quarta-feira, 28 de julho de 2021

Eu vi! Ninguém me contou

 Um dos mistérios desta vida é o eterno desencontro entre expectativa e realidade. Sei que as duas são irmãs gêmeas, crias da mesma costela, mas, pelo menos no meu caso, nunca entram em acordo. Quase tudo que vejo pela primeira vez é maior ou menor do que imagino. 

 

De tanto ouvir as transmissões esportivas da Rádio Globo do Rio de Janeiro nos anos 70, eu não sonhava conhecer o Cristo Redentor do topo do Corcovado, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara, a floresta da Tijuca ou as praias de Copacabana, Ipanema e Leblon. Queria mesmo assistir a uma partida de futebol no Maracanã, curtir o território das paixões de um Vasco x Flamengo.

 

Demorou. Só bem mais tarde, na primeira semana de agosto de 1987, a empresa em que trabalhava me designou para a “espinhosa” missão de participar de um curso durante cinco dias, no Rio, com direito a passagem aérea e estadia no velho Ambassador, na Lapa. 

 

Para evitar o aborto de alguns projetos paralelos, em minutos a minha bagagem estava pronta, inclusive com o radinho Philips, parceiro de tantas jornadas esportivas e musicais. E voei nas asas da Varig logo no sábado, antevéspera do início do curso.

 

No domingo, tornei-me amigo de infância de um taxista que, logo após o almoço, foi comigo pela primeira e única vez ao templo sacrossanto do futebol mundial, onde o Vasco enfrentaria o Flamengo, tentando conquistar seu 16º título estadual.

 


Pouco antes do início do jogo, o ar enfumado se encheu de cheiros, cores e sons de vários tons, misturando garoa fina, reconhecimento e veneração, quando os alto-falantes anunciaram as presenças de Roberto Dinamite e Zico. 

 

Os dois fingiam que nada daquilo era com eles. Caciques de duas tribos apaixonadas, nunca se viu nenhum desses guerreiros se dirigir à nação adversária com provocações. Ficou fácil compreender por que, apesar do declínio fisico a partir dos 33 anos, relutavam em aceitar que o tempo não espera ninguém. 

 

Não duvido nada que o barulho tenha arrepiado os braços da estátua de Bellini nos arredores do estádio, onde, como dizia o anjo vascaíno Aldir Blanc, camelôs vendiam anel, cordão e perfume barato; baianas faziam pastel e um bom churrasco de gato.

 

Lá dentro, éramos 115 mil almas em êxtase diante de figuras míticas como Dinamite, Geovani, Mazinho, Tita e o então menino Romário, que enfrentariam gigantes como Zico, Leandro, Aldair, Andrade e Bebeto. 

 

Dois lances traduziram bem o enredo do jogo: a bola alçada sobre a grande área rubro-negra em que Dinamite a amorteceu no peito e rolou para o arremate indefensável de Tita, e o voleio de Bebeto da marca do pênalti, no fim do jogo, para a monstruosa intervenção do goleiro Acácio.

 


A propósito, o fato de o gol do título ter sido marcado pelo cruzmaltino Tita contra seu ex-clube, que mereceu vibrante narração do locutor José Carlos Araújo "Garotinho" (reveja aqui), deu à conquista um sabor especial de bacalhau à lagareiro com vinho tinto de boa safra.

 

O esplendor da catedral do futebol, a simbiose da assistência (arquibancada e geral) com os atores em cena, o "uhh!" a cada lance mais agudo no gramado, tudo acabou bem maior do que minha melhor expectativa.

 

Quatorze anos depois, em 2001, quando estive no Velho Mundo pela primeira vez, foi frustrante dar de cara com o mais badalado símbolo do Império Romano: o Coliseu, no centro da capital italiana.

 


Tinha comigo que encontraria algo parecido com o Maracanã. Havia lido que fora construído num local que havia sido devastado pelo grande incêndio de Roma durante o governo de Nero. 

 

Sabia que o espetáculo mais comum era a luta entre gladiadores. Ou entre guerreiros e animais selvagens (leões, tigres e até elefantes), trazidos da África para matar ou morrer. 

 

Que a partir do século VI, já na Idade Média, o estádio mudou o objeto original e passou a servir de habitação, oficina, forte, sede de ordens religiosas e templo cristão. 

 

Na virada deste século, mesmo em ruínas, o Coliseu ainda era reconhecido como uma das sete maravilhas do mundo moderno.  

 

Bem menor, porém, do que o Maracanã que conheci  naquela tarde fria de domingo e que trago comigo há mais de três décadas. Eu vi! ninguém me contou. 

 

Sei que agora nem o Maracanã nem o Vasco são os mesmos. Nem eu. Mas não me afobo. O fim não é para já. O Rio, como diz outro poeta carioca de boa cepa feito Aldir Blanc, ainda vai virar uma cidade submersa e os escafandristas virão explorar suas ruínas.

 

Quem sabe escutar o eco de cânticos e gritos de amor e dor, vestígios de glórias e tragédias de uma imensa torcida bem feliz que hoje está lá estendida no chão. Com um silêncio servindo de amém.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Nunca mais!

Li outro dia que um dos negócios mais rentáveis do mundo é o comércio ilegal de animais silvestres, que movimenta cerca de 20 bilhões de dólares por ano. Vem a ser a terceira atividade clandestina que mais gera dinheiro, atrás apenas dos tráficos de drogas e de armas.
 
Só no Brasil, todo ano 38 milhões de animais são retirados à força de seus habitats naturais, envolvendo anfíbios, aves, insetos, mamíferos, peixes, répteis, entre outros. 
 
Os considerados menos agressivos (araras, chinchilas, iguanas, micos, papagaios, peixes ornamentais etc.) são os preferidos nesse mercado odioso, com preços ditados pela raridade, como se fossem pedras preciosas. 
 
