quarta-feira, 31 de agosto de 2022

O tempo só anda de ida

Eu sabia fazer botão de futebol de mesa de um jeito perigoso. Numa “panelinha” medidora de leite em pó, untada com sabão, misturava pedaços de material plástico rígido (tampas de frascos de remédios, restos de canos, de lanternas quebradas de automóveis etc.) que encontrava no lixo. Depois, derretia numa chama de lamparina ou vela, inalando alguma fumaça. Quando a temperatura diminuía, abaulava no chão de cimento as bordas, polia com folha de cajueiro bravo e, com uma flanela, esfregava pó de sobras de azulejo até brilhar. 

 

Antes dessa "técnica", usava quengo (casca) de coco como matéria-prima. Mais tarde, aprendi a fazer botão de “vidro inquebrável” – era assim que chamávamos acrílico há pouco mais de meio século. 


Desaprendi tudo. Duvido que hoje tivesse coragem de quebrar a janela de acrílico, rachada, do ônibus que fazia a linha entre os bairros de Ponta da Terra e Ponta Grossa, em Maceió, para, na Praça das Graças, escapar pela porta de entrada sem pagar a passagem, mesmo tendo no bolso o passe estudantil. 

 

Duvido que fosse capaz de usar uma serra para tubos de PVC e cortar quadrinhos de acrílico de mais ou menos 4cm x 4cm, arredondando-lhes as quinas no batente do quintal da casa em que morávamos na rua da Vitória, próximo ao mercado, no bairro da Levada. Depois, colar entre dois discos quase perfeitos a imagem de um jogador de futebol, recortada da revista Placar. Ao lado dela, fixar nome ou apelido e o número da camisa que defendia. O rito de acabamento era o mesmo dos botões feitos na “panelinha” medidora de leite em pó.

 

Você que é mais novo – chega uma época em que quase todo mundo é mais novo do que a gente – pode não acreditar, mas houve um tempo em que não se tinha dúvidas sobre quem eram os donos das camisas nº 10 de Santos (Pelé), Palmeiras (Ademir da Guia), Corinthians (Rivellino), São Paulo (Pedro Rocha), Cruzeiro (Dirceu Lopes), Botafogo (Jairzinho), Fluminense (Samarone), Vasco (Silva) etc. Ídolos como Roberto Dinamite e Zico explodiriam um pouco mais tarde, em 1973.

 

E caprichávamos para que o nº 10 fosse o botão mais temido, quando, de palheta ou pente na mão, olhar fixo e respiração contida, dávamos o ultimato ao adversário: “coloque-se!”. 


Restava ao oponente implorar aos deuses do futebol de botão para que o goleiro – caixa de fósforos revestida com as cores e o escudo de seu time, cheia de grãos de chumbo para não fraquejar ao menor esbarrão – defendesse o tiro, evitando que a bola acabasse no fundo da meta. Tanto mais se a partida estivesse empatada e o árbitro, de olho nos ponteiros do relógio, emitido o alerta: “10 segundos pra acabar... Último chute!” 

 

Deuses, aliás, que devem guardar consigo uma boa desculpa para o fato de o meu nº 10 nunca ter sido lá essas coisas. Vivia perdendo gols “feitos”. Talvez porque Silva, o “Batuta”, tivesse vida pregressa suspeita, ligada ao Flamengo. Na vida supostamente real, ele só chegou ao Vasco aos 30 anos de idade, em fim de carreira, para participar da campanha vitoriosa do Campeonato Carioca de 1970.

 

Meu botão de “vidro inquebrável” quase perfeito, cruel, implacável com meus “inimigos” de rua ou de casa, era o nº 8: Buglê. Disparado o melhor deles, era capaz de façanhas memoráveis, como acertar 99% das finalizações em embates contra o São Paulo ou o Fluminense de meus irmãos Agostinho (Nena) e Hélio (Lica). 

 

O “outro” Buglê (José Alberto Bougleaux), o das narrações inesquecíveis de Waldir Amaral, da Rádio Globo, é autor do primeiro gol da história do Mineirão, num jogo entre a Seleção Mineira e o River Plate, da Argentina, realizado em 5 de setembro de 1965. Começou sua carreira no Atlético-MG, depois defendeu o Santos, onde atuou ao lado de Pelé, Carlos Alberto, Clodoaldo etc., antes de, aos 24 anos, virar ídolo vascaíno, entre 1968 e 1974. Jogou até os 32 anos, aposentando-se em 1976, no América-MG.

 

E tocou sua vida na ladeira sem volta da meia-idade. “O tempo só anda de ida”, dizia o poeta Manoel de Barros, que via na infância um território de liberdade e defendia o "criançamento" das palavras. “Meu quintal é maior do que o mundo", dizia.

 

Fiquei sabendo bem depois que Buglê fixara residência em Brasília. Conheci-o no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, na abertura oficial da exposição “Brasil... um país, um mundo”, em dezembro de 2013. Quem me apresentou foi Clodoaldo, volante tricampeão mundial no México, em 1970, que também conheci naquela ocasião. 

– E aí, Buglê, o que tem feito da vida? – puxei conversa.

– Nada muito sério. Depois que larguei o futebol, moro aqui numa chácara, cuido de umas cabeças de gado, pesco, tomo minha cervejinha, essas coisas... 

– Você não vai acreditar... – e lhe contei esta história.

 

Descobri agora que ele convive com o Mal de Alzheimer desde 2014, ano seguinte àquele em que nos conhecemos. Havia um quê de lamento em suas palavras, talvez por não ter feito tanto quanto poderia depois que deixou de jogar futebol. 

Sim, "o tempo só anda de ida". Eu mesmo sabia fazer botões de futebol de mesa e, hoje, nem tento. Se tanto, conto histórias.

 

 

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Mãos, pra que te querem?

