quarta-feira, 30 de novembro de 2022

Corações indomáveis

Quando menino, tinha medo de almas. Não de “anjinhos”, como se dizia no Sertão paraibano, onde todo ano centenas de crianças eram enterradas antes dos sete anos de idade. A diarreia e a subnutrição deixavam-nas só ossos, olhos e orelhas.

Não corria esse risco. Filho de bancário, dispunha o suficiente para viver sem assombrações. Medo, mesmo, só de almas penadas de adultos. 

Fui daqueles que viviam com o nariz escorrendo pelas calçadas das ruas onde morei, nu cintura acima, procurando o que aprontar enquanto não estava comendo, dormindo ou na escola. Ser um de nove irmãos de uma família remediada me deu o bônus (e o ônus) da quase invisibilidade perante uma mãe espremida por afazeres domésticos.

 

Álbum de família

  

Não sei de onde vinha o medo. Sei que, toda noite, antes de pegar no sono, tremia debaixo do lençol numa rede. No quarto iluminado apenas pelo luar, implorava aos céus que não me aparecessem com seus inconfessáveis propósitos.  

 

Mas nunca esbarrei em almas nas madrugadas em que muriçocas sedentas brigavam contra a espiral Sentinela (sem falar dos resmungos, entre provocantes e desafiadores, de gatas no cio, no telhado), dando o tom da sinfonia noturna até os meus 10 anos. 

 

Um dia, passei a desconfiar de que almas, na verdade, nunca existiram. De que todos os seres vivos, inclusive os pés-de-algaroba, as moscas e os calangos, ao morrerem, retornariam ao mesmo lugar incerto de onde vieram. A exceção, talvez, foi a cachorra Baleia, da obra "Vidas Secas" (Graciliano Ramos), que, ferida de morte, desejou dormir. “Acordaria feliz, num mundo cheio de preás”.

 

Acabei criando uma linha direta com o dono do tempo, a fonte primária de tudo (mesmo sem saber ao certo do que se tratava). Sem intermediários. Nem mesmo a beata que me preparava para a primeira comunhão, ou a professorinha que me ensinou o bê-a-bá e que, do nada, um dia sumiu sem adeus em sua primeira e única gravidez. 

 

O desinteresse em intermediários aumentou quando conheci o vigário da paróquia de Santo Antônio, na cidade de Patos (PB). Ele, para mim, tinha um hábito incompatível com a batina: abater arribaçãs – ave migratória, maior que uma rolinha, que durante o inverno voa para lugares mais quentes –, a tiros de espingarda, em caçadas nas manhãs de sábado.

 

De berço nobre, elegante, extrovertido, na minha enxerida opinião o padre tinha também um olhar aceso para toda mulher bonita que aparecia nas missas aos domingos. Só mais tarde, já taludo e longe dali, descobri que aquilo era o que os escritores (e os felinos no telhado, imagino) traduzem como lascívia e sedução. Mas teria sido apenas coisa da cabeça de menino curioso, atento aos rumores paroquiais envolvendo o exterminador de arribaçãs.

 

Depois da mudança com minha família para Alagoas – fora, portanto, do alcance da mira do pároco –, soube que ele transitou com desembaraço na cena política, chegando a ocupar a prefeitura municipal de uma cidadezinha próxima, além de exercer mandato de deputado estadual por quatro anos. Tinha um potencial que não poderia ser desperdiçado, via-se desde o começo.

 

Soube ainda que, por causa de um bingo para levantar fundos em favor da paróquia – autorizado, nos tempos da redentora, pelo poderoso Ministério da Justiça – , o vigário, que escondia no sob a batina um revólver para defesa pessoal, comprometeu a liturgia do cargo: ao receber voz de prisão por seguir cantando as pedras do jogo, cobriu de murros e tapas o juíz de Direito que determinara a suspensão do evento.


Mas o governador do Estado, reconhecendo o peso sociopolítico do representante divino na área e o abuso de autoridade do juiz, resolveu o conflito rapidinho: afastou o magistrado de suas atividades.

 

Rezavam pelo mesmo rosário. Política e religião, religião e política, mistura explosiva com que se captura em proveito próprio as paixões alheias.

 

No início deste mês, o pastor da Igreja Universal do Reino de Deus e dono do Grupo Record discursou sobre fé e perdão, citando o presidente da República recém-eleito. “Deus fez a vontade Dele. Só perdoando... A sua fé não vai valer de nada se você não perdoar... O diabo quer exatamente isso. Que o Brasil fique com ódio... Você não precisa sentir para perdoar, o perdão é uma atitude pensada, racional... Se esperar sentir no coração a vontade de perdoar, não vai perdoar nunca, porque o coração é indomável...” 

 

Pelo visto, o indomável dele não dispensa o generoso orçamento de publicidade das empresas públicas. Ou, quem sabe, aí estaria apenas a modernização da compra e venda de indulgências da Idade Média. Uma espécie de Pix-perdão.

 

O meu, no entanto, segue dispensando intermediários na linha direta com o dono do tempo, fonte de onde tudo emana e para onde tudo se encaminha. Mas não tenho pressa em provar nada!

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Veja bem...

Sexta-feira passada, conversando numa live com Dedé Dwight, que ilustrou com belas imagens o livro “Frestas” (Fontenele Publicações), ele me perguntava sobre o que me levou a escrever e compartilhar textos neste espaço criado há quatro anos, depois de 40 anos no ofício bancário.  

 

Dona Artemy, folheando "Frestas"

Respondi ao filho de Dona Artemy que não sou (nem pretendo ser) um especialista em gramática ou em técnicas de redação. Talvez, por ter prestado bastante atenção ao que escreviam alguns colegas de trabalho, e ter sido leitor compulsivo de O Pasquim (em especial dos textos de Millôr Fernandes, Henfil, Ivan Lessa, Jaguar e Paulo Francis), aprendi a redigir melhor, ainda que tudo continue muito intuitivo, como “tocar de ouvido” sem conhecer teoria musical.

