quarta-feira, 1 de junho de 2022

Sem nó na garganta

Para gravar a antológica cena de “Os Caçadores da Arca Perdida” em que Indiana Jones (Harrison Ford) se vê às voltas com centenas de cobras, a produção vasculhou todas as lojas de animais exóticos nas proximidades do Elstree Studios, na Inglaterra, buscando os mais variados tipos de serpentes. Levou ao set de filmagem o máximo que conseguiu encontrar, mas o diretor Steven Spielberg achou que ainda estava distante do número ideal. Então recortou algumas mangas de camisas compridas e pernas de calças velhas, misturando-os aos répteis para alcançar o efeito desejado. 

 

O resultado apavorou até o pessoal do Instituto Butantã, em São Paulo, que mexe com cobras, escorpiões, aranhas e lacraias. Foi elogiado pela crítica por focar no terror psicológico, que cozinha o cérebro em fogo brando, em vez de apostar naqueles sustos repentinos que alteram os batimentos cardíacos e nos fazem pular da poltrona. Sem falar nos pesadelos que, vez por outra, nos atormentam.

 

Lembrei-me disso na semana passada, ao abrir não uma arca perdida mas uma caixa guardada por minha mulher quando nos mudamos do apartamento em que morávamos na Asa Norte, em Brasília, a 10 minutos do trabalho, para a casa no Jardim Botânico onde agora nos acordam bem-te-vis, corujas, maritacas, quero-queros e sabiás. 


Quase fui picado por mais de 40 gravatas que usei no tempo em que me fantasiava de executivo. Tive a sensação de que algumas se mexiam, cada uma com seu chiado próprio, ameaçando-me a qualquer momento um bote no pescoço. Refuguei no avanço exploratório para avaliar melhor o que fazer. Vi que nem aquelas que mais me custaram valem agora a cueca que me protege do frio que faz em Brasília neste atípico mês de maio.

 

 

Como um arqueólogo, fotografei o achado, lacrei de novo a caixa e fui refletir sobre que medidas a adotar após o inesperado reencontro. Ultimamente, aliás, só tenho visto gravatas em advogados, bancários, juízes, pastores religiosos, políticos e defuntos (nesse caso, óbvio, involuntariamente).


Vem de longe essa peça do vestuário masculino. Descobri que surgiu na França no final do século 17. Os gauleses adaptaram-na de um exército croata que andou por lá em 1668. Usava-se um cachecol para manter o pescoço arejado no verão e aquecido nos primeiros dias de inverno. Quando o frio apertava, era trocada por um modelo de lã. Foi em Paris, inclusive, que recebeu o nome de cravate, ou “croata”, em francês.

 

Acontece que gravata é feito gato: não gosta de água. Trata-se de uma peça por natureza imunda, repleta de microrganismos ressequidos, tanto de origem do usuário quanto de seus interlocutores, evidenciando, aliás, que a expressão “babar na gravata” não surgiu do nada. Tal como certas roupas delicadas, só é lavada à mão – nunca na máquina –, estendida na sombra e guardada com uma série de cuidados. Em tese, portanto, calcinhas, cuecas e meias são bem mais limpas e cheirosas.

    

Mandei a imagem de meu achado arqueológico para uma amiga, pedindo sua opinião sobre o que fazer. Adiantei que meu primeiro impulso foi jogá-lo numa fogueira. Mas isso não condiz com a secura que começa a castigar a vegetação do Cerrado nesta época do ano, nem pretendo formar pastagens para rebanho bovino ou plantar soja no meu jardim, agravando o caos ambiental decorrente de queimadas. 


Adiantei também que, nos tempos em que havia casamentos (talvez ainda haja, não estou bem certo disso), em especial os mais humildes, era comum recortar a gravata do noivo em minúsculos retalhos, a serem "vendidos" para os convidados, como forma de angariar uma ajuda para o novo casal. Pensei em algo nessa linha, dando um final prático e rentável para meu “serpentário”. Precisaria apenas convencer minha mulher a abrir mão da exclusividade quanto ao maridão, mas fui prontamente demovido: “A vida reprova quem erra mais de uma vez a mesma questão" – ela resumiu. Nem cheguei a explorar melhor o pensamento, que achei profundo.

 

Mais tarde, a amiga com quem compartilhei a fotografia me veio com esta: "Dariam pra fazer uma colcha de fuxicos". Fuxico, no caso, é um tipo de artesanato feito com tecido, agulha, linha e paciência... Muita paciência. Além de ser uma das técnicas mais conhecidas pelos brasileiros, é método de relaxamento barato que resulta em almofadas, cobertores, colchas, costurando-se pequenas e coloridas trouxinhas de pano.

 

Fuxico também, como se sabe, é falar da vida alheia de forma maledicente. É bisbilhotice, cochicho, disse-me-disse, futrica, mexerico, zunzum, essas coisas de moleque de recados. E, não tenho dúvida, se minhas gravatas tivessem ouvidos, juro que teriam ficado moucas de tantas intrigas que escutaram em mais de 40 anos lidando com certas figuras ordinárias e venenosas.

 

Optei, então, por um funeral (apenas das gravatas, sem o pescoço, bem entendido!). Afinal, superar a perda de certas peças de estimação não é nada fácil, já que estão impregnadas de sentimentos, testemunhas silenciosas que foram de momentos importantes. Além de lidar com a dor, portanto, era necessário encontrar uma forma de curtir o luto, mesmo sem lágrimas, antes de enterrá-las.

 

No cair da noite, sozinhos no quintal, eu e elas (as gravatas), fizemos uma cerimônia íntima, reflexiva sobre o que experimentamos juntos. No final, antes da última pá de terra e sem qualquer espécie de nó na garganta, recitei com convicção uma quadrinha popular cuja autoria desconheço que aprendi nos tempos de menino: “Toda roupa veste um nu/Menos gravata e colete/Porque não cobrem o cacete/Nem a regada do...”  

 

Não é de gravatas que devemos ter medo, mas de pensar nelas quando já não fazem sentido.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Vó é vó, tchê!