Vídeos que circularam nas redes sociais em campanhas eleitorais passadas são como zumbis: levantam-se de suas catacumbas e, sem bater a poeira, voltam a atormentar a vida de seus protagonistas. É o caso de um produzido há poucos anos, que outro dia reapareceu nas telinhas.  


Para atrair a atenção de eleitores e gerar a chamada mídia espontânea – quando uma pessoa, mercadoria ou marca é citada numa reportagem sem, supostamente, ter investido nisso um centavo –, políticos de todos os credos são capazes de beber licor de jenipapo com tira-gosto de sarapatel requentado para deixar transparecer que agem com naturalidade.  

 

Há alguns anos, na luta para se reeleger prefeito de Salvador, o que deveria ser ato meramente político para ACM Neto virou piada, gozação, pilhéria ou qualquer termo jocoso que se queira utilizar, provocando rumores e risos nos botecos, ladeiras e terreiros da capital baiana. 


 

No canteiro de obras do aeroporto internacional Luis Eduardo Magalhães, o pequeno burgomestre aparece risonho com uma enxada nas mãos brancas e delicadas, afeitas a cremes hidratantes, de unhas e cutículas bem aparadas, como se desse o peteleco inicial dos trabalhos. 

  

Sapatos engraxados e dentro de um impecável terno azul-marinho, ACM Neto enrola-se todo ao tentar manter a brita e o cimento sobre a superfície da ferramenta. Parece confundi-la com uma vassoura, algo complicado para quem nunca varreu um quintal ou uma calçada. Enfim, mostra que, se tivesse chance, capinaria sentado. (Reveja a cena)

 

Certa vez, em Camacã, no sul da Bahia, em palanque onde autoridades civis, militares e eclesiásticas derretiam encharcadas na abertura da Festa do Cacau, vi bem de perto quando o seu avô, o velho morubixaba ACM, quase cometeu uma gafe do mesmo naipe.

 

A festa acontece todo dia 30 de agosto, quando se comemora a emancipação política local. Consta do programa uma disputa conhecida como “Quebra do Cacau”, onde trabalhadores rurais representantes de fazendas precisam quebrar a maior quantidade de frutos no menor tempo possível. Os vencedores, além de prêmios em dinheiro, ganham o status de os melhores da região. Os patrões, óbvio, estimulam a "brincadeira".

 

A vaidade é mel de tolos, mas até os sabidos se lambuzam. A disputa tem a ver com a colheita nas roças. Começa com a arranca do cacau com o auxílio do podão, espécie de lâmina que é colocada na ponta de uma vara enorme. O fruto possui casca resistente, que não se rompe ao cair no solo, sendo então recolhido e amontoado no que chamam de rumas.

 

Em seguida, iniciam a quebra. Uns cortam o cacau com facão, enquanto outros retiram as amêndoas, jogando-as em caixas de madeira que, quando cheias, seguem no lombo de burros para a sede da propriedade, onde são armazenadas. Virar Diamante Negro, Ferrero Rocher ou Sonho de Valsa é só questão de tempo, açúcar, leite e fogo.

 

Mas voltemos ao ponto, em agosto de 1999. Alguém cochicha no ouvido de ACM, então todo-poderoso presidente do Congresso Nacional, oferecendo-lhe um facão e uma baga de cacau. Sugere que parta o primeiro fruto ali produzido após a descoberta da solução para uma praga (a vassoura-de-bruxa) que quase dizimou as lavouras da região. 

 

A casca do fruto, evidente, havia sido parcialmente cortada – é bom nessas horas nunca subestimar o potencial de vexames. Nem assim ACM se encorajou a pegar no cabo do facão. Provavelmente temia se automutilar decepando os dedos, mais finos e menos ásperos do que os de Irmã Dulce, que por toda a vida se devotou de alma e corpo a dar as mãos aos menos favorecidos da Bahia. 

 

Com o riso amarelado feito a casca do cacau maduro, o mandachuva balançou o dedinho indicador, desistindo. Tinha mãos de quem nunca pegou nem em barbante, que dirá numa corda. O máximo de peso que enfrentaram foram pastas e dossiês. Mãos, no entanto, capazes de esganar, estrangular ou, no mínimo, beliscar bochechas, puxar orelhas de correligionários afoitos que tentassem desafiar a sua supremacia.

 

Tal como o neto, porém, nunca foi de pegar no cabo da enxada ou do facão. Dizem  não posso garantir porque nunca vi, não vou mentir!  que preferia esfregar as mãos alvas e mimosas quando se referia à “sua” Bahia, mais dele do que de todos os santos, lembrando aos seus discípulos: “aqui quem não é meu amigo, é meu inimigo!”. 


quarta-feira, 17 de agosto de 2022

E se a cor do gato fosse outra?

Desde quando me entendo por gente (ainda não estou muito certo disso!), uma das discussões mais improdutivas que vejo diz respeito ao papel do Estado na sociedade. Empresários, estudantes, militares, políticos e religiosos, todos opinam sobre quais devem ser as atribuições e os limites do Estado, mas nunca se chega a um consenso.

 

A queda-de-braço política que toma conta da nação – danação também não estaria mal – torna mais difícil avançar nesse terreno minado. Há menos de um ano, por exemplo, um certo ministro colocou mais uma vez o Banco do Brasil, a Petrobras e todas as demais estatais no folder da liquidação. 

 

“Um plano para os próximos 10 anos é continuar com as privatizações... Todo mundo entrando na fila, sendo vendido e sendo transformado em dividendos sociais”, declarou ele, em 27 de setembro de 2021, ao participar do encontro “O Brasil Quer Mais”, organizado pela International Chamber of Commerce (ICC).

 

Pode ter razão, mas não será dele, nem isoladamente de ninguém, a decisão final. 

 

Isso me leva a pensar sobre os graves problemas na educação pública brasileira, onde ainda existem crianças no 6º ano do ensino fundamental que não sabem ler nem escrever. Só para falarmos das matriculadas. Imaginemos aquelas fora da escola! 