 

Reconheço que li menos do que deveria, mas tenho visto e ouvido lugares incomuns,  estranhas construções mesmo a olhos e ouvidos menos exigentes como os meus. E antes que a comunidade linguística me corte o pescoço ou me condene à fogueira dos estúpidos – depois destas linhas, meu caro leitor! –, espero que ela releve e tome apenas como um resmungo de um galo velho metendo o bico onde não é chamado.

 

Não me refiro a construções  como “recordar o passado”, “prever o futuro”, “elo de união”, “subir para cima, “sair para fora”, “descer para baixo” ou “entrar para dentro”. Essas asneiras, contudo, têm o condão de nos provocar terríveis dores visuais e auditivas, e a ciência ainda deve à humanidade um colírio e uma solução otológica para torná-las menos incapacitantes. 

 

Minha rabugice lateja é com outras bobagens que tentam me enfiar goela abaixo, como jargões fardados do tipo: “O elemento empreendeu fuga” (fugiu?). “O comparsa trajava... (nunca vestia!). Ou, “O meliante não resistiu e veio a óbito” (Se morreu, não tinha mesmo como resistir). Ė dose pra mamute!

 

Deve haver um bom motivo para o uso da expressão “respeito à pessoa humana”. Juro pelo cachimbo da parteira que me puxou que nunca encontrei na vida uma pessoa canina ou suína. Claro, nos anos 90 houve o caso da cadela do ex-ministro Magri, "um ser humano como qualquer outro", mas eu não cheguei a conhecê-la. Já vi, isto sim, muito cachorrão em suas relações desumanas. Ou porco, quando, por exemplo, se senta à mesa e chafurda tudo. Mas não é disso que se trata.

 

Essa coisa de “pessoa humana, aliás, é tão comum pelo mundo afora que na Declaração dos Direitos do Homem, onde escrito “na dignidade e no valor da... “, lê-se human person no Inglês, personne humaine no Francês, persona humana no Espanhol epersona umana no Italiano. Sem falar no que está escrito em documentos oficiais de ONU, OMS, Unesco, ou no título de milhares de livros jurídicos e religiosos. 

 

Como não me enxergo cachorro nem porco (ainda!), quem sabe não passo de uma pessoa equina – uma espécie de cavalo de desfile, trotando e relinchando para o palanque que me vê passar.

 

A obsessão por certos termos parece uma cachaça para advogados, padres, pastores, políticos, jornalistas, locutores e outros que lidam com a palavra. “Todos são unânimes em reconhecer”, dizem uns. Pergunto: Teria como uma unanimidade não envolver a todos? “Mas isso é regra geral”, dizem outros. A regra deveria ser parcial? “São pequenos detalhes”, muitos dizem. Ora, existem grandes detalhes? 

 

Até você, leitor, um dia já usou a expressão “Veja bem”. Quem recorre a essa espécie de fôlego reflexivo, antes de dar uma resposta, na verdade quer enrolar quem pergunta. Não quer que veja coisa nenhuma. 

 

Por exemplo: o marido certificando-se de que a esposa comprou aquela bolsa de R$ 5 mil.

– Você teve coragem?

– Veja bem... – ela responde (leia-se: comprou!).

 

Ou a esposa querendo saber se ele chegará mais cedo em casa, adiando o chope com os colegas após o trabalho:

– Tô esperando, hein?!

– Veja bem... – ele diz (leia-se: vai cair na farra!).

 

E ninguém está livre do pecado. Andei relendo alguns textos que escrevi e, confesso, descobri construções imperdoáveis:

 

– “Pra dizer a verdade...” – Ora, então eu sou mentiroso? Tenho que avisar quando for pra valer, sério...

 

– “Pra começo de conversa...” – Por acaso, eu estaria no final da prosa?

 

– “Eu, se fosse você...” – Peraí! Se não sou você, nunca vou raciocinar como se fosse!

 

– “Não dou o braço a torcer...” – Alguém já deu? Se deu, a torção pode ter deixado o membro bem dolorido.

 

– “Sendo bem sincero...” – Será que, no geral, eu não passo de um fingido?

   

Estou seguro de que você também já ouviu alguém dizer que “isso é sopa no mel”? Quem inventou essa expressão tinha o paladar, no mínimo, duvidoso. Não provo uma colher dessa mistura nem com um pão francês quentinho. 

 

Mas, veja bem... Se você achou graça no que leu até aqui, saiba que algum sabichão da comunidade linguística poderá lhe pedir para tirar o sorriso dos lábios, dizendo que exagerei. Bem, de onde mais poderia tirar o sorriso? Das orelhas? Das sobrancelhas?  

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

A caipirinha derramada

Você já parou pra pensar como seria uma Disneyworld por aqui? Talvez algum religioso endinheirado já tenha pensado nisso, mas faltou fé no retorno da grana a ser aplicada e optou por investir em campanhas políticas de terceiros. Ou viu que não seria fácil convencer seguidores, por mais fanáticos que sejam, a reajustarem o dízimo.

 

Titular do delírio etílico, escolho o local onde se desenrolaria a história: aquele que no período colonial era chamado de Nova Lusitânia ou Capitania de Pernambuco do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, abrangendo os territórios dos atuais estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. 

 

Seria entre as praias de Pajuçara e do Gunga, onde você, ao pôr do sol, mergulharia em águas mornas, degustando uma caipirinha socada no açúcar mascavo, com tira-gosto de agulhinha frita, ouvindo pérolas instrumentais da obra de Djavan como “Oceano”, “Só eu sei”, “Um amor puro” ... 

