quarta-feira, 22 de setembro de 2021

O peso do argumento

Tá legal, eu aceito o argumento – diria o mais elegante e gentil dos poetas –, é a alma de nossos negócios! Sim, as reuniões de trabalho têm o seu valor, ninguém pode negar. Se bem que boa parte delas não passa de perda de tempo ou de ganho de escaramuças e úlceras. 

 

Depois que me aposentei, mesmo com agenda livre para esses “animados” encontros – reuniões de condomínio, por exemplo –, sou daqueles que optam por engolir o que for decidido pelos vizinhos a ter que participar. Antes, culpava a fadiga de encarar uma terceira jornada de trabalho no fim do dia; hoje, percebo que o sinal continua fechado. 

 

É difícil juntar meia dúzia de pessoas e fazer as coisas acontecerem de forma rápida e objetiva, mesmo no mundo virtual tão em voga ultimamente. Tem gente que fala demais (ou nada fala), dá palpites em tudo, abre conversa paralela. Tem quem coloca defeito naquilo que diverge um milímetro de sua opinião. Tem até gente distraída que nem sabe o que faz ali. 

 

Aqui se encaixa bem o “nada está tão ruim que não possa piorar”. Quem nunca participou de uma reunião conduzida por alguém carente de atenção, inclusive em sua própria casa? Ou que necessita demonstrar que sabe de tudo sobre os mais variados assuntos? Ou que finge ser flexível, tolerante, desde que seja sua a palavra final sobre o tema que se discute?

 

Antes que me acusem de ser omisso ou apóstolo do voto em branco, vou logo dizendo que minha aversão vem de longe. Desde o tempo em que participava de reuniões onde a tônica era a falta de objetividade e uma briga eterna entre egos inflados pela ambição, envolvendo até pessoas decentes, mas outras bajuladoras, dissimuladas, falsas ou invejosas.

 

Com o branquear dos cabelos, aprendi a antiga lição “tancrediana” segundo a qual reunião boa é aquela em que os assuntos em pauta têm as suas quinas previamente arredondadas, seja no primeiro cafezinho do dia, numa conversa no final da tarde ou até no corredor que antecede a porta de entrada do local do encontro. 

 

Quem trabalhou ao meu lado lembra e não me deixa mentir. Antecipava em 24h uma possível minuta da ata da reunião do dia seguinte, onde nos sentávamos apenas para discutir pontos controversos. É insensatez discutir assuntos em que já se chegou a consenso quanto ao melhor encaminhamento. 

 

Nesses encontros, não tolerava se alguém pedia a palavra e começava com um “na verdade...”. Soava como um salvo-conduto para registrar que tudo o que fora dito até ali era falso ou, no mínimo, que sua versão seria a ponta virada do prego batido para que todos afinal compreendessem do que se falava.

 

E o que dizer de quem apontava para um dos participantes, antes de soltar um constrangedor “você aceita feedback?” Seria bem mais honesto se indagasse: “você me permite falar mal de você na frente de todos e vai ouvir calado até o final?”

 

Enfim, nenhuma aversão nasce da noite pro dia. É processo crônico e tortuoso. Pode ser até que essa minha repugnância tenha outra origem: a assembleia de instalação do condomínio do residencial onde, no início dos anos 80, comprei o apartamento em que pretendia morar o resto de minha vida. 

 

O primeiro síndico tinha dignidade de estátua. Aos 60 e poucos anos, a maior parte servindo às Forças Armadas, fora eleito por aclamação por conta do histórico de cidadão íntegro, conciliador e justo. 


Recebera do representante da construtora a incumbência de buscar a aprovação do regimento interno na assembleia de proprietários emergentes, quase todos, entre 20 e 30 anos de idade, querendo pegar seu lugar no futuro.

 

Em questão de minutos, um dos proprietários quis induzir os outros a derrubarem o artigo que permitia às babás se banharem na piscina, desde que no exercício de suas funções. Argumentava ser inaceitável que sua filha querida compartilhasse a mesma água com mulheres de procedência duvidosa, sujeitando-se às doenças do mundo.

 

Não conseguiu. Muitas mães preferiam suas crianças nos braços das babás do que deixá-las a mercê de um salva-vidas na pérgula da piscina. Frustrado, o sujeito  retirou-se da assembleia, por coincidência na hora em que ecoava a vinheta de abertura de um famoso telejornal. 

 

Outro condômino, mais idealista, argumentava ironicamente que só países ricos e poderosos como o Brasil mantinham elevadores de serviço, despensa para guarda de provisões diversas e dependência de empregadas, onerando as despesas com manutenção, água e energia. 

 

E subiu o tom de voz ao criticar a taxa de condomínio proposta, lançando dúvidas quanto à estimativa de gastos orçados para os primeiros meses, além de discordar da divisão equitativa com quem pensava diferente dele.


Ilustração: Arimatéa

Um argumenta aqui, outro ali, mais outro acolá, o efeito estufa prestes a derreter a autoridade do síndico quando ele, no uso de poderes que se atribuiu, acomoda sutilmente seu pesado revólver debaixo da toalha da mesa de apoio em que toca a pauta da reunião e fala consigo mesmo, audível entretanto para alguns: “Não vou ser desmoralizado depois de velho!” 

Antes das onze da noite, o regimento interno e a taxa de condomínio estavam democraticamente aprovados. Por unanimidade, claro! 

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Não volto mais!

Quase dois anos depois, nem todo mundo quer largar o home office e voltar ao trabalho presencial, como pretendem algumas empresas que se aproveitam do avanço da vacinação contra a covid-19 para esquentar as turbinas nesse sentido.  

Conheço quem foi morar longe para ganhar qualidade de vida e se deu muito bem. Outros, atolados numa mistura de ansiedade, fake news e pânico, com ou sem tarja preta adotaram filho, cachorro, gato, papagaio, coruja etc.

 


Sim, teve quem adotou até coruja. Talvez porque seja ave adaptada a viver na escuridão com sua cabeçona, rosto achatado, bico forte e curvado, além de olhos enormes e profundos. Mexe com o imaginário daqueles que só conseguem trabalhar sob o olhar de um chefe para chamar de seu.  