Ontem, bem cedinho, o sinal sonoro do celular de minha vizinha alertou-a da chegada de uma mensagem: “Oi… Ligou? É urgente?”. Estávamos no elevador, saindo para a caminhada no calçadão da orla.


Ilustração: Umor

Divorciada, 58 anos, Mafalda Lavado Tejón é natural de Mendoza, cidade da região vinícola argentina de Cuyo, famosa por suas bodegas, pelo Malbec e outros vinhos tintos de boa cepa, o que nos aproximou e me faz visitá-la com razoável assiduidade – acompanhado de minha mulher, óbvio!

 

Com um rabo de olho, pude perceber o que se passava. Ela quis disfarçar, mas acabou revelando que, tocada pela saudade dos netos, que não aparecem há mais de mês, anteontem tentou conversar com eles às sete da noite, por videochamada através do telefone de Joaquín, seu único filho. Ninguém atendeu.

 

Pouco importa se netos são monossilábicos em contatos cada vez mais esporádicos, imersos em seus afazeres digitais. Mafalda é a mais completa expressão do amor absoluto, generoso, pleno, que não impõe condições ou limites nem espera nada em troca, exceto, se sobrarem, dois dedos de atenção, uma vez na vida e outra na morte (certamente prefere em vida as duas vezes!). 

 

Sabe, claro, que filhos sempre culpam os pais não importa do quê, como se não estivessem predestinados a serem pais mais adiante. Tem sido assim desde que Caim quis terceirizar a culpa por destruir Abel acusando Eva de preferir o irmão dele, diante de um Adão omisso que, após ser expulso do Paraíso, não conseguia sustentar a prole trabalhando em home office.

 

"Quem não quer sofrer, nasce cega, surda e muda", vive repetindo Mafalda. Reconhece, entretanto, que tudo se torna menor ao lembrar de sua falecida tia Antônia, uma das Madres de la Plaza de Mayo (organização argentina de ativistas dos direitos humanos há mais de quatro décadas), que teve dois de seus rebentos, líderes trabalhistas, sequestrados e mortos pela ditadura militar durante o massacre contra os movimentos esquerdistas, entre 1976 e 1983.

 

Para Mafalda, nada mais é urgente. Pelo menos dentro da escala de valores de seu filho, que possui repertório próprio de conceitos para o que vem a ser importante, urgente ou inadiável, em relação à mulher que lhe despejou no mundo. 

 

Ela hesitou um pouco em responder a mensagem. Não queria dar a entender que estava ansiosa, carente ou que se tratava de exagero de mãe extremada, essa miríade de adjetivos com que os mais jovens costumam rotular quem apenas purga por aqui, sem pressa, o saldo remanescente de pecados.

 

Compreendi perfeitamente porque ela quis esconder o que se passava. Afinal, é cruel admitir a gradativa evolução de nossa irrelevância na vida de outras pessoas, sobretudo daquelas que ainda nos são caras. E, a rigor, sou nada mais que um conhecido cuja única afinidade com ela, além de vinhos, parrillas e queijos, é a condição de vizinho de porta. 

 

“Liguei sem querer!” – digitou em resposta. Logo ela, professora de artes cênicas até outro dia, que orientava seus alunos sobre as imperfeições dos relacionamentos humanos, a dizer que não se deve apertar, prender ou sufocar quem se ama, porque o que hoje é laço amanhã pode virar nó cego, essas coisas.

 

Pode ter recordado de alguns finais de semana quando o ranger da dobradiça da porta de sua casa anunciava que Joaquín estava de volta da inquietante noite com seus afetos e desafetos, e isso lhe fazia grata a todos os anjos e santos de plantão. Só assim seu coração relaxava e a cabeça fatigada se rendia ao travesseiro amigo.  

 

Imaginava que ter sido mãe por uma vez contaria pontos a seu favor, dado que teria uma só nora. Se fosse a filha que não veio, ótimo! Se não, fazer o quê? Tinha agora consigo, com a ironia e a verve das sábias, que “nora nada mais é do que uma sogra jovem, se tiver sorte de chegar lá”. 

 

Ao deixarmos o prédio, tomamos destinos opostos, cada qual com suas conjecturas. Cinquenta minutos depois nos reencontramos onde havíamos nos despedido. "Vou me desfazer de tudo que tenho e voltar para a Argentina. Cansei dessa vidinha sem graça que levo aqui", ela anunciou.


Pensei em lhe dizer que não adianta fazer as malas achando que o problema não fará parte da bagagem, mas resolvi não me meter: "Faça o que seu coração pedir, Mafalda...".


Não demorou muito, o sinal sonoro celular alertou-a da chegada de uma nova mensagem de Joaquín: “Ô mãe… A secretária ligou dizendo que não vem. Tá de cama, gripada. Como hoje é sábado e vamos visitar uns amigos, você fica com as crianças até às cinco?"

 

De novo, ela vacilou um pouco antes de responder. Mas sem demonstrar ansiedade, carência ou exagero de mãe extremada, foi breve e reta ao optar pelo que seu coração pedia: “Claro! Vó é vó, tchê!”.

 

E piscando um olho em minha direção, apelou: “Esquece o que te falei, vizinho…”.


quarta-feira, 18 de maio de 2022

O vaga-lume de Massarandupió

Há dois anos compartilhei aqui uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado”, com uma criatura sábia e mordaz que conheci em 1990. Foi o modo que encontrei de reconhecer uma amizade que já passa dos 30 anos.  

 

Vira e mexe Urtigão some feito vaga-lume quando amanhece. Desapareceu de novo, aliás, em plena pandemia. Parecia ter entrado noutra dimensão, envolvido com algum fenômeno metafísico, como se nas águas da praia deserta de Massarandupió, próximo de onde vive no litoral norte baiano, houvesse uma versão cabocla do Triângulo das Bermudas.

 

Imagens: Ana Isa

Para quem não lembra, o chamado Triângulo do Diabo é uma região delimitada por linhas imaginárias no Oceano Atlântico. Sua área vai das Bermudas até as Bahamas, passando por Porto Rico, numa extensão de 3,9 milhões de quilômetros quadrados reconhecida por fenômenos “sobrenaturais” envolvendo o sumiço de navios e aviões. 