 

Para mim, é o retrato da estrutura educacional do país: um círculo vicioso que vai da baixa remuneração, passa por despreparo de professores e diretores, instalações precárias, evasão escolar, e deságua na omissão de pais na educação de seus filhos, como se a tarefa fosse exclusivamente da escola.

 

Sem desmerecer o papel histórico do Banco do Brasil no desenvolvimento econômico nacional, me pego divagando: e se D. João VI, de ressaca, depois do indefectível frango assado e de algumas garrafas de vinho na noite anterior ao dia 12 de outubro de 1808, ao invés de um banco, tivesse decretado a abertura de uma escola pública que chamarei de BoraBrasil? Explico-me mais adiante.

 

Claro que poderia também pensar na abertura de uma confraria tropical de agiotas para atender às demandas de uma nova economia, mas já existiam banqueiros europeus estabelecidos que enxergavam boas perspectivas de negócios no Brasil com a chegada da família real. E duvido que fossem à falência por conta dos saques realizados quando do retorno de D. João VI a Portugal, como aconteceu duas décadas depois, em 1829. 

 

E se durante os últimos 213 anos todos os recursos públicos e privados investidos no banco (humanos, materiais e tecnológicos) fossem direcionados para a educação, de primeiro e segundo graus, em “agências” de ensino-aprendizagem estruturadas do Monte Caburaí, na nascente do rio Ailã, em Roraima, até o Arroio do Chuí, no Rio Grande do Sul?

 

Tem mais: e se os professores e diretores dessas agências fossem capacitados não para distribuir crédito rural subsidiado na abertura de fronteiras agrícolas — um dos motivos da brutal concentração de renda no país —, mas sim para discutir no meio rural coisas como: manejo de águas e solos, controle de pragas, diferença entre plantar para vender e vender para plantar?

 

É pouco? E se outros funcionários fossem treinados não para abrir contas correntes ou fazer pagamentos e recebimentos, e sim para disseminar nas cidades coisas como: mapeamento de ameaças e oportunidades de negócio, gestão de recursos escassos, redução de desperdícios, diferença entre causa e consequência de problemas econômico-financeiros?

 

Livre pensar é só pensar, dizia Millôr Fernandes. Pois bem: E se a proposta didático-pedagógica da BoraBrasil tivesse por pano de fundo as ideias de Frei Betto abordadas em seu artigo A escola de meus sonhos? Para ele, na escola ideal não haverá temas tabus. “Todas as situações-limites da vida devem ser tratadas com abertura e profundidade: dor, perda, falência, parto, morte, enfermidade, sexualidade e espiritualidade... o texto dentro do contexto: a matemática busca exemplos na corrupção... o português, ...nos textos de jornais; a geografia, nos suplementos de turismo e nos conflitos internacionais; a física, nas corridas da Fórmula 1 e pesquisas do telescópio Hubble; a química, na qualidade dos cosméticos e na culinária; a história, na violência de policiais a cidadãos, para mostrar os antecedentes na relação colonizadores-índios, senhores-escravos...”

 

Com esse caldo de cultura engrossando em fogo baixo ao longo de dois séculos, uma escola teria contribuído bem mais que um banco para alçar o país a degraus mais elevados de desenvolvimento socioeconômico.

 


E quando alguém cogitasse privatizar a BoraBrasil, a própria sociedade estaria preparada para dizer se vinha sendo bem servida, ou não. Afinal, como disse Deng Xiaoping (1904 — 1997), líder político que fez da China o país de maior crescimento econômico do planeta, “não importa se o gato é preto ou branco, desde que pegue os ratos”.

 

Para os conformistas, restaria imitar resignadamente Avelar, o general que não aderiu ao golpe (personagem dos cartunistas Hubner, Cláudio Paiva e Agner, em tirinhas, nos anos 1970, na última página de O Pasquim): 

— Não iria dar certo mesmo... 




quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Quase deu certo

Quase tudo já foi dito sobre os 80 anos de Caetano Veloso, celebrados em grande estilo na noite do último domingo, ao lado dos filhos Moreno, Tom e Zeca e da irmã Maria Bethânia, no palco da Cidade das Artes, no Rio de Janeiro. 

 

Ao assistir à live, lembrei-me de Claudionor Viana Teles Veloso, mais conhecida como Dona Canô, mãe e avó deles, que desde o Natal de 2012 virou estrelinha cintilante no céu da pequena Santo Amaro da Purificação, berço do samba de roda no Recôncavo Baiano. 

Matriarca da família, sua influência não se limitava ao clã, mas a tudo que se mexia na aldeia, sob o ponto de vista cultural, político e religioso. Não à toa, a novena de Nossa Senhora da Purificação virou a “novena de Dona Canô” e os atabaques dobravam à sua passagem. Não por acaso, ela mantinha relações amistosas com figuras antagônicas como Luís Inácio Lula da Silva e Antônio Carlos Magalhães, sem perder a ternura jamais.

 

Quando cheguei à Bahia para coordenar a rede de agências do Banco do Brasil, em 1999, me contaram que em algumas regiões havia pelo menos 60% de analfabetos – zona rural de Jacobina, por exemplo. Enquanto isso, dormia empoeirado na prateleira da empresa um remédio poderoso para abrandar a dor desse flagelo social: o BB Educar, programa de alfabetização de adultos, criado em 1992 pela área de RH do bancão com base no método mundialmente reconhecido do filósofo e pedagogo brasileiro Paulo Freire.

 

Sem as plataformas de comunicação de hoje em dia, era importante escolher uma fada-madrinha de peso (e leve, ao mesmo tempo!), para despertar o interesse geral pelo BB Educar na Bahia e esclarecer a opinião pública sobre o seu propósito, bem mais amplo do que simples retorno de imagem para o patrocinador.

