quarta-feira, 29 de junho de 2022

Pulga Prenha

Descobri que o nome “Jason” tem origem grega (vem de Iáson ou Eáson). Significa “aquele que cura”, “Deus é o auxílio”. Refere-se também a uma pessoa dinâmica, embora desorganizada, que gosta de ocupar-se com estudos e leituras, mas não tem muito tato quando expressa suas convicções.

O que conheci na segunda metade dos anos 1970 era bastante espirituoso e irreverente. Baixinho, robusto, calvo, com olhos graúdos sobre um bigode espesso. Tornou-se profissional respeitado – o escriba dos chefes! – na principal agência do Banco do Brasil em Alagoas por conta do tanto que sabia de português e inglês. 

 

Em cada pavimento que chegava mexia com um, com outro, fazendo uma zoada medonha. Nem bem me conhecia quando indagou, com a cara mais séria do mundo: “Por que fizeram isso com você, meu filho? Um nome tão britânico merecia um sobrenome decente. Mas Jurema, hein!?”. E riu de juntar gente.

 

Crítico impiedoso e mordaz de qualquer deslize gramatical que tomasse conhecimento, não raro telefonava à redação dos jornais da cidade para apontar vacilos. Fazia o mesmo quanto a instruções circulares e correspondências que a agência recebia da Sede. Acabou recebendo dos colegas de trabalho a alcunha de “Vetusto Mestre”.

 

Não gostava. Mexia com todos mas não queria que mexessem com ele.  Tentou inclusive convencer os “burros” de que o termo “vetusto” não se aplicava a pessoas. Só à museologia, pontuava. Não adiantou: teve que engolir calado até aparecer outro apelido bem mais cruel: Pulga Prenha. A barriga roliça, a careca escura e reluzente e os olhos boleados foram decisivos para a aderência da alcunha.

 

Tinha lá suas esquisitices. Algo meio aristotélico. Diz-se que não existe uma grande inteligência sem uma veia de loucura. Ou newtoniano: pode-se calcular o movimento dos corpos celestiais, mas não a loucura das pessoas.

 

Jason “Pulga Prenha” amava lecionar, nem tanto pelos trocados que amealhava, mas pelo gosto de compartilhar saberes. Organizava inclusive turmas de colegas para ensinar gratuitamente gramática e redação. E deixava claro na primeira aula que os exemplos conteriam expressões chulas, sobretudo as de múltiplo uso que podem servir de adjetivo, substantivo, verbo, interjeição etc. "Ninguém esquece", dizia. 

 

Uma noite, chegou do trabalho cansado e comentou com a esposa que iria tomar banho, comer alguma coisa e cair na cama. Fazia muito calor e, como de costume, espalhou pela casa roupa, gravata, sapatos e meias. Pegava o rumo do banheiro quando faltou energia. Vestiu então uma sunga e avisou que iria caminhar até a praia, enquanto a energia não voltava.

 

Saiu pelas ruas do bairro do Poço em direção à praia num breu danado. Nem automóveis circulavam. Suando muito e confiado na demora do blecaute, tirou a sunga e seguiu como veio ao mundo – talvez tenha vindo um pouco mais apresentável! – até que, de repente, a energia voltou. 


A correria foi grande até chegar em casa e passar o cadeado no ferrolho do portão. Se parasse para cobrir as partes pudendas, poderia ser apedrejado pela molecada do bairro, que gritava no seu encalço.

 

Avesso a qualquer forma de bate-boca, quando por algum motivo se desentendia com a mulher, evitava discutir na frente dos filhos. Nessas ocasiões, porém, na hora de dormir, procurava a garagem com um travesseiro debaixo do braço, colocava-o entre os eixos do carro, empurrava-o com um cabo de vassoura e ali mesmo pegava no sono até o sol raiar. 


Ilustração: Umor



Sua santa esposa sempre foi bem mais cuidadosa do que ele na administração das finanças domésticas. E com as economias de anos, comprando e vendendo confecções e bordados que trazia do Ceará, ela juntou o suficiente para adquirir um fusquinha, devidamente licenciado para uso como táxi nas ruas de Maceió.
 

Ato contínuo, combinou com um velho conhecido da família, aposentado, que passou a trabalhar com o táxi, mediante comissão. Assim, toda noite ele levava o apurado líquido do dia, além do veículo para guarda na casa da proprietária. Às sete da manhã seguinte, retomava a rotina.

 

Uma noite o motorista não apareceu. A dona relevou, segura de que poderia ter acontecido algo imprevisto. Um dia depois, a mesma coisa. No terceiro dia, de novo.  A paciência já estava no limite e o motorista não tinha telefone nem havia orelhão nas proximidades de casa. O quarto dia foi a gota d’água:

– Marido, vamos agora na delegacia! Ele roubou meu carro!

– Calma, mulher! O cara é gente boa...

– Se você não for comigo, eu vou sozinha!

– Veja... Você lembra que na semana passada eu lhe pedi para assinar um documento, dizendo que era a renovação do seguro?

– Lembro. E daí?

– Aquilo era o documento de transferência do veículo. Passei pro nome dele. O homem tá velho, cansado, criando netos, com os filhos desempregados dentro de casa...  

– Você ficou louco!?

– Só agora você descobriu?


Tinha lá seus motivos, óbvio. Mas teve também que passar nova temporada pernoitando na garagem, desviando-se de gotas de óleo queimado, a vazarem de juntas do motor mais relaxadas do que ele.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

O curioso caso de Quirino

Você já ouviu daquelas histórias que todo mundo diz que aconteceram com um amigo? A que conto aqui envolve Quirino — goleiro, dos bons, do time do meu bairro — e sua irmã de criação, Alzirinha, dois anos mais velha que ele.

