quarta-feira, 23 de março de 2022

Ela nunca soube dele

Circulou na internet, outro dia, a notícia de que o único hospital público da cidadezinha italiana de Catanzaro descobriu que um de seus funcionários faltava ao trabalho havia 15 anos. Durante o período, continuou constando na folha de pagamento, com salário integral. Parou de comparecer logo após ser contratado e teria recebido nada menos que 530 mil euros, cerca de 3 milhões de reais. 

O nome não foi revelado, mas o sujeito acabou acusado de fraude, extorsão e abuso de poder. Ainda em 2005, ele teria ameaçado o chefe para que não preenchesse o relatório de avaliação e disciplina de forma desfavorável. E depois que o chefe se aposentou, nem o sucessor nem o RH notaram a ausência.

  

O caso italiano me remeteu ao que acontecia nas catedrais bancárias que havia nas grandes cidades brasileiras, onde centenas de pessoas se espalhavam por vários andares, cada qual com sua sacola de interrogações sobre a vida.

 

Conta-se que uma sucuri de oito metros se escondeu no almoxarifado de um desses templos e se mantinha viva porque, de três em três dias, esmagava e comia uma pessoa. Como eram muitas, ninguém dava pela falta até o dia em que caiu na besteira de escolher o rapaz que servia cafezinho – esse, sim, imprescindível à rotina dos trabalhos. O gerente e dois chefes já haviam sido degustados, sem que ninguém se incomodasse com ela. 

 

Lenda urbana, óbvio, mas quando trabalhei na agência do Banco do Brasil em Maceió, na metade dos anos 1970, conheci Gabo (vou chamá-lo assim porque, se ainda estivesse entre nós, de rosto lembraria o rapper Gabriel, o Pensador), um caboclo sorridente com aparência de indiano, olhos apertados, barba rala e bucho de lâmpada. Parecia ter o dom da invisibilidade: ninguém notava, mas ele não perdia uma estreia no Cine São Luiz, isso em pleno horário do expediente.

 

No já distante 1974 em que a nação ansiava por liberdade – o ano anterior é reconhecido como o de maior repressão do regime militar –, fazia tremendo sucesso um produto genuinamente nacional: a pornochanchada, que derivou da chanchada, gênero cinematográfico onde predominava um humor inocente e popular.



As chanchadas apareceram entre os anos 1940 e 1960, revelando nomes como Adelaide Chiozzo, Anselmo Duarte, Emilinha Borba, Grande Otelo, Oscarito e Zé Trindade. Já as pornochanchadas vieram nas décadas de 1960 e 1970, destacando-se Vera Fischer, Otávio Augusto, Sonia Braga, Jorge Dória, Selma Egrei, entre outros.

 

Com roteiros rasos, focados em situações eróticas, maliciosas, algumas cenas de nudez nada explícitas, os donos de cinema dispunham de material abundante (e bota abundante nisso!) para lotar as salas por várias semanas. 

 

Tudo caminhava bem para eles até que os ventos mudaram com um surto de locadoras de vídeo e com a profusão de novos cultos pentecostais, envolvendo congregações que tomaram de assalto centenas de prédios na bacia das almas da recessão econômica no final dos anos 1980.

 

Mas voltemos a Gabo. Ao entrar em cartaz “Anjo Loiro”, protagonizado pela atriz Vera Fischer, ele escapuliu logo após o almoço na própria agência e foi assistir à primeira sessão. E como gostou! Tanto que, antes de voltar à labuta, resolveu comemorar com algumas tulipas no Bar do Chope (quase vizinho ao banco), por certo lembrando das cenas mais picantes.

 

Naquela tarde, apesar do calor, o tempo passou ligeiro. Quando deu por si, alguns colegas já tomavam o rumo de casa. Então pediu a conta, acendeu outro cigarro, levantou-se e saiu trôpego em direção ao ponto de ônibus na praça da Catedral. Não sem antes passar novamente defronte ao Cine São Luiz. Precisava rever o cartaz do filme. 



Gabo chegou cedo ao trabalho na manhã seguinte e assinou o ponto como se nada tivesse acontecido. E nada aconteceu mesmo, exceto a ressaca vulcânica cobrando um pote de água gelada, além da constatação de sua absoluta insignificância no pedaço. Sua ausência na tarde anterior passara despercebida até pelos comparsas de copo. 

 

Um deles, entretanto, que padecia do mesmo grau de invisibilidade corporativa, sensibilizado com a tristeza de Gabo, ofereceu café com pão e o ombro. E ouviu seus “ais”:

– Tô pouco ligando para o que pensam! – exclamou Gabo, conferindo de rabo de olho o entorno.

– Não entendi... 

– Duro é ela nem saber que existo… 

– De quem você tá falando?

– Ai, ai… – suspirou, inconformado – Se Verinha soubesse e topasse, teria casa, comida, roupa lavada, plano de saúde e pensão... Pro resto da vida.

– O que você sente, você atrai. O que você acredita, torna-se realidade, bicho! – filosofou o colega, admirador do astrólogo e radialista Omar Cardoso, para quem todos os dias, sob todos os pontos de vista, se dizia cada vez melhor.

 

Gabo, não. Durou pouco e cada vez pior. E sua musa, imagino, nunca soube dele. 

quarta-feira, 16 de março de 2022

Choro e ranger de dentes

Do jeito que as coisas andam, em breve assistiremos  em bares, telas e lares, a animais supostamente racionais se atacando a mordidas, entre grunhidos e rosnados. Isso, óbvio, caso prevaleça o bom senso: não se opte por algo mais natural aos seres humanos como o emprego de armas (brancas ou de fogo) para aplainar diferenças de opinião, inclusive entre membros de uma mesma família.