Enfim, aprendi que essa atividade criminosa provoca desequilíbrio ecológico, mexendo de forma dramática na cadeia alimentar, além de reduzir a biodiversidade de determinados ambientes. Mais grave ainda: 90% dos bichos traficados não sobrevivem ao transporte ou não se adaptam ao novo habitat
 
Se, há 20 e poucos anos, fosse suficientemente esclarecido sobre a complexa equação biológica que garante a vida no planeta, não teria me transformado em mais um desses marginais, ainda que não tenha lucrado um centavo com meu único delito, já devidamente prescrito. Mas ganhei alguns trocados de carinho, reconheço. Já chego lá!
 
Logo após a virada do século, havia sido comunicado pela direção do banco em que trabalhava de que fora transferido de novo (sétima mudança interestadual, entre 1988 e 2000), agora da Bahia para o Distrito Federal. A ansiedade diante de mais um recomeço se instalou na sala-de-estar de minha família.
 
Para aliviar o desassossego, alguns amigos e amigas resolveram preparar um almoço de despedida na véspera da viagem, ocasião em que uma delas quis confortar minha filha, oferecendo-lhe uma inusitada recordação da Bahia: um par de filhotes de ajapás (quelônios de água doce, mais conhecidos como cágados). 
 
Achei que minha filha fosse agradecer a gentileza e, com o jeitinho dela, explicar que não teríamos como, na viagem aérea marcada para o dia seguinte, transportar animais silvestres sem a devida permissão da autoridade competente.
 
Que nada! Tocada, imagino, pela profusão de sentimentos que vivia, percebi que ela abriu seu primeiro sorriso desde que soube que iríamos mudar de novo. Como o seu pai teria superpoderes – não para evitar o desconforto de tantas mudanças, claro! –, deve ter pensado: “Ele dará um jeito!”
 
Longe de mim, àquela altura, cobrar sensatez e argumentar que deveria deixar os pequenos animais com uma amiguinha que morasse numa casa com quintal e jardim, terra e grama, chuva e sol. Só provocaria uma nova enxurrada de lágrimas. Melhor, não.
 

Claro que bateu medo de ser detido no aeroporto e indiciado criminalmente pelo tráfico de animais silvestres. Óbvio que não seria possível simplesmente utilizar uma caixa de sapatos com furos, pois teria que passar pelo aparelho de raio X junto com as demais bagagens de mão, relógio, celular e chaves.
 
Como era grande o fluxo de pessoas entrando e saindo do terminal, imaginei que seria difícil para a administradora aeroportuária controlar a licitude e segurança de tudo que os passageiros traziam consigo. Sofrimento de filho nos faz elevar o sarrafo e saltar acima dos limites de nossa coragem (ou falta de juízo).
 
De propósito, deixei no pulso o relógio e coloquei um cágado em cada bolso do blazer. Pensei: dificilmente alguém vai desconfiar de que um cidadão grisalho, de óculos, barbeado, bem-vestido e cheiroso, com sua família, transporta escondido um par de pequenos quelônios.
 
Quando o alerta soou, a própria inspetora só me cobrou retirar do pulso o relógio e juntá-lo aos demais itens na esteira do raio X. Então, fiz apenas o que me foi solicitado, agradeci e segui em frente, juntando-me à mulher e aos filhos que já me aguardavam no corredor de acesso à zona de embarque. 
 
Dentro do avião, aquelas criaturas silenciosas e bem comportadas foram transferidas para uma caixinha que sua “dona” havia carinhosamente preparado, inclusive com pequenos pedaços de frutas, para que a viagem transcorresse em paz. Uma refeição de bordo melhor do que a dos demais passageiros.
 
Foi desse jeito que um apartamento funcional no quarto andar de um prédio numa cidade fria e seca no Planalto Central, a mais de 1000 metros de altitude, virou criatório ilegal de animais silvestres. 
 
Nunca mais! Tinha consciência de que a qualquer momento poderia receber a visita de emissários do Batalhão de Polícia Militar Ambiental, para resgate dos animais e competente autuação do aprendiz de traficante aqui. Mas cada dia com sua agonia, como diz um amigo meu.
 
Dois meses depois, os cágados pareciam acostumados com uma rotina nada silvestre, inclusive com a curiosidade de Lobão, mascote-chefe da casa que gostava de tomar banho de sol assistindo aos preguiçosos passeios dos dois nas floreiras de chão da área de serviços. 
 
Mas não demorou muito. Um dia, do nada, eles partiram sem se despedir nem de Lobão. Mudaram-se, sem aviso-prévio, para o céu das criaturas inocentes arrancadas de seu habitat
 

Não eram bancários. Nem todos sobrevivem a uma vidinha sem graça, repleta de mudanças inesperadas, tendo que conviver com seres supostamente humanos e racionais. 

quarta-feira, 14 de julho de 2021

O foragido

Baixinho, calvo, barriga saliente, o empresário alagoano PC Farias foi uma espécie de caixa-preta humana, fiel depositário de alguns dos mais bem-guardados segredos do esquema que chocou o País e que, em 1992, levou ao processo de impeachment e à renúncia de Fernando Collor, primeiro presidente eleito após a ditadura militar.

 

Tesoureiro da campanha de Collor, PC Farias tornou-se a eminência parda do governo, cuidando de "sobras" de caixa estimadas pelas autoridades, na oportunidade, em cerca de um bilhão de dólares. Dizia-se que a fortuna era proveniente de uma rede de conexões, inclusive com o crime organizado internacional.

 

Em junho de 1993, um dia antes de ter sua prisão decretada pela Justiça, sob acusação de falsidade ideológica e de abertura de contas bancárias ilegais no exterior, PC Farias desapareceu, sumiu no oco do mundo. E não se falava noutra coisa nos bares e lares deste País.