 

Quirino teria não mais que 13 anos. Duas vezes por semana, por volta de quatro da tarde, ia ao banheiro, levando caderno, lápis e livros. Para Alzirinha, que vivia a espremer cravos e espinhas enquanto não estava lendo fotonovelas de Capricho, Grande Hotel ou Sétimo Céu, não era para estudar Matemática. Entre as folhas haveria algum recorte de uma revistinha sueca ou um “catecismo” de Zéfiro — pseudônimo de um comportado e insuspeito funcionário público federal —, desenhista de quadrinhos eróticos entre os anos 50 a 70.

 

Alzirinha cismou de uma vez por todas quando flagrou Quirino, no quarto, tentando reproduzir a lápis grafite a obra Êxtase de Santa Teresa (do escultor italiano Bernini), exposta na Igreja de Santa Maria della Vittoria, em Roma. A expressão do rosto, com lábios entreabertos, de fato pode levar alguns a verem uma tradução carnal ao êxtase pretensamente sagrado.

 















Andava tão encasquetada (ou com ciúmes, sei lá!) com a curiosa rotina do irmão que um dia bateu à porta e quis saber, como se já não soubesse:  

— Que diabo você tanto faz aí?

— Não é de sua conta!

— Não fale assim comigo!

— Então, cuide de sua vida.

— Vou contar a papai.

— Me deixa em paz!


Alzirinha só sossegou no dia em que conheceu o novo vizinho, um cabeludo das canelas finas que fumava igual a uma caipora, dono de um fuscão preto com as rodas largas e o cano de escape aberto. Tinha mais o que fazer.

 

Tempos depois, em seus devaneios etílicos no boteco, entre amigos, Quirino andou defendendo tese no mínimo incomum: achava que os seres humanos deveriam nascer velhinhos, decrépitos, e evoluírem na direção de uma infância plena de saúde e sabedoria. 

 

Algo parecido seria visto bem mais adiante no filme O curioso caso de Benjamim Button, inspirado na obra de Fitzgerald e lançado em 2008. A obra narra a história de um homem que nasce com a aparência de um idoso e rejuvenesce à medida que vive experiências como o amor, a solidão, a perda e o medo.

 

Para Quirino, só se deveria trabalhar após os 40. Antes disso, todos deveriam receber mesada de um certo fundo de recursos financeiros — poupança formada pelas pessoas mais idosas —, o suficiente para viver o ápice da maturidade em plena ebulição hormonal.

 

Tinha dúvida, evidente, se os suicidas não acabariam provocando o colapso do fundo, deprimidos com a proximidade da jornada de trabalho pelo resto da vida. Caso acontecesse, haveria desequilíbrio entre nascimentos e mortes e a sobrevivência no paraíso estaria comprometida.

 

Fã de O Pasquim — sobretudo de Millôr Fernandes, Ivan Lessa e Paulo Francis —, Quirino sempre embarcava com facilidade numa boa utopia. Mas um dia o porre acabou. Formou-se em arquitetura e passou a trabalhar como todo mundo, sujeito a carga horária, ao estresse de ser infalível, à raiva de ter que repassar aos governos de plantão quase 30% daquilo que ganhava.

 

Encontrei a criatura, outro dia, mais de 40 anos depois, tomando café com tapioca de coco e queijo derretido no mercado. Apesar da escassez capilar e dos quilos e rugas a mais, não foi difícil nos reconhecermos. 

 

Logo conversávamos sobre ilusões convertidas em esperanças, sobre garrafas de suor e pranto derramadas pelo caminho e sobre o receio de não conseguir tudo o que ainda sonhamos alcançar.

 

Falei de filhos e netos, de prazeres e desgostos, e de que, no derreter do queijo, me sinto bem, com as doenças sob adequada gestão. Sem os rachas de antigamente, disse-lhe que agora me distraio escrevendo crônicas sobre o que vi ou tenho diante de mim.

 

Quirino, que nunca foi de muita conversa, a não ser quando tangido pela emoção do terceiro gole — gostava de citar o personagem de Bogart, no filme Casablanca: “a humanidade está sempre duas doses abaixo do normal” —, falou de si ao recitar uma adaptação bem pessoal que escreveu de “O último poema”, de Bandeira:

 

Assim eu quis, mas nunca consegui, o meu único poema.

Que dissesse as coisas mais simples e menos intencionais.

Que fosse forte como um soluço sem lágrimas.

Que fosse belo como as flores sem cheiro.

Que tivesse a pureza da terra, do ar, da água e do fogo, no começo de tudo.

E a paixão dos que se matam por nada.

 

Perguntei de seus textos e desenhos autorais, mas ele me confessou que desistiu desde aquelas tardes solitárias em que, talvez com uma ponta da razão, Alzirinha andou desconfiando da extensão de sua pegada poética, de sua veia artística de grosso calibre. 



E assegura que o mundo, esse ingrato, perdeu um pintor ou poeta — ave rara, feito rolinha-fogo-apagou, nos dias de hoje  ainda no ninho. Nem chegou a voar. Desistiu ao levar o primeiro peteleco e se estatelar com as asas abertas e o peito no chão.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Quem souber, me conte, por favor!

Faço parte de alguns grupos de WhatsApp de ex-colegas de trabalho. Vira e mexe, dou de cara com um post anunciando o silêncio definitivo de um deles, seguido daquela fila de condolências, votos de pêsames, de uma boa passagem, de um bom lugar na eternidade. 

 

Ninguém diz, mas certamente sempre tem alguém ruminando: “Logo fulano! Por que não beltrano?”. Se algum beltrano me lê agora, peço não levar isso muito a sério. Faz parte da natureza humana.

 

E tem aquele curioso querendo saber a causa do passamento, como se isso fosse relevante àquela altura, ao que alguns se apressam em responder convictos: “infarto fulminante”, “parada cardiorrespiratória", por aí.

 

A pergunta carrega em si um pensamento um tanto egoísta e sutil: quer o inquiridor apenas  "confirmar" se estaria fora de risco. E cresce a fila de posts:

– Como foi possível? Infartou com todos os exames em dia? – indaga um.

– Parecia tão disposto… – comenta outro.

– A morte só quer um pretexto... Vai ver foi a vacina! – especula o terceiro. 

