercado, minha senhora. É banana, é beterraba, é cenoura, é laranja, é tomate... 

 

Maerbal, o perito de balanços, soube do episódio e comentaria o caso com ele pouco depois:

– Doutor, isso acontece...

– Pois é. Você não faz ideia da quantidade de mães que chegam aqui, por exemplo, dizendo que o filho precisa de exame de sangue.  

– E aí?

– Então, eu pergunto: que exame? E elas: de sangue, doutor, de sangue! O senhor não sabe o que é exame de sangue?

 

Agripino, contínuo que cuidava da recepção e expedição de documentos, queixava-se de dor de garganta e calafrio. Foi atendido pelo Dr. Casado, que lhe prescreveu alguns remédios básicos para alívio dos sintomas gripais.

  

Três dias adiante, Agripino volta e diz que os remédios não surtiram efeito. E já foi mostrando uma garrafada daquelas que misturam alho, cebola, gengibre, limão, mel, sabugueiro e outros: 

– Um amigo me deu, doutor. Será que faz mal?

– Nem bem... – Resumiu o médico.

Na semana seguinte, o próprio Dr. Casado gripa, faz de tudo e nada de a virose ceder. Então, com a humildade dos sábios, liga para Agripino:

– Como é mesmo o nome daquele seu amigo da garrafada? 

 

Havia outro médico no serviço, chamado Dr. Zé Maria, membro da Academia Alagoana de Letras, cuja disposição para o trabalho era nula nas primeiras horas da tarde. Nem fechava mais a porta do consultório para tirar uma boa soneca, com sibilante ronco ouvido na sala de espera.

 

Numa tarde, Armando, outro contínuo, não suportando a enxaqueca, cutuca o braço de Dr. Zé Maria em pleno cochilo:

– Doutor, o que eu tomo para acabar com esta dor de cabeça miserável?

– Vá naquele armário e pegue um Melhoral – aponta o médico, sem abrir os olhos.

– Mas doutor, só vejo ali daquele comprimido rosinha (Melhoral Infantil).

– Tome dois... Mas me deixe sossegado, volte mais tarde.

 

Nunca esqueci desses anjos do bem-estar. Quando adolescente, quis até ser um deles – médico e empregado de uma grande empresa. Em Brasília, 40 anos depois, trabalhei na Cassi (operadora de planos de saúde de funcionários do BB e familiares) e soube de outras histórias envolvendo esses profissionais, com importante contribuição para a melhoria do ambiente corporativo.

 

Um deles atuara na agência central de Brasília e já havia muitos anos abandonado a profissão. Descansava então numa chácara nos arredores do Distrito Federal.

 

Certa noite, bateram à porta. Ele, arrastando os pés, foi ver quem era: deu de cara com um vizinho de uma chácara próxima, passando o fim de semana com a família.

– Doutor, acuda pelo amor de Deus, minha mulher vai dar à luz!

– Ih, meu filho, tem anos que não mexo com isso.

– Só tem o senhor aqui por perto. Eu não entendo nada. Pelo menos ajuda minha mulher, corre lá.

 

O velhinho demorou meia hora para encontrar os óculos, percorrer o trajeto até a casa do vizinho, higienizar as mãos e chegar ao quarto do casal. 

 

Fechou-se lá com a mulher e cuidou de tudo. O parto foi perfeito, sem intercorrências. Ele deitou a criança ao lado da mãe e foi avisar ao marido.

– Deu certo. Nasceu em paz e está tudo bem.

– É menino ou menina, doutor? – quis saber o pai aflito.

– Olhe aqui, meu rapaz, se não me falha a memória é menina!

 

E foi-se embora como se nada tivesse acontecido.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Por acaso, aconteceu

Cansado e morto de sono naquela manhã de sábado, 24 de abril de 1982, mesmo assim acabei convencido por minha mulher a não desistir da prova interna de ascensão profissional ao nível médio da carreira administrativa do banco em que trabalhava. 

Cogitei também não fazer a prova porque, se fosse aprovado, teria que assumir as novas funções no interior de Alagoas. Não havia vagas nas agências da capital, onde também estudava.

 

Na noite anterior, tinha socorrido uma amiga e vizinha nossa, por volta das 22 h, que sofrera as dores de seu primeiro parto. O marido costumava escapulir, com destino ignorado, nas noites mornas (ou tórridas, sei lá!) de sexta-feira.

 

Por ser médica, nossa vizinha sabia que o parto normal seria o melhor para si e para os gêmeos que se apressaram, porque, além de a recuperação ser mais rápida, o risco de infecção seria menor. Haveria menos sangramento, menos dores, permitindo-lhe cuidar logo das crianças. No entanto, concluiu-se que uma cesariana seria a opção mais segura.