 

Claro que Mickey e Pato Donald não seriam os personagens principais. Pateta, tampouco, eis que não se distinguiria da multidão. As estrelas seriam Chicó e João Grilo, extraídas dos folhetos de cordel para as proezas da obra “O Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, a figura mais ligada à nordestinidade que já existiu (“eu não troco meu oxente pelo 'ok' de ninguém!”).

 

Chegando lá, você não veria o castelo de Cinderela no centro do Magic Kingdom, mas sim uma escultura do tamanho do Cristo Redentor, reproduzindo a tela “Retirantes”, de Portinari, obra inspirada no romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, sobre uma família de sertanejos tangida pela estiagem. 

 

“Retirantes” - Cândido Portinari

E um chato que me escuta, da mesa ao lado no boteco, pondera que ficaria melhor se a escultura espelhasse o “Patriota do Caminhão” (ou o “Viking do Capitólio verde-amarelo”), o manifestante de Caruaru inconformado com o desfecho das últimas eleições presidenciais que foi visto sobre o para-choque, agarrado ao para-brisa de um veículo, cantando, quem sabe, “eeeu/ sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amooor...” A ciência nos deve uma boa explicação acerca do cérebro desse rapaz.

 

Não esculhambemos a ideia no nascedouro, por favor! "Quem é você para derramar meu mungunzá?!" De novo, se o delírio etílico é meu, prefiro a homenagem ao velho Graça e a Portinari.

 

Pois bem. Afora os brinquedos clássicos – carrossel, montanha-russa, roda gigante –, a “Mandacarulândia” permitiria a você, no mínimo, quatro experiências memoráveis:

 

Quilombo dos Palmares – Um simulador replicaria o que aconteceu na Serra da Barriga, na Mata alagoana. Você lidaria com muita água, sol, ventos e cheiros, fugindo com escravos das fazendas de cana-de-açúcar. Pelo caminho, enfrentaria capitães-do-mato e feitores ávidos por devolvê-los ao pelourinho. Cada obstáculo superado seria premiado com guloseimas à base de banana, batata-doce, feijão de corda, milho e tapioca, além de pescados e carnes de galinha de capoeira e bacorinho. No final, faria uma selfie ao lado da escultura em tamanho natural de Zumbi, à beira do chamado abismo civilizatório que nos distingue das principais nações do mundo.

 

Senzala & Casa-Grande – Num trem-fantasma, você colocaria óculos 3D e mergulharia na obra clássica de Gilberto Freyre. Veria que, diferentemente daquilo que foi escrito no início do século passado, a elite branca nunca enxergou como um valor cultural brasileiro a miscigenação com negros e índios, embora a Igreja, diante da escassez de brancas-de-neve, tenha incentivado o casamento de portugueses com indígenas (jamais com negras). Veria também a origem de nossa sem-vergonhice – o famoso jeitinho, que não mais engana ninguém – e do exagero atribuído à sexualidade de indígenas e escravos. E as raízes da opressão contra a mulher, onde machões cultivavam o sentimento de posse, ora refletido no fato de sermos o 5º país com maior taxa de feminicídios.

 

Cabocla e os 70 anões – Em ligeira alusão à origem da legítima Disneyworld, outro simulador exploraria imagens do Cânion do Xingó num jogo onde uma rainha malvada, com ciúmes da beleza de Maria Bonita no esplendor de seus 45 anos, manda decapitá-la. Mas descobre que ela não morreu: estaria amasiada numa grota com Lampião e mais 70 anões do orçamento secreto do Reino de Mandacarulândia. 

 

Ondas Eternas – Numa tenda acústica, você, após duas gotinhas de um colírio alucinógeno, enxergaria cada movimento do grande Zé Ramalho, só de chapéu de couro e alpercatas, surfando ondas que viriam como gotas em silêncio, derrubando homens entre outros animais, devastando a sede dos matagais, devorando árvores, pensamentos, palavras... 

 

Daí se mete novamente o chato do boteco, agora entornando o meu copo sobre a mesa. E sugere outra  atração, inspirada em “Marimbondos de Fogo”, obra que levou à ABL o poeta Zé Sarney – engraçado, grandes nomes como Drummond, Graciliano e Verissimo, nunca concorreram à Academia. Deve haver alguma lógica nisso! Sobre o livro do maranhense, aliás, referiu-se Millôr Fernandes como “aquele que quando você larga não quer mais pegar”. 

 

Melhor ir pra casa que a ressaca será cruel. Não vale a pena chorar sobre a caipirinha derramada. Não ia dar certo mesmo. Mas seria interessante!

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O direito de cochilar

Eu não notei, a princípio. De fato, ele tinha atributos para virar um estelionatário de primeira grandeza, como tanta gente que circula por aí leve, livre e operante. Poderia, a vida inteira, desfrutar de grana, poder e glória.

Ao pé da letra, estelionatário é aquele que consegue para si e os seus uma vantagem ilícita, em prejuízo alheio, via artifício ou outro meio fraudulento qualquer, de emissão de cheque sem fundos a falsificação de documentos. 


Se descoberta, a punição prevista no artigo 171 do Código Penal provoca riso e estimula a reincidência: apenas cadeia de um a cinco anos e multa, irrisória, muitas vezes.

 

Quando criança, além de preferir cadernos de caligrafia a tabuadas, ele curtia desenhar a mão livre. Reproduzia quadrinhos extraídos de gibis de Tarzan, Tex Willer e Tio Patinhas, usando lápis e folhas de caderno de desenho, sem borracha. Mais adiante, captando expressões faciais de fotografias. 

 


De tanto ver o pai assinar papéis e fichas gráficas que levava para casa, prorrogando a jornada de trabalho, o filho percebeu que não teria dificuldade em rubricar por ele um boletim escolar ou um bilhete à professora justificando a ausência numa quarta-feira qualquer em que fosse mais negócio se juntar aos colegas para jogar futebol, apanhar papa-capins no alçapão ou pescar jundiás e piabas no rio de sua meninice. 