 


Desconheço o sessentão como eu que não faça uso de pelo menos uma bengala química para se manter de pé, ativo e saltitante. Exceto os mentirosos, claro, os quais nunca chegam nem aos 50.

 

Muitos subestimam os efeitos colaterais dos remédios sob o argumento de que as bulas representam apenas precaução da indústria farmacêutica, temendo processos judiciais.

 

Outros não admitem que a causa mortis pode ter sido o desencanto com a espécie humana, sobretudo com figuras próximas. Ou com as dores que toda manhã alertam para o correr dos anos. Ou ainda com a incoerência de uns que discursa sobre a ineficácia de vacinas mas que, de boné, máscara e óculos escuros, toma até as doses de reforço.

 

Não me lembro de ninguém que encerrou sua jornada neste plano que não tenha puxado uma última lufada de oxigênio, seguida de um derradeiro batimento cardíaco. Nem de quem tenha sofrido um colapso sob aviso prévio de 30 dias, datado e rubricado. Soa discutível, portanto, falar de parada cardiorrespiratória ou infarto fulminante como causa mortis depois de certa idade da vítima.

 

Parece coisa daquele velho médico, já com a bateria em petição de miséria de tanto surfar no vai-e-vem das ondas científicas, que fecha um diagnóstico (quadro febril, com enxaqueca e mal-estar) olhando para o paciente como quem acaba de descobrir o segredo da vida eterna e decreta na maior caradura: “é virose!” 

 

Bem, se virose ainda é o nome que se dá para qualquer doença ou infecção causada por vírus, sou capaz de vestir uma camisa vermelha e preta e desfilar por aí se o ilustre doutor já não soubesse disso mesmo sem se dar ao trabalho de passar anos entre graduação universitária e residência médica. Melhor servir água gelada e cafezinho e predizer: “vai passar”. De uma forma ou de outra, tudo passa.

 

Sei que pareço outro velhote desses com o combustível na reserva, aqui no balanço de uma rede na varanda, conjecturando sobre a morte e suas causas. Tudo bem, confesso, às vezes essa imagem acaba sendo bem fiel. 

 

Há algum tempo estou convencido de que toda pessoa morre duas vezes, com certo espaço entre as duas. A primeira quando ganha sepultura e epitáfio para chamar de seus e a segunda quando seu nome é citado entre os vivos pela última vez. Raras permanecem na memória por séculos, como Jesus Cristo, Maomé, Beethoven e Da Vinci. A maioria não sobrevive nem mesmo na lembrança de seus descendentes, amigos do peito ou credores.

 

Mas no balanço geral, contudo, existem circunstâncias que podem melhorar o resultado da última linha. O olhar amoroso e protetor de pais e avós e a contrapartida de afeto e reconhecimento de filhos e netos, por exemplo, têm o condão de alongar a memória e retardar o esquecimento.

 

O bom da velhice? Sei lá! Quem souber, me conte, por favor. Sei é que tenho um monte de casos para contar. Posso passar o resto da vida lembrando (e recriando, do meu jeito) o tanto que experimentei, mas viver só de lembranças é coisa de velho e ficar velho é uma merda! É tolerável apenas quando penso na única alternativa que existe e opto por ficar por aqui, divertindo-me e mexendo com quem presta atenção no que escrevo.   

 

Enquanto somos lembrados, a memória respira, lateja. No jogo da vida, não existe morte súbita nem na prorrogação. Ou será que toda morte é súbita? Sei lá! Quem souber, me conte, por favor! 


Como na canção "Epitáfio", dos Titãs (ouça), contamos todos que o acaso nos proteja enquanto seguimos distraídos por aí. 

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Açoite

O trem chegou às oito e meia da noite na estação de União dos Palmares, Zona da Mata alagoana, num dia útil qualquer do final dos anos 60:

— Oxente, Açoite, o que cê tá fazendo aqui? — quis saber a dona da casa, surpresa com a inesperada visita.

— Acabei de chegar, dona Eudócia — respondeu, enxugando a testa na manga da camisa.

— Como é que cê veio?

— Tem dois dias que tô viajando.

— Quem deu a passagem?

— As irmãs do Cristo Rei.

— Tá com fome?

— Muita.

— Entre, sente.

— Tem sopa?

— Tem. Vou esquentar.


Açoite era mais um andarilho à custa da caridade alheia. Vivia entre cidades do Sertão paraibano, mas passava a maior parte do tempo deitado no terraço da prefeitura de Patos, balançando-se sob o ritmo do ranger da cabeça dos punhos da rede nos ganchos.

 

A molecada morria de medo de levar uma pedrada na cabeça, mas gostava, a razoável distância, de vê-lo a produzir com o vento um assobio ao girar uma pedrinha presa a um barbante, tirando finos cada vez mais próximos de sua própria boca. 

 

Vinha daí o apelido. Açoite (chicote, chibata etc.) é uma trança de corda ou tira de couro presa a um cabo para fustigar animais e, em certos países, para castigar seres humanos por violação de normas instituídas por eles mesmos. 

 

No auge da performance de Açoite, sempre aparecia alguém querendo quebrar o encanto: 

— Tem juízo um homem desses?!

— Tem nada! — dizia o próprio Açoite, a piscar os olhos, em tique nervoso — Mas é melhor ser doido em Patos do que prefeito em Piancó.

E quando estava em Piancó ou Conceição, só “recalculava a rota” de seu GPS. Sobrava então para o prefeito de Patos.

 

Tinha outros problemas de saúde, claro, mas também foi diagnosticado como epiléptico pelo único médico da cidade de Patos. Na época, a epilepsia ainda era associada à loucura e até a possessões demoníacas. Com esse estigma, as crises convulsivas de Açoite — que não tinha meios para uso regular de remédios — assustavam a criançada no meio da rua. 

 

Havia algumas mulheres que se aproveitavam desse temor para ameaçar os filhos: “Fique quieto, danado, senão eu chamo Açoite para te pegar!”