Tirando as grávidas, que não querem (nem devem) voltar à labuta presencial, o empregador tem o direito de exigir a volta as suas instalações. E se algum empregado insistir em querer trabalhar em casa, pode ser demitido por descumprir norma interna. 

 

Mas querer quase nunca é poder por aqui. A lei admite, porém não significa que as empresas farão isso na marra, pagando para ver o que acontece no pós-confinamento. Nem do dia para a noite ou com todos ao mesmo tempo. Quem sabe a decisão é adiada para a virada do Ano Novo ou depois do Carnaval. 

 

Antes de tudo, será preciso apurar se ainda vale a pena ocupar instalações caras (aluguel e infraestrutura), muitas vezes sem sentido, como se viu em alguns casos no auge da pandemia. 


Outro ponto importante, em vários países o retorno vem se dando de forma gradual, na base de três dias de trabalho em casa e dois no escritório. Ou seja, não se fala mais em voltar ao modelo 100% presencial.

 

Já nem se discute se a produtividade em casa aumenta ou não, principalmente por conta do tempo que se perdia no trânsito das grandes cidades com seus semáforos não sincronizados, filas, buzinas e balizas nos escassos estacionamentos.

 

É fato que ninguém apurou com lupa o custo do trabalho remoto, sem mesa e cadeira adequadas nem computador na altura ideal, com problemas de conexão à internet e sobrecarga de ruídos. Aliás, liquidificador e aspirador de pó são novos meios de assédio e tortura psicológica no trabalho.

 

Pelo sim, pelo não, já decidi: não volto nunca mais a trabalhar fora de casa, em ambiente corporativo. E duvido que me demitam! 

 

Nada é melhor que dormir um pouco mais cedo e acordar por volta das quatro da madrugada. Acordo, escovo os dentes, tomo meus remédios e, ainda de pijamas – é bobagem trocar uma roupa confortável por outra –, sigo para o trabalho no quarto ao lado, chova ou tenham estrelas lá fora.

 

O relógio deixou de ser meu opressor silencioso e nem faço ideia de onde se meteu. E mesmo sem estar trancado no meu local de trabalho, ninguém vai me incomodar, desde que não seja emergência. Ou minha mulher, é claro, que não vou criar caso com a ministra do tribunal superior daqui de casa a esta altura da crise. Tenho juízo! 

 

Posso agora expandir meus conhecimentos na direção que quiser, sem ficar refém da rotina. Gasto boa parte do tempo em reuniões de trabalho com alguns espíritos iluminados (Cony, Nelson, Ruy, Sabino, Ubaldo, Verissimo etc.) que me socorrem a qualquer hora com sábios conselhos. Aprendi, inclusive, que a convivência também é feita de silêncio e distância. 

 

Eu estabeleço minhas metas. E nem discuto se terei de dobrá-las. Se digo que vou terminar uma etapa do trabalho até 10h, consigo. E como sou chefe de mim mesmo, não preciso justificar o porquê atrasei minha chegada à cozinha para lavar pratos ou preparar algo gostoso para comer ao meio-dia. Mais tarde, os ponteiros se acertam em meia hora de cochilo.


Meu trabalho agora não exige contato direto com os clientes na hora de sua execução. Se tanto, em breve troca de mensagens posso definir como entregar, dentro do prazo, o melhor produto. Se não der certo, desligo o computador e procuro outra coisa para fazer. Na madrugada seguinte, volto à caça de palavras e do melhor jeito de misturá-las para dizer o que sinto. 


Enfim, toda quarta-feira preparar e oferecer (com carinho e tempero caseiro) uma iguaria leve a meia dúzia de fiéis leitoras e leitores é coisa que faço em casa sem maiores percalços. Não vejo por que mexer numa receita que vem dando certo. Sem contraindicações.

 


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

O profeta

Antigamente, éramos um país subdesenvolvido e atrasado. Fomos promovidos a emergente – embora volta e meia me venha a impressão de que se trata de um eufemismo modernoso para designar a mesma coisa – e continuamos atrasados. 

Nosso atraso é muito mais que econômico ou social, antes é um estado de alma, uma segunda natureza, uma maneira de ver o mundo, um jeito de ser, uma cultura. 

Temos pouco ou nenhum espírito cívico, somos individualistas, emporcalhamos as cidades, votamos levianamente, urinamos nas ruas e defecamos nas praias, fazemos a barulheira que nos convém a qualquer hora do dia ou da noite, matamos e morremos no trânsito, queixamo-nos da falta de educação alheia e não notamos a nossa, soltamos assassinos a torto e a direito, falsificamos carteiras, atestados e diplomas, furamos filas e, quase todo dia, para realçar esse panorama, assistimos a mais um espetáculo ignóbil, arquitetado e protagonizado por governantes.

Que coisa mais desgraciosa e primitiva, esse festival de fanfarronadas e bravatas, essa demonstração de ignorância mesclada com inconsequência, essa insolência despudorada, autoritária, prepotente e pretensiosa. Então a ideia era submeter decisões do Supremo Tribunal Federal à aprovação do Congresso, ou seja, na situação atual, à aprovação do Executivo. 

E gente que é a favor disso ainda tem o desplante de lançar contra os adversários acusações de golpismo. Golpismo é isso, é atacar o equilíbrio dos poderes da República, para entregar à camarilha governista o controle exclusivo sobre o destino do País. 

Até quem só sabe sobre Montesquieu o que leu numa orelha de livro lembra que o raciocínio por trás da independência dos poderes é prevenir o despotismo. Se eu faço a lei, eu mesmo a executo e ainda julgo os conflitos, claro que o caminho para a tirania está aberto, porque posso fazer qualquer coisa, inclusive substituir por outra a lei que num dado momento me incomode.

Hoje, muito tempo depois de Montesquieu, sistemas como o vigente nos Estados Unidos, cujas instituições políticas plagiamos na estruturação da nossa república, dependem de um equilíbrio delicado e sutil, o qual pressupõe uma formação cívica e cultural que nosso atraso nos impede de plagiar também. Uma barbaridade desse porte é praticamente impossível acontecer por lá. E isso se evidencia até no comportamento e nas atitudes de todos. 