 

Mas nasceu curioso demais. Tomou gosto por ouvir histórias contadas pelas professoras e guardava o que escutava a cadeado e nó cego, para não perder tempo decorando livros na hora de brincar.

 

Acabou aprovado com certa facilidade no temido Exame de Admissão – espécie de “vestibular” que havia para ingressar no Ginásio. Dali para frente, aí sim, com as letras se misturando aos números nas questões algébricas, bateu alguma preocupação, mas escapou ileso, sem sequelas.

 

Órfão de pai, ele começaria cedo a trabalhar. Não completou três semanas e já se familiarizou com o jeitão de rubricar documentos de alguns “chefes”. A curiosidade e o pendor para riscos e rabiscos gritava alto.

 

Com uma máquina de escrever, poderia provocar “briga de cachorros grandes”, caso se dedicasse às futricas e rasteiras inerentes à malícia do mundo corporativo. Bastaria espalhar que Fulano era ladrão; Beltrano, corno; ou Sicrano, dedo-duro da ditadura. Boatos viralizam nesses ambientes desde a Revolução Industrial.

 

Mais adiante, quem sabe, poderia criar partidas contábeis ou ordens de pagamento fictícias, e fazer transferências espúrias. Repartiria o resultado com comparsas mais frágeis socialmente, feito um Robin Wood brazuca. 

 

Quanto à lavagem do dinheiro, nem precisaria recorrer a offshore no Caribe, nas Ilhas Virgens ou na Suíça. O paraíso fiscal seria aqui mesmo, sob o céu e o sol do lado de baixo da Linha do Equador.

 

Faltava a ele, no entanto, um pré-pré-requisito crítico à prática do ofício: a índole para a coisa. O que tem de ser nem sempre tem essa força toda. Quem o protege e guarda é esperto, não brinca em serviço, nunca se distrai, não cochila nem depois do almoço.

 

Com o andar da carroça pelos descaminhos dos anos, uma hora acabaria enveredando pelo universo político. Despontaria no submundo do crime pra lá de organizado com mandato parlamentar e imunidade legislativa.

 

Chegando lá, com gabinete cheiroso, água gelada, cafezinho e uma tropa de asseclas, logo aprenderia que, para ser instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito, é necessário um certo número de assinaturas no requerimento de criação. E que bastaria ser subscrito por um terço dos membros do Congresso Nacional para a CPI ser criada. 

 

Para um craque, seria moleza inserir algumas assinaturas de pessoas que, diante de dossiês robustos sobre a vida pregressa de cada uma, não teriam como negar a legitimidade dos garranchos sobre a proposta. Tudo muito simples, sem uma gota de sangue derramada durante a liturgia de convencimento.

 

Depois, lavaria as mãos. As lideranças do partido cuidariam de ameaçar, coagir, chantagear, constranger e extorquir os alvos potenciais a serem atingidos pelos resultados da CPI, atos esses que nunca seriam imputados a ele, um humilde parlamentar oriundo de uma região onde "se o gado morrer, o carrapato passa fome", como disse outro dia uma emergente preconceituosa, moradora do Rio de Janeiro, em sua inconformada viuvez com o desfecho das últimas eleições.

 

Ficha limpa, o anti-herói, até então improvável, mais à frente estaria apto a alçar voos mais altos, com pós-doutorado em manipulação de otários e trambiques correlatos.

 

Se nada disso vingasse, poderia partir para o exercício de uma profissão ainda não regulamentada, escorada no exercício vocacional da fé, embora seja ilegal usar a estrutura de templos religiosos para coagir fiéis a votar “certo”. A lei não “pegou” por aqui.

 

Sim, meus caros leitores e leitoras, o cara da cabeça branca que agora vejo no espelho teve tudo para virar um respeitável estelionatário. Poderia agora deitar em berço esplêndido, com grana, poder e glória. Mas foi tão incompetente quanto cada um de vocês. 


Nunca quis abrir mão do direito ao cochilo da tarde e de poder acordar sem saber onde está nem que dia é. Apesar dessa gente que circula por aí leve, livre e operante.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Melhor deixar pra lá

Outro dia dei com os olhos numa notícia na internet que me deixou bastante curioso: “Wanessa canta música romântica de Katy Perry para Dado a caminho de retiro tântrico”.

 



Antes de saber o que seria retiro tântrico, quis conhecer melhor as figurinhas citadas e descobri que Wanessa, 39 anos, é cantora e compositora, cria da dupla Zezé de Camargo e Luciano. Dado, 42 anos, de profissão incerta, ignorada e não sabida, é filho de grandes artistas: Carlos Eduardo Dolabella (falecido) e Pepita Rodriguez. E Kate Perry, bem, não vem ao caso. Ela só entrou no caso com a música romântica.

 

“Mais não informo porque não me foi perguntado”, diria o sábio Google, deixando nas entrelinhas, entretanto, que o mencionado garotão puxara cadeia por conta de agressão física e insultos a ex-esposas. Na aldeia do culto à misoginia, não falta quem diga que elas fizeram por merecer. Ou que ele tem boa chance de uma carreira política de sucesso.

 

Logo me veio à cabeça coisas indizíveis sobre o programa dos pombinhos apaixonados. Nem sei se tenho querosene na lamparina para clarear certas modernidades socialmente aceitas à revelia do que pensam ogros como eu. Mas imaginar é livre, e você nunca é confrontado sobre isso.

 

Num rasgo de devaneio, imagino meu avô, o velho Zé de Brito Jurema, espécie de clone analfabeto, carrancudo e matuto de seu genial conterrâneo Ariano Suassuna, a desmontar de sua égua defronte à casa de chão batido em que morava, no Brejo paraibano, fazendo um curioso convite a minha avó Carmelita:

– Mais tarde, vosmecê quer ir comigo num retiro “não-sei-o-quê-lá” ali no sítio do outro lado do rio?