 

Na mesma época, em Brasília, apresentei-me numa certa manhã à direção da Polícia Federal como o novo gerente da agência do Banco do Brasil no final da Asa Sul, a que se vinculava o posto de atendimento instalado nas dependências da corporação. 


Quando comentei que vinha de Alagoas, repórteres de plantão aguçaram olhos e ouvidos como se eu fosse capaz de lhes render algum furo jornalístico sobre o paradeiro do criminoso mais conhecido e procurado do Brasil.

 

PC Farias viveu foragido 152 dias, despistando a Polícia Federal e a Interpol entre Paraguai, Argentina, Uruguai, Inglaterra e Tailândia, onde finalmente foi preso, em Bangcoc, disfarçado de príncipe árabe. 


No imaginário popular, virou anti-herói bem-sucedido, capaz de dribles espetaculares sobre policiais do mundo inteiro.

 

Tempos depois, já em meados dos anos 2000, um alto executivo do BB – por sinal, também baixinho, calvo, barriga um pouco saliente – esteve em Maceió para participar de um encontro de administradores. 


Na ocasião, convidado pela TV Gazeta, afiliada à Rede Globo, ele concedeu entrevista ao vivo no “Bom dia, Alagoas”, onde falou sobre produtos e serviços para governos estaduais e municipais – antecipação de receitas orçamentárias, cobrança de Dívida Ativa etc. 

 

Tudo ia muito bem até que uma telespectadora o confundiu com um foragido da Justiça e denunciou às autoridades policiais que o elemento estava se fazendo passar por outra pessoa. 


Claro, não era PC Farias, morto e sepultado com seus segredos em 1996. Mas, imagina-se, instalou-se o arquétipo no inconsciente coletivo. Tanto que, de imediato, policiais partiram no rumo dos estúdios da TV Gazeta para capturar o suposto bandido.

 

Chegando lá, souberam que o entrevistado fora embora. Naquele instante, ele já se deslocava para o prédio da superintendência estadual, onde definiria com outros emissários da direção geral do BB o roteiro do encontro de administradores, que aconteceria no Hotel Jatiúca, na orla de Maceió.

 


Mais uma vez, a Polícia não conseguiu localizá-lo. A frustração afastou qualquer dúvida de que, de fato, estavam diante de um criminoso foragido de alta periculosidade, com insuspeita aptidão para fuga de cercos policiais. 

Que tipo de armamento escondia sob o paletó? Qual seria o objeto da operação criminosa em andamento? Agia sozinho ou em quadrilha? Estava protegido pela prevaricação de algum agente público graúdo?   

Mais que depressa, então, ligaram as sirenes e partiram tostando pneus para o hotel onde deveriam capturar o elemento, de preferência vivo para eventual delação de comparsas.
 

Quando os agentes da Lei cercaram o local do evento, o executivo fazia a sua apresentação com o desembaraço e a simpatia de sempre, a interagir com o público, prestando esclarecimentos sobre as novidades de sua área. 

 

Aliás, soube outro dia que ele até percebeu um certo disse-me-disse, uma movimentação estranha nas cercanias do salão onde exibia seu powerpoint, mas seguiu adiante até concluir o trabalho e todos rumarem para o intervalo.

 

Durante o coffe break, o delegado aproximou-se para dar voz de prisão e algemar o suposto foragido. Foi quando o chefe da Assessoria Jurídica Regional, Dr. Adelmo “Socó” Cabral, viu o que se passava e esclareceu tudo, livrando o palestrante de prestar depoimento e até do risco de detenção para averiguações.

 


Refeito do susto, o elemento, meu velho e querido amigo Rogério Lot – registre-se, sem qualquer parentesco com o lendário marechal Henrique Teixeira Lott – relevou o incidente e deu asas a seu afiado senso de humor. 

 

Ao chegar ao carro que o levaria ao aeroporto, orientou o motorista – que a tudo assistira – com sua voz marcante de locutor de rádio: 

– Acelera que estamos em cima da hora! Se tiver alguma blitz no caminho, não pare de jeito nenhum, tá? Vai que a polícia muda de ideia antes do embarque... 


E nunca mais voltou a Maceió, tida como o Paraíso das Águas ou o Caribe Brasileiro.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Medos e garapa

Como todo menino criado solto entre quintais e calçadas do interior, um dia escapuli logo cedo da mesa do café para ver o homem que subia no telhado da casa na esquina da rua em que morávamos. 

Dizia-se que ele iria esvaziar e lavar a caixa d’água. Sentado no chão, via-o lá em cima com o rosto encoberto pela sombra do chapéu, concentrado no que fazia. Nem notava o pequeno e curioso admirador.

 

Não demorou muito e começou a tremer como se sentisse frio, apesar do calorão que ardia no Sertão paraibano. Então se debruçou sobre caibros e ripas, os braços arriaram, o chapéu caiu e a tremedeira sumiu. 

 

Voltei correndo para casa. Ao chegar com olhos de assombro, a respiração ofegante e mudo, espantei  minha mãe:

– O que foi, menino?! 

– O homem... O homem… 

– Que homem? Fale!

– No telhado da casa da esquina…

 

Era tarde. A descarga elétrica da fiação sem adequado isolamento me fez assistir, aos oito anos, à morte trágica de um ser humano pela primeira vez. 


Lembro que não chorei, talvez por conta do pronto aconchego materno e do copo de garapa (água açucarada) que me foi servido. 


De noite, demorei a pegar no sono, com medo de alma. Medo também do que seria da vida dos filhos daquele homem sem rosto que limpava a caixa d'água e, de repente, adormeceu para não mais acordar.

 

Não demorou seis meses e, de novo, voltei a sentir medo. Vi minha mãe sofrendo, acometida do que as vizinhas chamavam de mal de sete-couros – tumor que se forma sob a pele do calcanhar, na planta do pé. Temi perdê-la e que sua alma viesse visitar a família.