Nenhum deputado americano iria blaterar contra a Suprema Corte e investir contra a integridade do Estado dessa forma. E nenhum dos magistrados sai, como aqui, dando entrevistas em toda parte e tornando-se figurinhas fáceis, cuja proximidade induz uma familiaridade incompatível com a natureza e a magnitude dos cargos que ocupam, intérpretes supremos da Constituição, última instância do Estado, capaz de selar em definitivo o destino de um cidadão ou até da sociedade. 

Quem já presenciou a abertura de uma sessão da Suprema Corte, em Washington, há de ter-se impressionado com a solenidade majestosa do ato e com a aura quase sacerdotal dos juízes. Aqui, do jeito que as coisas vão, chega a parecer possível que, um dia destes, a equipe de um show de televisão interrompa uma sessão do Supremo para entrevistar os ministros, com uma comediante fazendo perguntas como "que é que você usa por baixo da toga?" e Sua Excelência, olhando para o decote dela e depois piscando para a câmera, dê uma gargalhadinha e responda "passa lá em casa, que eu te mostro".

Soberana, entre as nossas manifestações de atraso, é a importância que damos à televisão. Não conheço outro país onde visitas apareçam exclusivamente para ver televisão na companhia dos visitados, ou onde se liga a televisão na sala e ninguém mais conversa. Hoje está melhor, mas, antigamente, o sujeito era convidado para dar uma entrevista e todos os funcionários da estação ou da produção o tratavam como se ele estivesse recebendo uma dádiva celestial. Do faxineiro à recepcionista, todos eram importantíssimos e eu mesmo já me estranhei com alguns, um par de vezes. 

A televisão é tudo a que se pode ambicionar, todas as moças querem ser atrizes de novelas, a fama é aparecer na televisão, quem aparece na televisão está feito na vida. Briga-se por tempo na televisão, ameaça-se o regime por causa de tempo na televisão e avacalha-se a imagem das instituições através dos que parecem sempre ansiosos por aparecer na televisão. 

Em relação aos ministros do Supremo, creio que todos os dias pelo menos uns dois deles se exibem em entrevistas. Houve a questão do mensalão, mas a moda e o costume já pegaram e qualquer processo no Supremo que venha a ter grande repercussão vai gerar novas entrevistas, pois ministro também é filho de Deus e, se não houvesse seguido a carreira jurídica, teria sido personalidade da televisão.

Quanto aos governados, as chances de aparecer na televisão são escassas e talvez o mais recomendável seja não as ambicionar, porque isso pode significar que teremos sido assaltados ou atropelados, ou vovó esticou as canelas depois de quatro dias numa maca na recepção de um hospital vinculado ao SUS, ou já viramos presunto. Temos os nossos representantes, que podem representar-nos também aparecendo na televisão, são o nosso retrato. 

Continuam a caber-nos as duas certezas que Benjamin Franklin via na vida: death and taxes, morte e impostos. Nossas oportunidades de morte são amplas e diversificadas, de bala perdida a dengue. Em relação aos impostos, estamos a caminho do campeonato mundial. E, finalmente, contamos com o consolo de saber que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Ou seja, pensando bem, não temos de quem nos queixar.


De propósito, meus queridos leitores e leitoras, evitei colocar aspas neste texto para que vocês não ficassem curiosos sobre sua autoria. Mas chegou a hora de dizer que é da lavra do inesquecível João Ubaldo Ribeiro – autor, dentre outras, da obra-prima 
Viva o Povo Brasileiro –, que o publicou no jornal O Globo, em 5/5/2013, sob o título “Governantes e governados”, um ano antes de sua morte. 

Como foi escrito há oito anos, portanto, não se sabe o que diria hoje o ilustre profeta itaparicano ao povo brasileiro, caso ressuscitasse neste 7 de setembro. Talvez, vendo a mesmice aqui incrustada, chegasse com aquela cara de sono e aquele cheiro da maré da Baía de Todos os Santos, assobiando “eu vejo o futuro repetir o passado...”



quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Fez parte do show

No livro “Cazuza – Só as mães são felizes”, Lucinha Araújo contou que Caetano Veloso subiu ao palco do Canecão, no Rio de Janeiro, em junho de 1983, no lançamento do disco “Uns”, e começou a cantar 'Todo amor que houver nessa vida'.

– Essa música é de nosso filho – ela comentou com o marido, sentado a seu lado.

– Você tá louca? – indagou o pai.

No final, Caetano elogiou Cazuza, dizendo que se tratava do “melhor poeta de sua geração”. Seis meses antes, ficara impressionado ao assistir à apresentação dele liderando o grupo Barão Vermelho, no Circo Voador.

 

Caetano (na plateia) assiste ao Barão Vermelho

Quase três décadas depois, eu e Magdala, minha mulher, fomos ao Rio assistir a um show no teatro Vivo Rio. Logo após o evento, fui abordado por uma amiga:

– Tem uma pessoa que quer te conhecer – me disse Naná.

– Tudo bem. Vamos lá? – respondi, curioso.

 

Naná Karabachian é uma empresária responsável pela criação e direção artística de diversos projetos musicais realizados em todo o País. Naquela noite, havíamos acabado de assistir Lulu Santos, interpretando Roberto e Erasmo Carlos no Circuito Cultural Banco do Brasil.

 

Circuito foi um dos projetos mais interessantes patrocinados pelo BB nos anos 2011 e 2012. Criado e dirigido pela cineasta e produtora cultural Monique Gardenberg, levou às principais cidades do País grandes intérpretes explorando o repertório de seus compositores preferidos, com parte dos ingressos reservada para clientes especiais do banco. 

 

Mas voltemos a Naná, que me apresentou a Mayra Corrêa Aygadoux, cantora, compositora e instrumentista indicada cinco vezes ao Grammy Latino, provocando-a:

– Diga, Maria Gadú, o que você me disse! 

– Tudo bem com você? – tentei quebrar o gelo.