 

Quando dona Eudócia soube disso, teve pena e assumiu com Açoite o compromisso de lhe fornecer o remédio todo mês, além de garantir um prato de comida no almoço e outro no jantar, como já vinha acontecendo. “Ele chegou a engordar um pouquinho”, ela me contou. 

 

Um dia dona Eudócia foi embora com seus filhos, acompanhando o marido, que fora nomeado subgerente do Banco do Brasil em União dos Palmares (AL), a 430 km do Sertão paraibano. 

 

Açoite sentiu. Mas poucas semanas depois procurou a agência do banco em Patos para saber o paradeiro do marido de sua protetora. Em seguida, foi ao Colégio Cristo Rei, onde convenceu algumas freiras a arranjarem o suficiente para pegar o trem para Recife e, de lá, para Maceió. Assim, ficaria fácil chegar ao destino pretendido, a 70 km da capital alagoana.


Ilustração: Umor

 









Naquela noite, depois da sopa e do banho com sabonete “de gente”, como dizia Açoite, pediu rede e lençol para dormir. Antes que caísse no sono, dona Eudócia quis saber:

— Gostou da sopa?

— Oh! Já tô pensando no pão com manteiga e café amanhã bem cedinho.

— Teve saudade da gente, foi?

— Foi.

— Por quê?

— A senhora cuida de mim. E os meninos não têm medo.

 

Uma semana depois, Açoite deve ter lembrado do balanço de rede no Sertão paraibano e ficou amuado pelos cantos da casa. Foi quando, com a ajuda de sua protetora, pegou de volta o trem, levando, além de um trocado, algumas caixas de Gardenal.

 

Como tantas outras pessoas que cruzam o nosso caminho, do jeito que apareceu, sumiu. Nunca mais se ouviu falar dele.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Sem nó na garganta

Para gravar a antológica cena de “Os Caçadores da Arca Perdida” em que Indiana Jones (Harrison Ford) se vê às voltas com centenas de cobras, a produção vasculhou todas as lojas de animais exóticos nas proximidades do Elstree Studios, na Inglaterra, buscando os mais variados tipos de serpentes. Levou ao set de filmagem o máximo que conseguiu encontrar, mas o diretor Steven Spielberg achou que ainda estava distante do número ideal. Então recortou algumas mangas de camisas compridas e pernas de calças velhas, misturando-os aos répteis para alcançar o efeito desejado. 

 

O resultado apavorou até o pessoal do Instituto Butantã, em São Paulo, que mexe com cobras, escorpiões, aranhas e lacraias. Foi elogiado pela crítica por focar no terror psicológico, que cozinha o cérebro em fogo brando, em vez de apostar naqueles sustos repentinos que alteram os batimentos cardíacos e nos fazem pular da poltrona. Sem falar nos pesadelos que, vez por outra, nos atormentam.

 

Lembrei-me disso na semana passada, ao abrir não uma arca perdida mas uma caixa guardada por minha mulher quando nos mudamos do apartamento em que morávamos na Asa Norte, em Brasília, a 10 minutos do trabalho, para a casa no Jardim Botânico onde agora nos acordam bem-te-vis, corujas, maritacas, quero-queros e sabiás. 


Quase fui picado por mais de 40 gravatas que usei no tempo em que me fantasiava de executivo. Tive a sensação de que algumas se mexiam, cada uma com seu chiado próprio, ameaçando-me a qualquer momento um bote no pescoço. Refuguei no avanço exploratório para avaliar melhor o que fazer. Vi que nem aquelas que mais me custaram valem agora a cueca que me protege do frio que faz em Brasília neste atípico mês de maio.

 

 

Como um arqueólogo, fotografei o achado, lacrei de novo a caixa e fui refletir sobre que medidas a adotar após o inesperado reencontro. Ultimamente, aliás, só tenho visto gravatas em advogados, bancários, juízes, pastores religiosos, políticos e defuntos (nesse caso, óbvio, involuntariamente).


Vem de longe essa peça do vestuário masculino. Descobri que surgiu na França no final do século 17. Os gauleses adaptaram-na de um exército croata que andou por lá em 1668. Usava-se um cachecol para manter o pescoço arejado no verão e aquecido nos primeiros dias de inverno. Quando o frio apertava, era trocada por um modelo de lã. Foi em Paris, inclusive, que recebeu o nome de cravate, ou “croata”, em francês.

 

Acontece que gravata é feito gato: não gosta de água. Trata-se de uma peça por natureza imunda, repleta de microrganismos ressequidos, tanto de origem do usuário quanto de seus interlocutores, evidenciando, aliás, que a expressão “babar na gravata” não surgiu do nada. Tal como certas roupas delicadas, só é lavada à mão – nunca na máquina –, estendida na sombra e guardada com uma série de cuidados. Em tese, portanto, calcinhas, cuecas e meias são bem mais limpas e cheirosas.

    

Mandei a imagem de meu achado arqueológico para uma amiga, pedindo sua opinião sobre o que fazer. Adiantei que meu primeiro impulso foi jogá-lo numa fogueira. Mas isso não condiz com a secura que começa a castigar a vegetação do Cerrado nesta época do ano, nem pretendo formar pastagens para rebanho bovino ou plantar soja no meu jardim, agravando o caos ambiental decorrente de queimadas. 


Adiantei também que, nos tempos em que havia casamentos (talvez ainda haja, não estou bem certo disso), em especial os mais humildes, era comum recortar a gravata do noivo em minúsculos retalhos, a serem "vendidos" para os convidados, como forma de angariar uma ajuda para o novo casal. Pensei em algo nessa linha, dando um final prático e rentável para meu “serpentário”. Precisaria apenas convencer minha mulher a abrir mão da exclusividade quanto ao maridão, mas fui prontamente demovido: “A vida reprova quem erra mais de uma vez a mesma questão" – ela resumiu. Nem cheguei a explorar melhor o pensamento, que achei profundo.