– Que marmota é essa, Zé? Tá me achando com cara de quenga? Isso parece negócio do Tinhoso ou de comunista safado!

– Oxente, mulher, o dono do sítio é gente boa, meu amigo. Deve ser coisa de primeira…

– Pois vá vosmecê com sua égua!

 

Diante de minhas conjecturas, o velho inspira fundo, cerra os dentes e pede de joelhos ao Criador para reencarnar de novo. Quer pegar o netão aqui num canto de cerca para levar uma prosa de pé-de-ouvido, seguida de uns croques e umas quatro lapadas no espinhaço, de cinturão ou chibata.


Desisto. Melhor deixar isso pra lá.

 

Confesso que não me sinto confortável em pedir ao Criador que me dê a oportunidade de experimentar essas saliências modernosas de hoje em dia. Prefiro, por exemplo, tomar chá de hortelã da folha miúda com roscas de farinha integral, às quatro da tarde, sentado no sofá ao lado de minha velha namorada, comentando cenas do excelente seriado This is us (Amazon Prime Video).

 

Ele, certamente, ficaria chateado comigo e se recusaria a admitir que me fez à Sua imagem e semelhança. Por coisa bem mais simples (uma maçãzinha de nada, no lanche), aliás, ficou bravo com Adão, a ponto de expulsá-lo do Paraíso com Eva e a criançada, no primeiro despejo extrajudicial de que se tem notícia. Está claro que a fúria de Caim veio daí!

 

No entanto, com minha mania de associar tudo aquilo que vejo, escuto, provo ou toco a canções populares, ao reler a notícia desconfiei de que retiro tântrico não seja coisa tão nova assim. 

 

Há quase 30 anos, a banda Mamonas Assassinas trouxe ao lume (como dizem nossos irmãos lusitanos) a ingênua Vira-Vira, com sotaque e tudo, cujos versos nos permitiam fechar os olhos e imaginar, mesmo com carência de detalhes, o que estaria acontecendo numa casa portuguesa (ouça aqui).

 

A letra de Vira-Vira foi inspirada numa anedota do inesquecível Costinha (1923–1995). Conta a história de Manoel, um gajo convidado para uma espécie de retiro da época. Por não saber exatamente do que se tratava, ele pediu a Maria, sua esposa, que o representasse no encontro. Na volta, toda dolorida, a mulher acabou sendo vítima de assédio moral (gozação) por parte do marido.

 

Na dúvida se devo ou não escrever sobre o assunto, achei prudente ouvir uma especialista no assunto, por telefone. Ela me diz que retiro tântrico nada mais é do que um encontro de pessoas em imersão transcendental num lugar aconchegante e silencioso, por alguns dias, onde cada uma se reconecta com sua essência, com as fontes primárias geradoras de vida, recarregando as baterias na base de meditação profunda e massagens (inclusive nas partes íntimas, com todo respeito, claro!). 

 

Tudo indica ser algo em linha com “Mens sana in corpore sano”, secular citação latina do poeta romano Juvenal. Às vezes as pessoas descrevem de forma rebuscada as coisas mais simples.

 

Ainda assim, resolvi deixar isso pra lá, nada escrever para não criar constrangimentos em almas mais sensíveis. Vai que uma delas, mais afoita, se anima e pega uma virose nessas aglomerações. Eu não me perdoaria.

quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Uma hora a gente aprende

Pouco antes das oito da manhã de sexta-feira passada, ele varria o calçadão da orla da Ponta Verde, em Maceió. Do peito e da garganta surgiram vibratos poderosos ao cantar um antigo sucesso de Roberto Carlos: “... Como vai você/ Eu preciso saber da sua vida...”

 

Imagem: arquivo pessoal

Não sei o que o mexia com ele. Se a lembrança da mulher amada, que o teria largado em busca de novas emoções, ou estaria em casa à sua espera, cuidando das crianças. Se o time do coração, no sufoco para garantir a permanência na série B do Campeonato Brasileiro, ou se apenas jogava ao vento o seu canto vibrante.

 

Sei que sorria, e qualquer um sabe que a música é capaz de reproduzir, da forma mais perfeita e acabada, a dor que rasga a alma de alguém ou a magia de um sorriso que derrete em questão de minutos rancores incrustados. 

 

Em dado momento, ele fez da vassoura um microfone de pedestal, como se o sol que atiçava o alaranjado de sua roupa fosse os refletores de um palco imaginário, diante de uma plateia apressada. Ainda assim, escorriam alegria e suor da testa às dobras do pescoço. 

 

Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz. 

 

Duvido que tenha tomado um café da manhã decente (quase certo de que não!), antes de pegar no cabo da vassoura e ir à luta. Ou se sabe a hora em que irá lavar as mãos e se sentar numa mesa para engolir a primeira colherada de arroz, feijão, farinha e uma improvável fonte proteica (um ovo quebra o galho nessas horas).

 

Pela leveza do semblante, duvido que viva magoando feridas de uma infância dura, de poucas letras e números, e quase nenhuma esperança. Ou que culpe os pais pelos dissabores da correria de hoje na busca por merecer o salário de fome, no desencontro entre o feijão e o sonho. 

 

Duvido ainda que tenha consciência de que mais de 130 anos já se passaram desde a abolição da escravatura e, mesmo assim, o chão em que veio ao mundo continua longe de virar uma democracia racial. 


Nem desconfia, imagino, de que as marcas da exploração que durou mais de três séculos e a falta de políticas públicas de reparo seguem refletidas no nível de mal-estar da maioria da população, composta por pretos e pardos (quase 60%). 

 

Sei que o tema merece reflexão mais profunda. Mas hoje quero falar apenas de um alagoano que encontrei por acaso, sorrindo e cantando Roberto Carlos, quando talvez devesse cantar Belchior de meio século atrás: “... Quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês...”