– Tudo... – disse a artista de um jeito tímido, inesperado até – Ano que vem, se o projeto for adiante, eu queria muito participar.

– Quem você imagina homenagear? 

– Renato Russo, Cazuza... Cazuza é mais... Tem o lado da rebeldia e tem coisas muito doces... 

 

Magdala, Naná, Monique e Maria Gadú

Quando Cazuza pegou um trem para as estrelas, em 1990, aos 32 anos, Maria Gadú tinha apenas três. Fiquei então sabendo que, mesmo sem vê-lo de perto, as imagens disponíveis na Internet, os discos e DVDs, contendo mais de duas centenas de canções – sobretudo as compostas nos oito anos de carreira-solo, após ter deixado o Barão Vermelho – mexeram com o coração da menina paulistana.  

 

Grande revelação de 2009, ano em que lançou seu primeiro álbum, Maria Gadú já havia gravado dois álbuns de estúdio (um deles, por coincidência, com Caetano Veloso) em apenas quatro anos de carreira. 

 

No circuito que encantou plateias em várias cidades, Maria Bethânia deu voz a Chico Buarque de forma esplêndida, Sandy revisitou a obra de Michael Jackson e Lulu Santos ofereceu versão mais dançante de parte do repertório da dupla Roberto e Erasmo Carlos. 

 

Com novo nome (BB Covers), voltaria à cena em 2013. Um quinteto de figurões "carimbados" do rock nacional, formado por Dado Villa-Lobos (Legião Urbana), João Barone (Os Paralamas do Sucesso), Leoni (Kid Abelha), Toni Platão e pelo produtor musical Liminha (ex-Mutantes), faria uma homenagem aos Beatles. Zeca Baleiro celebraria a obra de Zé Ramalho e Maria Gadú cantaria algumas das mais belas letras de Cazuza. 

 

A temporada fecharia no primeiro domingo de dezembro de 2013, no teatro Vivo Rio, por acaso o mesmo local onde, para mim, tudo começara. 


Numa triste coincidência, Maria Gadú sobe ao palco para celebrar a obra de Cazuza no dia seguinte à morte de João Araújo, pai do poeta-cantor.

Cazuza, Lucinha e Joao Araújo

João Araújo foi um dos executivos mais importantes da indústria fonográfica. Durante 40 anos, esteve à frente da gravadora Som Livre, das Organizações Globo. Com passagem por Copacabana Discos, Odeon (EMI) e Philips (Universal), era tido como grande descobridor de talentos. Tanto que lançou nada menos que Nara Leão, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Lulu Santos, Novos Baianos e, meio que a contragosto (teve que se render aos fatos), o seu próprio filho, Cazuza, com o Barão Vermelho

De muletas ou sentada num banquinho, Maria Gadú solta a voz delicada e intensa, faísca no palco escuro e faz uma magistral releitura de clássicos dos anos 80, como: "Todo o amor que houver nessa vida", "Ideologia", "Exagerado", "Faz parte do meu show", dentre outros.


De repente, canta 'Codinome beija-flor', e lembra que "...a emoção acabou/ que coincidência é o amor/ a nossa música nunca mais tocou..."

 

Maria Gadú: BB Covers, Rio, dezembro/2013

Ela, que também fazia parte do time da Som Livre, ao falar de coincidência e de amor, oferece ao pai o tributo que prestava ao filho: “Quero dedicar este show a João. Se ele não tivesse entrado em minha vida, tudo poderia ter sido diferente”.

 

Sei que "o império mais poderoso e fatal que existe é o das circunstâncias", como dizia o Marquês de Maricá (17731848). Sei também que é difícil para muita gente acreditar em coincidência, mas para mim é mais difícil acreditar que ela não existe. Faz parte do show.

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Minha mãe deve gostar

Dia desses ela me ligou com a voz de quem estava prestes a chorar:

– Meu filho, você viu?

– O quê, mãe?

– Ele morreu... E agora, o que vai ser de Glória?

 

Lamentava a morte do ator Tarcísio Meira, aos 85 anos, vítima da Covid-19. Sua mulher, a atriz Glória Menezes, também fora internada com a doença, mas teve sintomas leves. O casal já havia sido vacinado, porém a situação do marido agravou-se porque, além de cardiopata, sofria de enfisema e insuficiência renal.

 

Minha mãe é daquelas que não conseguem separar a realidade da ficção quando se trata de telenovelas. Se fosse possível, de máscara e devidamente lambuzada de álcool em gel, levaria pessoalmente seu abraço à família enlutada. 

 

Lembrei-me dela no bairro da Gruta, em Maceió, há 45 anos, assistindo ao último capítulo da novela Pecado Capital, da TV Globo. O taxista Carlão (Francisco Cuoco) tentava livrar-se de uma mala de dinheiro – deixada em seu carro, havia meses, por assaltantes em fuga – nas obras do metrô para, em seguida, fazer uma denúncia anônima à polícia. Não deu tempo: foi morto a tiros por um sujeito chamado Tonho Alicate, que rapidamente fugiu do local. Minha mãe não se conteve:

– Pega esse cachorro miserável! 

 

Já vinha indignada porque a suburbana Lucinha (Beth Faria), o grande amor da vida de Carlão, o trocara pelo milionário Salviano (Lima Duarte). O taxista “herdara” por acaso o butim largado em seu carro e resolveu investir numa frota o que antes cogitou devolver à polícia. Pretendia enriquecer e reconquistar a sua amada. E minha mãe virou profetisa:

– Carlão vai acabar se lascando. Essa moça é interesseira, oportunista... Quer é o dinheiro desse velho feio! – referindo-se a Salviano. 

 

Em Pernambuco, 20 anos depois, quando visitava a Usina Pumaty, conheci um de seus principais acionistas, que agia bem parecido com minha mãe. Olhava com insistência para o relógio, enquanto explicava o processo de destilação de álcool, até revelar que tinha pressa. Todo dia, pontualmente às cinco da tarde, voltava para a casa para tomar banho, jantar e ver novelas.