 

Ela, grávida do sétimo bebê, ajoelhada sobre uma cadeira com travesseiro sem poder pisar no chão, cozinhava e lavava panelas e pratos. E cuidava dos filhos enquanto o marido chegava do trabalho para ajudá-la. 

 

Na época, eu vinha sendo catequizado para a primeira eucaristia por uma beata mirrada, com olheiras de cansaço cobertas de pó e rouge, conhecida como Neném Macarrão. 


Dizia-se que ela ficara no caritó (expressão sertaneja usada para designar a mulher que não casou) e que ganharia o reino dos céus quem tivesse a graça de vê-la sorrindo. Futrica de vizinhas sentadas nas calçadas ao entardecer.

 

Um dia, chegou a notícia de que Neném Macarrão não daria as aulas da semana. Estava doente. Minto se disser que não vibrei com o tempinho a mais para brincar. Na manhã seguinte, o coração dela parou de bater. 

 

Minha mãe nem pôde ir ao sepultamento da beata. Apesar das compressas quentes, da água oxigenada e da pomada de penicilina, continuava sofrendo os horrores do mal de sete-couros.

 

Ao lembrar que não foram pagas as últimas aulas da falecida, alertou meu pai de que deveria fazê-lo o quanto antes. Tinha certeza que a alma de quem morre vem cobrar dos vivos as contas em aberto.

 

Após o jantar, em sua angustiante rotina, ela limpava a pia ajoelhada sobre a cadeira, enquanto o marido e os filhos se espalhavam pelos demais cômodos da casa à espera da hora de dormir.

 

Um grito vindo da cozinha quase trinca os mosaicos. Pai e filhos correram para socorrer a vítima que, de olhos fechados, mãos trêmulas, com os pelos arrepiados, só não fugiu dali por causa das dores lancinantes no calcanhar:

– O que foi isso?! – acudiu o marido.

– Neném Macarrão me apareceu... Tava bem ali no canto...

 

Mãe, pai e filhos, Carnaval de 1966
Mãe, pai e filhos, no Carnaval de 1965

A gurizada quase se mija de medo. Fez fila para beber garapa e ir ao banheiro antes de dormir. E, pelo sim, pelo não, no dia seguinte fui designado para levar à casa da beata um envelope com a quantia devida pelas últimas aulas de catecismo. 

 

Mais de meio século depois, meus medos agora são outros. Por exemplo, de deixar de sonhar, de desistir de aprender, de não me comover ou me indignar com o que vejo. Garapa é doce mas não resolve. 

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Pincéis e tintas

Tá puxado, mas não vou esmorecer. Ando tão descrente de tudo isso que tá aí que me deu vontade de reler um texto publicado aqui neste espaço há mais de dois anos, quando praticamente ninguém antevia o que iria acontecer a partir de um surto viral.

 

Transcrito adiante, o texto nasceu a partir de uma mensagem recebida de um amigo (Artur Roman) e de uma imagem captada por outro amigo, que fez brotar margaridas no asfalto duro e seco de Brasília:

 

Imagem: Dedé Dwight

Afinal, por que ainda sorrimos?

 

Anteontem, um velho amigo me escreveu lembrando que vivemos um tempo em que as imagens tomaram conta das redes sociais. O texto escrito estaria se acomodando à função de simples legenda. Para ele, isso se deve à facilidade de se produzir e compartilhar fotografias, especialmente porque imagens exigem menos esforço cognitivo para sua apreensão. Disse, no final, que produzir textos escritos é uma forma de resistência, o que, para mim, soou como estímulo para seguir adiante com os textos aqui publicados.

Dedé Dwight, outro amigo, minutos antes havia compartilhado comigo a imagem de uma mãe, com a filha nos braços, em um ponto nobre do Distrito Federal onde pedia esmolas. Quando delas se aproximou com a câmera na mão, a mãe se preocupou: “a gente vai sair feia...” Ele prometeu que não.  Ao ver o resultado, emocionou-se, catou sem pensar os trocados que tinha e perguntou ao "fotógrafo" quanto custou o trabalho dele.

A primeira reação de Dedé Dwight, óbvio, foi rejeitar qualquer pagamento, mas lembrou que a imagem que buscava captar era justamente para falar de dignidade –amor-próprio, consciência do próprio valor, honra, brio. Não lhe restou alternativa senão aceitar a oferta.

Ao opinar sobre a fotografia, eu lhe disse que, em si, é pura arte, crônica sem palavras do cotidiano das grandes cidades. Pena que as pessoas costumam generalizar e rotular como exploradoras todas as mães que se valem de crianças nos braços, sob sol ou chuva, para comover a população e pedir esmolas com maior chance de êxito. 

Vi outro dia na TV que em algumas capitais brasileiras, com a proximidade do Natal, a mendicância envolvendo meninos e meninas, expostas a drogas e violência, aumenta em até 80% e existem mulheres que chegam a conseguir R$ 30,00 por dia. É muito difícil extrair dignidade em "escolas" desse tipo.

Evidente que se houvesse oportunidades de emprego, creches e escolas públicas em número compatível com os impostos pagos por todos os brasileiros, seria praticamente impossível para  Dedé Dwight conseguir captar aquela imagem.  

Mas o fato concreto é que ele conseguiu e aí cabe a pergunta: quanto de bem e de paz um sorriso de criança – onde o acaso congelou emoção numa pequena língua – pode trazer para o coração de uma mãe que não possui quase nada além de um peito cheio de amor e leite?

Por isso o "fotógrafo" considerou o pagamento mais honroso que já recebeu por algo que realizou. Impressionado com a atitude digna daquela mãe, resolveu doar os honorários recebidos à própria pagadora, cuja vida continua num ponto qualquer da capital de uma das nações mais desiguais do mundo.

Pobre nação. Estaria seguramente entre as principais potências econômicas se lhe fosse possível engarrafar e exportar a dignidade, a resiliência e a alegria gratuita de seu povo.