 

Apesar do adequado acompanhamento pré-natal, logo após o nascimento instalou-se um perigoso quadro de eclâmpsia, doença caracterizada por alterações na pressão arterial e repetidos episódios de convulsões que causam dificuldades respiratórias, insuficiência de fígado, rins etc. Poderia ser fatal.

 

Às duas da madrugada, com o maridão ainda em lugar incerto e não sabido, tive que ir às pressas ao único banco de sangue da cidade em busca de uma chamada papa de hemácias. A transfusão deveria ser feita o mais urgente possível para corrigir anemia grave. Logo eu que, até ali, só ouvira falar de papa de aveia ou de amido de milho, que me obrigavam a engolir quando criança.

 

A responsável pelo banco de sangue não podia ceder as únicas bolsas disponíveis do tipo pretendido, que estavam reservadas para uma cirurgia marcada para as dez da manhã. Só depois de obstinada negociação (além de compromisso por mim firmado) consegui convencê-la de que bem cedinho estaria de volta com pelo menos quatro doadores para repor o estoque. 

 

O dia raiava quando a equipe médica nos trouxe a notícia de que a situação estava sob controle e que nossa vizinha, devidamente medicada, finalmente cochilava, iniciando o processo de recuperação daquela longa noite. Tudo ia bem, exceto quanto ao débito pendente junto ao banco de sangue.

 

Confesso que ao assumir o compromisso de repor o estoque de sangue engendrei um plano de ação de acentuado risco porque dependeria de terceiros, em particular de um amigo de infância, oficial militar vinculado ao 59º Batalhão de Infantaria Motorizado, em Maceió. 

 

Antes das cinco e meia da manhã, lá estava eu batendo palmas à porta desse amigo a pedir ajuda. Seguimos para o quartel, onde um razoável contingente de soldados se preparava para as tarefas repetitivas e inúteis do dia. Foram então interrompidos pelo tenente: “Quem se dispõe a doar sangue do tipo...?” – indagou.

 

Como não apareceram voluntários, o tenente refez a pergunta agregando uma informação importante, sobretudo na manhã de um sábado ensolarado, o que de imediato levou meia dúzia de interessados a darem um passo à frente: “...Os cinco primeiros serão dispensados dos serviços do dia”. 

 

Às sete da manhã, coleta de sangue processada, honrei meu compromisso com pontualidade suíça: o saldo do banco estava devidamente recomposto do desfalque durante a madrugada.

 

Voltei então para casa disposto a tomar um banho morno, beber um café com leite e ir direto para a cama dormir três ou quatro horas, antes de retornar à maternidade para visitar a convalescente e seus rebentos. Foi quando minha mulher, mesmo reconhecendo a fadiga em pessoa, convenceu-me a não desistir da prova interna de ascensão profissional. 

 

Imaginei que o processo seletivo traria questões sobre rotinas de pagamento, práticas contábeis, saques, atendimento a clientes, análise de operações de crédito etc. Mas, em 1982, não se falava em coisas como: consultoria financeira ou venda de produtos como planos de capitalização, seguros e consórcios. Nada disso!

 

O desafio era outro, inédito para os candidatos: assumindo o papel de gerente de uma agência, cada um deveria redigir uma carta-resposta, com pelo menos 20 linhas, negando à diretoria de RH da empresa, de forma ampla e circunstanciada, pedido de cessão de dois funcionários para trabalharem noutra localidade.

 

Bem mais tarde aprendi que ficcionista não é apenas quem escreve literatura. O ficcionista tem uma conduta perante a escrita que, em sentido mais amplo, é uma atitude diante da própria vida. Se o poeta necessita de clareza, concisão e sensibilidade, o ficcionista precisa disso tudo e mais: de vivência. 



Por acaso, eu tinha uma boa história para contar. Imaginei minha vizinha como se fosse uma devotada servidora do banco, casada com outro colega nosso. Então, usando nomes fictícios, apenas relatei o ocorrido e esclareci que ambos, a partir da segunda-feira, estariam licenciados para se recuperarem do susto e cuidarem dos primeiros dias de seus inocentes filhotes, quase órfãos de mãe ainda no ninho.


Não havia como uma agência de 20 funcionários, desfalcada de 10% de seu quadro, ceder mais dois sem sacrificar o relacionamento com seus clientes, com reflexos nos resultados.

Sempre soube que olho de banqueiro só lacrimeja se for de vidro, mas os corretores da prova (bancários, como eu) se deram por satisfeitos. E, por acaso, nem precisei voltar para o interior de Alagoas. Mas isso é outra história.


quarta-feira, 28 de julho de 2021

Eu vi! Ninguém me contou

 Um dos mistérios desta vida é o eterno desencontro entre expectativa e realidade. Sei que as duas são irmãs gêmeas, crias da mesma costela, mas, pelo menos no meu caso, nunca entram em acordo. Quase tudo que vejo pela primeira vez é maior ou menor do que imagino. 