 

Ele havia assistido Ídolos de Pano (1975), exibida pela TV Tupi, onde o vilão Jean (Dennis Carvalho) queria afastar o mocinho, seu próprio irmão Luciano (Tony Ramos), da linha sucessória familiar. Os dois eram os únicos herdeiros de uma rica empresária muito doente. 

 

Dois anos depois a TV Globo exibiria Locomotivas, onde Netinho (o mesmo Dennis Carvalho), sufocado por Margarida (Mirian Pires), sua devotada e humilde mãe, tratava-a muito mal. O usineiro não aguenta e desabafa:

– Esse rapaz nunca me enganou. Não vale nada! 

– Isso é novela! – diz alguém.

– Sei não... Ninguém faz um papel desses com a própria mãe se não for um cabra safado!

 

O poeta Carlos Drummond de Andrade, bem no começo dos anos 70, também revelava grande interesse nos folhetins eletrônicos, mas por outro motivo. Era a época da famosa "gripe" de O Pasquim, ironia com que se justificava a ausência de vários jornalistas presos durante o governo Médici, quando alguns intelectuais (Antonio Callado, Chico Buarque, Drummond, Glauber Rocha e outros) mantiveram "vivo" o jornal com seus textos.

 

Diferente da chamada elite intelectual – que via as telenovelas com reservas –, o poeta percebeu a influência que poderia ter na educação política da sociedade. Só aqui a ficção era consumida diariamente no horário nobre e com tanto espaço. No resto do mundo, foram os livros que saciaram a fome por ficção. 

 

A TV aqui chegou antes de o povo se alfabetizar. Sempre prevaleceu uma tradição mais oral que escrita. Prefere-se ouvir o padre ou o pastor falar a interpretar a Bíblia. Opta-se por contar um caso ao pé-de-ouvido a escrever. Em vez de ler, assiste-se às novelas, o que leva o brasileiro a se identificar bastante com alguns personagens.

 

Quem não recorda o prefeito Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) e o pistoleiro Zeca Diabo (Lima Duarte), personagens de O Bem-Amado, novela de Dias Gomes exibida pela TV Globo em 1973? O autor, aliás, teve que mexer no roteiro por ingerência de Brasília. Proibiu-se que a palavra “coronel” fosse pronunciada. “Coronel” era a forma como o prefeito era tratado, principalmente por Zeca Diabo. 

 

Vedou-se também o termo "capitão" (como Odorico tratava Zeca Diabo). Alguém achou que "capitão" e "coronel" se referiam a patentes militares, quando, no caso, aludiam a políticos ou grandes fazendeiros e alguns capatazes detentores de poder junto aos currais eleitorais dos tempos do voto de cabresto.


Com seus protagonistas (do bem ou do mal), vejo que as telenovelas ainda tocam o coração de pessoas simples como minha mãe. 


Torço para que algum autor se inspire na biografia do irreverente jornalista Apparício Torelly (1895 – 1971), o Barão de Itararé, cujas tiradas ainda desnudam muita gente: 
“Todo homem que se vende recebe muito mais do que vale”. 
“Tambor faz muito barulho mas é vazio por dentro”.
“Se há um idiota no poder é porque os que o elegeram estão bem representados”. 


Como viu muita coisa nas últimas seis ou sete décadas, minha mãe deve gostar.

 

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

O benefício da dúvida

Nunca tive o sono leve. Pelo contrário, trabalhando duro desde moço, batia na cama e só acordava no dia seguinte. Hoje, aos 86 anos, acordo ainda no breu pensando no que me resta por fazer. Velho não deve perder tempo. 

Aprendi que a morte não chega na velhice. Vem em prestações. Morri um pouco quando fiquei viúvo pela primeira vez, aos 50 anos e, pela segunda, aos 70. Minhas ex-mulheres partiram cedo, levando pedaços de mim. 

 

O que sobrou seguiu em frente. Mas já não faço planos para daqui a um, dois anos. Se alguém  me convida para viajar no próximo verão, disfarço ou invento uma desculpa qualquer e me pergunto: vai dar? 

 

Não sou de me queixar de nada, a não ser ter que aturar certas figuras públicas no último estágio evolutivo da imbecilidade humana. Uso meu tempo lendo bons livros, escrevendo memórias, ouvindo músicas, vendo futebol e telejornais. 

 

Antes da pandemia, costumava me reunir bem cedo com uns caras divertidos e desocupados como eu, das cinco às sete, no que chamamos de Senadinho  banca de revistas à beira-mar onde se debate desde a bunda de quem passa até as grandes questões nacionais. 


Veio o coronavírus e tive que me resguardar. Soube que os nobres "senadores" já voltaram do recesso. Com a paralisação de minhas caminhadas matinais, joelhos e tornozelos abriram falência, em conluio com a coluna lombar, dificultando-me até aparar as unhas dos pés ou amarrar o cadarço do tênis. 

Decidi contratar uma pessoa para não depender da ajuda de filhos e netos. Falo de Doralice, 35 anos, uma simpática pernambucana de Macaparana, indicada por meu geriatra de estimação (sim, há um estágio na vida em que o principal amigo da gente é o geriatra; o cachorro vem depois). 

Nunca havia trabalhado como cuidadora. Era diarista, mas pegou covid-19 e, mesmo curada, deixou de ser acionada pelas pessoas a quem servia. Resolvi então fazer uma experiência, por 90 dias, a partir de março deste ano.

 

Em abril, fui surpreendido por Doralice, preocupada com a possibilidade de ser substituída e alistar-se no indecente exército de 15 milhões de desempregados deste País:

– Seu Pinheiro, por tudo que é mais sagrado, não me demita!  

– O que houve, menina? 

– Eu não queria, mas...

– Aconteceu o quê?

– Tô grávida...

– Como foi isso?

– Vai dizer que o senhor não lembra mais como isso acontece?

– Não é isso...

– Meu namorado... Anda num fogo medonho, mesmo quando chego em casa morta de cansada.

– E agora?

– Agora, tô eu aqui sem saber o que vai ser de mim.

– Por quê o medo?

– Sei lá! Como vou cuidar do senhor e da criança? 

– Tem jeito para tudo... Menos para morte.