 

Nem passou por minha cabeça, felizmente, a hipótese de ele ter sido mais uma vítima da peste que sumiu com tanta gente querida nos últimos dois anos. No meio do mato, dificilmente seria contaminado pelo vírus, se bem que viajava vez por outra à capital para matar a saudade de Ana Isa, sua musa inspiradora. 

 

Cogitei, não nego, a possibilidade de uma picada de abelha africana, escorpião ou jararaca tê-lo obrigado a procurar um hospital, onde o mal do século se disseminava mais rápido que cuspida de músico.  

 

Semana passada ele reapareceu. Recebi mensagem contando que, após meses cuidando de evitar um ataque cardíaco e quase à beira do suicídio, livrou-se de uma operadora de planos de internet banda larga via satélite. “...Só funcionava em dias ensolarados, sem nuvens, com estabilidade de energia elétrica mil centesimal, atestado negativo de brucelose, cirrose, escoliose, tuberculose, verminose etc...”

 

Disse que só conseguia ler alguma coisa quando passava pelo único supermercado da cidade mais próxima da roça. Mas Ana Isa não lhe dava sossego, apressada em concluir as compras. 


Pensou até em “criar pombos-correios para socorrê-lo junto aos amigos mais queridos”. Teve medo, imagino, da gripe aviária ou ácaros, carrapatos, pulgas e outros ectoparasitas que se hospedam nas asas dos carteiros da paz.

 

“Em dias de chuva, a TV é só sombras e dúvidas; o celular emite sons de uma lata d'água, transformando meus interlocutores em fanhos ou gagos... Tive que me roer com a absoluta falta de comunicação bem na hora de plantar e cuidar da roça, quando nem posso sair daqui, pois se as chuvas não me virem, podem não voltar mais...”.

 

Bateu de frente, então, com a provedora e contratou outra, mas frustrou-se de novo. “Descobri que é muito ‘viva’ e, em dois dias, alegou que consumi 5,7 Gbytes. Impossível. Durmo cinco horas por noite, no mínimo. Fugi dessa também e agora estou testando uma terceira, igualmente instável, claro, muita intermitência, mas não promete muito e é mais barata...”

 

E arrematou: “Hoje não vou fazer nada. Vou só dar banho nos meus amigos caninos e ler tudo que recebi dos outros e ficou pra trás... Um abração”.

 

De bate-pronto, respondi sem pestanejar: “Que rufem os tambores e soem os clarins, que esfrie o sol e reapareça a lua para celebrar esta manhã, eis que de volta o admirável homem da verve. Pelo visto, não faz ideia do quanto dele preciso no meu dia a dia. Dois abrações!”

 

A tréplica que acabo de receber me diz que os sinais vitais de Urtigão estão aparentemente preservados:

 

“Estamos morando na roça. Ana despediu-se do emprego antes que endoidasse e ficasse igual a mim: um caso perdido! Fato é que passamos a ter outra relação com a vida, o vento, a chuva, o sol, as estrelas, os pássaros, os insetos e as plantas. O caminhar da idade vai fragilizando nossas emoções e aqui na roça esse efeito fica maior. Parece que vivemos como a Bíblia define a forma do pecado: ‘por pensamentos, palavras e obras’.

 

“...Outro dia estava olhando o milho e o feijão de corda que plantamos, lado a lado. Os pássaros esperavam o milho brotar, arrancavam as plântulas e comiam o resto das sementes... Chegavam entre as seis e sete da manhã, provavelmente porque o pessoal começa a trabalhar às sete. Já o feijão de corda foi degustado pelas paquinhas (um inseto da família dos grilos e gafanhotos) que trabalham de noite, também longe dos olhos do pessoal...”

 

“...Não usamos defensivos porque penso comer produtos saudáveis, mas tenho a sensação de que, se formos ‘comer da terra que cultivamos’, vou ter que aprender com os povos orientais a saborear insetos...” 

 

“...Você está piorando, meu bom amigo. A escrita está lhe tornando frágil. Tá virando poeta... Dois abrações também, fortes feito gemada com ovo de pata e cerveja preta”.

 

Se soubesse fazer versos, meu caro vaga-lume de Massarandupió, nem recorreria ao “Soneto do Amigo”, de autoria do Poetinha, para tentar traduzi-lo:


“… Um bicho igual a mim, simples e humano

Sabendo se mover e comover

E a disfarçar com o meu próprio engano 


O amigo: um ser que a vida não explica

Que só se vai ao ver outro nascer

E o espelho da minha alma multiplica…”

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Bença, mainha?

Na sala de espera da oftalmologista, Lito esperneava no colo de Eulália, sentindo-se ameaçado pela atendente que lhe dilataria as pupilas antes da consulta:

– Vai arder! 

– É só uma gotinha – explicava a atendente.

– Lito, pelo amor de Deus não me faça passar vergonha. Você já tem cinco anos!  

– Quero não, vai doer! 

– Não vai, eu prometo – prometia a atendente, de olho na reação de outras crianças na sala de espera.

– Se você não deixar a moça colocar o colírio – ameaçava a mãe –, vai apanhar quando a gente chegar em casa, visse? 

– Deixo não! Vai arder!

– Sente aqui na cadeira que eu quero olhar bem na sua cara!

– Quero não... Mamãe, tire ela daqui! 

– Vou contar até três: Lito um, Lito dois...

Espremido pelo peso do "argumento" final, o menino se rendeu:

– Pinga, vai...

A atendente então pôs uma gota de colírio em cada olho. Ele enxugou as lágrimas, sorriu amarelo e arrematou:

– Nem doeu...

 

Viúva aos trinta e poucos anos de idade, Eulália não queria mais saber de homem a seu lado. Mudou-se para Maceió logo após a morte do marido e lutou muito para criar os filhos, preparando marmitas, bolos e tortas. Com boa freguesia, completava assim a pensão que recebia. 

 

Foi avó cedo, aos 40. E ao ver a nora com o primeiro neto nos braços, despertou a mãezona que ainda cochilava dentro dela, embora não cogitasse parir novamente.