Pois bem. Onde andarão aquelas brasileirinhas? Será que sobreviveram à tragédia político-sanitária que nos embrutece como nação ou ao alargamento do fosso de desigualdades de uma pátria-mãe nada gentil?

 

Será que aquela mãe pegou o vírus implacável que já matou mais de meio milhão de brasileiros? Se pegou, será que produziu anticorpos suficientes para derrotá-lo ou foi convencida a engolir logo o kit Covid (hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina etc.)? 

 

Se escapou, será que não comprometeu a saúde de sua criança ao cultivar bactérias super-resistentes, segura de que derrotou o vírus com antibiótico (que só deve ser prescrito para infecção bacteriana), em meio à fumaça do obscurantismo tosco que encobre o céu de anil da pátria amada?

 

Talvez nada disso tenha acontecido. Talvez a imagem que ilustra o texto não passe de uma visão contemporânea de uma santa com uma criança nos braços, encarnadas naquelas figuras frágeis que vagam pelas ruas a pedirem um futuro que nunca chega. 

 

Daquelas que de tanto ver nosso olhar banaliza, vê sem ver, como diria Otto Lara Resende. E deixamos que uma certa indiferença tome assento em nossa sala como se não dependesse de nós pegar pincéis e tintas e dar novas cores à paisagem triste e sem graça que tá aí.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Alex, cabra safado

Todos os seres vivos, inclusive aqueles que são tidos como racionais, já nascem com certos reflexos, isto é, são programados para reagirem diante de algumas circunstâncias.


Quase todo governante, quando pressionado a explicar seus atos e omissões, desequilibra-se, fica tenso. Vê conspiração em cada canto e classifica as pessoas em dois grupos: quem o segue e quem o persegue.


No começo do século passado, o fisiologista e médico russo Ivan Pavlov andou treinando alguns cachorros para que salivassem sem que houvesse nenhuma comida por perto. 

 

Funcionava assim: toda vez que oferecia ração, ele tocava um sino. Depois de alguns dias, os bichos passaram a associar as badaladas à comida. E babavam famintos só de ouvir o sino, mesmo quando as vasilhas estavam vazias. 


Claro, Pavlov não queria apenas sacanear a cachorrada. Fez isso quando revelou à comunidade científica de seu tempo a chamada Teoria dos Reflexos Condicionados.
 

Alex é um velho jornalista acostumado aos bastidores políticos do Distrito Federal. Outro dia me contou que guarda bem vivo um período tórrido de sua vida, embora não admita que se trate de memória "pavloviana". 

 


Dizia ele que, em 1954, o suicídio do presidente Getúlio Vargas pautava o tom do noticiário da Voz do Brasil. Seus pais, durante semanas, assim que jantavam, corriam para o sofá da sala-de-estar e ali ficavam grudados ao rádio.

 

Quando soavam na abertura do noticiário os acordes iniciais da ópera O Guarani, do compositor Carlos Gomes, Alex, que tinha 12 anos, escapulia ligeiro feito um gato até o quarto dos fundos, onde encontraria Elizete, costureira que auxiliava a mãe dele, no calor de seus 17 verões. 

 

No começo, o casal não tinha tanta prática naqueles movimentos exploratórios que já se nasce mais ou menos sabendo, mas o cotidiano no terreno das carícias mútuas favoreceu o avanço das manobras. 

 

Desconfiada, a mãe de Alex toda noite especulava com o marido sobre o sumiço do filho, sempre no mesmo horário, ainda que duvidasse da astúcia de quem mal conseguira ser aprovado no exame de admissão ao ginásio. 

 

O pai acabaria envolvido pelas conjecturas da mãe. O moído diário no ouvido fizera efeito. Um dia, abriu mão dos primeiros minutos do jornal radiofônico e seguiu o rebento para não ter que adotar medida mais drástica, desprovida de uma prova irrefutável. 

 

Encontrou-o em atitude suspeita (alegação bastante comum, na era Vargas), nas apalpações preliminares daquela noite, a alisar as mãos de Elizete onde havia pequenas marcas de pano branco:

— Epa! Que diabo é isso? 

— Nada do que o senhor tá pensando! — apressou-se a moça.

— Tô lendo a mão dela, pai — arriscou o menino.

— Deixe de ser mentiroso, cabra safado! Você é cigano, por acaso! Vá já pro quarto estudar!

  

Mas voltemos a Pavlov, que legou ao mundo a evidência científica de que o condicionamento de reflexos pode ser a base do comportamento humano e de vários problemas mentais. 

 

Para ele, psicóticos sofrem mais do que as pessoas comuns justamente por causa disso. Eles enxergam qualquer estímulo externo — um comentário indesejado, por exemplo — como uma ofensa. E reagem, muitas vezes, de forma desproporcional.

 

Existe em vários países um suporte (com dinheiro público e privado) a blogs e perfis em redes sociais que foram condicionados a disseminar ataques à reputação de adversários, em represália a qualquer crítica que se faça ao establishment. 

 

Esses pelotões de choque se aproveitam da inocência ou estupidez com que muitos embarcam na primeira canoa que passa e no engajamento que postagens desse tipo geram para fazer política de um jeito medíocre e perigoso, fragilizando a própria democracia.

 

Hoje, aos 80 anos, Alex nem parece um jornalista, com um papel importante numa nação carente em todos os sentidos como a nossa. Virou um desses “zé-vai-com-os-outros” e continua sem acreditar "nessa coisa de reflexo condicionado”. Nega a teoria pavloviana, mas diz que ainda fica "em posição de sentido, todo duro", quando escuta O Guarani


O cabra safado segue mentindo. E ja não tem quem lhe mande pro quarto estudar e aprender que ciência não é opinião. É o que se aprende sobre como não se deixar enganar a si mesmo.  

quarta-feira, 16 de junho de 2021

A saga da praga

Era natural que ela estivesse inconformada, depois de três carnavais em Pernambuco, a sentir o asfalto chacoalhar quando o bloco Parceria atravessava a orla de Boa Viagem ou quando despertava ao primeiro canto do Galo da Madrugada, sacudindo pontes e ruas estreitas do Recife Antigo.


