quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A bem da mentira

Quantas vezes você ouviu numa reunião qualquer alguém replicar outro participante começando por: “A bem da verdade...”? Parece que tudo que foi dito até ali era falso, não? 

Fico encasquetado quando, numa troca de mensagens, alguém me responde assim: “Verdade!”. Nunca sei se é uma forma lacônica de abreviar a conversa ou apenas indicativo de preguiça mental, de falta de tempo. Numa hipótese ainda menos otimista, pode ser que a pessoa queira apenas ser educada, evitando tascar, na minha cara: "Mentira!".

 

Se falta tempo, tudo bem. Cada um gasta o seu como lhe convémTem quem perca minutos preciosos discutindo política, futebol ou religião com fanáticos (leia-se: aqueles que pensam diferente de nós), mesmo sabendo que isso não fará o outro mais tolerante, nem ninguém será convencido a trocar a cor do boné. 

 

Se preguiça mental, característica estritamente humana, faz sentido. Pensar continua sendo tarefa das mais complexas que existem. Talvez por isso poucos se dediquem a ela com afinco, temendo, quem sabe, o derretimento pelo efeito estufa do que resta de neurônios.

 

Terrível mesmo é ver o destinatário de nossa mensagem pisar no freio, com o emoji do dedinho polegar para cima, precedido da expressão: “Verdade!”. É como encerrar conversa na base do “Você tem razão!” antes de você concluir o que tem a dizer.  

 

Mahatma Gandhi afirmou que "a lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos". Ou, dito aqui com minhas restrições filosóficas, parte da mentira sob múltiplas versões.  

 

Certo é que quero ter opinião formada sobre quase tudo que vejo, mas sei que a minha melhor opinião é aquela em que desconheço o assunto. Tanto que já me peguei com duas ou três opiniões contraditórias sobre o mesmo tema em questão de minutos. 


Sou volúvel, sei disso. Para mim, o importante não é ser fiel a uma ideia que me serviu de tiro de partida, mas tocar na fita de chegada podendo defender coisas opostas ao mesmo tempo. 

 

Já tive poucas opiniões sobre poucos assuntos. Eram opiniões inflexíveis, reconheço, fruto de um combo de apreço ao umbigo, imaturidade e radicalismo. Penso que me tornei com o tempo uma pessoa melhor, mais elástica, de raras convicções absolutas. Quando, por exemplo, uma pessoa me pede para opinar sobre uma roupa ou uma sandália, tento apenas adivinhar o que ela gostaria de ouvir.

 

No decorrer dos anos, conheci algumas pessoas que se tivessem levado a sério as minhas brincadeiras de dizer verdades, teriam ouvido muitas verdades que insisti em dizer brincando. Para não correr riscos, claro.

 

Nunca quis carregar nas costas a limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido, como pregava Clarice Lispector. Todo mundo precisa da verdade inventada, inclusive para dizer coisas mais reconfortantes do que a realidade crua, dura e insossa. Querer só a verdade é admitir-se incapaz de recriá-la. 

 

Reprodução/Facebook

Dê-se por perdido o dia em que não se minta nem uma vez, nem que seja para si mesmo. Assim como falsa toda verdade que não ande de mãos dadas com a dúvida. “Mentiras sinceras me interessam”, dizia Cazuza, sabiamente. 

Nunca se sabe quando estamos sendo totalmente sinceros. E mesmo que digamos: “agora a coisa vai!”, o “daqui a pouco” não passa de esboço de uma tela a ser pintada. 

 

Aliás, por falar em tela, Pablo Picasso, pintor e escultor espanhol tido como um dos mais influentes artistas do século passado, cunhou sentença maravilhosa sobre a verdade: “Se apenas houvesse uma única, não se poderiam pintar cem telas sobre o mesmo tema”. Mas a mentira do bem, aquela tão inocente quanto o ato de respirar, acaba aqui.

 

Para a corrente filosófica conhecida como relativismo, toda verdade é relativa, isto é, não existe verdade absoluta que se aplique em todas as situações. Depende de questões cognitivas, morais e culturais de cada povo. A verdade, portanto, é produto do meio em que se vive. É aqui que nasce a mentira vil, deslavada, do mal.

 

Divulgar informações mentirosas ou exageradas (o que dá no mesmo!) sempre foi muleta para políticos em campanha eleitoral. As falsas promessas e as distorções da realidade, no entanto, não costumam ser marcas de nenhum governo específico. Vale para todos.

 

Comentei outro dia com dois amigos de correntes políticas antagônicas, via whatsapp, que precisei usar cotonetes (correndo o risco de perfurar os tímpanos, além de prejudicar a produção natural de cera) porque fizeram meus ouvidos de vaso sanitário no deserto de ideias e propostas do horário eleitoral gratuito de rádio e TV e dos debates entre candidatos.  

 

A resposta deles me deixou encasquetado, de novo: “Verdade!”, disseram. Bateu preguiça mental ou faltou tempo para discutir este assunto irrelevante numa nação politicamente evoluída como a nossa? 


A bem da verdade (ou da mentira, sei lá!), não sei. 

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

O último trem para as estrelas

Da varanda, vejo almas que desde cedo se arrastam cansadas a puxarem como podem seus carrinhos de espreguiçadeiras, guarda-sóis, água mineral, coco, milho e pastel, para deleite de turistas em Maceió. Vejo outras entretidas na esquina, debulhando suas telinhas em busca de notícias. E vejo a alma de Cazuza chegar de mansinho, cantando:  

“São sete horas da manhã.

