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Sem nó na garganta

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Para gravar a antológica cena de “Os Caçadores da Arca Perdida” em que Indiana Jones (Harrison Ford) se vê às voltas com centenas de cobras, a produção vasculhou todas as lojas de animais exóticos nas proximidades do Elstree Studios , na Inglaterra,  buscando os mais variados tipos de serpentes. Levou ao set  de filmagem  o máximo que conseguiu encontrar, mas o diretor Steven Spielberg achou que ainda estava distante do número ideal. Então recortou algumas mangas de camisas compridas e pernas de calças velhas, misturando-os aos répteis para alcançar o efeito desejado.    O resultado apavorou até o pessoal do Instituto Butantã, em São Paulo, que mexe com cobras, escorpiões, aranhas e lacraias. Foi elogiado pela crítica por focar no terror psicológico, que cozinha o cérebro em fogo brando, em vez de apostar naqueles sustos repentinos que alteram os batimentos cardíacos e nos fazem pular da poltrona. Sem falar nos pesadelos que, vez por outra, nos atormentam.   Lembrei-me disso na semana

Vó é vó, tchê!

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Ontem, bem cedinho, o sinal sonoro do celular de minha vizinha alertou-a da chegada de uma mensagem: “Oi… Ligou? É urgente?”. Estávamos no elevador, saindo para a caminhada no calçadão da orla. Ilustração: Umor Divorciada, 58 anos, Mafalda Lavado Tejón é natural de Mendoza, cidade da região vinícola argentina de Cuyo, famosa por suas bodegas, pelo Malbec e outros vinhos tintos de boa cepa, o que nos aproximou e me faz visitá-la com razoável assiduidade – acompanhado de minha mulher, óbvio!   Com um rabo de olho, pude perceber o que se passava. Ela quis disfarçar, mas acabou revelando que, tocada pela saudade dos netos, que não aparecem há mais de mês, anteontem tentou conversar com eles às sete da noite, por videochamada através do telefone de Joaquín, seu único filho. Ninguém atendeu.   Pouco importa se netos são monossilábicos em contatos cada vez mais esporádicos, imersos em seus afazeres digitais. Mafalda é a mais completa expressão do amor absoluto, generoso, pleno, que não impõe

O vaga-lume de Massarandupió

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Há dois anos compartilhei aqui uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado” , com uma criatura sábia e mordaz que conheci em 1990. Foi o modo que encontrei de reconhecer uma amizade que já passa dos 30 anos.     Vira e mexe Urtigão some feito vaga-lume quando amanhece. Desapareceu de novo, aliás, em plena pandemia. Parecia ter entrado noutra dimensão, envolvido com algum fenômeno metafísico, como se nas águas da praia deserta de Massarandupió, próximo de onde vive no litoral norte baiano, houvesse uma versão cabocla do Triângulo das Bermudas.   Imagens: Ana Isa Para quem não lembra, o chamado Triângulo do Diabo é uma região delimitada por linhas imaginárias no Oceano Atlântico. Sua área vai das Bermudas até as Bahamas, passando por Porto Rico, numa extensão de 3,9 milhões de quilômetros quadrados reconhecida por fenômenos “sobrenaturais” envolvendo o sumiço de navios e aviões.    Nem passou por minha cabeça, felizmente, a hipótese de ele ter sido mais uma vítima da peste qu

Bença, mainha?

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Na sala de espera da oftalmologista, Lito esperneava no colo de Eulália, sentindo-se ameaçado pela atendente que lhe dilataria as pupilas antes da consulta: – Vai arder!  – É só uma gotinha – explicava a atendente. – Lito, pelo amor de Deus não me faça passar vergonha. Você já tem cinco anos!   – Quero não, vai doer!  – Não vai, eu prometo – prometia a atendente, de olho na reação de outras crianças na sala de espera. – Se você não deixar a moça colocar o colírio – ameaçava a mãe –, vai apanhar quando a gente chegar em casa, visse?  – Deixo não! Vai arder! – Sente aqui na cadeira que eu quero olhar bem na sua cara! – Quero não... Mamãe, tire ela daqui!  – Vou contar até três: Lito um, Lito dois... Espremido pelo peso do "argumento" final, o menino se rendeu: – Pinga, vai... A atendente então pôs uma gota de colírio em cada olho. Ele enxugou as lágrimas, sorriu amarelo e arrematou: – Nem doeu...   Viúva aos trinta e poucos anos de idade, Eulália não queria mais saber de homem