 

Mais tarde, a amiga com quem compartilhei a fotografia me veio com esta: "Dariam pra fazer uma colcha de fuxicos". Fuxico, no caso, é um tipo de artesanato feito com tecido, agulha, linha e paciência... Muita paciência. Além de ser uma das técnicas mais conhecidas pelos brasileiros, é método de relaxamento barato que resulta em almofadas, cobertores, colchas, costurando-se pequenas e coloridas trouxinhas de pano.

 

Fuxico também, como se sabe, é falar da vida alheia de forma maledicente. É bisbilhotice, cochicho, disse-me-disse, futrica, mexerico, zunzum, essas coisas de moleque de recados. E, não tenho dúvida, se minhas gravatas tivessem ouvidos, juro que teriam ficado moucas de tantas intrigas que escutaram em mais de 40 anos lidando com certas figuras ordinárias e venenosas.

 

Optei, então, por um funeral (apenas das gravatas, sem o pescoço, bem entendido!). Afinal, superar a perda de certas peças de estimação não é nada fácil, já que estão impregnadas de sentimentos, testemunhas silenciosas que foram de momentos importantes. Além de lidar com a dor, portanto, era necessário encontrar uma forma de curtir o luto, mesmo sem lágrimas, antes de enterrá-las.

 

No cair da noite, sozinhos no quintal, eu e elas (as gravatas), fizemos uma cerimônia íntima, reflexiva sobre o que experimentamos juntos. No final, antes da última pá de terra e sem qualquer espécie de nó na garganta, recitei com convicção uma quadrinha popular cuja autoria desconheço que aprendi nos tempos de menino: “Toda roupa veste um nu/Menos gravata e colete/Porque não cobrem o cacete/Nem a regada do...”  

 

Não é de gravatas que devemos ter medo, mas de pensar nelas quando já não fazem sentido.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

Vó é vó, tchê!

Ontem, bem cedinho, o sinal sonoro do celular de minha vizinha alertou-a da chegada de uma mensagem: “Oi… Ligou? É urgente?”. Estávamos no elevador, saindo para a caminhada no calçadão da orla.


Ilustração: Umor

Divorciada, 58 anos, Mafalda Lavado Tejón é natural de Mendoza, cidade da região vinícola argentina de Cuyo, famosa por suas bodegas, pelo Malbec e outros vinhos tintos de boa cepa, o que nos aproximou e me faz visitá-la com razoável assiduidade – acompanhado de minha mulher, óbvio!

 

Com um rabo de olho, pude perceber o que se passava. Ela quis disfarçar, mas acabou revelando que, tocada pela saudade dos netos, que não aparecem há mais de mês, anteontem tentou conversar com eles às sete da noite, por videochamada através do telefone de Joaquín, seu único filho. Ninguém atendeu.

 

Pouco importa se netos são monossilábicos em contatos cada vez mais esporádicos, imersos em seus afazeres digitais. Mafalda é a mais completa expressão do amor absoluto, generoso, pleno, que não impõe condições ou limites nem espera nada em troca, exceto, se sobrarem, dois dedos de atenção, uma vez na vida e outra na morte (certamente prefere em vida as duas vezes!). 

 

Sabe, claro, que filhos sempre culpam os pais não importa do quê, como se não estivessem predestinados a serem pais mais adiante. Tem sido assim desde que Caim quis terceirizar a culpa por destruir Abel acusando Eva de preferir o irmão dele, diante de um Adão omisso que, após ser expulso do Paraíso, não conseguia sustentar a prole trabalhando em home office.

 

"Quem não quer sofrer, nasce cega, surda e muda", vive repetindo Mafalda. Reconhece, entretanto, que tudo se torna menor ao lembrar de sua falecida tia Antônia, uma das Madres de la Plaza de Mayo (organização argentina de ativistas dos direitos humanos há mais de quatro décadas), que teve dois de seus rebentos, líderes trabalhistas, sequestrados e mortos pela ditadura militar durante o massacre contra os movimentos esquerdistas, entre 1976 e 1983.

 

Para Mafalda, nada mais é urgente. Pelo menos dentro da escala de valores de seu filho, que possui repertório próprio de conceitos para o que vem a ser importante, urgente ou inadiável, em relação à mulher que lhe despejou no mundo. 

 

Ela hesitou um pouco em responder a mensagem. Não queria dar a entender que estava ansiosa, carente ou que se tratava de exagero de mãe extremada, essa miríade de adjetivos com que os mais jovens costumam rotular quem apenas purga por aqui, sem pressa, o saldo remanescente de pecados.

 

Compreendi perfeitamente porque ela quis esconder o que se passava. Afinal, é cruel admitir a gradativa evolução de nossa irrelevância na vida de outras pessoas, sobretudo daquelas que ainda nos são caras. E, a rigor, sou nada mais que um conhecido cuja única afinidade com ela, além de vinhos, parrillas e queijos, é a condição de vizinho de porta. 

 

“Liguei sem querer!” – digitou em resposta. Logo ela, professora de artes cênicas até outro dia, que orientava seus alunos sobre as imperfeições dos relacionamentos humanos, a dizer que não se deve apertar, prender ou sufocar quem se ama, porque o que hoje é laço amanhã pode virar nó cego, essas coisas.

 

Pode ter recordado de alguns finais de semana quando o ranger da dobradiça da porta de sua casa anunciava que Joaquín estava de volta da inquietante noite com seus afetos e desafetos, e isso lhe fazia grata a todos os anjos e santos de plantão. Só assim seu coração relaxava e a cabeça fatigada se rendia ao travesseiro amigo.  

 

Imaginava que ter sido mãe por uma vez contaria pontos a seu favor, dado que teria uma só nora. Se fosse a filha que não veio, ótimo! Se não, fazer o quê? Tinha agora consigo, com a ironia e a verve das sábias, que “nora nada mais é do que uma sogra jovem, se tiver sorte de chegar lá”. 

 

Ao deixarmos o prédio, tomamos destinos opostos, cada qual com suas conjecturas. Cinquenta minutos depois nos reencontramos onde havíamos nos despedido. "Vou me desfazer de tudo que tenho e voltar para a Argentina. Cansei dessa vidinha sem graça que levo aqui", ela anunciou.