Vejo Cristo da janela,

O sol já apagou sua luz,

E o povo lá embaixo espera

Nas filas dos pontos de ônibus

Procurando aonde ir.

São todos seus cicerones.

Correm pra não desistir

Dos seus salários de fome.

É a esperança que eles têm

Neste filme, como extras,

Todos querem se dar bem.

Num trem pras estrelas...

Depois dos navios negreiros

Outras correntezas...”

 

Imagem: Dedé Dwight

Outra correnteza chega pela TV e nos atropela a todos. Joga um pote de água fria sobre o sol que acaba de nascer e revela que quase 37% das famílias alagoanas passam fome. É o que mostra um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), divulgado quarta-feira passada, 14 de setembro.  

  

A proporção de famintos aqui é mais que o dobro da média federal (16%), já por si um escândalo. Em 2018, cerca de 6% dos brasileiros passavam fome. Dois anos depois, essa parcela subiu para 9%, chegando aos atuais 16% (34 milhões de irmãos). Hoje, a fome desassossega uma a cada três famílias brasileiras com crianças de até 10 anos. 

 

Nesse trágico ranking, Alagoas figura numa vergonhosa dianteira, seguida de perto por alguns estados do Norte/Nordeste: Piauí (34%), Amapá (32%), Pará, Sergipe e Maranhão (todos com 30%). Bem diferente de outros Brasis. A fome, esse infame retrocesso civilizatório, é a mais absoluta degradação social. 


Na sexta-feira, 16, no 205º aniversário da emancipação política de Alagoas da Capitania de Pernambuco, outra correnteza inunda a tela da TV, agora no plano nacional, mostrando criança com a mão carimbada para não repetir o prato na merenda escolar, que tinha como proteína 1/4 de ovo cozido (isso mesmo que você leu: um ovo repartido para quatro seres em construção!).

 

"Os resultados do estudo refletem as desigualdades regionais e evidenciam diferenças entre os estados de cada macrorregião do país", explica o responsável pela pesquisa do Instituto Vox Populi. Nada mais óbvio. Retrato de “Belíndia”, termo cunhado pelo economista Edmar Bacha, para denominar o Brasil de 40 anos atrás, por conciliar no mesmo território as ilhas de bem-estar da Bélgica com os bolsões de miséria da Índia, 

 

Quando ouvi falar pela primeira vez de “Belíndia”, eu era apenas mais um latino-americano que ouvia Belchior, sem dinheiro no banco nem parentes importantes, querendo aprender na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E um velho mestre especialista em planejamento estratégico, professor Lincoln Cavalcante, me garantiu que Alagoas estava chegando “lá”: em breve viraria um paraíso tropical. 

 

Tinha bons argumentos. Pontuava ele que, de todos os estados da região, Alagoas possuía a menor área no Semiárido nordestino. Em sua forma triangular, de um lado era banhada pelo Rio São Francisco e, de outro, pelo Oceano Atlântico. Enorme potencial ainda por explorar pela indústria que mais crescia no Planeta: o turismo. 

 

Apesar da índole concentradora de renda do baronato da agroindústria canavieira, Alagoas ocupava o posto de segundo produtor brasileiro de açúcar e álcool. Tinha brilho e peso na cesta alimentar e na matriz mundial de energia limpa, justamente quando o preço do petróleo estrangulava todos os países que dependiam dessa fonte de energia não renovável. 

 

Tinha mais: o Centro Educacional de Pesquisas Aplicadas (CEPA), local responsável pela formação de jovens, era considerado o maior complexo educacional da América Latina, abrigando 11 escolas públicas estaduais com capacidade total para 8.000 alunos. “É a educação que faz o futuro parecer um lugar de esperança e transformação”, dizia Paulo Freire, pedagogo e filósofo pernambucano.

 

Por pouco, muito pouco mesmo, o meu entusiasmado professor não subiu à mesa e recitou o poema de outro pernambucano, Ascenso Ferreira, que na metade do século passado descreveu uma viagem, de Maceió para Catende, falando de quem fica, do que fica e da vontade de chegar (parte desse poema foi musicada pelo também pernambucano Alceu Valença): 

 

Trem de Alagoas

 

O sino bate,

O condutor apita o apito,

Solta o trem de ferro um grito,

Põe-se logo a caminhar...

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Mergulham mocambos

Nos mangues molhados,

Moleques mulatos

Vem vê-lo passar.

– Adeus!

– Adeus!

 

Mangueiras, coqueiros

Cajueiros em flor,

Cajueiros com frutos

Já bons de chupar...

 

– Adeus morena do cabelo cacheado

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Na boca da mata

Há furnas incríveis

Que em coisas terríveis 

Nos fazem pensar:

 

– Ali mora o Pai-da-Mata!

– Ali é a casa das caiporas!

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Meu Deus! Já deixamos 

A praia tao longe...

No entanto avistamos

Bem perto outro mar...

 

Danou-se! Se move,

Parece uma onda...

Que nada! É um partido

Já bom de cortar...

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Cana-caiana,

Cana-roxa,

Cana-fita,

Cada qual mais bonita,

Todas boas de chupar...

 

– Adeus morena do cabelo cacheado

 

– Ali mora o Pai-da-Mata!

– Ali é a casa das caiporas!

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Alagoas nunca chegou lá, professor! Ou melhor: a que ponto chegou, hein?! Um trem repleto de famintos, desgovernado, numa paisagem deslumbrante, soltando fumaça e faísca em direção ao precipício.  