 

Nelito, seu irmão mais velho, outro pequeno agricultor tangido do meio rural para o cinturão de miséria urbana, percebeu na irmã a sobra de afeto e procurou convencê-la a criar o seu filho:

– Não tô aguentando mais, Lala...

– Vixe... Eu já tenho dez bocas para comer – antevendo o que o irmão queria.

– Onde comem dez, comem onze...

– Né assim não, Nelito!

– Fique com o bichinho, vai... Tô com pena de dar pr'outra pessoa.

– E se a rapariga da mãe aparecer?

– Aparece não... Sumiu de vez...

– Tá bom, mas nem pense que vou alisar a cabeça dele, visse? Vai ter que ser gente na vida...

 


Assim Lito caiu no colo de Eulália, aos dois anos de idade, abandonado pela mãe biológica, uma morena dos olhos de chimbra que passou algum tempo nos cabarés do sertão alagoano e por quem Nelito ainda tomava umas e outras de paixão e saudade.

 

Desnutrido, além do baixo peso ao nascer, do desmame precoce no sumiço materno e de uma alimentação pobre em nutrientes, Lito sofrera até ali repetidas infecções, doenças diarreicas e parasitoses intestinais. Quase engrossou a lista de pagãos sepultados nos cemitérios clandestinos de anjinhos do Nordeste.  

 

Eulália tinha consciência de que não deveria castigar ou repreender o menino, por exemplo, pelo xixi na cama. Ele já se sentia meio perdido desde o afastamento do pai, até então sua única referência emotiva. O quadro inclusive poderia piorar com a mudança de ambiente numa fase crítica do desenvolvimento.

 

Ela viu naqueles programas matutinos de tevê que as mães que possuem filhos com a tal enurese noturna deveriam manter um diálogo aberto com os filhos sobre o problema. Não era necessário repreender ou castigar, e sim, explicar que quando se cresce não se faz xixi na cama. 

 

Um dia, porém, com a enxaqueca a latejar, cansada de lavar lençóis encharcados de urina e colocá-los para quarar no quintal, chamou Lito no quarto e foi direto ao ponto, como fizera antes com os filhos mais velhos:

– Olhe bem aqui na minha cara, seu moleque, se você mijar de novo na cama eu vou cortar sua pinta, visse?! 

 

A vizinha – que não gostava de Eulália – ouviu o carão e a denunciou junto ao Conselho Tutelar, que marcou audiência para a semana seguinte. No dia marcado, a psicóloga escalada nem chegou a abrir a boca. Na sua inocência, Lito falou primeiro:

– Não mijo mais no colchão. E nem doeu.

 

Lito cresceu. Estudou em boas escolas particulares tal como seus irmãos de criação, porém não obteve resultados parecidos. Era inteligente para algumas atividades, mas tinha dificuldades noutras, notadamente em ciências exatas. Desistiu apenas com o ensino fundamental.

 

Para desgosto de Eulália, caiu na esbórnia junto com o que havia de pior em termos de colegas de infância no bairro. Muitas vezes chegou em casa sujo, esfomeado, bêbado e fedendo a cigarros. Acabou envolvido com consumo e tráfico de drogas.

 

Numa tarde como outra qualquer, Eulália viu um camburão nas proximidades de sua casa, mas não desconfiou de nada. Só caiu em si quando acordou no dia seguinte e soube pela empregada doméstica que Lito escapuliu às pressas com uma sacola nas mãos e sumiu sem deixar um bilhete sequer, depois de envolver-se numa tentativa de assassinato ao emprestar sua arma a um colega traído pela namorada. 

 

A mistura de frustração, desencanto e mágoa, esfriou o coração de Eulália de tal modo que não lhe escorreu uma lágrima sequer. “Se arrependimento aleijasse...”, comentaria meses depois com a vizinha, a quem perdoara pela delação. 

 

Há alguns meses, vinte e tantos anos depois do sumiço, Lito reapareceu numa videochamada: 

– Mainha, me perdoa... 

– Onde cê andou esse tempo todo, menino?

– Aconteceu tanta coisa... Nem gosto de lembrar. Mas agora tô bem, aqui na Bahia. Me casei, tenho uma filha...

– Cê tá careca? Tá fazendo o quê?

– Tem mais de oito anos que sou socorrista do Samu. 

– E de saúde, tá bem?

– Já tô meio cego, precisando trocar os óculos.

– Mas tá se cuidando direito? 

– O corona me pegou. Quase me mata. Saí anteontem do hospital. 

– Meu Deus, como foi isso?!

– Doía tudo. Tive medo de nunca mais ver a senhora.

– Ô, filho! Cê tá bem mesmo?

– Quase. Só de ver a senhora, nem dói mais.

– Tudo poderia ter sido tão diferente...

 

Lito ficou de trazer sua filha a Maceió, no Dia das Mães, para conhecer Eulália. Ao se despedir, pediu de novo o que aquietava o seu coração no tempo em que tinha medo de alma penada, boi da cara preta e careta:

– Bença, mainha?

quarta-feira, 4 de maio de 2022

O céu não pode ter pressa

Quem de nós nunca reverenciou figuras únicas, incomuns naquilo que faziam? Não falo de pais e mestres, cuja proximidade já nos impactava naturalmente, mas de personagens que nos foram apresentados pela magia do rádio ou do toca-fitas numa época em que a televisão ainda era item de luxo na casa de remediados.

 


Tão distantes de minha casa mas absurdamente próximas de mim, duas dessas figuras singulares foram Rita Lee e Roberto Dinamite. Ela, estrela maior do rock brasileiro, tinha a mania de compor canções cujas letras eu gostaria de ser o autor. Ele, bem, deixa pra lá. Quem um dia sonhou ser jogador de futebol sabe do que falo.

 

Há um ano, Rita foi diagnosticada com câncer no pulmão. Ao descobrir a doença, fechou-se em copas num sítio no interior de São Paulo, ao lado do marido, onde seguiu à risca o tratamento médico prescrito. Deu certo. Mês passado, um de seus filhos anunciou nas redes sociais que ela, aos 74 anos, está curada. 