 

Falei da boca para fora para aquietá-la. De fato, tínhamos um problema. As dores nas minhas articulações e na coluna lombar só aumentavam e minha dependência, também. O que ela fará quando tiver que escolher entre me ajudar a tomar meus remédios ou oferecer o peito à criança?

 

O namorado dela não conseguia emprego. Tinha antecedentes criminais. Tocava uma barraca de milho cozido e coco verde que ficou fechada por mais de seis meses por causa da pandemia. E mesmo com a reabertura na virada do ano, as vendas despencaram.

 

Apesar do risco, optei por ficar com Doralice. Cancelei o contrato de experiência e assinei sua carteira profissional por prazo indeterminado. Coincidiu que o namorado, na semana seguinte, sofreu uma denúncia anônima e está preso, cumprindo dura pena por tráfico internacional de drogas. Existe, pois, razoável chance de ele nem chegar a conhecer o filho.

 

Como nunca dei espaço a meus familiares para que se metam em minha vida, e sensibilizado com o completo desamparo de Doralice, ofereci a ela a possibilidade de prestar seus serviços morando em meu apartamento – com todo respeito, óbvio. Disse-lhe até que fazia questão, mais adiante e havendo tempo, de passear com o carrinho pelas calçadas do bairro com “meu” afilhado, o que vai me dar a sensação de eternidade e poder na área.  


Ela compreendeu perfeitamente. Nisso, bateu uma vontade danada de abrir uma garrafa de vinho e ouvir João Gilberto cantando Caymmi: 

"Doralice, eu bem que te disse

Amar é tolice, é bobagem, ilusão..."

 

Ilustração: UMor
Ilustração: UMOR

Três meses de fisioterapia depois, ando dormindo feito criança e, semana passada, com a ajuda dela, voltei às caminhadas matinais. Não vou negar, morro de rir só imaginando o que vai na cabeça dos curiosos, inclusive meus nobres colegas “senadores”, quando passamos de braços dados: eu, a disfarçar minhas dores e Doralice, com um barrigão daqueles. 

Como a dúvida me favorece, melhor deixar assim.

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Anjos do bem-estar

– Meu filho, corte esse cabelo... Você tá parecendo um mascate!

– O que é isso? – perguntei.

– É aquele vendedor ambulante que oferece bugigangas de porta em porta, como o Ariovaldo – personagem de Gianfrancesco Guarnieri em “Meu Pé de Laranja Lima”, telenovela exibida no começo dos anos 70 pela extinta TV Tupi.

 

Deu-se assim meu primeiro contato com Dr. Casado, chefe do serviço médico da agência do Banco do Brasil, em Maceió. 


No horário comercial, o ambulatório atendia não só aos funcionários em suas pequenas queixas (resfriado, dor de cabeça, de barriga etc.), como também a familiares que precisassem de avaliação clínica ou serviços de enfermagem.

 

Ele e outros pelo País afora foram precursores do chamado médico de família no âmbito corporativo. Tinham o papel de evitar que as pessoas faltassem ao trabalho por uma tolice qualquer ou por conta de consultas, exames e procedimentos que pudessem trazer mais riscos do que benefícios. 

 


O tom paternal, a confiança que inspirava e o perfil generalista eram traços nítidos naqueles que atuavam "até" como médicos. Serviam, também, de confidentes, conselheiros, padres e psicólogos nas catedrais de antigamente, algumas com mais de 300 almas tecendo suas histórias.

Dr. Casado nunca prescreveu uma injeção para ninguém. Dizia, com a senioridade de pediatra  acostumado a lidar com seres humanos em construção, que o caminho natural para a entrada de medicamentos era a boca. Simples, não? E ai de quem duvidasse disso!

 

Certo dia uma mãe chegou com o filho no colo e lhe pediu que receitasse algumas vitaminas. Ouviu o que não queria ouvir: 

– Esqueça as farmácias. Vitamina para criança se compra no mercado, minha senhora. É banana, é beterraba, é cenoura, é laranja, é tomate... 

 

Maerbal, o perito de balanços, soube do episódio e comentaria o caso com ele pouco depois:

– Doutor, isso acontece...

– Pois é. Você não faz ideia da quantidade de mães que chegam aqui, por exemplo, dizendo que o filho precisa de exame de sangue.  

– E aí?

– Então, eu pergunto: que exame? E elas: de sangue, doutor, de sangue! O senhor não sabe o que é exame de sangue?

 

Agripino, contínuo que cuidava da recepção e expedição de documentos, queixava-se de dor de garganta e calafrio. Foi atendido pelo Dr. Casado, que lhe prescreveu alguns remédios básicos para alívio dos sintomas gripais.

  

Três dias adiante, Agripino volta e diz que os remédios não surtiram efeito. E já foi mostrando uma garrafada daquelas que misturam alho, cebola, gengibre, limão, mel, sabugueiro e outros: 

– Um amigo me deu, doutor. Será que faz mal?

– Nem bem... – Resumiu o médico.

Na semana seguinte, o próprio Dr. Casado gripa, faz de tudo e nada de a virose ceder. Então, com a humildade dos sábios, liga para Agripino:

– Como é mesmo o nome daquele seu amigo da garrafada? 

 

Havia outro médico no serviço, chamado Dr. Zé Maria, membro da Academia Alagoana de Letras, cuja disposição para o trabalho era nula nas primeiras horas da tarde. Nem fechava mais a porta do consultório para tirar uma boa soneca, com sibilante ronco ouvido na sala de espera.

 

Numa tarde, Armando, outro contínuo, não suportando a enxaqueca, cutuca o braço de Dr. Zé Maria em pleno cochilo:

– Doutor, o que eu tomo para acabar com esta dor de cabeça miserável?

– Vá naquele armário e pegue um Melhoral – aponta o médico, sem abrir os olhos.

– Mas doutor, só vejo ali daquele comprimido rosinha (Melhoral Infantil).

– Tome dois... Mas me deixe sossegado, volte mais tarde.