 

Culpar apenas os condutores da locomotiva (os governantes de plantão, com suas respectivas bancadas de sustentação) pelo descarrilamento é inútil e pouco inteligente. Não se mexe no passado. Eles não teriam alcançado poder, honra e glória sem o suor e o voto dessas almas que hoje se arrastam, cansadas e esfomeadas, a puxarem como podem seus carrinhos.


Até o apito de partida do último trem para as estrelas. Ou não, se resolverem mexer no roteiro da viagem.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Sinuca de bico

Mexeu com muita gente a notícia de que a rotina do influenciador digital Arturo Medeiros, 36, e de suas oito mulheres, teria mudado depois que a mansão onde moram, na Paraíba, foi alvo de vandalismo por causa do estilo de vida que experimentam. 

 

Reprodução/Redes Sociais

Para evitar novos ataques, Arthur, O Urso 
 como ele, que diz manter cerca de 30 relações sexuais por semana, se apresenta nas redes sociais e no OnlyFans  mandou instalar câmeras e cerca elétrica no imóvel e contratou seguranças particulares. 

Ao saber disso, Natália, 41, filha de um velho conhecido meu, confidenciou à sogra Dolores, 63, que nada ultimamente a abala mais do que essas histórias de pessoas que decidiram abrir seus relacionamentos a uma nova disposição geométrica.

 Você me entende, né?  indaga a nora.

 Claro, Nat! Tudo muda o tempo todo no mundo…

 Seu filho, machista que só, tá chateado comigo!

 

As duas de biquíni à beira-mar, pé na areia, caipirinha, água de coco e cervejinha, aguardavam Gustavo, 43 (que surfava com alguns amigos um pouco mais adiante), marido de Natália, para almoçarem naquela preguiçosa tarde de sábado. 

 Acontece com a maioria dos animais  diz Leonor, especulando sobre o que se passava com o casal querido. Nos primórdios da humanidade, homens e mulheres faziam sexo e procriavam com diversas parceiras e parceiros. 

 Devia dar uma confusão medonha, né Dô?! 

 De forma alguma! Não violava princípios morais. Só era difícil se ter certeza sobre a origem de um filho, a não ser pela linhagem materna. 

 

Apesar de ter abandonado a faculdade de Economia no quarto semestre, por causa de uma gravidez de risco, Natália engolia livros e mais livros sobre a história do pensamento econômico. 

 

Dolores, psicanalista tarimbada, esbanjava conhecimento sobre uma época em que ainda não se falava em teste de DNA ou pagamento de pensão alimentícia como mecanismos de resfriamento do tesão. “Não havia exclusividade nas relações, nem se tinha certeza de quem era pai de quem”, pontuava. 

 Jura?! 

 Veja, Nat, a pessoa que defendesse a monogamia como o padrão de comportamento corria o risco de ser condenada por atentar contra os valores da família.

 Pois é... Mas devem ter notado que era mais negócio confinar-se num cercadinho e dali mesmo tirar o sustento, em vez de passar a vida pulando de galho em galho, garimpando como, quando, quem ou o que comer e beber... 

 No meu tempo  puxava a sogra outra linha do novelo , o máximo que se falava era de amor livre, nome dado pelos hippies a sexo recreativo entre pessoas não envolvidas por amor e paixão. Logo depois apareceu a amizade colorida, a partir do movimento friends with benefits, onde também não havia vínculo afetivo nas relações. 

 Quem sabe, Dô, vem daí essa coisa de propriedade privada e um modelo de família compatível com um sistema de acumulação de riquezas. Era só fechar a porteira e garantir o usufruto indivisível de riquezas apenas com os filhos. 

 Isso, Nat! A monogamia foi a base da primeira forma de família não concebida em condições de prazer e luxúria, e sim por imposição econômica.

 Será? 

 

Dolores se anima com o papo, pega o celular e vasculha a internet em busca de mais elementos para sustentar suas teses. E, minutos depois, pausadamente lê algo que julga interessante compartilhar com Natália:  

 

“[...] Com as dificuldades econômicas, hoje em dia as variações ganharam novos arranjos, para os quais surgiram alguns novos conceitos: 

Metamor  O amor do meu amor. É uma pessoa com quem o meu amor se relaciona, mas que não tem relações comigo.

Poliamor  Modelo sexo-afetivo não-monogâmico em que as pessoas envolvidas têm sentimentos profundos. Envolvem várias pessoas, com o consentimento e o conhecimento de todas. Alguns desses relacionamentos possuem nomes geométricos.

Polécula  Molécula poliamorosa. Representação geométrica de redes como a relação em V, o triângulo e o quadrado etc.

Trisal  É uma configuração do poliamor envolvendo três pessoas.

Trisal em V  Formato mais comum quando os poliamoristas são heterossexuais. Um dos membros mantém relacionamento com os outros dois, mas esses dois não têm relação entre si. Nesse caso, o vértice do V é chamado de pivô e as extremidades são conhecidas como braços. Cada braço é o metamor do outro. 

Trisal em triângulo  Cada membro está relacionado com os outros dois. Cada metamor é também amor do outro [...]”.



Natália, que escutava em silêncio, bebe outro gole, enxuga com a língua a espuma sobre o lábio superior, retoma o ponto de partida da conversa e transporta a sogra para a mesma página de seu caso particular:

 Pois é, Dô, o machista de “seu” filho Gugu irritou-se comigo...

 Por que, Nat?

 Diz ele que a ideia de incluir outra pessoa no nosso relacionamento partiu de alguém que perguntou se teria coragem de ficar com mais de uma. Que nunca pensou no assunto, mas ficou interessado. Tanto que, ao chegar em casa, quis logo saber a minha opinião.