 

No início de 2022, Roberto Dinamite também revelou estar com um câncer (no intestino). De imediato, iniciou a quimioterapia para enfrentá-lo e, aos 68 anos, 20 kg a menos, concluiu outro dia a primeira sessão. Suportou bem.


“Navigare necesse, vivere non est necesse”. Em latim, essa frase é atribuída ao general romano Pompeu Magno (106-48 a.C.). Teria dito a seus marinheiros, apesar de grande tormenta, que suas naus deveriam partir em direção a Roma, levando o trigo embarcado na Sicília, Sardenha e África. 

 

A sentença rodou o mundo a partir do filósofo e historiador grego Lúcio Méstrio Plutarco (46-120 d.C.),  até chegar a Fernando Pessoa (1888-1935), filósofo, ensaísta, crítico literário e tradutor, mais reconhecido como o maior poeta da língua portuguesa.


Toda vida é provisória, mas, enquanto houver, não faz sentido desistir. É preciso navegar e, na tempestade, reposicionar as velas, vencer os obstáculos e refazer o roteiro da viagem, se necessário. Mesmo numa roda onde brincam de mãos dadas angústia, depressão, incerteza e apreensão, não se pode perder de vista a impermanência de tudo e de todos. 


Após a queda, não é tão simples e poético levantar-se, sacudir a poeira e superar as dificuldades, exceto no samba “Volta por cima”, de Paulo Vanzolini (1924-2013). Seja a perda de um ente querido, do trabalho, da saúde ou até mesmo da esperança, muitas vezes a primeira que morre. Mas todo pescador calejado sabe que é no mar revolto que se separam os homens dos moleques. 

 

Na noite de quinta-feira passada, o estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, virou palco para a inauguração no gramado (atrás do gol da ferradura, diante da arquibancada) de uma estátua de Roberto Dinamite. 


O maior ídolo da história do Vasco da Gama recebeu o carinho de 10 mil torcedores numa cerimônia que, além de ex-treinadores, como Antonio Lopes e Joel Santana, reuniu ex-companheiros de time, como Bebeto, Tita, Mauro Galvão, Zé Mário, Acácio, Bismarck, Arturzinho, William, Sorato e Mauricinho. 


Até adversários históricos, feito Zico e Júnior, estiveram lá para aplaudir um comovido Roberto, que agradeceu o afago em meio à turbulência por que passa, em plena luta para derrotar o maior adversário que encontrou pela frente. E foi ovacionado ao referir-se à história de amor que tem com o clube desde moleque.

 

“Para viajar, basta existir”, diria Fernando Pessoa. Por isso me pego navegando – não custa muito e faz bem velejar por mares desconhecidos –, a imaginar como seria tocante, daqui a pouco, ver as duas figuras plenamente recuperadas, por força inclusive do tanto de felicidade que semearam entre seus admiradores. 


Chego a ver Rita Lee, com seu jeito moleque de ser, dedilhando o violão a cantar baixinho pra Roberto ouvir a versão que fez de “In my life”, de Lennon e McCartney: “Tem lugares que me lembram/ Minha vida, por onde andei/ As histórias, os caminhos/ O destino que eu mudei/ Cenas do meu filme em branco e preto/ Que o vento levou e o tempo traz/ Entre todos os amores e amigos/ De você me lembro mais...”



E antes que os olhos de Dinamite acusem o golpe certeiro, ela arremata: “Como vai? Tudo bem? /... As águas vão rolar, não vou chorar/ Se por acaso morrer do coração/ É sinal que amei demais/ Mas enquanto estou viva e cheia de graça/ Talvez ainda faça um monte de gente feliz...” 


Eles ainda fazem um monte de gente feliz. Se a alma é grande, o céu não pode ter pressa. Dirão lá em cima que tudo vale a pena enquanto a vida não se apequena aqui embaixo.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Um dia, quem sabe…

Nenhum vidente previu que José Sarney, em 1985, assumiria a presidência da República no lugar de Tancredo Neves, eleito indiretamente, pelo Colégio Eleitoral, para o primeiro governo civil depois de 21 anos de ditadura militar. 

Predizer o futuro, além de soar pleonástico, até pode render livros e filmes, mas, do ponto de vista prático, é tiro no escuro com boa dose de frustração quando o presente dá as caras. Já se disse, aliás, que, no Brasil, até o passado é imprevisível.


Tudo bem, os dados que se tem no presente dão alguma leitura do passado para identificar padrões de ocorrências futuras. A medicina trabalha assim. Quando se diz que este ano mais de 250 mil brasileiros irão morrer por doenças cardiovasculares, não se trata de previsão, mas de projeção (para cujo acerto, por sinal, não pretendo contribuir). É, pois, constatação com base em evidências e dados históricos.

 

Se alguém tivesse antecipado que Tancredo Neves morreria em 21 de abril de 1985, aos 75 anos, por conta de uma complicação cirúrgica (infecção generalizada) antes da posse, isto sim teria sido uma previsão específica do futuro. O resto é miolo de pote. 

 

No livro “O andar do bêbado”, o autor Leonard Mlodinow explica que “a existência de roletas é uma boa demonstração de que não existem médiuns legítimos, pois em Monte Carlo, se apostarmos US$ 1 em um compartimento e a bolinha cair ali, a casa nos pagará US$ 35 (além do valor que apostamos). Se os médiuns realmente existissem, nós os veríamos em lugares assim, rindo, dançando e descendo a rua com carrinhos de mão cheios de dinheiro...”. 

 


Olhar para o céu e contar que os astros digam como será a próxima semana ou o mês que vem não faz o menor sentido. Mas é característica humana acreditar que dá pra saber o que vai acontecer. É quase irresistível tentar adivinhar o que existe na próxima esquina, embora não se saiba o nome do vizinho.

 

Não sou vidente, mas posso antever, a menos de seis meses da escolha, que o Brasil deve eleger em outubro não o melhor ou o mais bem preparado candidato à presidência da República, mas o menos odiado pelos eleitores. Isto é, o ódio – esse impulso que leva ao mal que se faz ou se deseja a outrem, que embrulha no mesmo pacote antipatia, rancor e repugnância –, mesmo em menor dose, definirá o vencedor. 