 

De tanto ouvir as transmissões esportivas da Rádio Globo do Rio de Janeiro nos anos 70, eu não sonhava conhecer o Cristo Redentor do topo do Corcovado, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara, a floresta da Tijuca ou as praias de Copacabana, Ipanema e Leblon. Queria mesmo assistir a uma partida de futebol no Maracanã, curtir o território das paixões de um Vasco x Flamengo.

 

Demorou. Só bem mais tarde, na primeira semana de agosto de 1987, a empresa em que trabalhava me designou para a “espinhosa” missão de participar de um curso durante cinco dias, no Rio, com direito a passagem aérea e estadia no velho Ambassador, na Lapa. 

 

Para evitar o aborto de alguns projetos paralelos, em minutos a minha bagagem estava pronta, inclusive com o radinho Philips, parceiro de tantas jornadas esportivas e musicais. E voei nas asas da Varig logo no sábado, antevéspera do início do curso.

 

No domingo, tornei-me amigo de infância de um taxista que, logo após o almoço, foi comigo pela primeira e única vez ao templo sacrossanto do futebol mundial, onde o Vasco enfrentaria o Flamengo, tentando conquistar seu 16º título estadual.

 


Pouco antes do início do jogo, o ar enfumado se encheu de cheiros, cores e sons de vários tons, misturando garoa fina, reconhecimento e veneração, quando os alto-falantes anunciaram as presenças de Roberto Dinamite e Zico. 

 

Os dois fingiam que nada daquilo era com eles. Caciques de duas tribos apaixonadas, nunca se viu nenhum desses guerreiros se dirigir à nação adversária com provocações. Ficou fácil compreender por que, apesar do declínio fisico a partir dos 33 anos, relutavam em aceitar que o tempo não espera ninguém. 

 

Não duvido nada que o barulho tenha arrepiado os braços da estátua de Bellini nos arredores do estádio, onde, como dizia o anjo vascaíno Aldir Blanc, camelôs vendiam anel, cordão e perfume barato; baianas faziam pastel e um bom churrasco de gato.

 

Lá dentro, éramos 115 mil almas em êxtase diante de figuras míticas como Dinamite, Geovani, Mazinho, Tita e o então menino Romário, que enfrentariam gigantes como Zico, Leandro, Aldair, Andrade e Bebeto. 

 

Dois lances traduziram bem o enredo do jogo: a bola alçada sobre a grande área rubro-negra em que Dinamite a amorteceu no peito e rolou para o arremate indefensável de Tita, e o voleio de Bebeto da marca do pênalti, no fim do jogo, para a monstruosa intervenção do goleiro Acácio.

 


A propósito, o fato de o gol do título ter sido marcado pelo cruzmaltino Tita contra seu ex-clube, que mereceu vibrante narração do locutor José Carlos Araújo "Garotinho" (reveja aqui), deu à conquista um sabor especial de bacalhau à lagareiro com vinho tinto de boa safra.

 

O esplendor da catedral do futebol, a simbiose da assistência (arquibancada e geral) com os atores em cena, o "uhh!" a cada lance mais agudo no gramado, tudo acabou bem maior do que minha melhor expectativa.

 

Quatorze anos depois, em 2001, quando estive no Velho Mundo pela primeira vez, foi frustrante dar de cara com o mais badalado símbolo do Império Romano: o Coliseu, no centro da capital italiana.

 


Tinha comigo que encontraria algo parecido com o Maracanã. Havia lido que fora construído num local que havia sido devastado pelo grande incêndio de Roma durante o governo de Nero. 

 

Sabia que o espetáculo mais comum era a luta entre gladiadores. Ou entre guerreiros e animais selvagens (leões, tigres e até elefantes), trazidos da África para matar ou morrer. 

 

Que a partir do século VI, já na Idade Média, o estádio mudou o objeto original e passou a servir de habitação, oficina, forte, sede de ordens religiosas e templo cristão. 

 

Na virada deste século, mesmo em ruínas, o Coliseu ainda era reconhecido como uma das sete maravilhas do mundo moderno.  

 

Bem menor, porém, do que o Maracanã que conheci  naquela tarde fria de domingo e que trago comigo há mais de três décadas. Eu vi! ninguém me contou. 

 

Sei que agora nem o Maracanã nem o Vasco são os mesmos. Nem eu. Mas não me afobo. O fim não é para já. O Rio, como diz outro poeta carioca de boa cepa feito Aldir Blanc, ainda vai virar uma cidade submersa e os escafandristas virão explorar suas ruínas.

 

Quem sabe escutar o eco de cânticos e gritos de amor e dor, vestígios de glórias e tragédias de uma imensa torcida bem feliz que hoje está lá estendida no chão. Com um silêncio servindo de amém.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Nunca mais!