 E você?

 Na hora, não vou mentir, fiquei tiririca da vida, Dô! São mais de 20 anos só nós dois dividindo a mesma cama… Depois, até admiti, mas desde que a terceira pessoa fosse amiga dos dois. Aí Gugu ficou puto com minha sugestão... 

 Eu conheço?

 Talvez... 

 Quem é?

 Ubirajara. O Bira Jumentinho.

 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O buraco é mais embaixo

Não posso dizer que me abalou a notícia da morte do brasileiro conhecido como “Tanaru” ou “Índio do Buraco”, que disseram vivia em isolamento voluntário numa mata fechada e era monitorado há 26 anos na região de Guaporé, no estado de Rondônia. Para o movimento de proteção indígena Survival International, a região se destaca como uma pequena ilha de floresta em um mar de pastagens para criação de gado.

 

Antes de tudo, fiquei encasquetado com isso de “isolamento voluntário”. Se nem chegaram a conhecer sua opinião, como saber se era mesmo espontâneo? Talvez só não quisesse o tipo de companhia que lhe aparecia (o que, aliás, seria bastante sábio). Feito o protesto, sigamos. 
 

Reprodução/Redes Sociais

O “Índio do Buraco” foi encontrado morto, no mês passado, por patrulheiros da Funai (Fundação Nacional do Índio) durante uma ronda pela área, dormindo para sempre no fundo de uma rede, numa das palhoças que utilizava de abrigo. Não havia sinais de violência na área, nem outras pessoas nos arredores. 

 
Remanescente de uma etnia indígena desconhecida – massacrada entre os anos 1980 e 1990 –, Tanaru era arisco, hostil com tentativas de aproximação, deixando armadilhas ou arremessando flechas e pedras para se proteger. 
 
Compreensível. Para um servidor da Funai entrevistado pelo jornal britânico The Guardian, fazendeiros ilegais teriam dado açúcar aos índios. Após o consumo do doce veneno e, assim, ganharem a confiança da tribo, os genocidas deram um pouco mais. Daquela vez, misturado com raticida.

 
Era a crônica ordinária de mais um extermínio indígena daqueles que vêm acontecendo há 500 anos no Brasil. Tudo para criarem fazendas e mais fazendas de gado, minerações ilegais e explorarem a extração de madeira sem autorização de órgãos (ir)responsáveis. 

 

Há 27 anos, restavam seis índios na tribo. Então, interditou-se a Terra Indígena de Tanaru. A interdição depois foi sucessivamente renovada, por ordem judicial, até ser regulamentada por uma portaria de 2015, que manteve a área nessa condição por mais uma década.

Agora, com dois anos de antecedência, a pequena ilha de floresta vai finalmente virar um mar de pastagens para criação de gado. Sem um pajé para tratar de cárie a malária, nem uma Iracema dos lábios de mel para mitigar as dores da solidão, além da velhice fungando no cangote, não devo lamentar a morte de Tanaru, ainda que ele, mesmo distante, cogitasse permanecer no mundo dos viventes e dos vivíssimos.

 

Desconfio, inclusive, que era indiferente a essa coisa "civilizada" de desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, peculato, prevaricação, rachadinha, sonegação ou suborno. O máximo que se permitia era caçar espécimes da fauna silvestre para saciar a fome.

 

Também nunca se preocupou com aquela cunhada arquiteta que, sem nada saber sobre o saldo da conta bancária do cunhado, resolve passar um feriadão com a família e vai logo sugerindo à irmã uma breve reforma no apartamento. Nem tampouco perdeu a paciência com aquele tiozão casca grossa que tenta lhe convencer de que “na ditadura as coisas funcionam”.   
 
Só por isso resolvi tomar emprestado alguns versos de “Astronauta” (ouça aqui), da obra de Gabriel, o Pensador, para levar dois dedos de prosa telepática com o “Índio do Buraco”, bem assim: 
 
Tanaru, véi...
Tá sentindo falta daqui?
Que falta que isso aqui te faz?
A gente aqui embaixo
Continua em guerra,
Olhando aí pra lua,
Implorando por paz.
Então me diz:
Por que quê cê quer voltar?
Você não tá feliz
Onde cê tá?
Observando
Tudo a distância,
Vendo como o Brasil
É pequenininho,
Como é grande
A nossa ignorância
E como nosso viver
É mesquinho!
A gente aqui no bagaço,
Morrendo de cansaço
De tanto lutar
Por algum espaço
E você,
Com todo esse espaço na mão,
Querendo voltar aqui pro chão?
Ah não, meu irmão!
Qual é a tua?
Que bicho te mordeu
Aí na lua?
 
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu...
 
Ah não, meu irmão!
Qual é a tua?
Que bicho te mordeu
Aí na lua?
Fica por aí
Que é o melhor que cê faz.
A vida por aqui
Tá difícil demais.
Aqui no Brasil
O negócio tá feio,
Tá todo mundo feito
Cego em tiroteio
Olhando pro alto,
Procurando a salvação
Ou pelo menos uma orientação.
Você já tá perto de Tupã, Tanaru!
Então me promete
Que pergunta pra ele
As respostas
De todas as perguntas
E me manda pela internet...
 
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu...
 
É tanto progresso
Que eu pareço criança.
Essa vida de civilizado
Me cansa...
Tanaru, cê volta
E me deixa dar uma volta na nave
Passa a chave
Que eu tô de mudança.
Seja bem-vindo, faça o favor
E toma conta do meu computador
Porque eu tô de mala pronta.
Tô de partida
E a passagem é só de ida.
Tô preparado pra decolagem.
Vou seguir viagem,
Vou me desconectar
Porque eu já tô de saco cheio
E não quero receber
Nenhum e-mail
Com notícia dessa merda de lugar...
 