 


Não será novidade para quem, como nós, vimos o
ex-atleta corintiano Emerson Sheik quase arrancar um pedaço da mão do argentino Matías Caruzzo, do Boca Juniors, na final da Copa Libertadores de 2012, no estádio do Pacaembu, em São Paulo. Ou o zagueiro italiano Giorgio Chiellini, sentado no gramado da arena das Dunas, em Natal, urrando de dor com o ombro cravejado pelos dentes do centroavante uruguaio Luis Suárez, na fase de grupos da Copa do Mundo de 2014. Ou, mais remotamente, o ex-pugilista norte-americano Evander Holyfield, em 1997, na arena MGM, em Las Vegas, nos Estados Unidos, espumando de raiva ao ser abocanhado por Mike Tyson, que lhe rasgou um pedaço da orelha e cuspiu no chão, o que só aumentou a dor da ofensa. 


Nos três episódios, um detalhe em comum me chamou a atenção: nenhum dos canibais utilizou um pedaço de fio dental ou um palito para limpeza da arcada dentária, higiene mínima antes da próxima investida. Nem mesmo aquela escovinha básica com as cerdas desgastadas e nojentas.

 

Mordeduras humanas são mais frequentes do que se imagina. Andei lendo sobre o assunto e descobri que ocupam a 3ª posição entre as dentadas de mamíferos mais comuns, atrás apenas das ocorrências envolvendo cães e gatos. Os bichos (inclusive o da Receita Federal que nos morde sem dó todo santo mês), entre latidos e miados, têm a seu favor o fato de não possuírem repertório de palavras e gestos para aparar as arestas numa discussão. Desconfio, aliás, de que Lobão (não o cantor e compositor de “Me chama”, mas um poodle que havia lá em casa) se fazia de surdo só para não ter que me trazer jornais, revistas ou água.

 

Em crianças, ao que apurei, os estragos causados pelas dentadas são mais corriqueiros nos braços e nas mãos, no tronco ou no rosto. Já em adultos e adolescentes, nos membros superiores, principalmente quando do revide a murros ou tapas contra a boca. 

 

Em adultos, cerca de 15% das lesões por mordidas curiosamente acontecem durante as estripulias sexuais. Os experts não deixam claro quais seriam as partes mais afetadas nem se isso estaria ligado à fúria ou ao prazer dos envolvidos. Se bem que, tirante aquelas pessoas que nunca experimentaram da fruta ou não sabem do que estou falando, todos fazem ideia de como essas coisas acontecem.

 

Descobri que os molares do ser humano podem apertar mais de 100 kgf (quilograma-força). Superam inclusive o orangotango, mas ficam atrás do chimpanzé e do gorila, por exemplo. Não são as mordidas mais perigosas e temidas do reino animal, porém são capazes de causar lesões graves e amputações em dedos, nariz, lábios, orelhas e até órgãos genitais, onde a pele é mais fina e sensível, por supuesto

 

Pior que a boca do agressor abriga uma vasta comunidade microbiana, com muitas bactérias que se fixam na mucosa, na língua, na gengiva e nos próprios dentes, entre as quais Staphylococcus, Streptococcus pneumoniae, Treponema pallidum, etc. A depender da “pegada”, quando algum desses micro-organismos cai na corrente sanguínea da vítima, é aí que o bicho pega. Literalmente.

 

Pois bem. Se a mordida do ser humano, que possui 32 dentes (mais que cão ou gato), produzir mais que um rasgo superficial, atingindo articulações e tendões, há risco de causar graves problemas, como hepatite, sífilis, tétano ou tuberculose. O bafo-de-onça aqui é o de menos! 


Podem argumentar que estou sendo exagerado, paranóico, mas, insisto, do jeito que as coisas andam... A língua, por mais afiada que seja, corta bem menos que os dentes. E a forma como certos homens públicos (e seus seguidores) se olham ou se referem aos adversários me leva a crer que estamos prestes a assistir a milhares de mordidas furiosas, com direito a choro e ranger de dentes na fornalha eleitoral que vem aí.


O ser humano é tido como animal racional porque reflete e possui o dom da fala. É criado solto, sem coleira nem focinheira. Mesmo assim, vira e mexe morde o seu semelhante. E é mordendo que ele acaba revelando o animal que é. 

 


quarta-feira, 9 de março de 2022

O último ao cair da noite

Vem de longe a paixão pelo futebol, desde o vexame na Copa do Mundo na Inglaterra, em 1966.  Aos oito anos, passava férias no sítio onde viviam meus avós maternos, à margem do rio Paraíba, quando aprendi com um de meus tios a “ver” futebol ao pé do rádio. 


Ninguém imaginava que naquele 12 de julho de 1966, em Liverpool, berço dos Beatles, Pelé e Garrincha disputariam contra a Bulgária sua última partida, juntos, pela Seleção brasileira. Uma história curta e intensa de 16 jogos, com duas conquistas mundiais. E se os deuses da bola não reservaram melhor sorte para o Brasil, foram justos com os dois maiores gênios da bola forjados nos campinhos de terra batida do interior.

 


Pelé abriu o placar aos 15 minutos do primeiro tempo e Garrincha ampliou aos 18 minutos da etapa final, ambos em cobrança de falta. Mais tarde, pude rever nas páginas da revista Manchete o que a imaginação me antecipara pelo rádio.

 

Três dias depois o rei não pôde enfrentar a Hungria, recuperando-se dos pontapés sofridos na estreia. Sem ele, o Brasil foi derrotado por 3 a 1. Tentaria a classificação para a fase seguinte contra Portugal. Mas, com o craque de novo caçado em campo e nove alterações em relação à partida anterior, a Seleção perdeu pelo mesmo escore. 