Li outro dia que um dos negócios mais rentáveis do mundo é o comércio ilegal de animais silvestres, que movimenta cerca de 20 bilhões de dólares por ano. Vem a ser a terceira atividade clandestina que mais gera dinheiro, atrás apenas dos tráficos de drogas e de armas.
 
Só no Brasil, todo ano 38 milhões de animais são retirados à força de seus habitats naturais, envolvendo anfíbios, aves, insetos, mamíferos, peixes, répteis, entre outros. 
 
Os considerados menos agressivos (araras, chinchilas, iguanas, micos, papagaios, peixes ornamentais etc.) são os preferidos nesse mercado odioso, com preços ditados pela raridade, como se fossem pedras preciosas. 
 
Enfim, aprendi que essa atividade criminosa provoca desequilíbrio ecológico, mexendo de forma dramática na cadeia alimentar, além de reduzir a biodiversidade de determinados ambientes. Mais grave ainda: 90% dos bichos traficados não sobrevivem ao transporte ou não se adaptam ao novo habitat
 
Se, há 20 e poucos anos, fosse suficientemente esclarecido sobre a complexa equação biológica que garante a vida no planeta, não teria me transformado em mais um desses marginais, ainda que não tenha lucrado um centavo com meu único delito, já devidamente prescrito. Mas ganhei alguns trocados de carinho, reconheço. Já chego lá!
 
Logo após a virada do século, havia sido comunicado pela direção do banco em que trabalhava de que fora transferido de novo (sétima mudança interestadual, entre 1988 e 2000), agora da Bahia para o Distrito Federal. A ansiedade diante de mais um recomeço se instalou na sala-de-estar de minha família.
 
Para aliviar o desassossego, alguns amigos e amigas resolveram preparar um almoço de despedida na véspera da viagem, ocasião em que uma delas quis confortar minha filha, oferecendo-lhe uma inusitada recordação da Bahia: um par de filhotes de ajapás (quelônios de água doce, mais conhecidos como cágados). 
 
Achei que minha filha fosse agradecer a gentileza e, com o jeitinho dela, explicar que não teríamos como, na viagem aérea marcada para o dia seguinte, transportar animais silvestres sem a devida permissão da autoridade competente.
 
Que nada! Tocada, imagino, pela profusão de sentimentos que vivia, percebi que ela abriu seu primeiro sorriso desde que soube que iríamos mudar de novo. Como o seu pai teria superpoderes – não para evitar o desconforto de tantas mudanças, claro! –, deve ter pensado: “Ele dará um jeito!”
 
Longe de mim, àquela altura, cobrar sensatez e argumentar que deveria deixar os pequenos animais com uma amiguinha que morasse numa casa com quintal e jardim, terra e grama, chuva e sol. Só provocaria uma nova enxurrada de lágrimas. Melhor, não.
 

Claro que bateu medo de ser detido no aeroporto e indiciado criminalmente pelo tráfico de animais silvestres. Óbvio que não seria possível simplesmente utilizar uma caixa de sapatos com furos, pois teria que passar pelo aparelho de raio X junto com as demais bagagens de mão, relógio, celular e chaves.
 
Como era grande o fluxo de pessoas entrando e saindo do terminal, imaginei que seria difícil para a administradora aeroportuária controlar a licitude e segurança de tudo que os passageiros traziam consigo. Sofrimento de filho nos faz elevar o sarrafo e saltar acima dos limites de nossa coragem (ou falta de juízo).
 
De propósito, deixei no pulso o relógio e coloquei um cágado em cada bolso do blazer. Pensei: dificilmente alguém vai desconfiar de que um cidadão grisalho, de óculos, barbeado, bem-vestido e cheiroso, com sua família, transporta escondido um par de pequenos quelônios.
 
Quando o alerta soou, a própria inspetora só me cobrou retirar do pulso o relógio e juntá-lo aos demais itens na esteira do raio X. Então, fiz apenas o que me foi solicitado, agradeci e segui em frente, juntando-me à mulher e aos filhos que já me aguardavam no corredor de acesso à zona de embarque. 
 
Dentro do avião, aquelas criaturas silenciosas e bem comportadas foram transferidas para uma caixinha que sua “dona” havia carinhosamente preparado, inclusive com pequenos pedaços de frutas, para que a viagem transcorresse em paz. Uma refeição de bordo melhor do que a dos demais passageiros.
 
Foi desse jeito que um apartamento funcional no quarto andar de um prédio numa cidade fria e seca no Planalto Central, a mais de 1000 metros de altitude, virou criatório ilegal de animais silvestres. 
 
Nunca mais! Tinha consciência de que a qualquer momento poderia receber a visita de emissários do Batalhão de Polícia Militar Ambiental, para resgate dos animais e competente autuação do aprendiz de traficante aqui. Mas cada dia com sua agonia, como diz um amigo meu.
 