 

Deste alagoano que, certamente, pouco entende do sistema democrático e de como funciona, da independência e autonomia entre os três poderes, da importância dos partidos políticos e do debate de projetos no Congresso Nacional. Isso deve ser coisa de brancos e ricos. Tenho dúvida, aliás, sobre se estes últimos de fato entenderiam, pois, antes de entender, é preciso querer.

 

Deste alagoano que, tudo indica, não é daqueles que apreciam o patriarcado secular existente por aqui, que vê como seres inferiores os membros pertencentes a outras "minorias" que não a sua. Daqueles que enxergam o desemprego dos outros, antes de tudo, como preguiça, falta de garra, indolência vocacional e hereditária.

 

Quem canta e sorri desse jeito não pode ser do mal, não pensa assim. Sei disso porque tenho o hábito de guardar a ferrolho e cadeado a primeira impressão sobre as pessoas que conheço, ainda que me frustre mais do que gostaria, sobretudo quando lido com algumas almas confusas, pertencentes às classes mais favorecidas.

 

Segui pelo calçadão, ruminando o meu saco de interrogações sobre a tolice que é me importar (e sofrer) com a opinião alheia sobre o que fiz ou deixei de fazer. 

 

Na volta, não resisti e pedi ao “cantor” para fotografá-lo, como retrato do bem-estar. Parecia que a alma de Drummond estava ali, lembrando: “eu não avisei que ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade?”. Ou a de Verissimo, o pai, garantindo que “felicidade é a certeza de que a nossa vida não está passando inutilmente.” 

 

Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz. Até um cabo de vassoura (inclusive de uma bruxa) e uma canção que se ouvia no rádio antigamente têm a magia de despertar coisas belas e adormecidas. 


Leva tempo, mas uma hora a gente aprende que é estupidez achar que os outros têm o poder de nos fazer infelizes para sempre.


quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Dever de casa

Achei interessante uma tarefa escolar de Camilinha, filha adolescente de um amigo meu: entrevistar um idoso que não seja de sua família para saber quais seriam as “12 coisas mais desagradáveis da vida”. Na próxima semana, cada aluno da turma escolherá uma das respostas, para reflexão em sala de aula sobre como lidar com os mais velhos.

 

É incomum o estímulo à conversa entre jovens acerca do lado maçante da vida e suas múltiplas formas de atingir os mais próximos do desembarque. Se der certo, pode acelerar a maturidade deles com o exercício da empatia, de colocar-se no lugar dos outros.

 

Sem muito pensar, e para ajudar a menina linda e bem-educada a fazer, já na sexta-feira, o dever de casa previsto para o fim de semana, apontei “coisas” que me aborrecem bastante, aqui dispostas em ordem meramente alfabética porque troco uma pela outra e dispenso troco. São elas: 

 

– Andar de bicicleta.  Existe uma incompatibilidade séria entre o selim e o último osso da minha coluna vertebral. Outro dia, um amigo ponderou que, com o tempo, a gente aprende a aliviar a área sustentando nas pernas expressiva parte do peso. Mas sob a pressão de meus irredutíveis 98 kg, retruquei numa boa: selim no cóccix do outro é refresco! 

 

– Atrasar-me para um compromisso. Há quem diga que ser pontual e gostar de pia limpa e cheirosa é coisa de velho. Concordo e acrescento lençol e travesseiro. Porém a sala de espera do consultório médico (ou qualquer outra do gênero) provoca mal-estar quinze a vinte minutos depois do horário combinado no pressuposto de que as partes envolvidas merecem mútua consideração.  

 

– Caminhar na areia fofa da praia, na maré cheia, com as panturrilhas doendo. Outro dia, vi o futevôlei na orla e, de repente, senti que a bola vinha pelo alto em minha direção. Pensei em amortecê-la no peito e, com um chute certeiro de peito de pé, devolvê-la aos peladeiros, deixando-os de queixo caído. Mas a bola, ingrata, talvez chateada com o meu sumiço, fugiu sem aceitar o afago de um antigo amor. Humilhado, tive a melhor demonstração das diferenças entre teoria e prática, entre o que sou e o que fui.

 

– Conviver no trabalho com quem se acha a rolha da primeira garrafa de vinho servida na Santa Ceia. Que só enxerga os outros de cima para baixo, quase sempre com um debochado risinho sobre qualquer comentário que conflite com seu ponto de vista.

 

– Faltar água no chuveiro (ou energia, nos dias mais frios em que o banho morno é imperativo) assim que a gente coloca shampoo no que resta de cabelos, isso depois de haver largado no roupeiro camisa, bermuda e cueca. 

 

– Ler um romance (ou uma crônica, para os incapazes de ir além disso) realmente marcante, daqueles que nos remetem à invejosa consulta diante do espelho: “Por que não pensei nisso antes?” 

 

– Lidar com gente que se diz franca, leal, sincera demais, como se isso fosse salvo-conduto para dizer tudo o que vem à cabeça, despreocupada se machuca ou não aos outros. Dá vontade de falar: “Nada disso! Isso é ser rude, desagradável, mal-educada”. Não digo apenas para não ser incoerente.

 

– Participar de reuniões longas, com gente que fala pelos joelhos e cotovelos, dá voltas e nunca chega a lugar algum. Coisas simples são ditas de forma tão complicada que se tornam enfadonhas e insultam a síntese e a objetividade que devem nortear a relação entre seres pensantes. 

 

– Passear a contragosto pelos shoppings lotados, na hora do cochilo após o almoço, entrando aqui e ali, observando vitrines, apenas para não contrariar a cara-metade. Os lojistas desses templos de consumo não fazem ideia de quanto lucrariam se criassem espaço de relaxamento com redes de algodão, penumbra, música instrumental, água gelada e cafezinho, destinado à restauração de maridos em trânsito.   