O céu não pode ter pressa

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Quem de nós nunca reverenciou figuras únicas, incomuns naquilo que faziam? Não falo de pais e mestres, cuja proximidade já nos impactava naturalmente, mas de personagens que nos foram apresentados pela magia do rádio ou do toca-fitas numa época em que a televisão ainda era item de luxo na casa de remediados.   Tão distantes de minha casa mas absurdamente próximas de mim,  duas dessas figuras singulares foram Rita Lee e Roberto Dinamite. Ela, estrela maior do rock brasileiro, tinha a mania de compor canções cujas letras eu gostaria de ser o autor. Ele, bem, deixa pra lá. Quem um dia sonhou ser jogador de futebol sabe do que falo.   Há um ano, Rita foi diagnosticada com câncer no pulmão. Ao descobrir a doença, fechou-se em copas num sítio no interior de São Paulo, ao lado do marido, onde seguiu à risca o tratamento médico prescrito. Deu certo. Mês passado, um de seus filhos anunciou nas redes sociais que ela, aos 74 anos, está curada.    No início de 2022, Roberto Dinamite também revelou

Um dia, quem sabe…

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Nenhum vidente previu que José Sarney, em 1985, assumiria a presidência da República no lugar de Tancredo Neves, eleito indiretamente, pelo Colégio Eleitoral, para o primeiro governo civil depois de 21 anos de ditadura militar.  Predizer o futuro, além de soar pleonástico, até pode render livros e filmes, mas, do ponto de vista prático, é tiro no escuro com boa dose de frustração quando o presente dá as caras. Já se disse, aliás, que, no Brasil, até o passado é imprevisível. Tudo bem, os dados que se tem no presente dão alguma leitura do passado para identificar padrões de ocorrências futuras. A medicina trabalha assim. Quando se diz que este ano mais de 250 mil brasileiros irão morrer por doenças cardiovasculares, não se trata de previsão, mas de projeção (para cujo acerto, por sinal, não pretendo contribuir). É, pois, constatação com base em evidências e dados históricos.   Se alguém tivesse antecipado que Tancredo Neves morreria em 21 de abril de 1985, aos 75 anos, por conta de uma

As borboletas podem

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Quem pensa que uma infância feliz é aquela que segue a liturgia politicamente correta dos dias de hoje está enganado. Essa coisa de pai e mãe que dialogam, perguntam pelas tarefas escolares, dão abraços e beijos, dizem aos amigos que os filhos são inteligentes, lindos e maravilhosos, deve ser interessante, mas nunca experimentei desse doce.    Como nunca o provei, não posso dizer que sinto falta. Ninguém sente falta do que não provou. Quando criança, não me lembro se algum dia recebi um beijo de minha mãe ou de meu pai, ainda que me amassem – nunca duvidei disso! – e não me deixassem nada faltar. Éramos felizes mesmo assim.   Puxando pela memória, tia Creuza, linda e magrinha como uma borboleta, foi a primeira pessoa da família que me fez um carinho mais explícito: um abraço apertado e um cheiro no cocuruto numa das vezes em que meus pais visitaram o sítio Jacaré, no Agreste paraibano, onde ela morava com meus avós maternos.    Tia Creuza, que nunca quis namorar, casar nem ter filhos,

Tá duro de aguentar

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Quem já passou dos 50, como eu, deve lembrar de “General”, personagem do humorístico “Viva o Gordo”, criado por Jô Soares e exibido pela TV na década de 80.  Amigo do então presidente Figueiredo, “General” literalmente teria caído do cavalo e passou seis anos em coma. Ao acordar, conectado a um respirador artificial, descobriu que já não havia ditadura e que seu colega milico não mais ocupava a presidência. Pior: quem agora se sentava na poltrona era o bigodudo Zé Sarney, um reles civil. "General" ficava louco toda vez que era contrariado pela realidade dos fatos: “Me tira o tubo! Me tira o tubo!”    Todos nós, viciados em futebol, estamos prestes a reagir como o inconformado militar de Jô Soares. Melhor a morte do que aguentar o que vemos. Ou buscar algo que nos poupe de AVC ou infarto fulminante, tipo: dama, dominó, gamão, porrinha etc.   Para Graciliano Ramos (em “Traços a esmo”, crônica publicada do começo do século passado), aliás, o Brasil nem deveria ter introduzido o

A evolução dos parvos

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Para mim, o grande acontecimento no primeiro quarto deste século 21 tem sido a evolução espantosa e fatal dos parvos. Nelson Rodrigues bem que avisou que “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, mas a tecnologia tem ajudado a acelerar o processo.   Você, leitora amiga, sabia que é possível postar nas redes sociais um vídeo cantando com a mesma categoria de Elis Regina ou Marisa Monte? Você, meu caro leitor, sabia que pode ser visto dançando como John Travolta em  Os Embalos de Sábado à Noite , apesar da pança e das dores nas articulações?   É simples. O truque que permite simular algo assim pode parecer complicado, mas não é. Basta, por exemplo, extrair de plataformas como o  Youtube  gravação de voz e filmagem de movimentos naturais, inclusive trejeitos, para se criar uma realidade alternativa capaz de deixar qualquer um de queixo caído.   Esse tipo de manipulação, com a ajuda tecnológica da chamada Inteligência Artificial (quando computadores são programados para imi