Dois carnavais depois na Bahia, a escutar a batida do Olodum e aspirando a poeira que subia quando Chiclete, Brown ou Ivete atiçavam a multidão, era normal que ela sofresse tendo que passar o Carnaval de 2001 em Brasília. Aliás, tanto faria se fosse lá, em Cubatão, Chernobyl ou Calcutá.

 

Compreendi perfeitamente. Na antevéspera do feriadão, ela pedia a todos os santos de prontidão que ele conseguisse passagens aéreas para qualquer capital nordestina, nem que fossem de Vasp ou Varig. Àquela altura, era difícil. 

 

Assim como eu, ele também não era chegado a chuva, suor, cerveja e Engov, ao longo de quatro intermináveis dias de folia e agonia. Ela teria que se conformar. Quem sabe, no sábado estaríamos juntos desossando um pernil de cordeiro na brasa, no quintal de uma casinha em Pirenópolis, no interior de Goiás.

 

Deu tudo errado. Ele conseguiu um par de bilhetes para a capital pernambucana, para imensurável felicidade dela, que lamentava apenas não poder levar-me junto. Eu ficaria bem, me disse, hospedado numa confortável residência de amigos, à beira do Lago Paranoá. 

 

Logo cedo, na sexta-feira, os dois nem se deram conta da tristeza que havia em minha cara quando me deixaram naquele local estranho, entre desconhecidos, antes de sumirem. 


Com o coração partido, injustamente tratado feito cachorro, só me restava, no silêncio de minha revolta, torcer para que a viagem deles fosse “inesquecível”.

 


Soube depois que o comandante da aeronave, após 40 minutos de decolagem, pediu aos passageiros que mantivessem a calma e comunicou que tinha problemas. Iria reduzir altitude e velocidade ao mínimo para poder retornar ao aeroporto de origem.

 

Soube ainda do tititi que se instalou entre os viajantes. Ela, no desespero, chegou a questionar os céus: 

– É isso mesmo? Tanta coisa por dizer, pedir, fazer... Reza, véio, me ajuda! – suplicava, agarrando-se à mão dele. 

– O que cê acha que tô fazendo?

 

A aterrissagem limpa e suave, 55 minutos mais tarde, levou o eufórico comandante à estupidez de afirmar que, felizmente, ninguém teria o nome citado no Jornal Nacional, o que lhe rendeu estrepitosa vaia. 

 

A aeronave passaria por ampla revisão e, caso não fosse possível o reparo, seria substituída. Enquanto isso, os passageiros deveriam aguardar, no restaurante do aeroporto, os procedimentos para reembarque.

 

Ela foi a primeira a se insurgir contra a possibilidade de novo embarque no mesmo avião. E angariou adesões entre as sócias de infortúnio, contando com a persuasão delas sobre seus respectivos parceiros. 


Então decidiu-se entre os viajantes: ou a companhia trocava o equipamento ou teria que devolver os valores recebidos. Na dúvida, dizem, o consumidor sempre tem razão.  

 

Ao meio-dia, um representante da empresa comunicou que a aeronave estava em perfeitas condições e que daria início ao reembarque. O bafafá foi enorme, mas não adiantou. 


Como não deve ter adiantado para ele explicar a ela,  indômita líder da rebelião, que a tripulação não seria louca a ponto de arriscar o próprio pescoço se não estivesse tudo em ordem.

 

Metade dos passageiros desistiu, pediu a devolução das bagagens despachadas e protocolou pedido de reembolso. A outra metade, porém, embarcou. 


Ofereço aqui dois confeitos de hortelã a quem acertar: qual a primeira criatura a chegar ao pé da escada, com medo de ter que apontar para cima os dedinhos fura-bolos, na Esplanada dos Ministérios, atrás do bloco Pacotão

 

Ela me contou depois que, logo após a nova decolagem, pegou no sono. Quando acordou, a aeronave já taxiava na pista do aeroporto de destino, sob os acordes de “voltei, Recife, foi a saudade que me trouxe pelo braço!”

 

De tardezinha, sol a magoar a ferida de minha saudade, uivando as dores de inesperado desprezo, não me envergonho de confessar: eu pulei a cerca! Cometi a maior loucura de minha vida ao decidir atravessar o Lago Paranoá, com destino à Asa Sul, onde morávamos. 

 

Contaram-me mais tarde que os responsáveis por minha hospedagem entraram em pânico, moveram fundos e raimundos antes de noticiarem o meu sumiço. Ela e ele, provavelmente arrependidos do que fizeram, voltaram à Brasília na manhã seguinte, em pleno domingo de Carnaval

 

Assim que pousaram, eles correram e vasculharam cada  quadra do Lago Norte à minha procura. E distribuíram cartazes e faixas pela cidade, chegando a oferecer boa grana a quem desse pistas sobre o meu paradeiro, como se remorso fosse indenizável. 


Só na boca da noite da terça-feira, três dias depois do desaparecimento, souberam que eu fora encontrado, ainda no sábado. Um cidadão, que curtia o anoitecer com seu jet ski no Lago Paranoá, me resgatara semimorto e decidiu aguardar um pouco. 


Nó na madeira, lenha na fogueira que não queria apagar, escapei. Só São Francisco de Assis sabe como.

 

De volta para casa – afinal, errare humanum est, perdoar é canino , fui submetido a terapia intensiva à base de afagos, água fresca e peito de frango com arroz puxado na casca do alho, até me recuperar das lesões resultantes da prova de Triathlon.