 

Disseram que o fracasso teria sido castigo por causa da desorganização e da arrogância dos brasileiros (dirigentes, comissão técnica e atletas), convencidos de que eram os melhores e se repetiria o êxito dos mundiais anteriores, realizados na Suécia e no Chile. Engoli assim minha primeira frustração esportiva. Mesmo sem saber o que era “arrogância”, que me soava mais um desconforto na barriga. 

 

Quatro anos mais tarde, já em Alagoas, vi (pela TV) Pelé, Jairzinho, Gérson, Rivellino e Tostão encantarem o planeta com um futebol de outra galáxia. Aos 12 anos, a paixão revelava traços patológicos: obcecado até pelo cheiro de tinta da revista Placar, sabia de cor e salteado nome e sobrenome dos heróis que trouxeram do México, em 1970, a taça Jules Rimet. Mesmo sem saber da dor daqueles que sofriam com o sumiço por aqui de entes queridos.

 

Doze anos adiante, em 1982, o Brasil, que já havia conquistado três mundiais e se consolidara como principal potência no esporte mais popular do mundo, chegou à Espanha como favorito ao título, com um time excepcional (Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior). Mas, aos 24 anos, meus vizinhos tiveram que ouvir meia dúzia de palavrões felpudos quando da queda da Seleção diante da Itália. Castigo pelos erros individuais e, de novo, pela soberba coletiva.

 

Vi também pela TV, em 1994, o tetra de Romário, Bebeto, Dunga, Aldair e Taffarel. E, em 2002, os Ronaldos, Rivaldo e Roberto Carlos conquistarem o penta. Porém já não éramos os mesmos: nem a Seleção, nem eu, àquela altura aos 44 anos, com os filhos criados. A vida embrutece paixões, desconstrói castelos. Deixa acesa apenas a lamparina da esperança com dois dedos de querosene, luz opaca e oscilante, como no sítio de meus avós ao cair da noite.

 

Quase 20 anos depois da última conquista mundial relevante, outro dia ouvi que “a Seleção se distanciou do torcedor". Foi Neymar, 30 anos – idade com que Pelé sagrou-se tricampeão mundial. "Hoje, a Seleção não tem mais a mesma importância, não sei como chegamos a esse estado", disse ele no podcast Fenômenos, apresentado pelo streamer Gaulês e por Ronaldo, hoje dono do Cruzeiro de Belo Horizonte. 

 

Em sua longa adolescência, Neymar não sabe, mas pouca coisa me encanta (ou espanta!) na terra onde os últimos ex-presidentes da “dona” da Seleção (a CBF) perderam o cargo envolvidos em escândalos de corar certos políticos. Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero foram banidos por corrupção ativa e passiva. E Rogério Caboclo, por assédio moral e sexual. Talvez não tenha dado tempo de se igualar, na folha corrida, aos antecessores. 

 

Enquanto isso, a Premier League (Inglaterra), La Liga (Espanha), Bundesliga (Alemanha), Serie A (Itália) e Ligue 1 (França), brilham no topo das ligas de futebol mais organizadas e rentáveis do mundo, saboreando o crème de la crème, inclusive uma porção bem servida por expatriados brasileiros ainda crianças.

 

Faltam alguns meses para a Copa do Mundo Qatar – 2022. Não sou de rogar praga, mas penso que o Brasil nunca esteve tão próximo de repetir o fiasco ocorrido na Inglaterra, em 1966, voltando mais cedo para casa. O triunfo dos incapazes (ou desonestos) continua sendo apenas uma hipótese estatística. Ainda bem. 

 

Novo vexame pode ser o abano da brasa que ainda queima nos campinhos de periferia onde os times são escolhidos no “par-ou-ímpar”, não precisa árbitro e, pouco importa o placar parcial, ganha quem marca o gol da lua – o último ao cair da noite, o único que faz da guerra perdida a vitória arrebatadora. 

quarta-feira, 2 de março de 2022

Cabeças desocupadas

Meu vizinho outro dia apareceu na piscina do prédio com uma conversa esquisita que me deixou preocupado. Ele não é médico, mas é daqueles que adoram ler bula de remédios recém-lançados para encher o saco do farmacêutico da esquina, criticando o peso dos interesses econômicos na saúde pública. Coisa de cabeça desocupada.

 

Falava ele da natureza humana, que o homem (leia-se: a pessoa do sexo masculino, enquanto essa classificação fizer algum sentido) desde criança tem uma certa sensação de imortalidade. Passa boa parte da vida livre dos transtornos que a mulher sofre, o que o faz mais relaxado com a própria saúde. Com o tempo, porém, percebe que a coisa não é tão simples como ele imagina e passa a dar mais valor aos cuidados médicos preventivos.

 

O que mais mete medo no homem – prosseguia – são os problemas com a próstata, as disfunções sexuais e a decadência física, ressalvando que isso também mexe com a cabeça da mulher. Para meu vizinho, a mulher pauta a vida em função da beleza e o homem, da força e da virilidade. E quando surgem os primeiros sinais de fadiga do material corpóreo – fenômeno natural até no campo da Física –, ele constata que tem prazo de validade. 

 

Ao me ver atento ao que pregava, engoliu corda e passou a discorrer com fartura de detalhes sobre seus achados literários. Para ele, dos grandes temores do homem, o pior é o crescimento benigno da próstata, que ocorre praticamente com todos (até com os gorilas), exceto com os natimortos e os mentirosos. 

 

Após os 40 anos – enfatizava ele, já assumindo um certo tom pedagógico –, a danada da glândula aumenta de tamanho e pressiona o canal da uretra. Isso faz com que o sujeito comece a urinar várias vezes ao dia, a perder o foco numa reunião se estiver distante do banheiro e a levantar-se de madrugada uma ou duas vezes, comprometendo o sono e o humor no café da manhã. 