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu...
 
Eu vou pra longe
Onde não exista gravidade
Pra me livrar do peso
Da responsabilidade
De viver nesse Brasil doente
E ter que achar
A cura da cabeça
E do coração da gente.
Chega de loucura,
Chega de tortura,
Talvez aí no espaço
Eu ache alguma criatura
Inteligente.
Aqui tem muita gente
Mas eu só encontro solidão,
Ódio, mentira, ambição.
Estrela por aí
É o que não falta, Tanaru!
O Brasil é um planeta
Em extinção...
 
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu!

 

Se mesmo depois de nossa prosa telepática você, Tanaru, insistir em retornar, por favor ouça o conselho de Caetano: desça de sua estrela colorida, brilhante, numa velocidade estonteante e pouse aqui no coração do hemisfério sul só depois de exterminada a última nação indígena. 

 

Mas chegue impávido que nem Muhammad Ali, apaixonadamente como Peri, sereno e infalível como Bruce Lee. Pois, como anteviu o filho de Dona Canô, aquilo que nesse momento se revelará aos brasileiros surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto.

 

Não posso terminar sem mais um protesto (logo hoje, bicentenário do suposto grito de "independência ou morte", não amanheci bem!). Por que “Índio do Buraco”, meu Deus? É muita humilhação! O hemisfério norte já teve “Cavalo Louco”, “Flecha Ligeira”, “Nuvem Vermelha”, “Touro Sentado” etc. Só nome épico, cinematográfico. Aqui me vêm com um pífio “Índio do Buraco”. Queriam o quê? Que ele socializasse com um apelido desses? Haja paciência, cara-pálida!

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O tempo só anda de ida

Eu sabia fazer botão de futebol de mesa de um jeito perigoso. Numa “panelinha” medidora de leite em pó, untada com sabão, misturava pedaços de material plástico rígido (tampas de frascos de remédios, restos de canos, de lanternas quebradas de automóveis etc.) que encontrava no lixo. Depois, derretia numa chama de lamparina ou vela, inalando alguma fumaça. Quando a temperatura diminuía, abaulava no chão de cimento as bordas, polia com folha de cajueiro bravo e, com uma flanela, esfregava pó de sobras de azulejo até brilhar. 

 

Antes dessa "técnica", usava quengo (casca) de coco como matéria-prima. Mais tarde, aprendi a fazer botão de “vidro inquebrável” – era assim que chamávamos acrílico há pouco mais de meio século. 


Desaprendi tudo. Duvido que hoje tivesse coragem de quebrar a janela de acrílico, rachada, do ônibus que fazia a linha entre os bairros de Ponta da Terra e Ponta Grossa, em Maceió, para, na Praça das Graças, escapar pela porta de entrada sem pagar a passagem, mesmo tendo no bolso o passe estudantil. 

 

Duvido que fosse capaz de usar uma serra para tubos de PVC e cortar quadrinhos de acrílico de mais ou menos 4cm x 4cm, arredondando-lhes as quinas no batente do quintal da casa em que morávamos na rua da Vitória, próximo ao mercado, no bairro da Levada. Depois, colar entre dois discos quase perfeitos a imagem de um jogador de futebol, recortada da revista Placar. Ao lado dela, fixar nome ou apelido e o número da camisa que defendia. O rito de acabamento era o mesmo dos botões feitos na “panelinha” medidora de leite em pó.

 

Você que é mais novo – chega uma época em que quase todo mundo é mais novo do que a gente – pode não acreditar, mas houve um tempo em que não se tinha dúvidas sobre quem eram os donos das camisas nº 10 de Santos (Pelé), Palmeiras (Ademir da Guia), Corinthians (Rivellino), São Paulo (Pedro Rocha), Cruzeiro (Dirceu Lopes), Botafogo (Jairzinho), Fluminense (Samarone), Vasco (Silva) etc. Ídolos como Roberto Dinamite e Zico explodiriam um pouco mais tarde, em 1973.

 

E caprichávamos para que o nº 10 fosse o botão mais temido, quando, de palheta ou pente na mão, olhar fixo e respiração contida, dávamos o ultimato ao adversário: “coloque-se!”. 


Restava ao oponente implorar aos deuses do futebol de botão para que o goleiro – caixa de fósforos revestida com as cores e o escudo de seu time, cheia de grãos de chumbo para não fraquejar ao menor esbarrão – defendesse o tiro, evitando que a bola acabasse no fundo da meta. Tanto mais se a partida estivesse empatada e o árbitro, de olho nos ponteiros do relógio, emitido o alerta: “10 segundos pra acabar... Último chute!” 

 

Deuses, aliás, que devem guardar consigo uma boa desculpa para o fato de o meu nº 10 nunca ter sido lá essas coisas. Vivia perdendo gols “feitos”. Talvez porque Silva, o “Batuta”, tivesse vida pregressa suspeita, ligada ao Flamengo. Na vida supostamente real, ele só chegou ao Vasco aos 30 anos de idade, em fim de carreira, para participar da campanha vitoriosa do Campeonato Carioca de 1970.

 

Meu botão de “vidro inquebrável” quase perfeito, cruel, implacável com meus “inimigos” de rua ou de casa, era o nº 8: Buglê. Disparado o melhor deles, era capaz de façanhas memoráveis, como acertar 99% das finalizações em embates contra o São Paulo ou o Fluminense de meus irmãos Agostinho (Nena) e Hélio (Lica). 