 


– Relacionar-se com uma pessoa demasiadamente medrosa, avessa a qualquer novidade sob o argumento de que valoriza aquilo que “sempre deu certo”. Que não quer saber de nada que traga algum desconforto em sua miserável rotina, mas se envenena de inveja quando alguém a seu lado se dá bem pela coragem de pular o córrego. 

– Rever, sem poder atacar a faca e garfo, iguarias que remontam a um tempo em que quase tudo era permitido, como: buchada de bode, pastel com caldo de cana, churrasquinho de rua, quebra-queixo, sarapatel, torresmo etc. 
 

– Sentir aquela cólica crescente e trepidante numa manhã de ressaca, no trânsito caótico, sem chance de um pit stop nos próximos dez minutos. Ainda que se evite lembrar das propriedades emolientes do azeite de dendê da moqueca da noite anterior.


 

 

Soube, há pouco, que a escola resolveu suspender a atividade objeto da entrevista de Camilinha. Boa parte de seus colegas não fez o dever de casa. Natural. Nessa idade, todo mundo têm “coisas” mais agradáveis a fazer no fim de semana.

 

 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Ajoelhou? Tem que orar!

No calor das paixões que vêm de dentro, tem muita gente fazendo promessas ousadas para que seu clube alcance um objetivo como a conquista do título, o acesso à divisão superior ou a fuga do rebaixamento. A ansiedade é enorme. Conta-se, como na bela metáfora de Alceu Valença, que um novo tempo, mais brilhante, peito nu, cabelo ao vento, estaria por chegar. 

"Um homem é um homem e um cascabulho de jaca é um cascabulho de jaca!", dizia um delegado de polícia que conheci em Pernambuco. E arrematava: "Um homem não tem que prometer nada a ninguém, mas se prometer, vai ter que cumprir". 

 


Duas semanas atrás, o equatoriano Kevin Josué Mina Quiñónez, jogador de futebol que atua no Club Desportivo Real, de Santa Cruz de La Sierra, assumiu um picante compromisso quanto à situação de sua equipe no Campeonato Boliviano. Contratado para “pegar em armas, se preciso for” na guerra contra o rebaixamento no torneio, o bravo guerreiro prometeu aos torcedores que cortaria o pênis em caso de queda para a 2ª divisão. 

 

"Si yo desciendo me corto el miembro!" recitou o “poeta” numa entrevista coletiva após o dramático empate de 1 a 1 diante do Real Tomayapo. Kevin Mina, inclusive, tinha acabado de balançar as redes a favor de seu clube já nos acréscimos ao tempo da partida. Falava, portanto, embriagado pela adrenalina que sacudia o seu corpanzil de 28 anos, 1,93 cm e 90 kg. 

 

Ainda bem que poupou os torcedores de maiores detalhes sobre como se dará a automutilação. Não se sabe se pretende usar bisturi elétrico, caco de vidro, peixeira afiada ou mesmo um serrote do cabo grosso para cumprir a insólita  promessa. 


Caso resolva introduzir trilha sonora no vídeo a ser veiculado nas redes sociais, o cearense Belchior, se fosse vivo, diria que, considerando o tempo de sonho, de sangue e de América do Sul, um tango argentino vai bem melhor que uma cumbia boliviana.

 

Confiante na força de seu cajado, Mina parece seguro de que evitará o golpe fatal assinalando mais gols e obtendo novas vitórias para seu time. Não está morto quem peleia, dizem alguns galegos de olhos azuis deste meu Brasil brasileiro, terra de samba, pandeiro e preconceitos mil.

 

Não sabe o corajoso Mina que, em qualquer guerra, a paz só dá as caras quando se deixa de criar expectativas sobre o que não se consegue controlar. Que é tolice supor que a cabeça de seu centroavante cavernoso será capaz de raciocinar e mexer na marcha da história independente dos demais membros (os outros jogadores do time, bem entendido!). 

 

Note-se que o Club Desportivo Real, quando da promessa de Mina, ocupava a penúltima colocação do Campeonato Boliviano e restavam apenas dez jogos para evitar a queda. E segundo os resultados do último final de semana, a situação continua inalterada. 

 

Se fosse no campeonato nacional russo ou norte-coreano, envolvendo os times preferidos de Vladimir Putin e Kim Jong-un, Mina talvez tivesse sido mais parcimonioso. Arriscaria, se tanto, o dedo mindinho de um dos pés, que aliás hoje se presta apenas a topar com mesinhas de centro, sofás e cadeiras. 


Afinal, desde que o Australopithecus afarensis, ancestral do ser humano, vagou pela África caminhando (e não se pendurando em árvores) há 3,2 milhões de anos, o dedinho do pé só vem perdendo prestígio. Como, aliás, uma certa ave da família Ramphastidae que vive nas florestas tropicais das Américas, conhecida por ter um bico longo, duro e cortante, que já fez muito sucesso por aqui.

 

Não sou oráculo para desvendar o que está vindo por aí – se fosse, estaria dando gargalhadas dos institutos de pesquisa, tão seguros quanto aqueles que ainda acreditam no tratamento precoce da covid-19 à base de cloroquina –, mas desafio aqui algumas pessoas para que também assumam, de papel passado e com firma reconhecida, compromisso semelhante ao que motivou o destemido equatoriano.

 

Começo pelo dândi Neymar, principal jogador da Seleção Brasileira, caso frustre de novo a expectativa do povão em conduzir seus “parças” à conquista do hexacampeonato mundial no Qatar. Se topar o desafio e quiser preservar seu delicado membro (para ninfetas que o viram amiúde; o duplo sentido fica por conta do leitor), basta não exagerar no cai-cai ao menor esbarrão com os zagueiros adversários, como aconteceu na Rússia há quatro anos. 