 

Nunca esqueci desses anjos do bem-estar. Quando adolescente, quis até ser um deles – médico e empregado de uma grande empresa. Em Brasília, 40 anos depois, trabalhei na Cassi (operadora de planos de saúde de funcionários do BB e familiares) e soube de outras histórias envolvendo esses profissionais, com importante contribuição para a melhoria do ambiente corporativo.

 

Um deles atuara na agência central de Brasília e já havia muitos anos abandonado a profissão. Descansava então numa chácara nos arredores do Distrito Federal.

 

Certa noite, bateram à porta. Ele, arrastando os pés, foi ver quem era: deu de cara com um vizinho de uma chácara próxima, passando o fim de semana com a família.

– Doutor, acuda pelo amor de Deus, minha mulher vai dar à luz!

– Ih, meu filho, tem anos que não mexo com isso.

– Só tem o senhor aqui por perto. Eu não entendo nada. Pelo menos ajuda minha mulher, corre lá.

 

O velhinho demorou meia hora para encontrar os óculos, percorrer o trajeto até a casa do vizinho, higienizar as mãos e chegar ao quarto do casal. 

 

Fechou-se lá com a mulher e cuidou de tudo. O parto foi perfeito, sem intercorrências. Ele deitou a criança ao lado da mãe e foi avisar ao marido.

– Deu certo. Nasceu em paz e está tudo bem.

– É menino ou menina, doutor? – quis saber o pai aflito.

– Olhe aqui, meu rapaz, se não me falha a memória é menina!

 

E foi-se embora como se nada tivesse acontecido.

quarta-feira, 4 de agosto de 2021

Por acaso, aconteceu

Cansado e morto de sono naquela manhã de sábado, 24 de abril de 1982, mesmo assim acabei convencido por minha mulher a não desistir da prova interna de ascensão profissional ao nível médio da carreira administrativa do banco em que trabalhava. 

Cogitei também não fazer a prova porque, se fosse aprovado, teria que assumir as novas funções no interior de Alagoas. Não havia vagas nas agências da capital, onde também estudava.

 

Na noite anterior, tinha socorrido uma amiga e vizinha nossa, por volta das 22 h, que sofrera as dores de seu primeiro parto. O marido costumava escapulir, com destino ignorado, nas noites mornas (ou tórridas, sei lá!) de sexta-feira.

 

Por ser médica, nossa vizinha sabia que o parto normal seria o melhor para si e para os gêmeos que se apressaram, porque, além de a recuperação ser mais rápida, o risco de infecção seria menor. Haveria menos sangramento, menos dores, permitindo-lhe cuidar logo das crianças. No entanto, concluiu-se que uma cesariana seria a opção mais segura.

 

Apesar do adequado acompanhamento pré-natal, logo após o nascimento instalou-se um perigoso quadro de eclâmpsia, doença caracterizada por alterações na pressão arterial e repetidos episódios de convulsões que causam dificuldades respiratórias, insuficiência de fígado, rins etc. Poderia ser fatal.

 

Às duas da madrugada, com o maridão ainda em lugar incerto e não sabido, tive que ir às pressas ao único banco de sangue da cidade em busca de uma chamada papa de hemácias. A transfusão deveria ser feita o mais urgente possível para corrigir anemia grave. Logo eu que, até ali, só ouvira falar de papa de aveia ou de amido de milho, que me obrigavam a engolir quando criança.

 

A responsável pelo banco de sangue não podia ceder as únicas bolsas disponíveis do tipo pretendido, que estavam reservadas para uma cirurgia marcada para as dez da manhã. Só depois de obstinada negociação (além de compromisso por mim firmado) consegui convencê-la de que bem cedinho estaria de volta com pelo menos quatro doadores para repor o estoque. 

 

O dia raiava quando a equipe médica nos trouxe a notícia de que a situação estava sob controle e que nossa vizinha, devidamente medicada, finalmente cochilava, iniciando o processo de recuperação daquela longa noite. Tudo ia bem, exceto quanto ao débito pendente junto ao banco de sangue.

 

Confesso que ao assumir o compromisso de repor o estoque de sangue engendrei um plano de ação de acentuado risco porque dependeria de terceiros, em particular de um amigo de infância, oficial militar vinculado ao 59º Batalhão de Infantaria Motorizado, em Maceió. 

 

Antes das cinco e meia da manhã, lá estava eu batendo palmas à porta desse amigo a pedir ajuda. Seguimos para o quartel, onde um razoável contingente de soldados se preparava para as tarefas repetitivas e inúteis do dia. Foram então interrompidos pelo tenente: “Quem se dispõe a doar sangue do tipo...?” – indagou.

 

Como não apareceram voluntários, o tenente refez a pergunta agregando uma informação importante, sobretudo na manhã de um sábado ensolarado, o que de imediato levou meia dúzia de interessados a darem um passo à frente: “...Os cinco primeiros serão dispensados dos serviços do dia”. 

 

Às sete da manhã, coleta de sangue processada, honrei meu compromisso com pontualidade suíça: o saldo do banco estava devidamente recomposto do desfalque durante a madrugada.

 

Voltei então para casa disposto a tomar um banho morno, beber um café com leite e ir direto para a cama dormir três ou quatro horas, antes de retornar à maternidade para visitar a convalescente e seus rebentos. Foi quando minha mulher, mesmo reconhecendo a fadiga em pessoa, convenceu-me a não desistir da prova interna de ascensão profissional. 

 

Imaginei que o processo seletivo traria questões sobre rotinas de pagamento, práticas contábeis, saques, atendimento a clientes, análise de operações de crédito etc. Mas, em 1982, não se falava em coisas como: consultoria financeira ou venda de produtos como planos de capitalização, seguros e consórcios. Nada disso!

 

O desafio era outro, inédito para os candidatos: assumindo o papel de gerente de uma agência, cada um deveria redigir uma carta-resposta, com pelo menos 20 linhas, negando à diretoria de RH da empresa, de forma ampla e circunstanciada, pedido de cessão de dois funcionários para trabalharem noutra localidade.

 

Bem mais tarde aprendi que ficcionista não é apenas quem escreve literatura. O ficcionista tem uma conduta perante a escrita que, em sentido mais amplo, é uma atitude diante da própria vida. Se o poeta necessita de clareza, concisão e sensibilidade, o ficcionista precisa disso tudo e mais: de vivência. 