 

Quem poderia ser essa fada-madrinha? Daniela Mercury? Ivete Sangalo? Zélia Gattai? Optamos por convidar Dona Canô, que, no entusiasmo de seus 92 anos, topou na hora: “É isso mesmo que estou ouvindo? Vocês querem que eu seja a madrinha de um programa lindo como esse?!”

 

No dia do lançamento, ela atiçava seus “afilhados”, a maioria na casa dos 40 anos, constrangidos por não saberem ler nem escrever: “Minha gente, vocês têm mais é que agradecer a Deus por essa oportunidade, porque quem aprende, mesmo depois de velho, deixa de tentar ‘adivinhar’ o que está escrito nos livros e nos jornais...”

 

Antes de pegar os 80 km da rodovia BR-420 de volta para Salvador, eu e Magdala, minha mulher, recebemos um gentil e inesperado convite de Dona Canô:

– Quero que voltem aqui na minha casa, em agosto, quando iremos comemorar o aniversário de Caetano. Posso contar com vocês? 

– Claro, Dona Canô!

 

Seria a oportunidade de ver de perto o sorriso iluminado de sua caçula, uma abelha-rainha a cantarolar descalça, na sala ou no quintal, versos do irmão aniversariante como: 


“...Eu sou o cheiro dos livros desesperados,

sou Gitá gogoia, seu olho me olha, mas não me pode alcançar.

Não tenho escolha, careta, vou descartar:

Quem não rezou a novena de Dona Canô,

Quem não seguiu o mendigo Joãozinho Beija-Flor,

Quem não amou a elegância sutil de Bobô,

Quem não é Recôncavo nem pode ser reconvexo...”


 

Era a chance de conhecer de perto o cara que, quando menino, de tanto ver o rio de sua aldeia desaguar na Baía de Todos os Santos, construiu imagens de infinita beleza:

 

“...Reza, reza o rio, córrego pro rio, o rio pro mar.
Reza a correnteza, roça, beira, doura a areia.
Marcha o homem sobre o chão, leva no coração uma ferida acesa,
Dono do ‘sim’ e do ‘não’ diante da visão...”

 

“Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o que quer...”

 

“Existirmos: a que será que se destina?”

 

“Você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir”.

 

“O tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece...”

Imaginem só o tamanho da frustração lá em casa – quase sai divórcio... Litigioso! – quando, na véspera do retorno a Santo Amaro, tive que me desculpar junto a Dona Canô, pois teria que me deslocar a outra cidade, por força de obrigação profissional. 


Muitos anos depois, em 2012, pouco antes de Dona Canô ser intimada por todos os santos a brilhar no céu da Bahia, encontrei Bethânia, nos bastidores do Teatro Nacional, em Brasília, após a realização de um espetáculo em que interpretou a obra de Chico. Até cogitei contar o que conto agora e quase deu certo, mas desisti. Afinal, o tempo não para… Nem volta.

A verdade (no caso, o dom de me iludir!) é que ainda não chegou o dia de conhecer Caetano. Ainda bem que, feito o tempo (“compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”), o filho de Dona Canô nunca envelhece. 

 


quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Nem se fosse possível!

No auge do bate-boca sobre se havia entre nós uma gripezinha à-toa ou uma virose de proporções funestas, Pedrinho viu o seu querido sogro se queixar de formigamento nas mãos e nos pés. Embora não fosse do ramo, desconfiou do descontrole da diabetes. Como o velho tinha pavor de hospital, vinha evitando o acompanhamento médico durante a pandemia. 

 

Isso foi ruim. O sogro acabou tendo que amputar um dedo, parte do pé esquerdo e contraiu osteomielite – infecção nos ossos, com muita dor, febre e calafrios.  Para a família, a falta de higiene dos enfermeiros nos curativos teria transmitido a bactéria de uma criança internada no quarto ao lado. Deu-se então o pior: ele não resistiu. 

 

Muito apegado ao sogro – que lhe dera abrigo e comida nos primeiros anos de casamento –, Pedrinho sentiu bastante. “Virei um cocô, e queria mais que alguém puxasse a descarga”, disse-me. Nem esse empurrão recebeu dos amigos. Restou-lhe dividir o luto oferecendo o ombro à sogra, à mulher e aos cunhados.

 

Vieram em seguida os aborrecimentos com o inventário e até hoje não ocorreu o desfecho do arrolamento de miudezas no valor, se tanto, de R$ 250 mil. Por ser bancário aposentado e mais afeito a essas coisas, teve que assumir o leme do barco.

 

Contou que procurou alguns advogados e o mais barateiro, um amigo de ginásio, pediu R$ 4 mil, contra R$ 12 mil exigidos por “uma tarada jurídica que a sogra lhe apresentou. "Isso porque era amiga da família, veja você!”, me disse.

 

Quis ajudá-lo apontando um ex-colega de trabalho que inclusive lhe devia alguns favores: Dr. Galdino Lima, vulgo “Dino” – por conta de petições jurássicas recheadas de “destartes”, “entrementes” e “outrossins” –, que hoje advoga na região de Penedo, na foz do rio São Francisco, no sul de Alagoas. 

 

Por e-mail, Dino pede R$ 25 mil. Esclarece que trabalhou na OAB e viu a diferença entre um bom e um mau profissional, que a tabela prevê 10% de honorários. E narra dois casos: primeiro, refere-se a tratamento dentário onde o odontólogo cobra R$ 50 por extração, o prático, R$ 25 e, se o paciente topar sem anestesia, fica por R$ 10. Noutro caso, relata que um bancário se demitiu e emprestou a “indenização” a 8% a.m. Agora, não consegue receber do tomador e as despesas com custas advocatícias e processuais são maiores do que esperava ganhar. E provoca no final: “Não venha me dizer que você não pode pagar por sua sogra!”




Chateado com “a ingratidão, a insensibilidade e o corporativismo improdutivo”, Pedrinho rascunha uma possível resposta em 10 tópicos e 
pede minha opinião a respeito

 

“Dr. Dino,

 

Primeiro: um dos princípios do Direito é cristalino – “Ninguém poderá alegar em sua defesa a ignorância das leis”. 

