No final do ano passado, a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ) apresentou projeto de lei que deverá ser apreciado pelo plenário da Câmara nos próximos meses mas já provoca intensa troca de farpas nas redes sociais. A proposta, se acolhida, altera o artigo 155 do Código Penal, isto é, descriminaliza o “furto por necessidade” e define o que é “furto insignificante”.
O crime de furto é a subtração de parte do patrimônio de alguém sem o emprego de violência. O Código Penal prevê cadeia de um a quatro anos e multa. A lei ainda admite o aumento da pena para quem furta durante a noite, horário em que as pessoas costumam dormir. Mas quando se trata de pequeno valor, permite a redução da pena ou até o perdão, aplicando-se apenas multa.
A justificativa para desqualificar o crime de furto é o recrudescimento da miséria nos últimos anos. O projeto caracteriza furto por necessidade quando “algo for subtraído em situação de pobreza ou extrema pobreza para saciar a fome ou necessidade básica imediata (água, remédio, por exemplo) do responsável pelo ato ou de sua família”.
E será considerado furto insignificante se a perda do ofendido for irrelevante em relação a seu patrimônio total (algo como um bilhão de dólares, no caso do dono do Facebook).
No documento, que já se encontra na Comissão de Justiça e de Cidadania desde 04/02/2022, a deputada pondera que o crime de furto corresponde apenas a 11,7% da população encarcerada, mas aumenta a superlotação nas prisões. E põe o dedo também na ferida do encarceramento seletivo brasileiro, onde negros e pobres têm bem mais dificuldade de acesso à defesa no sistema prisional.
Na contramão desse retoque cosmético na lei, que pretende tornar menos injusta uma das nações mais desiguais do planeta, li outro dia que nos últimos três anos a quantidade de armas em circulação no Brasil aumentou mais de 300% depois que se facilitou o acesso a elas.
Ou seja, ainda que o projeto de lei seja aprovado, já está aberta a porteira para o revide a bala por parte daqueles que se julgam ofendidos por essa modalidade de furto, mesmo que não haja ameaça, violência ou qualquer tipo de arma. O ladrão de galinha (se é que sobrou algum), coitado, pode ser liminarmente condenado à morte, em ato de pretensa legítima defesa do dono do galinheiro.
Pouca gente se deu conta de que o Brasil já atingiu a marca de mais de 1,85 milhão de colecionadores de armas, atiradores esportivos e caçadores, segundo os institutos Sou da Paz, de São Paulo, e Igarapé, do Rio de Janeiro.
E pior – se é que pode piorar! – é que possuem licença especial para comprar. A lei permite que adquiram até 60 armas, sendo que metade delas de uso restrito, como um fuzil capaz de produzir 750 disparos por minuto. Além da compra anual de até 180 mil balas.
Morro sem entender o que pretendem esses colecionadores e atiradores esportivos, admitindo-se que faça algum sentido em relação aos caçadores (menos para a caça, óbvio!).
Caçadores, aliás, podem comprar até 30 armas e até seis mil balas. Já para os colecionadores a lei não impõe limites. Diz apenas que podem adquirir até cinco peças de cada modelo de arma e seis mil balas. Como existem centenas de modelos, fico imaginando o tamanho do arsenal que cada “gatilhomaníaco” pode empilhar.
Com esse cheiro de pólvora no ar, outra encrenca séria merece cinco minutos de reflexão: a facilidade de acesso a armas de fogo e a consolidação do desmonte da política de controle que se promoveu nos últimos anos. O assassinato de mulheres em violência doméstica ou por aversão ao gênero da vítima (misoginia) tem como “instrumento” principal o disparo de arma de fogo. Só não enxerga quem, por estupidez ou má-fé, não quer enxergar: arma em casa pode até proteger, mas também arma bandido, inclusive doméstico.
O projeto da deputada, portanto, pode ser um tiro no pé. E também um tiro no escuro (sem trocadilho, por favor!). Para mim, não será surpresa se decidirem aprová-lo com a condição de que também seja acolhida uma proposta do Executivo (PL 3723/2019) que flexibiliza o registro, a posse e o comércio de armas de fogo e munições, escancarando de vez o risco de matança indiscriminada de miseráveis.
Talvez até já se cogite abortar o projeto da parlamentar, temendo-se o extermínio em massa de ladrões de goiabas e mangas. Caso contrário, a pretexto de acabar com a fome por outros meios e modos, vai ter neurótico a torto e a direito abatendo beija-flor com tiro de bazuca.
Se ainda estivesse entre nós, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, diria mais uma vez que "A justiça é como uma serpente; só morde os pés descalços". Existem várias formas de se dizer isso, nenhuma com tanto veneno e maestria.
Vai-se ver já existem “sábios” de gabinete discutindo o abrandamento de penas e prazos de prescrição para outros “pecadilhos veniais” como apropriação indébita, desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, peculato, prevaricação, rachadinhas, sonegação e suborno.
E rindo da cara de bestas como eu, aqui especulando aonde tudo isso vai dar.