 

Mas garantiu que esse crescimento benigno é quase inevitável. Todos vão ter, se bem que apenas um terço acusará sintomas mais significativos, capazes de exigir suporte médico. Nesse caso, assegurou que existem remédios que desobstruem parcialmente a uretra e permitem urinar e viver melhor. E que só 5% dos homens necessitam de cirurgia para desobstruir a uretra. 

 

Ainda segundo meu vizinho desocupado e estudioso, o problema não tem origem claramente definida. Surge por conta de um desequilíbrio hormonal no homem maduro, quando as células do órgão se multiplicam desordenadamente. E não tem como prevenir, só remediar.

 

No final, praticamente nos obrigou – eu e meia dúzia de moradores do prédio, que prestava atenção ao relato – a rever os testamentos e procurar saber o custo de um jazigo, quando arrematou convicto: “todo homem que chegar aos 99 anos vai ter câncer de próstata”. 

 

Metade dos que estavam na mesa foi procurar o que fazer noutro lugar. A outra metade, encharcada de cerveja e caldinho de peixe, preferiu assistir pela TV da guarita da portaria aos requebros da inesquecível Clara Nunes, entoando “Morena de Angola”, em videoclipe de 40 anos atrás. 

 

Muitos ainda relutam em ir ao médico fazer exame de próstata e só vão quando a mulher os empurra. Conheço um médico, aliás, que me contou que até nisso o papel delas na vida dos homens é decisivo. Para o doutor, “quem tolerou bem 20 ou 25 anos e superou as encrencas da vida conjugal é um casal sólido e a mulher possui um senso de preservação da família bem mais firme que o do homem...” 

 


E complementou: “sempre falo a meus pacientes da existência de dois tratamentos: um que prolonga a existência dele, mas pode causar alguma desordem sexual. Outro, que cura menos, mas preserva mais. E quase todo homem balança antes de optar. A mulher nunca hesita. Prefere o que assegura um pouco mais de vida ao maridão, apesar do risco de sacrificar o mais barato dos prazeres. Nunca vi uma aconselhar o tratamento que dê menos chance de sobrevivência, desde que ele se mantenha duro na queda. Ela prefere preservar algo mais grandioso que construiu com ele…”

 

Pois bem. Se você quer saber por que a conversa com meu vizinho me deixou preocupado, sobretudo depois que a juntei com aquilo que havia me contado o tal médico, devo confessar que este texto é puramente ficcional. Esses personagens não existem.   

 

Ou talvez existam. Já não estou tão certo. Dúvida também é coisa de cabeça desocupada que não tem nada mais sério a fazer do que se deitar numa rede limpinha e cheirosa vendo o sol se pôr, sem pressa alguma de chegar aos 99 anos. 

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Eu sei e você sabe

Ele fingia na maior cara lisa! No Carnaval de 1972, deu a entender que gostava da folia e não largou minha mão nos três bailes, chegando a assobiar, no último dia, “Oh, quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar... É de fazer chorar!”. Na hora, não percebi que o assobio era mais sinal de alívio e ironia.


Filho de um colega de trabalho de meu pai, eu o conheci ainda criança numa cidadezinha do interior, jogando futebol-de-botão com meus primos. Festeira desde cedo, quatro anos depois, naquele Carnaval, pensei com meus brincos e pulseiras: “Taí o cara!”. Se bem que nada rolou além de alguns abraços encabulados. Nem sequer um beijo – na época, matava-se a sede gole a gole –, mas me fez deixar de lado um relacionamento que eu mal começara com um rapaz bem mais velho que eu, que viajou em pleno feriadão. 

 

O “cara” era alto, magro, queimado de sol e faria 14 anos no final do mês. Na madrugada de Quarta-Feira de Cinzas, ele propôs:

– Fale com sua mãe… Passe lá em casa semana que vem, no sábado... 

– Por quê?

– A turma do bairro vai lá curtir os discos de Tim Maia, Roberto Carlos, The Fevers... Comemorar meu aniversário.

 


Dias depois, na base de dois-pra-lá-dois-pra-cá, dançávamos ouvindo a voz rasgada de Tim: “...Vou pedir pra você ficar/ Vou pedir pra você voltar... A semana inteira fiquei esperando/ Pra te ver sorrindo/ Pra te ver cantando...” E ele se fez de sonso:

– Quer?

– O quê? – me fiz inocente, mesmo correndo o risco de vê-lo me oferecer um pastel com guaraná.

– Você sabe...

– Sei não... Fale!

– Namorar…


Passamos o resto da adolescência tentando nos conhecer e fazendo planos. Em nada nos parecíamos. Ele, depois que o pai se foi, aprendeu a beber e a fumar, deixou o cabelo crescer e só estudava o bastante para passar de ano. Em 1974, resolveu trabalhar num banco e em pouco tempo queria se casar. Eu, fingindo não ter pressa, queria ser médica. Mas todos diziam que ele me completava e vice-versa. Mesmo fingindo gostar de dançar, de ir à praia...

 

No Natal de 1976, aos 19 anos, eu escondia a barriga com flores no trajeto entre a porta e o altar da capela. Era a segunda estação de uma viagem com destino incerto. Partimos num trem sem freios, sem padrinhos importantes nem crédito na praça, mas com o coração bem repartido entre a esperança e a razão.

 

Na viagem, demoramos alguns anos em cinco cidades diferentes e conhecemos, pelo menos, outras 45 pelo mundo afora. Entre 1977 e 1984, chegaram nossos três filhos. De 2008 a 2017, nossos seis netos. Queríamos ser pais e avós exemplares, mas fomos e somos aquilo que conseguimos ser. Nada mais.

