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O tempo só anda de ida

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Eu sabia fazer botão de futebol de mesa de um jeito perigoso. Numa “panelinha” medidora de leite em pó, untada com sabão, misturava pedaços de material plástico rígido (tampas de frascos de remédios, restos de canos, de lanternas quebradas de automóveis etc.) que encontrava no lixo. Depois, derretia numa chama de lamparina ou vela, inalando alguma fumaça. Quando a temperatura diminuía, abaulava no chão de cimento as bordas, polia com folha de cajueiro bravo e, com uma flanela, esfregava pó de sobras de azulejo até brilhar.    Antes dessa "técnica", usava quengo (casca) de coco como matéria-prima. Mais tarde, aprendi a fazer botão de “vidro inquebrável” – era assim que chamávamos acrílico há pouco mais de meio século.  Desaprendi tudo. Duvido que hoje tivesse coragem de quebrar a janela de acrílico, rachada, do ônibus que fazia a linha entre os bairros de Ponta da Terra e Ponta Grossa, em Maceió, para, na Praça das Graças, escapar pela porta de entrada sem pagar a passagem, me

Mãos, pra que te querem?

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Vídeos que circularam nas redes sociais em campanhas eleitorais passadas são como zumbis: levantam-se de suas catacumbas e, sem bater a poeira, voltam a atormentar a vida de seus protagonistas. É o caso de um produzido há poucos anos, que outro dia reapareceu nas telinhas.   Para atrair a atenção de eleitores e gerar a chamada mídia espontânea – quando uma pessoa, mercadoria ou marca é citada numa reportagem sem, supostamente, ter investido nisso um centavo –, políticos de todos os credos são capazes de beber licor de jenipapo com tira-gosto de sarapatel requentado para deixar transparecer que agem com naturalidade.     Há alguns anos, na luta para se reeleger prefeito de Salvador, o que deveria ser ato meramente político para ACM Neto virou piada, gozação, pilhéria ou qualquer termo jocoso que se queira utilizar, provocando rumores e risos nos botecos, ladeiras e terreiros da capital baiana.    No canteiro de obras do aeroporto internacional Luis Eduardo Magalhães, o pequeno burgomest

E se a cor do gato fosse outra?

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Desde quando me entendo por gente (ainda não estou muito certo disso!), uma das discussões mais improdutivas que vejo diz respeito ao papel do Estado na sociedade. Empresários, estudantes, militares, políticos e religiosos, todos opinam sobre quais devem ser as atribuições e os limites do Estado, mas nunca se chega a um consenso.   A queda-de-braço política que toma conta da nação – danação também não estaria mal – torna mais difícil avançar nesse terreno minado. Há menos de um ano, por exemplo, um certo ministro colocou mais uma vez o  Banco do Brasil , a  Petrobras  e todas as demais estatais no  folder  da liquidação.    “Um plano para os próximos 10 anos é continuar com as privatizações... Todo mundo entrando na fila, sendo vendido e sendo transformado em dividendos sociais”, declarou ele, em 27 de setembro de 2021, ao participar do encontro “O Brasil Quer Mais”, organizado pela  International Chamber of Commerce (ICC) .   Pode ter razão, mas não será dele, nem isoladamente de ning

Quase deu certo

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Quase tudo já foi dito sobre os 80 anos de Caetano Veloso, celebrados em grande estilo na noite do último domingo, ao lado dos filhos Moreno, Tom e Zeca e da irmã Maria Bethânia, no palco da  Cidade das Artes , no Rio de Janeiro.    Ao assistir à  live , lembrei-me de Claudionor Viana Teles Veloso, mais conhecida como Dona Canô, mãe e avó deles, que desde o Natal de 2012 virou estrelinha cintilante no céu da pequena Santo Amaro da Purificação, berço do samba de roda no Recôncavo Baiano.  Matriarca da família, sua influência não se limitava ao clã, mas a tudo que se mexia na aldeia, sob o ponto de vista cultural, político e religioso.  Não à toa, a novena de Nossa Senhora da Purificação virou a “novena de Dona Canô” e os atabaques dobravam à sua passagem. Não por acaso, ela mantinha relações amistosas com figuras antagônicas como Luís Inácio Lula da Silva e Antônio Carlos Magalhães, sem perder a ternura jamais.   Quando cheguei à Bahia para coordenar a rede de agências do Banco do Brasi

Nem se fosse possível!