Pensei em lhe dizer que não adianta fazer as malas achando que o problema não fará parte da bagagem, mas resolvi não me meter: "Faça o que seu coração pedir, Mafalda...".


Não demorou muito, o sinal sonoro celular alertou-a da chegada de uma nova mensagem de Joaquín: “Ô mãe… A secretária ligou dizendo que não vem. Tá de cama, gripada. Como hoje é sábado e vamos visitar uns amigos, você fica com as crianças até às cinco?"

 

De novo, ela vacilou um pouco antes de responder. Mas sem demonstrar ansiedade, carência ou exagero de mãe extremada, foi breve e reta ao optar pelo que seu coração pedia: “Claro! Vó é vó, tchê!”.

 

E piscando um olho em minha direção, apelou: “Esquece o que te falei, vizinho…”.


quarta-feira, 18 de maio de 2022

O vaga-lume de Massarandupió

Há dois anos compartilhei aqui uma troca de mensagens, sob o título “Urtigão é culpado”, com uma criatura sábia e mordaz que conheci em 1990. Foi o modo que encontrei de reconhecer uma amizade que já passa dos 30 anos.  

 

Vira e mexe Urtigão some feito vaga-lume quando amanhece. Desapareceu de novo, aliás, em plena pandemia. Parecia ter entrado noutra dimensão, envolvido com algum fenômeno metafísico, como se nas águas da praia deserta de Massarandupió, próximo de onde vive no litoral norte baiano, houvesse uma versão cabocla do Triângulo das Bermudas.

 

Imagens: Ana Isa

Para quem não lembra, o chamado Triângulo do Diabo é uma região delimitada por linhas imaginárias no Oceano Atlântico. Sua área vai das Bermudas até as Bahamas, passando por Porto Rico, numa extensão de 3,9 milhões de quilômetros quadrados reconhecida por fenômenos “sobrenaturais” envolvendo o sumiço de navios e aviões. 

 

Nem passou por minha cabeça, felizmente, a hipótese de ele ter sido mais uma vítima da peste que sumiu com tanta gente querida nos últimos dois anos. No meio do mato, dificilmente seria contaminado pelo vírus, se bem que viajava vez por outra à capital para matar a saudade de Ana Isa, sua musa inspiradora. 

 

Cogitei, não nego, a possibilidade de uma picada de abelha africana, escorpião ou jararaca tê-lo obrigado a procurar um hospital, onde o mal do século se disseminava mais rápido que cuspida de músico.  

 

Semana passada ele reapareceu. Recebi mensagem contando que, após meses cuidando de evitar um ataque cardíaco e quase à beira do suicídio, livrou-se de uma operadora de planos de internet banda larga via satélite. “...Só funcionava em dias ensolarados, sem nuvens, com estabilidade de energia elétrica mil centesimal, atestado negativo de brucelose, cirrose, escoliose, tuberculose, verminose etc...”

 

Disse que só conseguia ler alguma coisa quando passava pelo único supermercado da cidade mais próxima da roça. Mas Ana Isa não lhe dava sossego, apressada em concluir as compras. 


Pensou até em “criar pombos-correios para socorrê-lo junto aos amigos mais queridos”. Teve medo, imagino, da gripe aviária ou ácaros, carrapatos, pulgas e outros ectoparasitas que se hospedam nas asas dos carteiros da paz.

 

“Em dias de chuva, a TV é só sombras e dúvidas; o celular emite sons de uma lata d'água, transformando meus interlocutores em fanhos ou gagos... Tive que me roer com a absoluta falta de comunicação bem na hora de plantar e cuidar da roça, quando nem posso sair daqui, pois se as chuvas não me virem, podem não voltar mais...”.

 

Bateu de frente, então, com a provedora e contratou outra, mas frustrou-se de novo. “Descobri que é muito ‘viva’ e, em dois dias, alegou que consumi 5,7 Gbytes. Impossível. Durmo cinco horas por noite, no mínimo. Fugi dessa também e agora estou testando uma terceira, igualmente instável, claro, muita intermitência, mas não promete muito e é mais barata...”

 

E arrematou: “Hoje não vou fazer nada. Vou só dar banho nos meus amigos caninos e ler tudo que recebi dos outros e ficou pra trás... Um abração”.

 

De bate-pronto, respondi sem pestanejar: “Que rufem os tambores e soem os clarins, que esfrie o sol e reapareça a lua para celebrar esta manhã, eis que de volta o admirável homem da verve. Pelo visto, não faz ideia do quanto dele preciso no meu dia a dia. Dois abrações!”

 

A tréplica que acabo de receber me diz que os sinais vitais de Urtigão estão aparentemente preservados:

 

“Estamos morando na roça. Ana despediu-se do emprego antes que endoidasse e ficasse igual a mim: um caso perdido! Fato é que passamos a ter outra relação com a vida, o vento, a chuva, o sol, as estrelas, os pássaros, os insetos e as plantas. O caminhar da idade vai fragilizando nossas emoções e aqui na roça esse efeito fica maior. Parece que vivemos como a Bíblia define a forma do pecado: ‘por pensamentos, palavras e obras’.

 

“...Outro dia estava olhando o milho e o feijão de corda que plantamos, lado a lado. Os pássaros esperavam o milho brotar, arrancavam as plântulas e comiam o resto das sementes... Chegavam entre as seis e sete da manhã, provavelmente porque o pessoal começa a trabalhar às sete. Já o feijão de corda foi degustado pelas paquinhas (um inseto da família dos grilos e gafanhotos) que trabalham de noite, também longe dos olhos do pessoal...”

 

“...Não usamos defensivos porque penso comer produtos saudáveis, mas tenho a sensação de que, se formos ‘comer da terra que cultivamos’, vou ter que aprender com os povos orientais a saborear insetos...” 

 

“...Você está piorando, meu bom amigo. A escrita está lhe tornando frágil. Tá virando poeta... Dois abrações também, fortes feito gemada com ovo de pata e cerveja preta”.