 

Tem gente que até hoje me pergunta como é possível ficar tanto tempo com a mesma pessoa. Digo que não sei, ninguém sabe, mas imagino (sem muita convicção) que parte do segredo tenha sido nunca contar com a harmonia perfeita. Depois dos desencontros de opinião, é respirar fundo e jogar os dados novamente.

 

Não existe receita pronta. Sou instável, ele também, assim como nossos filhos e netos, o céu, o mar, tudo e todos. Preservar uma relação não é fazê-la morna, insossa, mas respeitar o vento, na tormenta e na calmaria. Os dois precisam arredondar quinas todo dia (e o dia todo, em caso de isolamento social inesperado), aparar as unhas, interessar-se por coisas que jamais teriam pensado em fazer antes do apito de partida do trem.


Acontece que isso requer doses generosas de maturidade, paciência e renúncia, que não se encontram na farmácia ou no supermercado. Vez por outra, pergunto a algumas amigas: há quanto tempo você não tenta conquistar de novo seu homem como se tivesse acabado de conhecê-lo? Por que insiste em falar de quilos e rugas que se vão acumulando desde o começo da viagem?

 


Descobri com o passar das estações que o importante não é ser a primeira mulher na vida de um homem, mas a última, a definitiva. E vice-versa. E até hoje faço de conta que não percebo o quanto ele sabe ser dissimulado, mesmo dizendo não ser poeta. 


Há sete anos, por exemplo, pouco antes de me aposentar, arrumava as gavetas num fim de tarde (por coincidência, meu aniversário) quando recebi uma mensagem com link para uma canção de Tom/Vinicius que acabou virando trilha sonora dessa viagem ainda com destino incerto (ouça aqui).

 

“...Eu sei e você sabe

Já que a vida quis assim

Que nada nesse mundo

Levará você de mim

 

Eu sei e você sabe

Que a distância não existe

Que todo grande amor

Só é bem grande se for triste

 

Por isso, meu amor

Não tenha medo de sofrer

Que todos os caminhos

Me encaminham pra você

 

Assim como o oceano

Só é belo com luar

Assim como a canção

Só tem razão se se cantar

 

Assim como uma nuvem

Só acontece se chover

Assim como o poeta

Só é grande se sofrer

 

Assim como viver

Sem ter amor não é viver

Não há você sem mim

E eu não existo sem você”

 

Esta semana faz 50 anos que estamos juntos. Ele nunca diz que me ama. Eu finjo que duvido.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Tiro no pé (descalço!)

No final do ano passado, a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ) apresentou projeto de lei que deverá ser apreciado pelo plenário da Câmara nos próximos meses mas já provoca intensa troca de farpas nas redes sociais. A proposta, se acolhida, altera o artigo 155 do Código Penal, isto é, descriminaliza o “furto por necessidade” e define o que é “furto insignificante”.

 

O crime de furto é a subtração de parte do patrimônio de alguém sem o emprego de violência. O Código Penal prevê cadeia de um a quatro anos e multa. A lei ainda admite o aumento da pena para quem furta durante a noite, horário em que as pessoas costumam dormir. Mas quando se trata de pequeno valor, permite a redução da pena ou até o perdão, aplicando-se apenas multa.

 

A justificativa para desqualificar o crime de furto é o recrudescimento da miséria nos últimos anos. O projeto caracteriza furto por necessidade quando “algo for subtraído em situação de pobreza ou extrema pobreza para saciar a fome ou necessidade básica imediata (água, remédio, por exemplo) do responsável pelo ato ou de sua família”. 

 

E será considerado furto insignificante se a perda do ofendido for irrelevante em relação a seu patrimônio total (algo como um bilhão de dólares, no caso do dono do Facebook). 

 

No documento, que já se encontra na Comissão de Justiça e de Cidadania desde 04/02/2022, a deputada pondera que o crime de furto corresponde apenas a 11,7% da população encarcerada, mas aumenta a superlotação nas prisões. E põe o dedo também na ferida do encarceramento seletivo brasileiro, onde negros e pobres têm bem mais dificuldade de acesso à defesa no sistema prisional.

 

Na contramão desse retoque cosmético na lei, que pretende tornar menos injusta uma das nações mais desiguais do planeta, li outro dia que nos últimos três anos a quantidade de armas em circulação no Brasil aumentou mais de 300% depois que se facilitou o acesso a elas. 

 

Ou seja, ainda que o projeto de lei seja aprovado, já está aberta a porteira para o revide a bala por parte daqueles que se julgam ofendidos por essa modalidade de furto, mesmo que não haja ameaça, violência ou qualquer tipo de arma. O ladrão de galinha (se é que sobrou algum), coitado, pode ser liminarmente condenado à morte, em ato de pretensa legítima defesa do dono do galinheiro.

 

Pouca gente se deu conta de que o Brasil já atingiu a marca de mais de 1,85 milhão de colecionadores de armas, atiradores esportivos e caçadores, segundo os institutos Sou da Paz, de São Paulo, e Igarapé, do Rio de Janeiro.

 

E pior – se é que pode piorar! – é que possuem licença especial para comprar. A lei permite que adquiram até 60 armas, sendo que metade delas de uso restrito, como um fuzil capaz de produzir 750 disparos por minuto. Além da compra anual de até 180 mil balas. 

 

Morro sem entender o que pretendem esses colecionadores e atiradores esportivos, admitindo-se que faça algum sentido em relação aos caçadores (menos para a caça, óbvio!).

 

Caçadores, aliás, podem comprar até 30 armas e até seis mil balas. Já para os colecionadores a lei não impõe limites. Diz apenas que podem adquirir até cinco peças de cada modelo de arma e seis mil balas. Como existem centenas de modelos, fico imaginando o tamanho do arsenal que cada “gatilhomaníaco” pode empilhar.