Dois meses depois, os cágados pareciam acostumados com uma rotina nada silvestre, inclusive com a curiosidade de Lobão, mascote-chefe da casa que gostava de tomar banho de sol assistindo aos preguiçosos passeios dos dois nas floreiras de chão da área de serviços. 
 
Mas não demorou muito. Um dia, do nada, eles partiram sem se despedir nem de Lobão. Mudaram-se, sem aviso-prévio, para o céu das criaturas inocentes arrancadas de seu habitat
 

Não eram bancários. Nem todos sobrevivem a uma vidinha sem graça, repleta de mudanças inesperadas, tendo que conviver com seres supostamente humanos e racionais. 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

O foragido

Baixinho, calvo, barriga saliente, o empresário alagoano PC Farias foi uma espécie de caixa-preta humana, fiel depositário de alguns dos mais bem-guardados segredos do esquema que chocou o País e que, em 1992, levou ao processo de impeachment e à renúncia de Fernando Collor, primeiro presidente eleito após a ditadura militar.

 

Tesoureiro da campanha de Collor, PC Farias tornou-se a eminência parda do governo, cuidando de "sobras" de caixa estimadas pelas autoridades, na oportunidade, em cerca de um bilhão de dólares. Dizia-se que a fortuna era proveniente de uma rede de conexões, inclusive com o crime organizado internacional.

 

Em junho de 1993, um dia antes de ter sua prisão decretada pela Justiça, sob acusação de falsidade ideológica e de abertura de contas bancárias ilegais no exterior, PC Farias desapareceu, sumiu no oco do mundo. E não se falava noutra coisa nos bares e lares deste País.

 

Na mesma época, em Brasília, apresentei-me numa certa manhã à direção da Polícia Federal como o novo gerente da agência do Banco do Brasil no final da Asa Sul, a que se vinculava o posto de atendimento instalado nas dependências da corporação. 


Quando comentei que vinha de Alagoas, repórteres de plantão aguçaram olhos e ouvidos como se eu fosse capaz de lhes render algum furo jornalístico sobre o paradeiro do criminoso mais conhecido e procurado do Brasil.

 

PC Farias viveu foragido 152 dias, despistando a Polícia Federal e a Interpol entre Paraguai, Argentina, Uruguai, Inglaterra e Tailândia, onde finalmente foi preso, em Bangcoc, disfarçado de príncipe árabe. 


No imaginário popular, virou anti-herói bem-sucedido, capaz de dribles espetaculares sobre policiais do mundo inteiro.

 

Tempos depois, já em meados dos anos 2000, um alto executivo do BB – por sinal, também baixinho, calvo, barriga um pouco saliente – esteve em Maceió para participar de um encontro de administradores. 


Na ocasião, convidado pela TV Gazeta, afiliada à Rede Globo, ele concedeu entrevista ao vivo no “Bom dia, Alagoas”, onde falou sobre produtos e serviços para governos estaduais e municipais – antecipação de receitas orçamentárias, cobrança de Dívida Ativa etc. 

 

Tudo ia muito bem até que uma telespectadora o confundiu com um foragido da Justiça e denunciou às autoridades policiais que o elemento estava se fazendo passar por outra pessoa. 


Claro, não era PC Farias, morto e sepultado com seus segredos em 1996. Mas, imagina-se, instalou-se o arquétipo no inconsciente coletivo. Tanto que, de imediato, policiais partiram no rumo dos estúdios da TV Gazeta para capturar o suposto bandido.

 

Chegando lá, souberam que o entrevistado fora embora. Naquele instante, ele já se deslocava para o prédio da superintendência estadual, onde definiria com outros emissários da direção geral do BB o roteiro do encontro de administradores, que aconteceria no Hotel Jatiúca, na orla de Maceió.

 


Mais uma vez, a Polícia não conseguiu localizá-lo. A frustração afastou qualquer dúvida de que, de fato, estavam diante de um criminoso foragido de alta periculosidade, com insuspeita aptidão para fuga de cercos policiais. 

Que tipo de armamento escondia sob o paletó? Qual seria o objeto da operação criminosa em andamento? Agia sozinho ou em quadrilha? Estava protegido pela prevaricação de algum agente público graúdo?   

Mais que depressa, então, ligaram as sirenes e partiram tostando pneus para o hotel onde deveriam capturar o elemento, de preferência vivo para eventual delação de comparsas.
 

Quando os agentes da Lei cercaram o local do evento, o executivo fazia a sua apresentação com o desembaraço e a simpatia de sempre, a interagir com o público, prestando esclarecimentos sobre as novidades de sua área. 

 

Aliás, soube outro dia que ele até percebeu um certo disse-me-disse, uma movimentação estranha nas cercanias do salão onde exibia seu powerpoint, mas seguiu adiante até concluir o trabalho e todos rumarem para o intervalo.