 

O “outro” Buglê (José Alberto Bougleaux), o das narrações inesquecíveis de Waldir Amaral, da Rádio Globo, é autor do primeiro gol da história do Mineirão, num jogo entre a Seleção Mineira e o River Plate, da Argentina, realizado em 5 de setembro de 1965. Começou sua carreira no Atlético-MG, depois defendeu o Santos, onde atuou ao lado de Pelé, Carlos Alberto, Clodoaldo etc., antes de, aos 24 anos, virar ídolo vascaíno, entre 1968 e 1974. Jogou até os 32 anos, aposentando-se em 1976, no América-MG.

 

E tocou sua vida na ladeira sem volta da meia-idade. “O tempo só anda de ida”, dizia o poeta Manoel de Barros, que via na infância um território de liberdade e defendia o "criançamento" das palavras. “Meu quintal é maior do que o mundo", dizia.

 

Fiquei sabendo bem depois que Buglê fixara residência em Brasília. Conheci-o no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, na abertura oficial da exposição “Brasil... um país, um mundo”, em dezembro de 2013. Quem me apresentou foi Clodoaldo, volante tricampeão mundial no México, em 1970, que também conheci naquela ocasião. 

– E aí, Buglê, o que tem feito da vida? – puxei conversa.

– Nada muito sério. Depois que larguei o futebol, moro aqui numa chácara, cuido de umas cabeças de gado, pesco, tomo minha cervejinha, essas coisas... 

– Você não vai acreditar... – e lhe contei esta história.

 

Descobri agora que ele convive com o Mal de Alzheimer desde 2014, ano seguinte àquele em que nos conhecemos. Havia um quê de lamento em suas palavras, talvez por não ter feito tanto quanto poderia depois que deixou de jogar futebol. 

Sim, "o tempo só anda de ida". Eu mesmo sabia fazer botões de futebol de mesa e, hoje, nem tento. Se tanto, conto histórias.

 

 

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Mãos, pra que te querem?

Vídeos que circularam nas redes sociais em campanhas eleitorais passadas são como zumbis: levantam-se de suas catacumbas e, sem bater a poeira, voltam a atormentar a vida de seus protagonistas. É o caso de um produzido há poucos anos, que outro dia reapareceu nas telinhas.  


Para atrair a atenção de eleitores e gerar a chamada mídia espontânea – quando uma pessoa, mercadoria ou marca é citada numa reportagem sem, supostamente, ter investido nisso um centavo –, políticos de todos os credos são capazes de beber licor de jenipapo com tira-gosto de sarapatel requentado para deixar transparecer que agem com naturalidade.  

 

Há alguns anos, na luta para se reeleger prefeito de Salvador, o que deveria ser ato meramente político para ACM Neto virou piada, gozação, pilhéria ou qualquer termo jocoso que se queira utilizar, provocando rumores e risos nos botecos, ladeiras e terreiros da capital baiana. 


 

No canteiro de obras do aeroporto internacional Luis Eduardo Magalhães, o pequeno burgomestre aparece risonho com uma enxada nas mãos brancas e delicadas, afeitas a cremes hidratantes, de unhas e cutículas bem aparadas, como se desse o peteleco inicial dos trabalhos. 

  

Sapatos engraxados e dentro de um impecável terno azul-marinho, ACM Neto enrola-se todo ao tentar manter a brita e o cimento sobre a superfície da ferramenta. Parece confundi-la com uma vassoura, algo complicado para quem nunca varreu um quintal ou uma calçada. Enfim, mostra que, se tivesse chance, capinaria sentado. (Reveja a cena)

 

Certa vez, em Camacã, no sul da Bahia, em palanque onde autoridades civis, militares e eclesiásticas derretiam encharcadas na abertura da Festa do Cacau, vi bem de perto quando o seu avô, o velho morubixaba ACM, quase cometeu uma gafe do mesmo naipe.

 

A festa acontece todo dia 30 de agosto, quando se comemora a emancipação política local. Consta do programa uma disputa conhecida como “Quebra do Cacau”, onde trabalhadores rurais representantes de fazendas precisam quebrar a maior quantidade de frutos no menor tempo possível. Os vencedores, além de prêmios em dinheiro, ganham o status de os melhores da região. Os patrões, óbvio, estimulam a "brincadeira".

 

A vaidade é mel de tolos, mas até os sabidos se lambuzam. A disputa tem a ver com a colheita nas roças. Começa com a arranca do cacau com o auxílio do podão, espécie de lâmina que é colocada na ponta de uma vara enorme. O fruto possui casca resistente, que não se rompe ao cair no solo, sendo então recolhido e amontoado no que chamam de rumas.

 

Em seguida, iniciam a quebra. Uns cortam o cacau com facão, enquanto outros retiram as amêndoas, jogando-as em caixas de madeira que, quando cheias, seguem no lombo de burros para a sede da propriedade, onde são armazenadas. Virar Diamante Negro, Ferrero Rocher ou Sonho de Valsa é só questão de tempo, açúcar, leite e fogo.

 

Mas voltemos ao ponto, em agosto de 1999. Alguém cochicha no ouvido de ACM, então todo-poderoso presidente do Congresso Nacional, oferecendo-lhe um facão e uma baga de cacau. Sugere que parta o primeiro fruto ali produzido após a descoberta da solução para uma praga (a vassoura-de-bruxa) que quase dizimou as lavouras da região. 