 

Os dois principais candidatos ao cargo amargam dura  rejeição do eleitorado: um, acima de 50%; o outro, mais de 40%. Ambos são detestados. E nem se sujeitaram ainda à artilharia pesada que vem por aí, numa guerra onde os dois cordões de soldados só enxergam pela frente inimigos a serem abatidos a mentiras, tapas e pontapés (para dizer o mínimo!). 

 

O ungido por uma margem estreita de votos falará em governar para todos, mas sabe que terá contra si o ódio (ou a indiferença, o que é pior) de pelo menos 70 milhões de almas inconformadas. E não poderá esquecer da lição que Tancredo Neves aprendeu com o ex-presidente Getúlio Vargas: “No Brasil, não basta vencer a eleição; é preciso ganhar a posse!”.

 

Já tomei uma decisão: votarei no candidato que assumir publicamente que vai tentar arrancar pela raiz o mal que nos aflige, isto é, lutar pela troca do presidencialismo pelo parlamentarismo ao fim do mandato.

 

Pode-se argumentar que, há 20 anos, o brasileiro já disse não ao parlamentarismo em plebiscito. Mas será que sabia realmente a diferença entre um regime e outro? O que diria agora se soubesse mais sobre o assunto e fosse consultado de novo?

 

Cultua-se por estas bandas a figura mítica do herói capaz de mudar os rumos da nação da noite para o dia. Isso explica a preferência pelo regime presidencial, mesmo reconhecendo que o nosso sistema de coalizão pode ser batizado como “farinha pouca, meu pirão primeiro!”

 

É preciso aprender que no parlamentarismo desaparece a dicotomia Executivo-Legislativo. Ambos serão um só. O povo não vai escolher o presidente, mas votará para escolher qual partido comandará o país. Se o processo eleitoral não resultar em maioria, o partido líder nas eleições precisará montar uma coalizão com outros menores para alcançar pelo menos 50,1%. 

 

Aprender também que o parlamentarismo dilui o poder dos líderes. O primeiro-ministro não será o todo-poderoso como acontece com o chefe do Executivo no sistema presidencialista. Ele governará com o partido. Necessitará do apoio dos outros ministros e parlamentares, inclusive para combater outra grave doença: a obstrução de pautas importantes por parte da oposição, querendo apenas provocar o colapso na vida do governante de plantão. 

 

Aprender ainda que, tirando os Estados Unidos, a maioria dos países desenvolvidos (Dinamarca, Noruega, Suíça, Suécia, Holanda, Canadá, Japão, Austrália etc.) adota o sistema parlamentar, onde não sabe nem como se chama o primeiro-ministro. 

 

Quem estaria no caminho certo? Quem tiver a curiosidade de ler sobre índices de desenvolvimento humano e histórico de estabilidade política e econômica, verá que a resposta é fácil. Extremamente fácil! 

 

Um dia, quem sabe, a gente aprende a ser uma nação.

quarta-feira, 20 de abril de 2022

As borboletas podem

Quem pensa que uma infância feliz é aquela que segue a liturgia politicamente correta dos dias de hoje está enganado. Essa coisa de pai e mãe que dialogam, perguntam pelas tarefas escolares, dão abraços e beijos, dizem aos amigos que os filhos são inteligentes, lindos e maravilhosos, deve ser interessante, mas nunca experimentei desse doce. 

 

Como nunca o provei, não posso dizer que sinto falta. Ninguém sente falta do que não provou. Quando criança, não me lembro se algum dia recebi um beijo de minha mãe ou de meu pai, ainda que me amassem – nunca duvidei disso! – e não me deixassem nada faltar. Éramos felizes mesmo assim.

 

Puxando pela memória, tia Creuza, linda e magrinha como uma borboleta, foi a primeira pessoa da família que me fez um carinho mais explícito: um abraço apertado e um cheiro no cocuruto numa das vezes em que meus pais visitaram o sítio Jacaré, no Agreste paraibano, onde ela morava com meus avós maternos. 

 



Tia Creuza, que nunca quis namorar, casar nem ter filhos, tida por alguns como esquisita porque sempre viveu no sítio Jacaré, onde tataravós, trisavós, bisavós, avós e pais nasceram e se criaram; plantavam frutas, legumes e verduras; engordavam novilhas e porcos e criavam galinhas e guinés.

 

Desde novinha, sempre quis ser como o velho pai Zé de Brito Jurema e o irmão mais velho, tio Olívio, inclusive no trajar, no uso de cigarro de fumo de rolo e no lidar com o cabo da enxada e da foice, por mais que a mãe insistisse para que ela ficasse em casa com as irmãs mais velhas. 

Sob a orientação do pai, ela e o irmão vendiam aquilo que a família não consumia para poder comprar o que não conseguiam extrair da terra: açúcar, café, sal, roupas, essas coisas. Cadernos, lápis e livros nunca foram importantes para eles.

 

Se livros nunca foram importantes, tia Creuza nunca leu Kundera, para quem "ter um filho é como dizer: nasci, apreciei a vida e constatei que ela é tão boa que merece ser repetida". Ou Millôr, que disse que "pais e filhos não foram feitos para ser amigos, mas para ser pais e filhos". Que "metade da vida é estragada pelos pais; a outra metade, pelos filhos". 

 

Também nunca ouviu falar de Shakespeare, que afirmou que "o casamento faz de duas pessoas uma só: difícil é determinar qual será". Ou Fleming, para quem "na maioria dos casamentos as pessoas não se juntam; elas se subtraem". Ou ainda Nietzsche, que garantia que "o casamento transforma muitas loucuras curtas numa longa estupidez".

 

Por ser a mais nova das filhas de meus avós, ao ver mais tarde o exemplo de algumas irmãs, viu que o casamento era uma espécie de propina para fazer com que uma empregada doméstica pensasse que era dona de casa.

 

Pode ter notado também o tanto de homens e mulheres que fazem do casamento apenas uma oportunidade de trair, às vezes na base do “chifre trocado não fura”, porque não aprendem a enfrentar o monstro voraz que, se nada for feito, a tudo engole: a rotina.