 

Durante o coffe break, o delegado aproximou-se para dar voz de prisão e algemar o suposto foragido. Foi quando o chefe da Assessoria Jurídica Regional, Dr. Adelmo “Socó” Cabral, viu o que se passava e esclareceu tudo, livrando o palestrante de prestar depoimento e até do risco de detenção para averiguações.

 


Refeito do susto, o elemento, meu velho e querido amigo Rogério Lot – registre-se, sem qualquer parentesco com o lendário marechal Henrique Teixeira Lott – relevou o incidente e deu asas a seu afiado senso de humor. 

 

Ao chegar ao carro que o levaria ao aeroporto, orientou o motorista – que a tudo assistira – com sua voz marcante de locutor de rádio: 

– Acelera que estamos em cima da hora! Se tiver alguma blitz no caminho, não pare de jeito nenhum, tá? Vai que a polícia muda de ideia antes do embarque... 


E nunca mais voltou a Maceió, tida como o Paraíso das Águas ou o Caribe Brasileiro.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Medos e garapa

Como todo menino criado solto entre quintais e calçadas do interior, um dia escapuli logo cedo da mesa do café para ver o homem que subia no telhado da casa na esquina da rua em que morávamos. 

Dizia-se que ele iria esvaziar e lavar a caixa d’água. Sentado no chão, via-o lá em cima com o rosto encoberto pela sombra do chapéu, concentrado no que fazia. Nem notava o pequeno e curioso admirador.

 

Não demorou muito e começou a tremer como se sentisse frio, apesar do calorão que ardia no Sertão paraibano. Então se debruçou sobre caibros e ripas, os braços arriaram, o chapéu caiu e a tremedeira sumiu. 

 

Voltei correndo para casa. Ao chegar com olhos de assombro, a respiração ofegante e mudo, espantei  minha mãe:

– O que foi, menino?! 

– O homem... O homem… 

– Que homem? Fale!

– No telhado da casa da esquina…

 

Era tarde. A descarga elétrica da fiação sem adequado isolamento me fez assistir, aos oito anos, à morte trágica de um ser humano pela primeira vez. 


Lembro que não chorei, talvez por conta do pronto aconchego materno e do copo de garapa (água açucarada) que me foi servido. 


De noite, demorei a pegar no sono, com medo de alma. Medo também do que seria da vida dos filhos daquele homem sem rosto que limpava a caixa d'água e, de repente, adormeceu para não mais acordar.

 

Não demorou seis meses e, de novo, voltei a sentir medo. Vi minha mãe sofrendo, acometida do que as vizinhas chamavam de mal de sete-couros – tumor que se forma sob a pele do calcanhar, na planta do pé. Temi perdê-la e que sua alma viesse visitar a família.

 

Ela, grávida do sétimo bebê, ajoelhada sobre uma cadeira com travesseiro sem poder pisar no chão, cozinhava e lavava panelas e pratos. E cuidava dos filhos enquanto o marido chegava do trabalho para ajudá-la. 

 

Na época, eu vinha sendo catequizado para a primeira eucaristia por uma beata mirrada, com olheiras de cansaço cobertas de pó e rouge, conhecida como Neném Macarrão. 


Dizia-se que ela ficara no caritó (expressão sertaneja usada para designar a mulher que não casou) e que ganharia o reino dos céus quem tivesse a graça de vê-la sorrindo. Futrica de vizinhas sentadas nas calçadas ao entardecer.

 

Um dia, chegou a notícia de que Neném Macarrão não daria as aulas da semana. Estava doente. Minto se disser que não vibrei com o tempinho a mais para brincar. Na manhã seguinte, o coração dela parou de bater. 

 

Minha mãe nem pôde ir ao sepultamento da beata. Apesar das compressas quentes, da água oxigenada e da pomada de penicilina, continuava sofrendo os horrores do mal de sete-couros.

 

Ao lembrar que não foram pagas as últimas aulas da falecida, alertou meu pai de que deveria fazê-lo o quanto antes. Tinha certeza que a alma de quem morre vem cobrar dos vivos as contas em aberto.

 

Após o jantar, em sua angustiante rotina, ela limpava a pia ajoelhada sobre a cadeira, enquanto o marido e os filhos se espalhavam pelos demais cômodos da casa à espera da hora de dormir.

 

Um grito vindo da cozinha quase trinca os mosaicos. Pai e filhos correram para socorrer a vítima que, de olhos fechados, mãos trêmulas, com os pelos arrepiados, só não fugiu dali por causa das dores lancinantes no calcanhar:

– O que foi isso?! – acudiu o marido.

– Neném Macarrão me apareceu... Tava bem ali no canto...