 

A casca do fruto, evidente, havia sido parcialmente cortada – é bom nessas horas nunca subestimar o potencial de vexames. Nem assim ACM se encorajou a pegar no cabo do facão. Provavelmente temia se automutilar decepando os dedos, mais finos e menos ásperos do que os de Irmã Dulce, que por toda a vida se devotou de alma e corpo a dar as mãos aos menos favorecidos da Bahia. 

 

Com o riso amarelado feito a casca do cacau maduro, o mandachuva balançou o dedinho indicador, desistindo. Tinha mãos de quem nunca pegou nem em barbante, que dirá numa corda. O máximo de peso que enfrentaram foram pastas e dossiês. Mãos, no entanto, capazes de esganar, estrangular ou, no mínimo, beliscar bochechas, puxar orelhas de correligionários afoitos que tentassem desafiar a sua supremacia.

 

Tal como o neto, porém, nunca foi de pegar no cabo da enxada ou do facão. Dizem  não posso garantir porque nunca vi, não vou mentir!  que preferia esfregar as mãos alvas e mimosas quando se referia à “sua” Bahia, mais dele do que de todos os santos, lembrando aos seus discípulos: “aqui quem não é meu amigo, é meu inimigo!”. 


quarta-feira, 17 de agosto de 2022

E se a cor do gato fosse outra?

Desde quando me entendo por gente (ainda não estou muito certo disso!), uma das discussões mais improdutivas que vejo diz respeito ao papel do Estado na sociedade. Empresários, estudantes, militares, políticos e religiosos, todos opinam sobre quais devem ser as atribuições e os limites do Estado, mas nunca se chega a um consenso.

 

A queda-de-braço política que toma conta da nação – danação também não estaria mal – torna mais difícil avançar nesse terreno minado. Há menos de um ano, por exemplo, um certo ministro colocou mais uma vez o Banco do Brasil, a Petrobras e todas as demais estatais no folder da liquidação. 

 

“Um plano para os próximos 10 anos é continuar com as privatizações... Todo mundo entrando na fila, sendo vendido e sendo transformado em dividendos sociais”, declarou ele, em 27 de setembro de 2021, ao participar do encontro “O Brasil Quer Mais”, organizado pela International Chamber of Commerce (ICC).

 

Pode ter razão, mas não será dele, nem isoladamente de ninguém, a decisão final. 

 

Isso me leva a pensar sobre os graves problemas na educação pública brasileira, onde ainda existem crianças no 6º ano do ensino fundamental que não sabem ler nem escrever. Só para falarmos das matriculadas. Imaginemos aquelas fora da escola! 

 

Para mim, é o retrato da estrutura educacional do país: um círculo vicioso que vai da baixa remuneração, passa por despreparo de professores e diretores, instalações precárias, evasão escolar, e deságua na omissão de pais na educação de seus filhos, como se a tarefa fosse exclusivamente da escola.

 

Sem desmerecer o papel histórico do Banco do Brasil no desenvolvimento econômico nacional, me pego divagando: e se D. João VI, de ressaca, depois do indefectível frango assado e de algumas garrafas de vinho na noite anterior ao dia 12 de outubro de 1808, ao invés de um banco, tivesse decretado a abertura de uma escola pública que chamarei de BoraBrasil? Explico-me mais adiante.

 

Claro que poderia também pensar na abertura de uma confraria tropical de agiotas para atender às demandas de uma nova economia, mas já existiam banqueiros europeus estabelecidos que enxergavam boas perspectivas de negócios no Brasil com a chegada da família real. E duvido que fossem à falência por conta dos saques realizados quando do retorno de D. João VI a Portugal, como aconteceu duas décadas depois, em 1829. 

 

E se durante os últimos 213 anos todos os recursos públicos e privados investidos no banco (humanos, materiais e tecnológicos) fossem direcionados para a educação, de primeiro e segundo graus, em “agências” de ensino-aprendizagem estruturadas do Monte Caburaí, na nascente do rio Ailã, em Roraima, até o Arroio do Chuí, no Rio Grande do Sul?

 

Tem mais: e se os professores e diretores dessas agências fossem capacitados não para distribuir crédito rural subsidiado na abertura de fronteiras agrícolas — um dos motivos da brutal concentração de renda no país —, mas sim para discutir no meio rural coisas como: manejo de águas e solos, controle de pragas, diferença entre plantar para vender e vender para plantar?

 

É pouco? E se outros funcionários fossem treinados não para abrir contas correntes ou fazer pagamentos e recebimentos, e sim para disseminar nas cidades coisas como: mapeamento de ameaças e oportunidades de negócio, gestão de recursos escassos, redução de desperdícios, diferença entre causa e consequência de problemas econômico-financeiros?

 

Livre pensar é só pensar, dizia Millôr Fernandes. Pois bem: E se a proposta didático-pedagógica da BoraBrasil tivesse por pano de fundo as ideias de Frei Betto abordadas em seu artigo A escola de meus sonhos? Para ele, na escola ideal não haverá temas tabus. “Todas as situações-limites da vida devem ser tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, enfermidade, sexualidade e espiritualidade... o texto dentro do contexto: a matemática busca exemplos na corrupção... o português, ...nos textos de jornais; a geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a física, nas corridas da Fórmula 1 e pesquisas do telescópio Hubble; a química, na qualidade dos cosméticos e na culinária; a história, na violência de policiais a cidadãos, para mostrar os antecedentes na relação colonizadores-índios, senhores-escravos...”

 

Com esse caldo de cultura engrossando em fogo baixo ao longo de dois séculos, uma escola teria contribuído bem mais que um banco para alçar o país a degraus mais elevados de desenvolvimento socioeconômico.