Por acaso, eu tinha uma boa história para contar. Imaginei minha vizinha como se fosse uma devotada servidora do banco, casada com outro colega nosso. Então, usando nomes fictícios, apenas relatei o ocorrido e esclareci que ambos, a partir da segunda-feira, estariam licenciados para se recuperarem do susto e cuidarem dos primeiros dias de seus inocentes filhotes, quase órfãos de mãe ainda no ninho.


Não havia como uma agência de 20 funcionários, desfalcada de 10% de seu quadro, ceder mais dois sem sacrificar o relacionamento com seus clientes, com reflexos nos resultados.

Sempre soube que olho de banqueiro só lacrimeja se for de vidro, mas os corretores da prova (bancários, como eu) se deram por satisfeitos. E, por acaso, nem precisei voltar para o interior de Alagoas. Mas isso é outra história.


quarta-feira, 28 de julho de 2021

Eu vi! Ninguém me contou

 Um dos mistérios desta vida é o eterno desencontro entre expectativa e realidade. Sei que as duas são irmãs gêmeas, crias da mesma costela, mas, pelo menos no meu caso, nunca entram em acordo. Quase tudo que vejo pela primeira vez é maior ou menor do que imagino. 

 

De tanto ouvir as transmissões esportivas da Rádio Globo do Rio de Janeiro nos anos 70, eu não sonhava conhecer o Cristo Redentor do topo do Corcovado, o Pão de Açúcar, a Baía de Guanabara, a floresta da Tijuca ou as praias de Copacabana, Ipanema e Leblon. Queria mesmo assistir a uma partida de futebol no Maracanã, curtir o território das paixões de um Vasco x Flamengo.

 

Demorou. Só bem mais tarde, na primeira semana de agosto de 1987, a empresa em que trabalhava me designou para a “espinhosa” missão de participar de um curso durante cinco dias, no Rio, com direito a passagem aérea e estadia no velho Ambassador, na Lapa. 

 

Para evitar o aborto de alguns projetos paralelos, em minutos a minha bagagem estava pronta, inclusive com o radinho Philips, parceiro de tantas jornadas esportivas e musicais. E voei nas asas da Varig logo no sábado, antevéspera do início do curso.

 

No domingo, tornei-me amigo de infância de um taxista que, logo após o almoço, foi comigo pela primeira e única vez ao templo sacrossanto do futebol mundial, onde o Vasco enfrentaria o Flamengo, tentando conquistar seu 16º título estadual.

 


Pouco antes do início do jogo, o ar enfumado se encheu de cheiros, cores e sons de vários tons, misturando garoa fina, reconhecimento e veneração, quando os alto-falantes anunciaram as presenças de Roberto Dinamite e Zico. 

 

Os dois fingiam que nada daquilo era com eles. Caciques de duas tribos apaixonadas, nunca se viu nenhum desses guerreiros se dirigir à nação adversária com provocações. Ficou fácil compreender por que, apesar do declínio fisico a partir dos 33 anos, relutavam em aceitar que o tempo não espera ninguém. 

 

Não duvido nada que o barulho tenha arrepiado os braços da estátua de Bellini nos arredores do estádio, onde, como dizia o anjo vascaíno Aldir Blanc, camelôs vendiam anel, cordão e perfume barato; baianas faziam pastel e um bom churrasco de gato.

 

Lá dentro, éramos 115 mil almas em êxtase diante de figuras míticas como Dinamite, Geovani, Mazinho, Tita e o então menino Romário, que enfrentariam gigantes como Zico, Leandro, Aldair, Andrade e Bebeto. 

 

Dois lances traduziram bem o enredo do jogo: a bola alçada sobre a grande área rubro-negra em que Dinamite a amorteceu no peito e rolou para o arremate indefensável de Tita, e o voleio de Bebeto da marca do pênalti, no fim do jogo, para a monstruosa intervenção do goleiro Acácio.

 


A propósito, o fato de o gol do título ter sido marcado pelo cruzmaltino Tita contra seu ex-clube, que mereceu vibrante narração do locutor José Carlos Araújo "Garotinho" (reveja aqui), deu à conquista um sabor especial de bacalhau à lagareiro com vinho tinto de boa safra.

 

O esplendor da catedral do futebol, a simbiose da assistência (arquibancada e geral) com os atores em cena, o "uhh!" a cada lance mais agudo no gramado, tudo acabou bem maior do que minha melhor expectativa.

 

Quatorze anos depois, em 2001, quando estive no Velho Mundo pela primeira vez, foi frustrante dar de cara com o mais badalado símbolo do Império Romano: o Coliseu, no centro da capital italiana.

 


Tinha comigo que encontraria algo parecido com o Maracanã. Havia lido que fora construído num local que havia sido devastado pelo grande incêndio de Roma durante o governo de Nero. 

 

Sabia que o espetáculo mais comum era a luta entre gladiadores. Ou entre guerreiros e animais selvagens (leões, tigres e até elefantes), trazidos da África para matar ou morrer. 

 

Que a partir do século VI, já na Idade Média, o estádio mudou o objeto original e passou a servir de habitação, oficina, forte, sede de ordens religiosas e templo cristão. 

 

Na virada deste século, mesmo em ruínas, o Coliseu ainda era reconhecido como uma das sete maravilhas do mundo moderno.  

 

Bem menor, porém, do que o Maracanã que conheci  naquela tarde fria de domingo e que trago comigo há mais de três décadas. Eu vi! ninguém me contou. 

 

Sei que agora nem o Maracanã nem o Vasco são os mesmos. Nem eu. Mas não me afobo. O fim não é para já. O Rio, como diz outro poeta carioca de boa cepa feito Aldir Blanc, ainda vai virar uma cidade submersa e os escafandristas virão explorar suas ruínas.

 

Quem sabe escutar o eco de cânticos e gritos de amor e dor, vestígios de glórias e tragédias de uma imensa torcida bem feliz que hoje está lá estendida no chão. Com um silêncio servindo de amém.