 

Segundo: o direito à herança está previsto no Código Civil.

 

Terceiro: no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, boa parte da população era analfabeta, necessitando-se de advogados. Agora, não. 

 

Quarto: se um homem morre sem dever nada a ninguém e sua família decide quem fica com o quê, qual o custo de se fazer um simples requerimento ao juiz? Gasta-se tanto em tinta, papel, tempo e fosfato que justifique pagar de 5% a 10% do valor dos bens?

 

Quinto: você, que foi assessor da OAB, pode ter esquecido, mas vários companheiros seus negociam por menos que os 10% previstos na tabela.

 

Sexto: de carrinho de pipoca até prédio de apartamentos, o rito judicial é praticamente o mesmo. É justo isso? 

 

Sétimo: você sabe quanto custa ganhar R$ 25 mil? Acha justo que uma viúva, para permanecer com aquilo que juntou a vida inteira de trabalho, economias, de filas e de ônibus, que terá agora que sobreviver com aposentadoria de R$ 350 por mês, pague 10% de tudo que tem para que alguém coloque seu nome e descreva seus bens num formulário padrão em poucos minutos de trabalho e o submeta ao juiz? Ah! – você dirá –, tem o acompanhamento! Isto é, consultar o andamento do processo via Internet ou, na pior das hipóteses, quando o advogado passa no fórum, verificar se o dossiê não foi extraviado ou pedir para que lhe soprem a poeira de cima.

 

Oitavo: no caso do meu sogro, nem há necessidade de inventário. Basta arrolamento.

 

Nono: era como os netos dele o chamavam.

 

Décimo: para mim, o bom profissional é aquele que sabe atribuir valor justo ao que faz. Não é preciso mestrado ou doutorado para se fazer um trabalhinho desses. Está no “bê-á-bá” do Direito. Quem opta por extrair um dente por R$ 10, sem anestesia, sabe do risco. É mais um mesquinho tragado pela avareza, pecado capital em que também incorrem aqueles que emprestam dinheiro a 10% ao mês ou os que querem ganhar muito com pouco esforço...”


Li, reli e propus apenas algumas vírgulas, além de dois ou três ajustes. Pedrinho sabe que há 13 anos já não é obrigatório fazer inventário por via judicial quando não existe divergência na partilha de bens entre os herdeiros e todos são maiores. Mesmo assim, fez questão de responder à mensagem recebida. 

 

Sentiu-se livre e solto, como se gritasse: "Nem podendo, doutor!" 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

A mais radical das virtudes

Filho de uma família humilde de operários, ele nasce com paralisia cerebral. Apesar de tetraplégico, aos cinco anos descobre que tem controle sobre seu pé esquerdo e usa giz para rabiscar palavras no chão. Com este único membro “ativo”, muita determinação e a ajuda da mãe, supera as limitações e torna-se pintor, poeta e autor. 

 

Eis a sinopse de My Left Foot (O Meu Pé Esquerdo), filme baseado na obra homônima do irlandês Christy Brown. Sucesso nos anos 1990, acabo de revê-lo e parei para divagar não sobre as restrições físicas do protagonista, mas sobre a circunstância de ser canhoto, tal como um de meus netinhos.

 

Dizem que cerca de 10% da população mundial é canhota, isto é, algo próximo de 800 milhões de pessoas (quase quatro “brasis”). Mesmo assim, aqueles com mais habilidade do lado esquerdo do corpo sofrem para se encaixar num mundo “feito” para a maioria destra.

 

Soa absurdo, mas, na Idade Média, mulheres canhotas foram implacavelmente perseguidas: as acusações de bruxaria se baseavam na relação estabelecida nos textos antigos entre o lado esquerdo e o pecado. Nem parece que a palavra latina sinister (esquerdo) significava “sortudo”. Tanto que italianos e franceses deram ao termo um sentido depreciativo: esquerda, na Itália, é sinistra; na França, gauche é algo desajeitado. 

 

Já na era moderna, pais e mestres forçavam as crianças a usarem a mão direita ao invés da esquerda. Caso emblemático é o do ex-jogador de futebol Romário. Quem o via concedendo autógrafos percebia que se tratava de um canhoto nato. Possivelmente foi obrigado, pelo Seu Edevair de Souza Faria, a “trabalhar” mais a perna direita e “esqueceu” a outra. 

 

Algumas teorias tentam explicar a existência de canhotos. Uma diz que o principal motivo está no ventre da mãe, e a causa seria hormonal. Outra, que se trata de comportamento de origem genética. Que além dos membros, canhotos possuem maior acuidade noutras partes do lado esquerdo, como a visão e a audição. Diz-se ainda que os canhotos possuem melhor noção espacial e são melhores com números e matemática, além de mais criativos e ousados. Da Vinci, Beethoven, Mozart, Einstein, Picasso, Fidel, McCartney, Gates, Oprah Winfrey, Senna, Obama, Fátima Bernardes, por exemplo. 

 
















Quando criança, eu quis ser canhoto ao ver craques como Gérson, Rivellino e Tostão. Já tinha ouvido de meu pai muitas histórias acerca de Pepe. Não penso mais nisso, claro, mas exceto o “maior-de-todos” (Pelé, apesar de destro, conseguia proezas com o pé esquerdo), a lista de canhotos extraordinários só aumentou de lá pra cá: Maradona, Éder, Djalminha, Rivaldo, Roberto Carlos, Alex, Messi, Griezmann, Salah, Marta, Ganso etc.
 

Pelo lado prático, nem imaginei como seria lidar com abridores de lata, maçanetas, zíperes, ou escrever sobre uma carteira escolar com a mesinha do lado direito da cadeira. Pior: teria que deitar o caderno e ficar com a mão toda suja de tinta depois das anotações. E se fosse chamado a resolver alguma questão no quadro, será que a mão viria apagando tudo o que havia escrito? 