Com esse cheiro de pólvora no ar, outra encrenca séria merece cinco minutos de reflexão: a facilidade de acesso a armas de fogo e a consolidação do desmonte da política de controle que se promoveu nos últimos anos. O assassinato de mulheres em violência doméstica ou por aversão ao gênero da vítima (misoginia) tem como “instrumento” principal o disparo de arma de fogo. Só não enxerga quem, por estupidez ou má-fé, não quer enxergar: arma em casa pode até proteger, mas também arma bandido, inclusive doméstico. 

 

O projeto da deputada, portanto, pode ser um tiro no pé. E também um tiro no escuro (sem trocadilho, por favor!). Para mim, não será surpresa se decidirem aprová-lo com a condição de que também seja acolhida uma proposta do Executivo (PL 3723/2019) que flexibiliza o registro, a posse e o comércio de armas de fogo e munições, escancarando de vez o risco de matança indiscriminada de miseráveis.

 

Talvez até já se cogite abortar o projeto da parlamentar, temendo-se o extermínio em massa de ladrões de goiabas e mangas. Caso contrário, a pretexto de acabar com a fome por outros meios e modos, vai ter neurótico a torto e a direito abatendo beija-flor com tiro de bazuca.


Se ainda estivesse entre nós, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, diria mais uma vez que "A justiça é como uma serpente; só morde os pés descalços". Existem várias formas de se dizer isso, nenhuma com tanto veneno e maestria.


Vai-se ver já existem “sábios” de gabinete discutindo o abrandamento de penas e prazos de prescrição para outros “pecadilhos veniais” como apropriação indébita, desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, peculato, prevaricação, rachadinhas, sonegação e suborno. 

E rindo da cara de bestas como eu, aqui especulando aonde tudo isso vai dar. 

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Golaço de ombro

Mal começa o ano e Roberto Dinamite, com o rosto pálido, olhos sem brilho, anuncia o início de tratamento para tentar derrotar tumores no intestino. E na onda de solidariedade que se forma, aparece Zico, no Instagram: “Bob, amigo... Você sempre foi um guerreiro e vai vencer mais essa luta fazendo um gol de placa... Queremos você sempre com o seu sorriso...”


Conheci Dinamite na noite de 06/10/2013, no Aeroporto JK, em Brasília. Ele, presidente do Vasco da Gama, chefiava a delegação do clube, que acabara de empatar em 1x1 com o Flamengo, no estádio Mané Garrincha. Eu participaria de uma reunião de trabalho na manhã seguinte, no Rio, e aguardava o embarque quando ele se sentou ao meu lado. 

 

Tomei a iniciativa de me apresentar. Logo, ele quis saber se havia como a “minha” empresa patrocinar “seu” clube sem a exigência de certidões negativas requeridas pela Caixa Econômica. Esclareci que a regra valia para todas as estatais envolvidas com marketing esportivo. E tocamos a conversa com amenidades, eu fingindo ser natural estar diante do maior ídolo esportivo de minha vida. 

 

A prosa ganhou cores e dores quando recordei momentos marcantes de sua trajetória profissional – boa parte extraída nas transmissões esportivas da Rádio Globo, no Jornal dos Sports ou na revista Placar. Alguns fatos nem ele lembrava, a ponto de brincar comigo: “Você sabe mais sobre minha carreira do que eu!” E sorriu largo, marca registrada do lendário artilheiro com mais de 700 gols em 1.110 jogos com a camisa vascaína, entre 1971 e 1989. 

 

Não era um centroavante técnico como Tostão, Reinaldo, Careca ou Romário, mas, de sua geração, nenhum fez tantos gols, graças ao porte físico privilegiado, à capacidade de colocar-se bem na área adversária, de antecipar-se aos marcadores e à potência explosiva do arremate, além de, a custo de muito treino, transformar-se em exímio batedor de faltas e pênaltis. 

 

Para Waldir Amaral, ícone do rádio esportivo, era “Dinamite... A camisa com cheiro de gol!”. Para Zico, "o atacante com quem melhor me entendi em jogos da Seleção". Os deuses do futebol, no entanto, tinham outros planos. Não permitiram que a dupla sequer tentasse evitar o fracasso nas duas Copas do Mundo em que estiveram juntos. 



 

Em 1978, na Argentina, Zico sentiu o peso dos gramados castigados pelos rigores do inverno e, substituído pelo esforçado Jorge Mendonça, viu do banco de reservas Dinamite balançar três vezes as redes adversárias, inclusive na vitória contra a Áustria, que livrou o Brasil de voltar para casa ainda na primeira fase.


E em 1982, na Espanha, Roberto descartado pelo treinador Telê Santana – que apostou no tosco Serginho Chulapa –, assistiu das arquibancadas o Brasil perder para a Itália sem ter a chance de atuar 10 ou 15 minutos ao lado de Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior, craques que em um palmo de campo e uma fração de segundo poderiam com Dinamite explodir a muralha italiana e desviar o rumo da história.

 

A conversa flanava por aí quando ele se referiu a Zico. Os dois são amigos há mais de meio século. “O Galo foi o maior jogador de meu tempo. Nós começamos na mesma época, no juvenil. Não foi só a relação Roberto e Zico. Os pais dele, seu Antunes e dona Matilde, iam sempre ao Maracanã vê-lo jogar na preliminar e os meus pais também iam me ver jogar”.


Disse mais: “Eu não o chamo de Zico, chamo de “Galo”. E ele não me chama de Roberto, mas de “Bob”. É uma relação diferente e a gente até brinca que não precisávamos falar mal um do outro para levar 100 mil, 150 mil pessoas ao Maracanã. Crescemos assim. Adversários em campo, mas, acima de tudo, amigos”. 