 

Mãe, pai e filhos, Carnaval de 1966
Mãe, pai e filhos, no Carnaval de 1965

A gurizada quase se mija de medo. Fez fila para beber garapa e ir ao banheiro antes de dormir. E, pelo sim, pelo não, no dia seguinte fui designado para levar à casa da beata um envelope com a quantia devida pelas últimas aulas de catecismo. 

 

Mais de meio século depois, meus medos agora são outros. Por exemplo, de deixar de sonhar, de desistir de aprender, de não me comover ou me indignar com o que vejo. Garapa é doce mas não resolve. 

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Pincéis e tintas

Tá puxado, mas não vou esmorecer. Ando tão descrente de tudo isso que tá aí que me deu vontade de reler um texto publicado aqui neste espaço há mais de dois anos, quando praticamente ninguém antevia o que iria acontecer a partir de um surto viral.

 

Transcrito adiante, o texto nasceu a partir de uma mensagem recebida de um amigo (Artur Roman) e de uma imagem captada por outro amigo, que fez brotar margaridas no asfalto duro e seco de Brasília:

 

Imagem: Dedé Dwight

Afinal, por que ainda sorrimos?

 

Anteontem, um velho amigo me escreveu lembrando que vivemos um tempo em que as imagens tomaram conta das redes sociais. O texto escrito estaria se acomodando à função de simples legenda. Para ele, isso se deve à facilidade de se produzir e compartilhar fotografias, especialmente porque imagens exigem menos esforço cognitivo para sua apreensão. Disse, no final, que produzir textos escritos é uma forma de resistência, o que, para mim, soou como estímulo para seguir adiante com os textos aqui publicados.

Dedé Dwight, outro amigo, minutos antes havia compartilhado comigo a imagem de uma mãe, com a filha nos braços, em um ponto nobre do Distrito Federal onde pedia esmolas. Quando delas se aproximou com a câmera na mão, a mãe se preocupou: “a gente vai sair feia...” Ele prometeu que não.  Ao ver o resultado, emocionou-se, catou sem pensar os trocados que tinha e perguntou ao "fotógrafo" quanto custou o trabalho dele.

A primeira reação de Dedé Dwight, óbvio, foi rejeitar qualquer pagamento, mas lembrou que a imagem que buscava captar era justamente para falar de dignidade –amor-próprio, consciência do próprio valor, honra, brio. Não lhe restou alternativa senão aceitar a oferta.

Ao opinar sobre a fotografia, eu lhe disse que, em si, é pura arte, crônica sem palavras do cotidiano das grandes cidades. Pena que as pessoas costumam generalizar e rotular como exploradoras todas as mães que se valem de crianças nos braços, sob sol ou chuva, para comover a população e pedir esmolas com maior chance de êxito. 

Vi outro dia na TV que em algumas capitais brasileiras, com a proximidade do Natal, a mendicância envolvendo meninos e meninas, expostas a drogas e violência, aumenta em até 80% e existem mulheres que chegam a conseguir R$ 30,00 por dia. É muito difícil extrair dignidade em "escolas" desse tipo.

Evidente que se houvesse oportunidades de emprego, creches e escolas públicas em número compatível com os impostos pagos por todos os brasileiros, seria praticamente impossível para  Dedé Dwight conseguir captar aquela imagem.  

Mas o fato concreto é que ele conseguiu e aí cabe a pergunta: quanto de bem e de paz um sorriso de criança – onde o acaso congelou emoção numa pequena língua – pode trazer para o coração de uma mãe que não possui quase nada além de um peito cheio de amor e leite?

Por isso o "fotógrafo" considerou o pagamento mais honroso que já recebeu por algo que realizou. Impressionado com a atitude digna daquela mãe, resolveu doar os honorários recebidos à própria pagadora, cuja vida continua num ponto qualquer da capital de uma das nações mais desiguais do mundo.

Pobre nação. Estaria seguramente entre as principais potências econômicas se lhe fosse possível engarrafar e exportar a dignidade, a resiliência e a alegria gratuita de seu povo.



Pois bem. Onde andarão aquelas brasileirinhas? Será que sobreviveram à tragédia político-sanitária que nos embrutece como nação ou ao alargamento do fosso de desigualdades de uma pátria-mãe nada gentil?

 

Será que aquela mãe pegou o vírus implacável que já matou mais de meio milhão de brasileiros? Se pegou, será que produziu anticorpos suficientes para derrotá-lo ou foi convencida a engolir logo o kit Covid (hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina etc.)? 

 

Se escapou, será que não comprometeu a saúde de sua criança ao cultivar bactérias super-resistentes, segura de que derrotou o vírus com antibiótico (que só deve ser prescrito para infecção bacteriana), em meio à fumaça do obscurantismo tosco que encobre o céu de anil da pátria amada?

 

Talvez nada disso tenha acontecido. Talvez a imagem que ilustra o texto não passe de uma visão contemporânea de uma santa com uma criança nos braços, encarnadas naquelas figuras frágeis que vagam pelas ruas a pedirem um futuro que nunca chega. 