 

Se soubesse fazer versos, meu caro vaga-lume de Massarandupió, nem recorreria ao “Soneto do Amigo”, de autoria do Poetinha, para tentar traduzi-lo:


“… Um bicho igual a mim, simples e humano

Sabendo se mover e comover

E a disfarçar com o meu próprio engano 


O amigo: um ser que a vida não explica

Que só se vai ao ver outro nascer

E o espelho da minha alma multiplica…”

quarta-feira, 11 de maio de 2022

Bença, mainha?

Na sala de espera da oftalmologista, Lito esperneava no colo de Eulália, sentindo-se ameaçado pela atendente que lhe dilataria as pupilas antes da consulta:

– Vai arder! 

– É só uma gotinha – explicava a atendente.

– Lito, pelo amor de Deus não me faça passar vergonha. Você já tem cinco anos!  

– Quero não, vai doer! 

– Não vai, eu prometo – prometia a atendente, de olho na reação de outras crianças na sala de espera.

– Se você não deixar a moça colocar o colírio – ameaçava a mãe –, vai apanhar quando a gente chegar em casa, visse? 

– Deixo não! Vai arder!

– Sente aqui na cadeira que eu quero olhar bem na sua cara!

– Quero não... Mamãe, tire ela daqui! 

– Vou contar até três: Lito um, Lito dois...

Espremido pelo peso do "argumento" final, o menino se rendeu:

– Pinga, vai...

A atendente então pôs uma gota de colírio em cada olho. Ele enxugou as lágrimas, sorriu amarelo e arrematou:

– Nem doeu...

 

Viúva aos trinta e poucos anos de idade, Eulália não queria mais saber de homem a seu lado. Mudou-se para Maceió logo após a morte do marido e lutou muito para criar os filhos, preparando marmitas, bolos e tortas. Com boa freguesia, completava assim a pensão que recebia. 

 

Foi avó cedo, aos 40. E ao ver a nora com o primeiro neto nos braços, despertou a mãezona que ainda cochilava dentro dela, embora não cogitasse parir novamente.

 

Nelito, seu irmão mais velho, outro pequeno agricultor tangido do meio rural para o cinturão de miséria urbana, percebeu na irmã a sobra de afeto e procurou convencê-la a criar o seu filho:

– Não tô aguentando mais, Lala...

– Vixe... Eu já tenho dez bocas para comer – antevendo o que o irmão queria.

– Onde comem dez, comem onze...

– Né assim não, Nelito!

– Fique com o bichinho, vai... Tô com pena de dar pr'outra pessoa.

– E se a rapariga da mãe aparecer?

– Aparece não... Sumiu de vez...

– Tá bom, mas nem pense que vou alisar a cabeça dele, visse? Vai ter que ser gente na vida...

 


Assim Lito caiu no colo de Eulália, aos dois anos de idade, abandonado pela mãe biológica, uma morena dos olhos de chimbra que passou algum tempo nos cabarés do sertão alagoano e por quem Nelito ainda tomava umas e outras de paixão e saudade.

 

Desnutrido, além do baixo peso ao nascer, do desmame precoce no sumiço materno e de uma alimentação pobre em nutrientes, Lito sofrera até ali repetidas infecções, doenças diarreicas e parasitoses intestinais. Quase engrossou a lista de pagãos sepultados nos cemitérios clandestinos de anjinhos do Nordeste.  

 

Eulália tinha consciência de que não deveria castigar ou repreender o menino, por exemplo, pelo xixi na cama. Ele já se sentia meio perdido desde o afastamento do pai, até então sua única referência emotiva. O quadro inclusive poderia piorar com a mudança de ambiente numa fase crítica do desenvolvimento.

 

Ela viu naqueles programas matutinos de tevê que as mães que possuem filhos com a tal enurese noturna deveriam manter um diálogo aberto com os filhos sobre o problema. Não era necessário repreender ou castigar, e sim, explicar que quando se cresce não se faz xixi na cama. 

 

Um dia, porém, com a enxaqueca a latejar, cansada de lavar lençóis encharcados de urina e colocá-los para quarar no quintal, chamou Lito no quarto e foi direto ao ponto, como fizera antes com os filhos mais velhos:

– Olhe bem aqui na minha cara, seu moleque, se você mijar de novo na cama eu vou cortar sua pinta, visse?! 

 

A vizinha – que não gostava de Eulália – ouviu o carão e a denunciou junto ao Conselho Tutelar, que marcou audiência para a semana seguinte. No dia marcado, a psicóloga escalada nem chegou a abrir a boca. Na sua inocência, Lito falou primeiro:

– Não mijo mais no colchão. E nem doeu.

 

Lito cresceu. Estudou em boas escolas particulares tal como seus irmãos de criação, porém não obteve resultados parecidos. Era inteligente para algumas atividades, mas tinha dificuldades noutras, notadamente em ciências exatas. Desistiu apenas com o ensino fundamental.

 

Para desgosto de Eulália, caiu na esbórnia junto com o que havia de pior em termos de colegas de infância no bairro. Muitas vezes chegou em casa sujo, esfomeado, bêbado e fedendo a cigarros. Acabou envolvido com consumo e tráfico de drogas.

 

Numa tarde como outra qualquer, Eulália viu um camburão nas proximidades de sua casa, mas não desconfiou de nada. Só caiu em si quando acordou no dia seguinte e soube pela empregada doméstica que Lito escapuliu às pressas com uma sacola nas mãos e sumiu sem deixar um bilhete sequer, depois de envolver-se numa tentativa de assassinato ao emprestar sua arma a um colega traído pela namorada. 

 

A mistura de frustração, desencanto e mágoa, esfriou o coração de Eulália de tal modo que não lhe escorreu uma lágrima sequer. “Se arrependimento aleijasse...”, comentaria meses depois com a vizinha, a quem perdoara pela delação. 

 

Há alguns meses, vinte e tantos anos depois do sumiço, Lito reapareceu numa videochamada: 

– Mainha, me perdoa... 