 

Guiness Book não homologou o possível recorde – é bem verdade, faltou a etapa do ciclismo –, mas a notícia correu solta na quinta-feira pelos canteiros da Asa Sul, onde voltei a fazer minha caminhada matinal, demarcando meu território a cada poste que encontrava pelo caminho.

 

Aproveitei, é claro, para me gabar junto a algumas amiguinhas peludas, lépidas e perfumadas, confidenciando-lhes detalhes da saga da praga que roguei naquele Carnaval de 2001. Sozinho, nunca mais!

quarta-feira, 9 de junho de 2021

O preço do sossego

Talvez o maior obstáculo que encarei em minha carreira tenha sido administrar uma pequena agência bancária na avenida Durval de Góes Monteiro, no bairro do Tabuleiro dos Martins, principal via de acesso e saída da capital alagoana.


Depois de minha primeira passagem pela Bahia, no início dos anos 90, voltava a Alagoas. A agência era instalada em local bastante visado pela bandidagem por conta do volume circulante de dinheiro numa área em acelerada expansão econômica. Além das facilidades de escape pela rodovia BR-101. 

 

Os bancos, há três décadas, não dispunham de sistemas de capturas de imagens, câmeras de visão noturna, reconhecimento facial e sensores que identificam situações incomuns, como alterações abruptas na temperatura do ambiente. 

  

A Segurança Pública estadual, sabedora de que a maioria dos assaltos acontecia na abertura ou no fechamento das agências, estabelecera uma ronda ostensiva no principal corredor de entrada e saída de Maceió. 

 

Quatro policiais a bordo de uma viatura equipada com rádio e sirene, das 9 às 17 h, cobriam os 12 km entre a antiga rotatória da Polícia Rodoviária Federal e a praça do Centenário, no bairro do Farol.  

 

Ainda assim, o medo era grande porque nunca consegui memorizar o segredo do cofre da tesouraria. Nem faria sentido, claro, anotá-lo em pedaço de papel para consulta quando eventualmente fosse necessário. 


Isso me roubava a paz de espírito para trabalhar, além de algo que não tinha preço: a esperança de ver meus filhos crescerem e, um dia, os netos chegarem. O desassossego nos rouba inclusive os sonhos.

 


Se ocorresse um assalto, dificilmente os bandidos acreditariam que o gerente desconhecia o segredo do cofre. Uma coronhada, na melhor das hipóteses, 
estragaria de vez o que restava de meus miolos em agonia. 


Pior que os iniciantes no antigo ofício de roubar eram mais perigosos que os profissionais cascudos. Temendo perder a liberdade ou ser engolidos pelos "concorrentes de mercado", abusavam de crack e maconha antes do serviço. Um espirro poderia resultar em disparos contra inocentes. 

 

Vi, no entanto, que os policiais que faziam a ronda diária e vinham confirmar conosco se estava tudo sob controle, portavam, à moda “Rambo”, coletes à prova de balas, fuzis, pistolas, cassetetes, baionetas e óculos de sol

 

Mas não conseguiam esconder os sinais de quem não tomava um café-da-manhã reforçado, digno de quem saía cedo pro trabalho sem a menor convicção de que jantaria mais tarde. 

 

O egoísmo, pelo menos em relação a outros bancos e comerciantes das redondezas, acabou falando mais alto. Antes que nos acontecesse o pior, chamei no canto para uma conversa aquele que parecia líder dos demais policiais e propus uma troca bem objetiva: 

— Tá vendo aquela padaria ali na esquina? 

— Tô. 

— A partir de agora ela vai preparar lanche para vocês duas vezes ao dia. De manhã e de tarde. 

— Como assim? 

— Se vocês pararem o Gol aqui na frente, no canteiro central, todo dia às 9h45 e às 15h45 (minutos antes da abertura e do fechamento da agência), cada um vai receber um pão na chapa com queijo, presunto, ovos, tomates e um copo de leite com café. 

— Começa quando? — quis saber o policial, denotando que topara o acordo proposto.

— Hoje mesmo. Mas tem uma coisa: será servido aqui na cantina. Vem uma dupla e a outra fica na viatura lá fora. Depois, trocam de lugar. 

 

Funcionou com a precisão de um Rolex durante alguns meses. Sossego não tem preço. Tem custo, irrisório certas horas.  

 

Um dia, porém, uma quadrilha aos gritos invadiu a agência, ameaçando de morte meio mundo de gente. Eu estava fora, viajando havia dois meses, em missão na cidade-sede da empresa. O lanche fora suspenso por determinação superior, por contenção de despesas ou falta de amparo regulamentar para a sua contabilização. 

 

Soube depois que o chefão da quadrilha arrastou o meu substituto até a tesouraria, sob a mira de uma pistola. Aberto o cofre, só faltou usar detergente e álcool em gel para a limpeza ser completa. Nem moedinhas sobraram.

 

Se estivesse no recinto, não estaria aqui contando o caso, 30 anos depois. Os marginais não engoliriam o argumento de que a memória tende a ser seletiva e só guarda o que lhe convém. Decorar segredo de cofre nunca foi importante para mim. 

 

A parafernália eletrônica disponível nos dias de hoje, se inibe os bandidos menos organizados, ainda não é suficiente para barrar o "cangaço" moderno que volta e meia inferniza cidades e populações em todas as regiões brasileiras.

 

Noto, contudo, que quadrilhas mais sofisticadas têm preferido ações menos cinematográficas, via crimes cibernéticos ou, muito em moda ultimamente, via custeio "complementar" de campanhas políticas, "por fora" do fundão partidário. A reciprocidade compensa.

 

Aliás, é discutível essa história de que o crime não compensa. Isso diz respeito apenas aos que foram descobertos. Nada fala sobre os que nunca foram esclarecidos, seja por ignorância, negligência, má-fé ou conveniência política de interessados.

