Quem de nós nunca reverenciou figuras únicas, incomuns naquilo que faziam? Não falo de pais e mestres, cuja proximidade já nos impactava naturalmente, mas de personagens que nos foram apresentados pela magia do rádio ou do toca-fitas numa época em que a televisão ainda era item de luxo na casa de remediados.
Tão distantes de minha casa mas absurdamente próximas de mim, duas dessas figuras singulares foram Rita Lee e Roberto Dinamite. Ela, estrela maior do rock brasileiro, tinha a mania de compor canções cujas letras eu gostaria de ser o autor. Ele, bem, deixa pra lá. Quem um dia sonhou ser jogador de futebol sabe do que falo.
Há um ano, Rita foi diagnosticada com câncer no pulmão. Ao descobrir a doença, fechou-se em copas num sítio no interior de São Paulo, ao lado do marido, onde seguiu à risca o tratamento médico prescrito. Deu certo. Mês passado, um de seus filhos anunciou nas redes sociais que ela, aos 74 anos, está curada.
No início de 2022, Roberto Dinamite também revelou estar com um câncer (no intestino). De imediato, iniciou a quimioterapia para enfrentá-lo e, aos 68 anos, 20 kg a menos, concluiu outro dia a primeira sessão. Suportou bem.
“Navigare necesse, vivere non est necesse”. Em latim, essa frase é atribuída ao general romano Pompeu Magno (106-48 a.C.). Teria dito a seus marinheiros, apesar de grande tormenta, que suas naus deveriam partir em direção a Roma, levando o trigo embarcado na Sicília, Sardenha e África.
A sentença rodou o mundo a partir do filósofo e historiador grego Lúcio Méstrio Plutarco (46-120 d.C.), até chegar a Fernando Pessoa (1888-1935), filósofo, ensaísta, crítico literário e tradutor, mais reconhecido como o maior poeta da língua portuguesa.
Toda vida é provisória, mas, enquanto houver, não faz sentido desistir. É preciso navegar e, na tempestade, reposicionar as velas, vencer os obstáculos e refazer o roteiro da viagem, se necessário. Mesmo numa roda onde brincam de mãos dadas angústia, depressão, incerteza e apreensão, não se pode perder de vista a impermanência de tudo e de todos.
Após a queda, não é tão simples e poético levantar-se, sacudir a poeira e superar as dificuldades, exceto no samba “Volta por cima”, de Paulo Vanzolini (1924-2013). Seja a perda de um ente querido, do trabalho, da saúde ou até mesmo da esperança, muitas vezes a primeira que morre. Mas todo pescador calejado sabe que é no mar revolto que se separam os homens dos moleques.
Na noite de quinta-feira passada, o estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, virou palco para a inauguração no gramado (atrás do gol da ferradura, diante da arquibancada) de uma estátua de Roberto Dinamite.
O maior ídolo da história do Vasco da Gama recebeu o carinho de 10 mil torcedores numa cerimônia que, além de ex-treinadores, como Antonio Lopes e Joel Santana, reuniu ex-companheiros de time, como Bebeto, Tita, Mauro Galvão, Zé Mário, Acácio, Bismarck, Arturzinho, William, Sorato e Mauricinho.
Até adversários históricos, feito Zico e Júnior, estiveram lá para aplaudir um comovido Roberto, que agradeceu o afago em meio à turbulência por que passa, em plena luta para derrotar o maior adversário que encontrou pela frente. E foi ovacionado ao referir-se à história de amor que tem com o clube desde moleque.
“Para viajar, basta existir”, diria Fernando Pessoa. Por isso me pego navegando – não custa muito e faz bem velejar por mares desconhecidos –, a imaginar como seria tocante, daqui a pouco, ver as duas figuras plenamente recuperadas, por força inclusive do tanto de felicidade que semearam entre seus admiradores.
Chego a ver Rita Lee, com seu jeito moleque de ser, dedilhando o violão a cantar baixinho pra Roberto ouvir a versão que fez de “In my life”, de Lennon e McCartney: “Tem lugares que me lembram/ Minha vida, por onde andei/ As histórias, os caminhos/ O destino que eu mudei/ Cenas do meu filme em branco e preto/ Que o vento levou e o tempo traz/ Entre todos os amores e amigos/ De você me lembro mais...”
E antes que os olhos de Dinamite acusem o golpe certeiro, ela arremata: “Como vai? Tudo bem? /... As águas vão rolar, não vou chorar/ Se por acaso morrer do coração/ É sinal que amei demais/ Mas enquanto estou viva e cheia de graça/ Talvez ainda faça um monte de gente feliz...”
Eles ainda fazem um monte de gente feliz. Se a alma é grande, o céu não pode ter pressa. Dirão lá em cima que tudo vale a pena enquanto a vida não se apequena aqui embaixo.