Uma hora me dei conta de que craques e pernas-de-pau existem aos montes, destros ou sinistros. Só os obscurantistas veem sentido em aquilatar o valor de alguém a partir do lado mais ativo do corpo ou da mente.  



Marcelo, amigo meu, me contou outro dia que, quando menino, durante meses a mãe o quis ensinar a amarrar os cadarços do Kichute. Em vão. Descobriu depois que o método materno de ensino era para destros e aprendeu em cinco minutos. Simples.

 

Falou também dos transtornos até se acostumar com espirais de cadernos e tesouras. E de quando erguia a mão esquerda para traçar o sinal da cruz diante da capela do bairro ou ao ser apresentado a alguém. Era inevitável o constrangimento.

 

O embaraço persistiu ao lidar com a alavanca das colheres de sorvetes, que exige esforço adicional dos canhotos. Tal como utilizar o mouse do computador. Aliás, quando ele começou a trabalhar, vivia trocando o lado do teclado com o do mouse, com o chefe a reclamar que não estava fazendo o certo.

 

Contou ainda que até hoje “escuta” a mãe a lhe repreender em sonhos: “meu filho, Nosso Senhor nos diz, entre outras coisas, que a caridade se faz com a mão direita; quando você der esmola, que sua mão esquerda não saiba o que fez a direita”.



Pois bem. Se um de meus netinhos nasceu canhoto, preciso registrar que outro já havia nascido daltônico e não enxerga qualquer diferença entre o vermelho e o verde. E que já aprendi com eles o suficiente para entender que o lado preferido de cada um – esquerda e direita – e as cores que vestem não mudam a sua essência. 


Nesses tempos difíceis que lhes foi dado crescer e amadurecer, sei que o primeiro ar que se respira já contém as impurezas do mundo, mas torço para que preservem essa versão mais pura de encarar a vida e ser feliz, com muitas dúvidas e poucas certezas. A tolerância, afinal, ainda é a mais radical das virtudes.

 


quarta-feira, 20 de julho de 2022

Tem mau cheiro no ar

Antes que a tormenta eleitoral que vem por aí ofusque nossas preocupações particulares e coletivas, é preciso refletir sobre algumas feridas da amada pátria que ora mais parece uma carroça na chuva, descendo ladeira abaixo, sob o "controle" de um pangaré com os cascos encerados. 


Deus é testemunha de que nem mesmo eu boto tanta fé em que só refletir sobre essas feridas vá resolver alguma coisa. É preciso, antes de tudo, uma improvável trégua entre lados opostos (ambos convencidos de suas verdades imutáveis), como cicatrizante das diferenças de opinião.

 

Claro que, se recebesse um mandato divino, eu mesmo sairia por aí a fazer justiça com minhas próprias mãos, distribuindo pão e terras aos famintos e mal pagos, além de compaixão e generosidade para os mais abonados, até para contradizer quem acha que Ele “é um gozador, adora brincadeira, pois pra nos jogar no mundo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado nos botar cabreiros e na barriga da miséria nascemos brasileiros”.

 

Acontece que a amada pátria, ainda estarrecida com a barbárie de dois crimes repugnantes (fadados ao esquecimento daqui a pouco), vê explodir toda semana novos mísseis devastadores, daqueles que não só destroem prédios e pontes, mas também o que resta de dignidade de uma nação.

 

Discutia-se nos bares e lares a diferença de duas abordagens policiais: a de um homem negro, pobre, que trafegava sem capacete numa motocicleta e acabou morto por asfixia no porta-malas de uma viatura em Sergipe. A outra, de um homem branco, que estuprou uma mulher em seu mais sublime momento, anestesiada – dopada talvez fosse o termo mais apropriado – durante o parto. Parecia que o segundo estava sendo convidado a tomar um chope num quiosque qualquer da Barra da Tijuca.

 

Nisso, logo após a derrota do Flamengo no jogo de ida contra o Atlético-MG pela Copa do Brasil, no Mineirão, um jogador rubro-negro, ainda no gramado, declara algo inesperado partindo de um ídolo esportivo de vulneráveis: "Lá eles vão conhecer o que é inferno!". Referia-se ao ambiente que se deveria criar no Maracanã no jogo de volta. 

 

O Galo não jogou nada e o Urubu nem precisou ser espetacular para vencê-lo: bastou empenhar-se do começo ao fim, atacando em bloco com velocidade, marcando firme e contando com mais uma atuação de gala de um uruguaio humilde e talentoso, autor dos dois gols da vitória. Mas, e se o Flamengo perdesse, como reagiria a massa contra os adversários ou mesmo em relação a seus próprios ídolos?   

 

Na noite seguinte, Cássio, 35 anos, o maior goleiro da história do Corinthians, sofreria uma voadora, pelas costas, de um torcedor santista que, inconformado com a desclassificação de seu time, invadiu o campo da Vila Belmiro. Chateado, ele repetiu numa entrevista aquilo que está cada dia mais óbvio (ululante, no dizer de Nelson Rodrigues): "Falta pouco para uma tragédia"

 









Sabe que poderia ter sido vítima fatal se o agressor estivesse com um canivete, um caco de vidro ou um pedaço de vergalhão. Vai-se ver lembrou de que em fevereiro o ônibus da delegação do Grêmio Porto-alegrense – clube onde começou sua carreira – fora apedrejado pela torcida do Internacional ao chegar no estádio Beira-Rio e alguns jogadores ficaram feridos. O meio-campista chileno Villasanti chegou a ser levado ao hospital, sob suspeita de concussão.

 

"A gente tá duvidando que isso possa acontecer", arrematou Cássio. Logo ele que, também em abril passado, teve de registrar boletim de ocorrência policial por haver recebido ameaças pelas redes sociais, num momento adverso de seu clube. O resultado das investigações? O mesmo do inquérito aberto pelo STF para investigar a existência de fake news na cena política brasileira.   