 

Que os bandidos que circulam por aí, inclusive aqueles que se disfarçam de xerifes acima do bem e do mal, nem tentem me roubar o sossego e a esperança de ver meus netos crescerem num planeta mais arejado, feito de ideias, compaixão e tolerância. O desassossego passou. 

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Vá entender...

Cruzam por acaso no Dique do Tororó, próximo à Fonte Nova, em Salvador, e interrompem a caminhada por causa dos pingos da chuva que engrossam. Há muitos anos não se viam.

– Aguilar?

– Sim! Perdi os cabelos, tô pesadão, mas... Evaldo, né?

 É. De hoje que quero te ver, meu velho. Acabei de ler o livro. Venha cá, quando tu começaste a escrever?

– Rapaz, bote tempo nisso... 

– Tu eras ruim de redação, no ginásio, hein?! 

– Melhorei. Tinha que escrever quase todo dia, no trabalho. Me ajudou muito.

– Agora, sim, tá brocando. Aliás, só tu mesmo, Aguilar, com esta cabeçona da zorra pra me explicar o que tá acontecendo no mundo. 

– Tá me tirando, é?

– De jeito nenhum! Tô é virado no cão. Ó paí ó! – aponta Evaldo para a notícia na telinha.

 

Yuri Tolochki, renomado fisiculturista do Cazaquistão, que já conquistou duas vezes o título Master of Sports, fala sobre a discriminação que vem sofrendo no meio esportivo depois que se casou, em 2020, com uma boneca sexual.




Algum tempo depois do casamento, o bodybuilder se separou da então esposa, Margo e, para espanto da comunidade, agora se relaciona simultaneamente com duas outras bonecas sexuais: Luna e Lola. 

 

Yuri se queixa de que vem sendo hostilizado pelos colegas de profissão, os quais pressionam a federação de seu país a excluí-lo das competições.

 

Acontece que os colegas entendem que o caso é ofensivo à moral e aos bons costumes, e que a associação do nome dele à federação fere sentimentos religiosos, além de manchar a imagem de outros atletas “dignos”.

 

Tudo me leva a crer que o ser humano é um bicho que ainda não deu certo. Todos os outros pensam, exceto o que fala, lê e escreve. 


– Diga aí, qual é o problema? – provoca Aguilar. 

– Oxe! Nossa Senhora me defenda! O mundo tá perto de acabar!

– Isso acontece, Evaldo. Tudo muda, mas nem sempre para pior.

– Como assim?

– Repare bem: o cara tá casado com duas mulheres que não reclamam de nada! Nem do mijo na borda do vaso sanitário, das meias desemparelhadas na gaveta, da toalha molhada na cama, do cabelo no ralo do banheiro, do aipim com casca que ele traz da feira, do farelo de bolacha na sala, da casca de laranja no balcão da pia, da lixeira cheia, da lâmpada queimada, da tesoura cega, do sinal de internet, da água fria do chuveiro...

– Rapaz, juro que não tinha me tocado! Tem mais: duvido que uma dessas mulheres peça a ele para desentupir boca de fogão, aguar jardim, enxugar panelas, levar cachorro pra passear, consertar varal de teto, torneira pingando, telha quebrada ou curto-circuito na rede elétrica, sabendo que o miserável passou a vida ralando como bancário ou professor, por exemplo. 

 

Surpreso com o rumo da conversa, Aguilar ainda tenta segurar a onda:

– Peraí, Evaldo, tô brincando com você. Acabei cutucando o ogro que tem aí dentro, né?

– Porra, velho, a conversa tá mexendo comigo. Tô aqui só castelando na cara de felicidade do fortão. Nenhum pé de sogra, tia, prima, cunhada ou sobrinha dando pitaco na estampa do sofá, no modelo de geladeira, tevê ou abajur. Nem na pintura ou no piso da casa.

– Pegaste ar, hein?! – ri Aguilar, agora surfando na onda que se formava  Será que as bonecas, daqui a 10 ou 15 anos, vão perguntar se o cara ainda sente a mesma coisa que sentia antigamente?

– Aonde, rapaz? E se o cara encher o saco, resolver se picar, nada de ouvir conselho de ninguém, de discutir relação, divórcio litigioso, briga na partilha de bens, guarda de filhos, pensão alimentícia... Tudo na paz, na boa.

– Olhe só, depois nego diz que escritor viaja demais. Quando pensa que não, é o leitor quem lê o que quer, quando quer, como quer e distorce tudo. Fui tirar onda, ó...

– Me poupe. Mas quem sabe este papo rende uma história porreta. Por que não escreves?

– Melhor não. Vai que acordo com um corte na garganta ou uma chaleira de água quente nos ouvidos. Às vezes, minha mulher fica retada com o que escrevo.  

– Acho que me lembro dela. Não é a...

– Sim, ela mesma! Lá do colégio.

– Achava linda.

– Vai dizer que...

– Bronzeada, bocão vermelho, cabelos encaracolados...  E aquele biquini branco que ela usava lá em Stella Maris, hein?!

– Né possível... Tu nunca...

– De jeito nenhum, irmão! Nada de chouriço. Seria crocodilagem. 

– Ah, bom! Ó... Vai fazer o quê no feriadão?

– Nada...

– Aluguei casa de praia lá em Itaparica. Bora ficar de prega, comer moqueca e jogar baralho? Minha mulher vai comigo. Leve a patroa, Evaldo.  

– Aí me quebra, Aguilar. Vou não. O colesterol e a glicose tão lá em cima. Se não fosse a patroa cuidando de mim, de minha comidinha, sei não... Mas reclama de tudo, viu?!

– Aí é lenha...


A chuva passa. Os dois se levantam com um "a gente se vê". E eu, que a tudo assisti por acaso, até tentei alcançar o que aconteceu e traduzir aqui o que escutei. Vá entender esses animais racionais.