Circulou na internet, outro dia, a notícia de que o único hospital público da cidadezinha italiana de Catanzaro descobriu que um de seus funcionários faltava ao trabalho havia 15 anos. Durante o período, continuou constando na folha de pagamento, com salário integral. Parou de comparecer logo após ser contratado e teria recebido nada menos que 530 mil euros, cerca de 3 milhões de reais.
O nome não foi revelado, mas o sujeito acabou acusado de fraude, extorsão e abuso de poder. Ainda em 2005, ele teria ameaçado o chefe para que não preenchesse o relatório de avaliação e disciplina de forma desfavorável. E depois que o chefe se aposentou, nem o sucessor nem o RH notaram a ausência.
O caso italiano me remeteu ao que acontecia nas catedrais bancárias que havia nas grandes cidades brasileiras, onde centenas de pessoas se espalhavam por vários andares, cada qual com sua sacola de interrogações sobre a vida.
Conta-se que uma sucuri de oito metros se escondeu no almoxarifado de um desses templos e se mantinha viva porque, de três em três dias, esmagava e comia uma pessoa. Como eram muitas, ninguém dava pela falta até o dia em que caiu na besteira de escolher o rapaz que servia cafezinho – esse, sim, imprescindível à rotina dos trabalhos. O gerente e dois chefes já haviam sido degustados, sem que ninguém se incomodasse com ela.
Lenda urbana, óbvio, mas quando trabalhei na agência do Banco do Brasil em Maceió, na metade dos anos 1970, conheci Gabo (vou chamá-lo assim porque, se ainda estivesse entre nós, de rosto lembraria o rapper Gabriel, o Pensador), um caboclo sorridente com aparência de indiano, olhos apertados, barba rala e bucho de lâmpada. Parecia ter o dom da invisibilidade: ninguém notava, mas ele não perdia uma estreia no Cine São Luiz, isso em pleno horário do expediente.
No já distante 1974 em que a nação ansiava por liberdade – o ano anterior é reconhecido como o de maior repressão do regime militar –, fazia tremendo sucesso um produto genuinamente nacional: a pornochanchada, que derivou da chanchada, gênero cinematográfico onde predominava um humor inocente e popular.
As chanchadas apareceram entre os anos 1940 e 1960, revelando nomes como Adelaide Chiozzo, Anselmo Duarte, Emilinha Borba, Grande Otelo, Oscarito e Zé Trindade. Já as pornochanchadas vieram nas décadas de 1960 e 1970, destacando-se Vera Fischer, Otávio Augusto, Sonia Braga, Jorge Dória, Selma Egrei, entre outros.
Com roteiros rasos, focados em situações eróticas, maliciosas, algumas cenas de nudez nada explícitas, os donos de cinema dispunham de material abundante (e bota abundante nisso!) para lotar as salas por várias semanas.
Tudo caminhava bem para eles até que os ventos mudaram com um surto de locadoras de vídeo e com a profusão de novos cultos pentecostais, envolvendo congregações que tomaram de assalto centenas de prédios na bacia das almas da recessão econômica no final dos anos 1980.
Mas voltemos a Gabo. Ao entrar em cartaz “Anjo Loiro”, protagonizado pela atriz Vera Fischer, ele escapuliu logo após o almoço na própria agência e foi assistir à primeira sessão. E como gostou! Tanto que, antes de voltar à labuta, resolveu comemorar com algumas tulipas no Bar do Chope (quase vizinho ao banco), por certo lembrando das cenas mais picantes.
Naquela tarde, apesar do calor, o tempo passou ligeiro. Quando deu por si, alguns colegas já tomavam o rumo de casa. Então pediu a conta, acendeu outro cigarro, levantou-se e saiu trôpego em direção ao ponto de ônibus na praça da Catedral. Não sem antes passar novamente defronte ao Cine São Luiz. Precisava rever o cartaz do filme.
Gabo chegou cedo ao trabalho na manhã seguinte e assinou o ponto como se nada tivesse acontecido. E nada aconteceu mesmo, exceto a ressaca vulcânica cobrando um pote de água gelada, além da constatação de sua absoluta insignificância no pedaço. Sua ausência na tarde anterior passara despercebida até pelos comparsas de copo.
Um deles, entretanto, que padecia do mesmo grau de invisibilidade corporativa, sensibilizado com a tristeza de Gabo, ofereceu café com pão e o ombro. E ouviu seus “ais”:
– Tô pouco ligando para o que pensam! – exclamou Gabo, conferindo de rabo de olho o entorno.
– Não entendi...
– Duro é ela nem saber que existo…
– De quem você tá falando?
– Ai, ai… – suspirou, inconformado – Se Verinha soubesse e topasse, teria casa, comida, roupa lavada, plano de saúde e pensão... Pro resto da vida.
– O que você sente, você atrai. O que você acredita, torna-se realidade, bicho! – filosofou o colega, admirador do astrólogo e radialista Omar Cardoso, para quem todos os dias, sob todos os pontos de vista, se dizia cada vez melhor.
Gabo, não. Durou pouco e cada vez pior. E sua musa, imagino, nunca soube dele.