 

Quem acompanha futebol mais de perto recorda que, no começo deste ano, durante a partida entre Palmeiras e São Paulo pela Copa São Paulo de Futebol Júnior, um atleta do Verdão encontrou uma faca no gramado, invadido por torcedores do Tricolor. Claro, não era um utensílio de trabalho esquecido pelo jardineiro da Arena Barueri.

 

Esses casos estão cada vez mais frequentes e absurdamente ousados. Medidas como torcida única nos jogos mais importantes ou proibição de bandeiras nos estádios, soluções adotadas em São Paulo, mostram-se ineficazes e só evidenciam a má-vontade do poder público e dos dirigentes de clubes em resolver o problema.

 

O embrutecimento generalizado é mais preocupante porque, noutras esferas tão explosivas quanto futebol e religião, incentiva-se abertamente o clima de guerra, desacreditam-se as instituições e incitam-se potenciais criminosos por meio do afrouxamento de regras mínimas de civilidade como o controle de armas. 

 

Como o pior do clima futebolístico está presente nos aspectos mais importantes da vida nacional, recorro de novo a Nelson Rodrigues, citado por Ruy Castro na Folha de S.Paulo de 16.07.22: "Quando os amigos deixam de jantar com os amigos por causa da ideologia, é porque o país está maduro para a carnificina".

 

Cássio está certo: tem mau cheiro de tragédia no ar.  

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Botinas, afagos e batinas

Andei lendo sobre o Brasil de dois séculos atrás, nos primeiros anos de independência, quando a Igreja abriu centenas de processos com pesadíssimas acusações contra o clero e inúmeros religiosos. As denúncias mais corriqueiras eram sobre crimes de fornicação (ato sexual que acontece entre não cônjuges), concubinato (união sem reconhecimento legal) e interpretação tendenciosa das escrituras em assuntos relacionados a sexo.

 

A bagunça era tanta que um certo dom Antônio Viçoso, bispo de Mariana, Minas Gerais, só faltou ajoelhar-se aos pés de seus superiores na arquidiocese da província: “Peço o socorro de suas orações a favor de um pobre bispo que passa pela aflição de ver paróquias entregues a lobos vorazes mesmo sem peles de ovelha”. Referia-se a seu próprio rebanho: seminaristas, padres e párocos.

 

É verdade que a própria formação do clero contribuiu para esse estado de coisas. Os seminários eram vistos pelas famílias como porteira de acesso de seus rebentos ao ensino superior e à elite. Vocação à parte, era bem mais em conta do que bancar estudos de filhos no Velho Continente.  

 

Também havia dificuldades de recrutamento por força das restrições impostas para o celibato eclesiástico. Isso levou a Igreja a afrouxar os cadarços de sua pregação moralizadora, especialmente durante os ciclos do açúcar e do ouro de nossa história. 

 

O caso de José Barradas foi emblemático. Em 1795, três padres que avaliavam o seu ingresso no seminário argumentaram que era “público e notório” que ele era “concubinário e com filhos”, além de autor de “alguns latrocínios”. No entanto, o pároco da região mineira de Mariana, João Borges, concluiu que tudo não passava de “ouvir dizer e não havia prejuízo causado a qualquer pessoa”. 

 

Difícil imaginar que latrocínio não prejudicasse alguém, mas, enfim, foi a conclusão. Parece que as águas de Mariana, impregnadas de minérios, não eram lá muito bentas. 

 

Este sobrevoo panorâmico me fez recordar de uma conversa que mantive com uma querida amiga gaúcha (já falecida) no final dos anos 1970. Ela me contou que, nos idos de 1941, dois de seus irmãos viram de perto a maior enchente do rio Guaíba, que banha a cidade onde nasceram na zona metropolitana de Porto Alegre. 


O mais velho deles, de 10 anos, saíra cedinho para ver a correnteza arrastando o que encontrava nas margens. As águas subiram rápido, a tarde esfriava e nada de o menino chegar. Em meio aos rumores de que alguns corpos foram vistos boiando rio abaixo, a família cai no choro a pedir aos céus um milagre. 

 

Nisso, o irmão mais novo do sumido aparece na sala e se habilita na possível partilha de bens: “Se ele morrer, o par de botinas é meu!”. Para sua frustração, o quase afogado surge assoviando na porta de casa, no final do dia, e a vida, feito o rio Guaíba, seguiu seu curso.

 

Anos depois, dizendo-se arrependido da falta de compaixão e fraternidade durante a infância, o quase herdeiro das botinas daria a entender que se transformara em homem digno, justo, a serviço do bem: ordenou-se padre e assumiu o trabalho pastoral na própria diocese em que fora batizado.  

 

Porém nunca conseguiu conciliar a vida celibatária com sua canalhice atávica e vocacional, perceptível até nas bochechas e nos olhos empapuçados de safadeza. 


Era daqueles cujas batinas estavam sempre amarrotadas. Vivia a afagar “sem maldade” quase todas as beatas papa-hóstias que se dispunham a auxiliá-lo nas tarefas paroquiais, inclusive uma bem robusta que, mais adiante, lhe faria arfar com a língua de fora propondo casamento, de papel passado e tudo. 

 

Para a sua irmã (a querida amiga a que me reportei), tirando a filha dela, quase todas as sobrinhas haviam sido vítimas de afagos, a pretexto de lhes avaliar o desenvolvimento de mamilos e pernas, tal como fazia com outras meninotas da comunidade, sob velada ameaça de vazamento de segredos guardados desde a primeira eucaristia. 

Ele sempre negou, jurando tratar-se de algo “cruel, injusto e desigual”, como diria meio século mais tarde um certo executivo afastado da presidência de um banco público sob a acusação de assédio sexual e moral.