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No auge do bate-boca sobre se havia entre nós uma gripezinha à-toa ou uma virose de proporções funestas, Pedrinho viu o seu querido sogro se queixar de formigamento nas mãos e nos pés. Embora não fosse do ramo, desconfiou do descontrole da diabetes. Como o velho tinha pavor de hospital, vinha evitando o acompanhamento médico durante a pandemia.    Isso foi ruim. O sogro acabou tendo que amputar um dedo, parte do pé esquerdo e contraiu osteomielite – infecção nos ossos, com muita dor, febre e calafrios.  Para a família, a falta de higiene dos enfermeiros nos curativos teria transmitido a bactéria de uma criança internada no quarto ao lado. Deu-se então o pior: ele não resistiu.    Muito apegado ao sogro – que lhe dera abrigo e comida nos primeiros anos de casamento –, Pedrinho sentiu bastante. “Virei um cocô, e queria mais que alguém puxasse a descarga”, disse-me. Nem esse empurrão recebeu dos amigos. Restou-lhe dividir o luto oferecendo o ombro à sogra, à mulher e aos cunhados.   Viera

A mais radical das virtudes

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Filho de uma família humilde de operários, ele nasce com paralisia cerebral. Apesar de tetraplégico, aos cinco anos descobre que tem controle sobre seu pé esquerdo e usa giz para rabiscar palavras no chão. Com este único membro “ativo”, muita determinação e a ajuda da mãe, supera as limitações e torna-se pintor, poeta e autor.    Eis a sinopse de  My Left Foot  (O Meu Pé Esquerdo), filme baseado na obra homônima do irlandês Christy Brown. Sucesso nos anos 1990, acabo de revê-lo e parei para divagar não sobre as restrições físicas do protagonista, mas sobre a circunstância de ser canhoto, tal como um de meus netinhos.   Dizem que cerca de 10% da população mundial é canhota, isto é, algo próximo de 800 milhões de pessoas (quase quatro “brasis”). Mesmo assim, aqueles com mais habilidade do lado esquerdo do corpo sofrem para se encaixar num mundo “feito” para a maioria destra.   Soa absurdo, mas, na Idade Média, mulheres canhotas foram implacavelmente perseguidas: as acusações de bruxaria

Tem mau cheiro no ar

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Antes que a tormenta eleitoral que vem por aí ofusque nossas preocupações particulares e coletivas, é preciso refletir sobre algumas feridas da amada pátria que ora mais parece uma carroça na chuva, descendo ladeira abaixo, sob o "controle" de um pangaré com os cascos encerados.   Deus é testemunha de que nem mesmo eu boto tanta fé em que só refletir sobre essas feridas vá resolver alguma coisa. É preciso, antes de tudo, uma improvável trégua entre lados opostos (ambos convencidos de suas verdades imutáveis), como cicatrizante das diferenças de opinião.   Claro que, se recebesse um mandato divino, eu mesmo sairia por aí a fazer justiça com minhas próprias mãos, distribuindo pão e terras aos famintos e mal pagos, além de compaixão e generosidade para os mais abonados, até para contradizer quem acha que Ele “é um gozador, adora brincadeira, pois pra nos jogar no mundo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado nos botar cabreiros e na barriga da miséria nascemos brasileir

Botinas, afagos e batinas

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Andei lendo sobre o Brasil de dois séculos atrás, nos primeiros anos de independência, quando a Igreja abriu centenas de processos com pesadíssimas acusações contra o clero e inúmeros religiosos.  As denúncias mais corriqueiras eram sobre crimes de fornicação (ato sexual que acontece entre não cônjuges), concubinato (união sem reconhecimento legal) e interpretação tendenciosa das escrituras em assuntos relacionados a sexo.   A bagunça era tanta que um certo dom Antônio Viçoso, bispo de Mariana, Minas Gerais, só faltou ajoelhar-se aos pés de seus superiores na arquidiocese da província: “Peço o socorro de suas orações a favor de um pobre bispo que passa pela aflição de ver paróquias entregues a lobos vorazes mesmo sem peles de ovelha”. Referia-se a seu próprio rebanho: seminaristas, padres e párocos.   É verdade que a própria formação do clero contribuiu para esse estado de coisas. Os seminários eram vistos pelas famílias como porteira de acesso de seus rebentos ao ensino superior e à e

Língua solta

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As saias de vinco batiam no meio das canelas das meninas e já foram de várias cores: azul, bege, marrom, vinho. Os internatos femininos dos idos de 1940 a 1970 custavam os olhos da cara. Em troca, ofereciam formação e conduta. As meninas até podiam sair da clausura, mas sob a tutela de religiosas que cuidavam desde a forma de se pentear até os centímetros da roupa. Era comum uma moça trocar de internato se outro na região oferecesse um horário mais flexível, permitisse uma inocente troca de olhares no café ou chá de casca de laranja com um rapazote, na sala de estar. Apesar dos rigores, divertiam-se. Longe de casa, dividiam quarto com amigas de outras cidades, com quem compartilhavam cochichos de dormitório sobre namorados, virgindade e casamento.  Soube por intermédio de meu amigo Chiquinho Neto que, certa feita, madre Perpétua do Socorro, uma paulista de Barretos (capital do rodeio), radicada no Alto Sertão cearense, diretora do internato da cidade onde ele nasceu, decidiu levar suas