Evitei tocar num ponto quase trágico. Em 1972, aos 18 anos, Dinamite apaixonou-se por Jurema, viúva e com um filho, seis anos mais velha que ele. A família dele não aceitou o romance e isso o atormentava bastante. Um dia, então, quase marca um gol contra, segundo a revista Placar: engoliu de uma vez vários comprimidos que sua mulher usava. 


“Eu vinha guardando aquela angústia só para mim. Tomei uma dose reforçada de calmante, mas não tinha a intenção de me suicidar... Só queria dormir uns dois dias seguidos para me desligar do mundo” – declarou à Placar. Jurema, que o levaria às pressas ao hospital naquele dia, morreu em 1984, precocemente, vítima de insuficiência renal crônica, deixando órfãs três crianças.

 

Quase tudo passa. Dinamite casou-se de novo e, mais adiante, em 1993, fechou a carreira de futebolista, virou político (vereador e deputado estadual) e dirigente esportivo. Hoje, aos 67 anos, ocupa cargo honroso e intransferível: avô de Valentina e Bento.

 




O Galo, querido amigo de meu ídolo, sabe quanto um ombro é importante para o gol de placa pelo qual ele torce. Quem sabe assim o velho Bob volte a sorrir largo com as cores, as dores e os sabores da prorrogação do jogo. E aí iremos todos cantar de coração...

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Bagunça das boas

Semana passada toquei no assunto, mas sem maiores detalhes. Durante certo tempo, aos sábados, juntávamos dez irmãos na casa da matriarca para beber cervejas, falar de conquistas e frustrações e ouvi-la de novo a nos convocar à velha mesa onde ajoelhávamos diante do panelão do dia, mesmo depois de casados e da chegada das primeiras crias de uma nova geração. 

 

Etiqueta nenhuma! Quase todos colocavam os cotovelos sobre a mesa. Embora a atitude passasse um ar de desleixo, era importante garantir espaço roubando daqueles que estavam ao lado, sob pena de perder os melhores pedaços. Manter os cotovelos junto ao corpo, apoiando apenas os antebraços ou os punhos, como reza qualquer manual de bons modos, poderia levar o bem-educado a deixar a mesa com fome, procurando reforço de cream crackers

 

Ilustração: Umor

Ninguém usava adequadamente os talheres. Não adiantava a mãe lembrar que o garfo deveria ser usado na mão direita, enquanto a faca descansava na parte superior do prato, com a serra voltada para dentro. Ou que quando precisasse usar faca, o garfo iria para a mão esquerda e a faca para a mão direita. Que a faca não deveria ser usada para ajudar a colocar a comida no garfo etc. 

 

Teve a namorada de um de meus irmãos que tentou explicar aos cunhados mais novinhos – na esperança de sensibilizar também os mais velhos, claro! – que se deveria manusear os talheres com os dedos e cortar o alimento à medida que fossem comendo. Depois que se começasse a comer, “os talheres jamais devem tocar a mesa”, dizia com jeitão de professora de ensino fundamental. 

 

De nada adiantou. Uns não controlavam a ansiedade enquanto a comida não era servida e faziam dos talheres baquetas sobre os pratos transformados em tarol, caixa e surdo de uma banda marcial de desfile escolar até ouvirem a ordem unida da “baliza” com o caldeirão de cozido fumegante nas mãos: “Parem com isso, agora!”. E ai de quem tentasse um dobrado a mais simulando uma corneta com a boca!

 

Também não ouviam a matriarca pedir para que se servissem aos poucos quando a comida chegasse à mesa, que não deixassem o prato transbordar. Não botavam fé nessa história de que, se continuasse com fome após o primeiro prato, poderia repetir. Na hora, ninguém se preocupava muito com terceiros, embora fossem forjados desde cedo a calcular mentalmente quantas porções havia para cada membro da família, não se servindo de forma exagerada a ponto de deixar um irmão com fome.

 

Outro conselho repetido em vão era para mastigar devagarinho, em pequenas garfadas e sempre de boca fechada, ainda que se argumentasse que não haveria uma pausa muito grande até engolir o alimento para poder voltar a conversar. “Quem come devagar fica sem pudim, vó!”, ponderou certa vez um netinho que mal aprendera a falar.

 

Uma vizinha que gostava de aparecer justamente na hora do almoço certo dia alertou: “Jamais gesticulem com os talheres na mão enquanto mastigam ou conversam. Além disso, evitem gestos bruscos. Levem o alimento até a boca e não a boca até o alimento”. Enquanto discursava, quase teve a mão perfurada por um garfo nervoso em busca de uma moela de galinha.

 

E teve outra que pecou pela incoerência: “Não peguem carnes com ossos, como costela de boi, frango e carneiro, com as mãos. Usem garfo e faca. Tirem o caroço de azeitona da boca com a ponta do garfo e coloque-o na beira do prato, nunca sobre a mesa”. Logo depois era vista roendo uma costeleta de porco, para decepção da cadelinha vira-lata que integrava o arranjo familiar e que parecia dizer: "ah, esses animais racionais!" 

 

Ninguém ligou quando a vizinha prosseguiu dizendo que não se deveria cortar o macarrão. “O talharim e o espaguete são servidos inteiros e comidos com garfo. Comecem a enrolar pelas bordas do prato e não pelo centro, senão a garfada ficará grande demais. Ao levar à boca, se alguns fios ficarem pendurados, simplesmente corte-os com os dentes”. 

 

Até uma de minhas irmãs, um dia, achou de orientar os sobrinhos para que dobrassem a alface e outras folhas antes de comer. “Façam trouxinhas e coloque-as na boca delicadamente...” Um deles olhou-a dos pés à cabeça e provocou gargalhadas: “Olhe, tia... Sei não, viu?!”