 

Li outro dia em algum lugar que a reprodução de animais de maneira assexuada, conhecida como partenogênese (“partos virgens”) é algo comum na natureza, sendo inclusive a forma de reprodução de algumas cobras e lagartos. Não é o caso de tia Creuza, que apenas optou por firmar um pacto com a solidão e não dá sinais de arrependimento.  

 

Mesmo solteira e sem filhos, como não era chegada a cadernos, lápis e livros, não se submeteu a patrões privados ou públicos, tendo que se maquiar e se vestir como a maioria das mulheres. Livrou-se do ansiolítico da moda, de acordar preocupada com a reunião das nove ou se Wall Street reagiu mal à ata do último encontro do Federal Reserve, repercutindo no fechamento da Bolsa de Valores (seja lá o que isso signifique para a maioria dos seres vivos!).

 


Há três anos esteve aqui em Maceió, onde fez tratamento médico, reviu a irmã (minha mãe) e seus sobrinhos. Num domingo, comoveu-se quando lhe dei uma blusa de mangas compridas e um boné amarelo onde estava bordada uma logomarca azul muito conhecida dos brasileiros que vivem no campo. 

Naquele instante, eu poderia ter retribuído o abraço apertado e o cheiro no cocuruto que ganhei quando criança, mas fiquei constrangido. Falta de costume. 
 

A minha vida mudou, eu sei. Tia Creuza já completou 80 outubros. Aposentada, mora sozinha na cidade em que eu nasci – Itabaiana, na Paraíba – numa casa cedida por outro sobrinho muito querido, que não lhe deixa nada faltar.  

 


Parece feliz quando pedala sua bicicleta para cima e para baixo, todo fim de tarde, olhando as coisas miúdas que encontra pelo caminho, como se carregasse na garupa a alma de um certo 
poeta pantaneiro a lhe sussurrar: sim, é verdade, "as borboletas podem pousar nas flores e nas pedras, sem magoar as próprias asas".

quarta-feira, 13 de abril de 2022

Tá duro de aguentar

Quem já passou dos 50, como eu, deve lembrar de “General”, personagem do humorístico “Viva o Gordo”, criado por Jô Soares e exibido pela TV na década de 80. 


Amigo do então presidente Figueiredo, “General” literalmente teria caído do cavalo e passou seis anos em coma. Ao acordar, conectado a um respirador artificial, descobriu que já não havia ditadura e que seu colega milico não mais ocupava a presidência. Pior: quem agora se sentava na poltrona era o bigodudo Zé Sarney, um reles civil. "General" ficava louco toda vez que era contrariado pela realidade dos fatos: “Me tira o tubo! Me tira o tubo!” 

 

Todos nós, viciados em futebol, estamos prestes a reagir como o inconformado militar de Jô Soares. Melhor a morte do que aguentar o que vemos. Ou buscar algo que nos poupe de AVC ou infarto fulminante, tipo: dama, dominó, gamão, porrinha etc.

 

Para Graciliano Ramos (em “Traços a esmo”, crônica publicada do começo do século passado), aliás, o Brasil nem deveria ter introduzido o futebol por aqui. “Reabilitem os esportes regionais que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé (tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas), a pega de bois, o salto, a cavalhada, e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira... Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros...”

  

Sim, reconheço que ando irascível. Tenho motivos e se abro o jogo aqui é para que vocês não creditem minha implicância à rabugice da idade ou à cruz (de malta) que carrego sobre os ombros.

 


Não se trata do futebol em si, mas de uma penca de situações que refletem o caráter nacional, a cultura de um povo que era tido como alegre, cordato, inteligente e solidário. Vejam:

1 – Goleiro que insiste em fazer “cera”, mesmo após ser advertido, certo de que o árbitro não irá expulsá-lo nem acrescentará o tempo perdido.

2 – Atacante que pressiona o zagueiro adversário pelas costas, na linha de fundo ou lateral, mesmo sabendo que ele simulará falta e o juiz, fingindo-se enganado, apitará.

3 – Treinador que cobra maior “pegada” de quem atua, a cada três dias, viajando de lá para cá num gigantesco e tórrido país tropical.

4 – Atleta atingido pela mão do adversário (na altura do peito) que cai, rola, estrebucha, como se tivesse sido agredido no rosto e quebrado o nariz e dois dentes incisivos.

5 – Técnico que reclama o tempo inteiro da arbitragem junto ao 4º árbitro, como se isso “sensibilizasse” o juiz principal para sua causa.

6 – Jogador em impedimento que finaliza um ataque e, ao ser advertido, diz que não ouviu o apito.

7 – Comentarista de TV, que nunca amorteceu uma bola no peito, tirando conclusões “geniais”: “Tá faltando o último passe” ou “ganhou porque aproveitou melhor as chances que teve”.

8 – Árbitro que, alegando que houve simulação, adverte jogador que realmente sofreu falta.

9 – Ex-atleta, hoje comentarista de TV, sugerindo que “o time toque mais a bola" ou "jogue pelas pontas”. 

10 – Jogador que celebra gol com os dedos apontados para o céu, como se Deus vestisse a camisa de seu clube.

11 – Atleta que, no último minuto do jogo, com seu time perdendo, bate falta na barreira ou distante da meta adversária.

12 – Ex-árbitro, agora comentarista de TV, que não reconhece o cochilo na análise de um lance e, após o “replay”, tenta convencer daquilo que só ele teria visto.

13 – Jogador que, nos acréscimos do tempo regulamentar, comemora gol cobrando silêncio dos torcedores.

14 – Torcidas (ou facções) organizadas de clubes em má fase, invadindo centros de treinamento e ameaçando atletas e comissão técnica, para dar um “sacode” no grupo.  

15 – Justiça desportiva que não determina o liminar banimento do futebol de agressores de árbitros, sobretudo quando a vítima é do sexo feminino. 


Chega! Já defendi até a extinção da regra mais difícil de ser aplicada: a do impedimento. Mudei. Seria chato ver um “poste” grudado no goleiro adversário durante toda a partida. O ideal seria que a regra valesse apenas a partir de linhas intermediárias, a serem demarcadas entre as linhas de fundo e divisória do campo. 