– Onde cê andou esse tempo todo, menino?

– Aconteceu tanta coisa... Nem gosto de lembrar. Mas agora tô bem, aqui na Bahia. Me casei, tenho uma filha...

– Cê tá careca? Tá fazendo o quê?

– Tem mais de oito anos que sou socorrista do Samu. 

– E de saúde, tá bem?

– Já tô meio cego, precisando trocar os óculos.

– Mas tá se cuidando direito? 

– O corona me pegou. Quase me mata. Saí anteontem do hospital. 

– Meu Deus, como foi isso?!

– Doía tudo. Tive medo de nunca mais ver a senhora.

– Ô, filho! Cê tá bem mesmo?

– Quase. Só de ver a senhora, nem dói mais.

– Tudo poderia ter sido tão diferente...

 

Lito ficou de trazer sua filha a Maceió, no Dia das Mães, para conhecer Eulália. Ao se despedir, pediu de novo o que aquietava o seu coração no tempo em que tinha medo de alma penada, boi da cara preta e careta:

– Bença, mainha?

quarta-feira, 4 de maio de 2022

O céu não pode ter pressa

Quem de nós nunca reverenciou figuras únicas, incomuns naquilo que faziam? Não falo de pais e mestres, cuja proximidade já nos impactava naturalmente, mas de personagens que nos foram apresentados pela magia do rádio ou do toca-fitas numa época em que a televisão ainda era item de luxo na casa de remediados.

 


Tão distantes de minha casa mas absurdamente próximas de mim, duas dessas figuras singulares foram Rita Lee e Roberto Dinamite. Ela, estrela maior do rock brasileiro, tinha a mania de compor canções cujas letras eu gostaria de ser o autor. Ele, bem, deixa pra lá. Quem um dia sonhou ser jogador de futebol sabe do que falo.

 

Há um ano, Rita foi diagnosticada com câncer no pulmão. Ao descobrir a doença, fechou-se em copas num sítio no interior de São Paulo, ao lado do marido, onde seguiu à risca o tratamento médico prescrito. Deu certo. Mês passado, um de seus filhos anunciou nas redes sociais que ela, aos 74 anos, está curada. 

 

No início de 2022, Roberto Dinamite também revelou estar com um câncer (no intestino). De imediato, iniciou a quimioterapia para enfrentá-lo e, aos 68 anos, 20 kg a menos, concluiu outro dia a primeira sessão. Suportou bem.


“Navigare necesse, vivere non est necesse”. Em latim, essa frase é atribuída ao general romano Pompeu Magno (106-48 a.C.). Teria dito a seus marinheiros, apesar de grande tormenta, que suas naus deveriam partir em direção a Roma, levando o trigo embarcado na Sicília, Sardenha e África. 

 

A sentença rodou o mundo a partir do filósofo e historiador grego Lúcio Méstrio Plutarco (46-120 d.C.),  até chegar a Fernando Pessoa (1888-1935), filósofo, ensaísta, crítico literário e tradutor, mais reconhecido como o maior poeta da língua portuguesa.


Toda vida é provisória, mas, enquanto houver, não faz sentido desistir. É preciso navegar e, na tempestade, reposicionar as velas, vencer os obstáculos e refazer o roteiro da viagem, se necessário. Mesmo numa roda onde brincam de mãos dadas angústia, depressão, incerteza e apreensão, não se pode perder de vista a impermanência de tudo e de todos. 


Após a queda, não é tão simples e poético levantar-se, sacudir a poeira e superar as dificuldades, exceto no samba “Volta por cima”, de Paulo Vanzolini (1924-2013). Seja a perda de um ente querido, do trabalho, da saúde ou até mesmo da esperança, muitas vezes a primeira que morre. Mas todo pescador calejado sabe que é no mar revolto que se separam os homens dos moleques. 

 

Na noite de quinta-feira passada, o estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, virou palco para a inauguração no gramado (atrás do gol da ferradura, diante da arquibancada) de uma estátua de Roberto Dinamite. 


O maior ídolo da história do Vasco da Gama recebeu o carinho de 10 mil torcedores numa cerimônia que, além de ex-treinadores, como Antonio Lopes e Joel Santana, reuniu ex-companheiros de time, como Bebeto, Tita, Mauro Galvão, Zé Mário, Acácio, Bismarck, Arturzinho, William, Sorato e Mauricinho. 


Até adversários históricos, feito Zico e Júnior, estiveram lá para aplaudir um comovido Roberto, que agradeceu o afago em meio à turbulência por que passa, em plena luta para derrotar o maior adversário que encontrou pela frente. E foi ovacionado ao referir-se à história de amor que tem com o clube desde moleque.

 

“Para viajar, basta existir”, diria Fernando Pessoa. Por isso me pego navegando – não custa muito e faz bem velejar por mares desconhecidos –, a imaginar como seria tocante, daqui a pouco, ver as duas figuras plenamente recuperadas, por força inclusive do tanto de felicidade que semearam entre seus admiradores. 


Chego a ver Rita Lee, com seu jeito moleque de ser, dedilhando o violão a cantar baixinho pra Roberto ouvir a versão que fez de “In my life”, de Lennon e McCartney: “Tem lugares que me lembram/ Minha vida, por onde andei/ As histórias, os caminhos/ O destino que eu mudei/ Cenas do meu filme em branco e preto/ Que o vento levou e o tempo traz/ Entre todos os amores e amigos/ De você me lembro mais...”



E antes que os olhos de Dinamite acusem o golpe certeiro, ela arremata: “Como vai? Tudo bem? /... As águas vão rolar, não vou chorar/ Se por acaso morrer do coração/ É sinal que amei demais/ Mas enquanto estou viva e cheia de graça/ Talvez ainda faça um monte de gente feliz...” 


Eles ainda fazem um monte de gente feliz. Se a alma é grande, o céu não pode ter pressa. Dirão lá em cima que tudo vale a pena enquanto a vida não se apequena aqui embaixo.