 

Daquelas que de tanto ver nosso olhar banaliza, vê sem ver, como diria Otto Lara Resende. E deixamos que uma certa indiferença tome assento em nossa sala como se não dependesse de nós pegar pincéis e tintas e dar novas cores à paisagem triste e sem graça que tá aí.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Alex, cabra safado

Todos os seres vivos, inclusive aqueles que são tidos como racionais, já nascem com certos reflexos, isto é, são programados para reagirem diante de algumas circunstâncias.


Quase todo governante, quando pressionado a explicar seus atos e omissões, desequilibra-se, fica tenso. Vê conspiração em cada canto e classifica as pessoas em dois grupos: quem o segue e quem o persegue.


No começo do século passado, o fisiologista e médico russo Ivan Pavlov andou treinando alguns cachorros para que salivassem sem que houvesse nenhuma comida por perto. 

 

Funcionava assim: toda vez que oferecia ração, ele tocava um sino. Depois de alguns dias, os bichos passaram a associar as badaladas à comida. E babavam famintos só de ouvir o sino, mesmo quando as vasilhas estavam vazias. 


Claro, Pavlov não queria apenas sacanear a cachorrada. Fez isso quando revelou à comunidade científica de seu tempo a chamada Teoria dos Reflexos Condicionados.
 

Alex é um velho jornalista acostumado aos bastidores políticos do Distrito Federal. Outro dia me contou que guarda bem vivo um período tórrido de sua vida, embora não admita que se trate de memória "pavloviana". 

 


Dizia ele que, em 1954, o suicídio do presidente Getúlio Vargas pautava o tom do noticiário da Voz do Brasil. Seus pais, durante semanas, assim que jantavam, corriam para o sofá da sala-de-estar e ali ficavam grudados ao rádio.

 

Quando soavam na abertura do noticiário os acordes iniciais da ópera O Guarani, do compositor Carlos Gomes, Alex, que tinha 12 anos, escapulia ligeiro feito um gato até o quarto dos fundos, onde encontraria Elizete, costureira que auxiliava a mãe dele, no calor de seus 17 verões. 

 

No começo, o casal não tinha tanta prática naqueles movimentos exploratórios que já se nasce mais ou menos sabendo, mas o cotidiano no terreno das carícias mútuas favoreceu o avanço das manobras. 

 

Desconfiada, a mãe de Alex toda noite especulava com o marido sobre o sumiço do filho, sempre no mesmo horário, ainda que duvidasse da astúcia de quem mal conseguira ser aprovado no exame de admissão ao ginásio. 

 

O pai acabaria envolvido pelas conjecturas da mãe. O moído diário no ouvido fizera efeito. Um dia, abriu mão dos primeiros minutos do jornal radiofônico e seguiu o rebento para não ter que adotar medida mais drástica, desprovida de uma prova irrefutável. 

 

Encontrou-o em atitude suspeita (alegação bastante comum, na era Vargas), nas apalpações preliminares daquela noite, a alisar as mãos de Elizete onde havia pequenas marcas de pano branco:

— Epa! Que diabo é isso? 

— Nada do que o senhor tá pensando! — apressou-se a moça.

— Tô lendo a mão dela, pai — arriscou o menino.

— Deixe de ser mentiroso, cabra safado! Você é cigano, por acaso! Vá já pro quarto estudar!

  

Mas voltemos a Pavlov, que legou ao mundo a evidência científica de que o condicionamento de reflexos pode ser a base do comportamento humano e de vários problemas mentais. 

 

Para ele, psicóticos sofrem mais do que as pessoas comuns justamente por causa disso. Eles enxergam qualquer estímulo externo — um comentário indesejado, por exemplo — como uma ofensa. E reagem, muitas vezes, de forma desproporcional.

 

Existe em vários países um suporte (com dinheiro público e privado) a blogs e perfis em redes sociais que foram condicionados a disseminar ataques à reputação de adversários, em represália a qualquer crítica que se faça ao establishment. 

 

Esses pelotões de choque se aproveitam da inocência ou estupidez com que muitos embarcam na primeira canoa que passa e no engajamento que postagens desse tipo geram para fazer política de um jeito medíocre e perigoso, fragilizando a própria democracia.

 

Hoje, aos 80 anos, Alex nem parece um jornalista, com um papel importante numa nação carente em todos os sentidos como a nossa. Virou um desses “zé-vai-com-os-outros” e continua sem acreditar "nessa coisa de reflexo condicionado”. Nega a teoria pavloviana, mas diz que ainda fica "em posição de sentido, todo duro", quando escuta O Guarani


O cabra safado segue mentindo. E ja não tem quem lhe mande pro quarto estudar e aprender que ciência não é opinião. É o que se aprende sobre como não se deixar enganar a si mesmo.