 

Desde cedo a matriarca exigia que evitássemos ruídos ao tomar caldos, canjas, sopas e outros líquidos. “Nunca levante o prato para tomar até a última gota. E se houver pão para acompanhar o prato, parta e coma com a mão”, ensinava. Mas se alguém lembrasse que ninguém fazia como ela uma sopa de feijão, entregava os pontos sorrindo inclusive com os olhos: “Cê acha? Por quê?  

 

De um dos últimos encontros de que me recordo, ela nos recomendava que qualquer imprevisto que surgisse, como um pedaço de folha de alface grudado no dente, fôssemos discretamente ao banheiro resolver o problema. E uma das netinhas foi logo pedindo maiores detalhes: “Vó, só folha, né? Pode soltar arroto e pum?”  

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Tá perdoada, mãe!

Eu já a perdoei por todas as mamadeiras de mingau de amido que me serviu depois da chegada de meus irmãos mais novos, quando perdi o direito às tetas maternas. Também por todos os bolos, coalhadas, cuscuzes, omeletes, papas, pastéis, pudins, sorvetes, sopas, tapiocas e tortas com que ela, sem dolo ou má-fé, apostou em mim a sua própria perpetuidade. 

Perdoei ainda as horas de quintal e de rua que me foram confiscadas para mexer panelas de doce de leite, caju, goiaba, mamão, ou de canjica e pamonha. É certo que havia algum pagamento em raspas de tachos, mas sob ameaça de castigo – meia hora num canto da cozinha, inalando aquela profusão de cheiros – caso a massa grudasse no fundo da caçarola.

 

Relevei também todas as vezes em que tive que acordar cedo e ir à padaria comprar pães, ainda que ela fingisse não ouvir quando eu lhe contava que um ou outro caíra do pacote e que, só para não dar gosto ao cão, eu me impunha o sacrifício de comê-lo ainda quente, mesmo sem manteiga.

 

Esqueci até das cestas e sacolas que carregava nos dias de feira livre, sol e chuva, suor e lama. Eram quilos e mais quilos de frutas, carnes, legumes e verduras, para prover uma Frigidaire cujas heróicas dobradiças, diferente de mim, nunca deram o menor sinal de fadiga. 

 

Também a desculpei por todas as vasilhas que guardava no forno para que eu pudesse almoçar depois do meio-dia, ao chegar da escola ou do trabalho. O corre-corre da tarde passava a rodar em câmera lenta diante da carne-de-sol com arroz de leite, do picadinho ou do sarapatel. E uma banana frita coberta com queijo coalho derretido, polvilhada com canela, repunha cada coisa no seu devido lugar da garganta para baixo.

 

Nem fiquei ressentido pelos sábados em que voltava ao bairro onde sorri e chorei todas as circunstâncias de minha puberdade. Vinha (agora com esposa e filhos) juntar-me aos irmãos e ouvi-la de novo a nos chamar à mesa onde devoraríamos, sem a menor etiqueta, um panelão de guisado com purê de batatas, arroz, feijão verde e farofa de ovos. 

 

Tenho um amigo mineiro que também já deve ter perdoado a sua mãe – estou seguro disso! – por tudo o que passou nos primeiros anos de vida: doces de leite, em tabletes (“cortados em losangos”), de mamão ralado (“bem durinhos, açucarados”), pudim (“com miolo cremoso, que a gente não comia... chupava”), mexido de queijo (“rapadura derretida na panela, com queijo e farinha”). 

 

E não esquece do arroz cozido com uma pimenta-de-bode, “finalizado com fatias de queijo, cobrindo toda a panela”; lombo recheado, “guardado na lata de manteiga (banha)”; almôndegas, também “envelhecidas” na lata; “sopa” de frango (pirão, com açafrão, alho e cebolinha); mexido de abóbora (abobrinha batida, refogada com açafrão, acrescentando-se farinha, cheiro verde e ovos); pele torrada (pururuca); macarrão “frito” (refogado no tomate bem “reduzido”); “mogango” (um parente da abóbora) cozido; feijão refogado na panela de ferro, na gordura de porco… 

 

Outro amigo, na bruma de sua saudade, quase abre o chorador ao recordar da "bruaca" cearense, uma pequena panqueca feita à base de farinha de trigo, açúcar, leite e ovos, servida com cobertura de mel. “Eu arrancava da mesa na terceira marcha, com uma energia danada para as atividades de pernas, braços e punhos de todo moleque”. Não duvido disso, nem que lhe restem mágoas em relação à mãe.

 

No meu caso, ao perdoar a minha, ponderei que na origem de tudo ela foi vítima de meu pai. Apaixonado pela ninfeta de 16 anos, ele a dedicou, com amor, carinho e tempero – e outras intenções, naturalmente! –, um exemplar de “Dona Benta”, a bíblia culinária que veio à luz na metade do século passado e que até hoje constitui um raro manual da arte de bem comer e viver. 

 


Sim, ela está perdoada, mas sabe que não tinha o direito de fazer o que fez só por minha causa (e por meus irmãos). Todos os amigos que cruzaram o meu caminho, que tanto deixaram de si e quase nada levaram de mim, mereciam desfrutar da prateleira de cheiros e sabores que experimentei. Ela deveria trazê-los do futuro ao começo da jornada. Toda mãe, protegida que é, consegue quase tudo o que pede ao dono do tempo. 

 

Filhos nascem, crescem e morrem sozinhos. Só quando partilham o que comem (e bebem, é claro!) com amigos do peito é que podem criar a ilusão, ainda que fugaz, de que não estão perdidos na multidão.