 

Quanto a outro foco crônico de chatice, o Árbitro Assistente de Vídeo (VAR, em inglês), reconheço: é a credibilidade do esporte que está em jogo. O problema não é a ferramenta. É quem está dentro de campo com um apito na boca, quando falta coragem para decidir sobre o que viu a poucos metros de distância. 

 

Penso que deveria ficar a cargo dos treinadores, como no vôlei, a prerrogativa de acionar o olho eletrônico. Cada time teria o direito de acionar o VAR por duas vezes a cada tempo. 


Deve ser afrodisíaco o poder de deixar meio mundo de gente em transe, por alguns minutos, enquanto, sob os holofotes da mídia, decide se mexe ou não no curso natural da história.

 

Tá duro de aguentar. Mas se o Vasco voltar a ser Vasco (mesmo vice-campeão, como o Flamengo, ultimamente), juro que tiro de letra minha rabugice. Se não, é melhor tirar o tubo.  

quarta-feira, 6 de abril de 2022

A evolução dos parvos

Para mim, o grande acontecimento no primeiro quarto deste século 21 tem sido a evolução espantosa e fatal dos parvos. Nelson Rodrigues bem que avisou que “subdesenvolvimento não se improvisa, é obra de séculos”, mas a tecnologia tem ajudado a acelerar o processo.

 

Você, leitora amiga, sabia que é possível postar nas redes sociais um vídeo cantando com a mesma categoria de Elis Regina ou Marisa Monte? Você, meu caro leitor, sabia que pode ser visto dançando como John Travolta em Os Embalos de Sábado à Noite, apesar da pança e das dores nas articulações?

 

É simples. O truque que permite simular algo assim pode parecer complicado, mas não é. Basta, por exemplo, extrair de plataformas como o Youtube gravação de voz e filmagem de movimentos naturais, inclusive trejeitos, para se criar uma realidade alternativa capaz de deixar qualquer um de queixo caído.

 

Esse tipo de manipulação, com a ajuda tecnológica da chamada Inteligência Artificial (quando computadores são programados para imitar o comportamento humano), é conhecido por deepfake, termo que descreve arquivos de áudio e vídeo criados num “aprendizado de máquinas”. 

 

O potencial de maldades e trapaças é incrível. Qualquer deepfake que se possa imaginar é possível ser feito, com troca ou retoques faciais, clonagem de voz (“copiada” para dizer outras coisas), sincronização labial (quando a boca de alguém falando pode ser ajustada a uma faixa de áudio diferente) e outras artimanhas que até um semianalfabeto digital aprende com facilidade.   

 


Corpos também podem ser criados como avatares. Com essa tecnologia, mesmo algumas figuras históricas que já se foram para outro plano podem ser trazidas de volta para aprontar mais algumas antes de arderem de vez nos quintos dos infernos. 

 

Funciona assim: um computador consulta outro se o clone que ele acaba de “criar”, a partir de você, é bom o suficiente, comparando-o com o “material” original. Sacoleja os braços e move as pernas do mesmo jeito? A voz é igual, inclusive os vícios de linguagem? A expressão facial é parecida? Os tiques nervosos? E a coisa vai se aprimorando a cada nova versão até o “criador” ficar satisfeito com a “criatura”.

 

O impacto disso pode ser devastador, sobretudo no campo político (ou pornográfico, sem querer ser redundante), onde vira e mexe imagens falsas são veiculadas nas redes sociais e causam danos terríveis às vítimas, desde raposas felpudas até os mais vulneráveis, como crianças e idosos.

 

Descobrir traços imperfeitos nesse tipo de mídia manipulada constitui um desafio, mas podem ser identificados procurando-se “saltos” bruscos no vídeo, mudança na entonação da voz, baixa qualidade do áudio, membros com formas desproporcionais, essas coisas.

 

E não precisa ser expert no tema para distinguir o que é verdadeiro do que é falso. Quando um vídeo lhe parecer suspeito, experimente diminuir a velocidade, reveja uma ou duas vezes e se pergunte: isso pode ser real? É natural que aconteça? 

 

Em seguida, veja se encontra o enredo do “filme” em fontes alternativas confiáveis. Uma breve pesquisa lhe dirá se você está diante de algo verdadeiro ou falso. Se houver outra versão, compare. Enfim, se desconfiar de um vídeo (ou de uma imagem), lembre-se de que o velho e sábio Google ajuda muito.

 

O importante é você saber que a maior ameaça dos deepfakes está na forma de lidar com ele. Conectada 24 horas por dia, a sociedade vem se empanturrando desses monstrengos virtuais e quase sempre aquilo que passa adiante (por inocência ou má-fé; mas sempre ávida por isso!) é narrativa mentirosa. 

 

A desinformação, aliás, objetiva justamente espalhar dúvidas, reforçar crendices ou se opor de forma antidemocrática a outras ideias. E numa nação onde a maior parte das pessoas (inclusive pertencentes às castas dominantes) não lembra nem do título do último livro que leu, pouca gente se dá ao trabalho de verificar se imagens e sons foram retirados de contexto, editados ou encenados. Especialmente se o que viu reforça seus credos. 


Pior que tudo: algumas figuras desonestas tiram proveito desse ambiente saturado de ignorância e obscurantismo. A mera existência dessa tecnologia lhes faz jurar de pés juntos que tudo o que disseram é falsificação. "O diabo pode citar as Escrituras quando isso lhe convém" (Shakespeare).

 

Você deve lembrar de um ex-presidente norte-americano que alegou ser “uma farsa” – ainda que, anos antes, tenha se desculpado pelo vacilo – a gravação na qual, referindo-se às mulheres, diz: “...eu sou atraído pela beleza... Simplesmente começo a beijá-las. É como um imã. Simplesmente beijo… E quando você é famoso, elas deixam você fazer isso. Você pode fazer qualquer coisa”.

 

Ufa! Ainda bem que não temos por aqui esse tipo de gente, capaz de tudo. Poderia querer se aproveitar da evolução espantosa e fatal dos parvos para atingir objetivos nada republicanos.