 




Quanto às meninas mais recalcitrantes, no escurinho do confessionário ele oferecia drops de anis como parte da penitência, desde que elas os escolhessem com as próprias mãos nos bolsos da batina. As mais espertas pulavam de banda quando descobriam, dentre os pacotes de pastilhas, que havia algo de textura um pouco diferente.

 

Depois que largou a batina, casou-se e virou fiscal de rendas na capital gaúcha, não durou nem 10 anos. A diabetes nunca combinou com sua gulodice canina, apesar de se enxergar o próprio garoto-propaganda do Suíta (o primeiro adoçante artificial lançado por aqui, para as pessoas que queriam “entrar na linha”). 

 

Se era para o bem de todos e felicidade geral da comunidade, foi-se. Antes, contudo, teve que quitar a contragosto parte de seus pecados em módicas parcelas mensais: primeiro, foram-se alguns dedos dos pésem seguida, fatias das pernas brancas e gordas; por fim, o saldo da pança, inclusive as bochechas.


Chupando drops de anis, deve agora vagar noutro escurinho, a rever o filme de tudo sentado no colo do capeta.

 

 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Língua solta

As saias de vinco batiam no meio das canelas das meninas e já foram de várias cores: azul, bege, marrom, vinho. Os internatos femininos dos idos de 1940 a 1970 custavam os olhos da cara. Em troca, ofereciam formação e conduta. As meninas até podiam sair da clausura, mas sob a tutela de religiosas que cuidavam desde a forma de se pentear até os centímetros da roupa.


Era comum uma moça trocar de internato se outro na região oferecesse um horário mais flexível, permitisse uma inocente troca de olhares no café ou chá de casca de laranja com um rapazote, na sala de estar. Apesar dos rigores, divertiam-se. Longe de casa, dividiam quarto com amigas de outras cidades, com quem compartilhavam cochichos de dormitório sobre namorados, virgindade e casamento. 


Soube por intermédio de meu amigo Chiquinho Neto que, certa feita, madre Perpétua do Socorro, uma paulista de Barretos (capital do rodeio), radicada no Alto Sertão cearense, diretora do internato da cidade onde ele nasceu, decidiu levar suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Para ela, o circo era um lugar mágico, que remetia a vivências e sensações incríveis, fazendo crianças, jovens e até os mais velhos viajarem na beleza das cores, na alegria dos palhaços e nas acrobacias e aventuras dos trapezistas. 

 

A história circense no Brasil se inicia no século 19, período em que muitas famílias europeias chegavam e se reuniam em guetos onde, além de compartilharem vida coletiva, demonstravam suas habilidades circenses. Também com ciganos que, nômades, se apresentavam ao público de diversos lugares mostrando algumas de suas habilidades, como o ilusionismo e a doma de animais bravos.

 

Os espetáculos eram adaptados de acordo com o gosto do público. Se alguma atração não agradava aos espectadores de certa região, deixava de fazer parte da programação para aquele local. O palhaço europeu, por exemplo, na versão original era menos falante e fazia uso da mímica como base para suas apresentações. 

 

Esse modelo não funcionou bem por aqui e precisou ser adaptado para o tipo de palhaço que todos nós estamos acostumados, principalmente aqueles que atuam em circos mambembes, sem a atração de animais: fala alto, volta e meia utiliza instrumentos musicais sem muita habilidade e tenta ser engraçado de forma chula.

 

Mas voltemos àquela tarde em que madre Perpétua em carne, véu e osso, resolve levar as suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Todas acomodadas, algodão doce e pipocas fraternalmente distribuídas, eis que o espetáculo começa com o palhaço a toda corda. À medida que o público aplaude, sobe o tom das tiradas picantes, até descambar ladeira abaixo:

– E o palhaço, o que é? 

– É ladrão de mulher!

– E a mulher, o que tem?

– Carrapato no sedém...

 

Nos rodeios, “sedém” é uma espécie de cinta, confeccionada em lã, crina de cavalo ou espuma revestida de tecido macio, que corre entre o traseiro e a virilha do touro para estimulá-lo a escoicear cada vez mais, a desafiar o equilíbrio do peão. 

 

Talvez lembrando de sua infância em Barretos, no interior paulista, madre Perpétua trata de recolher suas pombinhas inocentes e, em comitiva, busca ajuda junto à principal autoridade da cidade, depois do prefeito, do juiz e do padre: o delegado Tonho Lapada, militar reconhecido como reserva moral nas redondezas, apesar da injustiça de seus tabefes reservados apenas aos ladrões de galinha.

 

Ao chegar à delegacia, a madre superiora foi ao ponto:

– Delegado, o palhaço tá com imoralidades lá no circo. Tive que sair de lá correndo com as moças por causa dos palavrões. Onde já se viu uma coisa dessas? 

 


Ilustração: Umor








Tonho Lapada levanta-se num pulo só, beija as mãos da freira e exprime sua mais profunda revolta com o ocorrido:

– O quê?! Aquele “filadaputa” tá faltando com o respeito ao povo daqui? Vou lá agorinha fechar aquela empanada de merda! E se ele insistir, meto o pau no rabo dele na frente de todo mundo! Será que ele tá pensando que essas divisas aqui – bate os dedos indicador e médio da mão direita sobre o braço esquerdo – foram pregadas com sebo?!


E veio uma onda de suspiros e desmaios, fingidos ou não. 

 

A língua é viva. A maneira de falar se renova mais rápido do que o modo como se escreve, porque a oralidade precede à escrita e é bem mais utilizada. Render-se às mudanças na fala e na escrita é sentir de perto o idioma em movimento. 

 

Chiquinho Neto me conta também que, pouco depois que o circo e o delegado partiram da cidade, madre Perpétua foi vista conversando com uma mocinha que chegava pela primeira vez ao internato, cheirosa e bem penteada, com a saia de vinco batendo no meio das canelas:

– Minha filha, tomara que você traga de berço um linguajar castiço, polido, porque isso aqui tá de lascar! Parece um circo!