 


E quando alguém cogitasse privatizar a BoraBrasil, a própria sociedade estaria preparada para dizer se vinha sendo bem servida, ou não. Afinal, como disse Deng Xiaoping (1904 — 1997), líder político que fez da China o país de maior crescimento econômico do planeta, “não importa se o gato é preto ou branco, desde que pegue os ratos”.

 

Para os conformistas, restaria imitar resignadamente Avelar, o general que não aderiu ao golpe (personagem dos cartunistas Hubner, Cláudio Paiva e Agner, em tirinhas, nos anos 1970, na última página de O Pasquim): 

— Não iria dar certo mesmo... 




quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Quase deu certo

Quase tudo já foi dito sobre os 80 anos de Caetano Veloso, celebrados em grande estilo na noite do último domingo, ao lado dos filhos Moreno, Tom e Zeca e da irmã Maria Bethânia, no palco da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro. 

 

Ao assistir à live, lembrei-me de Claudionor Viana Teles Veloso, mais conhecida como Dona Canô, mãe e avó deles, que desde o Natal de 2012 virou estrelinha cintilante no céu da pequena Santo Amaro da Purificação, berço do samba de roda no Recôncavo Baiano. 

Matriarca da família, sua influência não se limitava ao clã, mas a tudo que se mexia na aldeia, sob o ponto de vista cultural, político e religioso. Não à toa, a novena de Nossa Senhora da Purificação virou a “novena de Dona Canô” e os atabaques dobravam à sua passagem. Não por acaso, ela mantinha relações amistosas com figuras antagônicas como Luís Inácio Lula da Silva e Antônio Carlos Magalhães, sem perder a ternura jamais.

 

Quando cheguei à Bahia para coordenar a rede de agências do Banco do Brasil, em 1999, me contaram que em algumas regiões havia pelo menos 60% de analfabetos – zona rural de Jacobina, por exemplo. Enquanto isso, dormia empoeirado na prateleira da empresa um remédio poderoso para abrandar a dor desse flagelo social: o BB Educar, programa de alfabetização de adultos, criado em 1992 pela área de RH do bancão com base no método mundialmente reconhecido do filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire.

 

Sem as plataformas de comunicação de hoje em dia, era importante escolher uma fada-madrinha de peso (e leve, ao mesmo tempo!), para despertar o interesse geral pelo BB Educar na Bahia e esclarecer a opinião pública sobre o seu propósito, bem mais amplo do que simples retorno de imagem para o patrocinador.

 

Quem poderia ser essa fada-madrinha? Daniela Mercury? Ivete Sangalo? Zélia Gattai? Optamos por convidar Dona Canô, que, no entusiasmo de seus 92 anos, topou na hora: “É isso mesmo que estou ouvindo? Vocês querem que eu seja a madrinha de um programa lindo como esse?!”

 

No dia do lançamento, ela atiçava seus “afilhados”, a maioria na casa dos 40 anos, constrangidos por não saberem ler nem escrever: “Minha gente, vocês têm mais é que agradecer a Deus por essa oportunidade, porque quem aprende, mesmo depois de velho, deixa de tentar ‘adivinhar’ o que está escrito nos livros e nos jornais...”

 

Antes de pegar os 80 km da rodovia BR-420 de volta para Salvador, eu e Magdala, minha mulher, recebemos um gentil e inesperado convite de Dona Canô:

– Quero que voltem aqui na minha casa, em agosto, quando iremos comemorar o aniversário de Caetano. Posso contar com vocês? 

– Claro, Dona Canô!

 

Seria a oportunidade de ver de perto o sorriso iluminado de sua caçula, uma abelha-rainha a cantarolar descalça, na sala ou no quintal, versos do irmão aniversariante como: 


“...Eu sou o cheiro dos livros desesperados,

sou Gitá gogoia, seu olho me olha, mas não me pode alcançar.

Não tenho escolha, careta, vou descartar:

Quem não rezou a novena de Dona Canô,

Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor,

Quem não amou a elegância sutil de Bobô,

Quem não é Recôncavo nem pode ser reconvexo...”


 

Era a chance de conhecer de perto o cara que, quando menino, de tanto ver o rio de sua aldeia desaguar na Baía de Todos os Santos, construiu imagens de infinita beleza:

 

“...Reza, reza o rio, córrego pro rio, o rio pro mar.
Reza a correnteza, roça, beira, doura a areia.
Marcha o homem sobre o chão, leva no coração uma ferida acesa,
Dono do ‘sim’ e do ‘não’ diante da visão...”

 

“Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer...”

 

“Existirmos: a que será que se destina?”

 

“Você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir”.

 

“O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece...”

Imaginem só o tamanho da frustração lá em casa – quase sai divórcio... Litigioso! – quando, na véspera do retorno a Santo Amaro, tive que me desculpar junto a Dona Canô, pois teria que me deslocar a outra cidade, por força de obrigação profissional. 


Muitos anos depois, em 2012, pouco antes de Dona Canô ser intimada por todos os santos a brilhar no céu da Bahia, encontrei Bethânia, nos bastidores do Teatro Nacional, em Brasília, após a realização de um espetáculo em que interpretou a obra de Chico. Até cogitei contar o que conto agora e quase deu certo, mas desisti. Afinal, o tempo não para… Nem volta.

A verdade (no caso, o dom de me iludir!) é que ainda não chegou o dia de conhecer Caetano. Ainda bem que, feito o tempo (“compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”), o filho de Dona Canô nunca envelhece.