 

Deve também evitar os chiliques típicos de sua prolongada adolescência para não ser expulso quando o time mais precisar dele. E, em caso de novo fracasso, nem pensar na terceirização da culpa, atribuindo-a ao conluio de árbitros e jornalistas comunistas e invejosos.

 

Desafio também o candidato a presidente da República que venha a ser derrotado no 2º turno das eleições, seja Bolsonaro ou Lula, a encarar o mesmo autoflagelo com coragem e resignação, assumindo em cadeia nacional a promessa de Mina: "Se eu cair, corto meu membro!" 

 

Ajoelhou? Tem que orar! Ao perdedor, restará o golpe (veja bem, leitor, falo no sentido literal, cortante e republicano do termo!) fatal. Em caso de hemorragia incontrolável, não seja surpresa se no rito de extrema-unção aparecer o prestativo padre Kelmon. Nunca se sabe.

 

Ao vencedor, coitado, já se proferiu outra dolorosa sentença em caráter liminar: juntar os cacos de uma nação à beira do rebaixamento civilizatório, no vale-tudo dos insultos trocados entre os filhos de uma pátria nada gentil ultimamente. Oremos! 

 

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Não ia dar certo

Eu até me acho um sujeito decente e quase todo mundo também se enxerga assim. Reconheço, porém, que tenho certa facilidade em despertar antipatias: às vezes amanheço de mau humor, guardo fisionomias mas esqueço nomes, sou meio desatento (sobretudo quando estou na rua, “rascunhando” um texto na cabeça, sem lápis nem papel, e olho, mas não vejo, quem passa por mim).

 

Aconteceu há poucos meses, na área de embarque do aeroporto de Maceió. Vi um senhor de certa idade, nem alto nem baixo, barrigudo, cabelos de algodão, rosto largo. Lembrava um famoso médium dos anos 70, chamado Zé Arigó, mas com um bigodinho mais fino. Senti que o conhecia de algum lugar. Ele também deu sinais de me reconhecer. Parei para lhe cumprimentar, trocamos algumas palavras, enquanto eu me esforçava para localizá-lo nos desvãos da mente.


"Lembrava... Zé Arigó"

Fui ficando angustiado. Todo mundo que já viveu esse constrangimento sabe a que me refiro. Para disfarçar, tratei-o da maneira mais simpática que pude: “Que bom revê-lo, o senhor tá muito bem, corado...” Isso que a gente diz porque é como oferecer água ou chá de camomila: não faz mal a ninguém.


Depois que nos afastamos é que me ocorreu que talvez ele é que não tivesse me reconhecido. Afinal, o encontro se deu em Maceió, mas já morei no Recife, em Salvador e Brasília. E só me dissera palavras mais ou menos vagas, não me lembrava de que ele tivesse pronunciado meu nome.

 

Mais tarde, eu ainda não recordara o nome dele, mas me lembrei de alguns casos que testemunhei ou me contaram.

 

“Adentra ao tapete de madeira desta casa esta lenda viva do Sertão, este indivíduo competente… O relógio marca: três da tarde desta sexta-feira!” – assim narrou meu chefe, a imitar um lendário locutor esportivo, descrevendo a chegada, à superintendência do Banco do Brasil, daquele gerente que trabalhava no interior, mas que todo fim de semana vinha à capital, onde residiam esposa e filhos.

 

A algazarra dos que presenciaram a gozação não inibiu o visitante. Com um risinho maroto e sem deixar a bola quicar, ele emendou: "Devo ter nascido com cara de “priquito”... Todo mundo aqui gosta de mim!"

 

Quando trabalhava como caixa, no início da carreira, ao espirrar de forma mais produtiva e espalhafatosa, ele teria ouvido um cochicho entre duas mulheres que aguardavam atendimento na fila: "Esses homens são uns frouxos! Uma gripezinha de nada já derruba. Qualquer dor de cabeça acaba com a raça deles. Queria ver aguentar a dor do parto!" 

 

Ele prontamente interveio defendendo a classe, com pleno conhecimento de causa, imagina-se: "Como é que é?! Quem diz isso nunca prendeu um ovo no cabeçote de uma cangalha (artefato de madeira, acolchoado, no lombo de burro ou cavalo, para pendurar cargas de ambos os lados)!"

 

Se era espirituoso e muito inteligente, era também daqueles pessimistas ao cubo, revestidos com várias camadas de ceticismo, fonte primária de seu humor ácido. 

 

A fama de pessimista ganhou musculatura quando, apesar do histórico de boas notas na universidade, ele desistiu do curso de Engenharia sob argumento pra lá de inusitado: "No dia em que me formar, a produção mundial de cimento vai entrar em colapso!" 

 

Mais adiante, nos estertores dos anos 70, quando o Planeta vivia a expectativa da queda, em hora e lugar incertos, da “Skylab”, primeira estação orbital da NASA, confessou sua apreensão a alguns colegas de trabalho: "Sou tão azarado que é capaz dessa porra cair no quintal lá de casa!"

 

Vai ver, lia Saramago, para quem “os únicos interessados em mudar o mundo são os pessimistas, porque os otimistas estão encantados com o que há”. Ou Millôr, que registrou que “é melhor ser pessimista do que otimista, porque o pessimista fica feliz quando acerta e quando erra”.

 

Outro sinal de seu desencanto teria ocorrido numa semana em que, mergulhado até o pescoço no saldo devedor do cheque especial, contava nos dedos os dias que faltavam para sacar o salário: "Todo mundo que conheço já recebeu ou vai receber herança... Menos eu!"

 

No olho desse furacão financeiro, dizem que convenceu a esposa a cortar o orçamento doméstico de um jeito bem prático:

– Mulher, você concorda que ir ao supermercado de oito em oito dias é a mesma coisa que fazer feira pra uma semana? 

– É… Basta apertar um tiquinho…

– Então… Agora, de dois em dois meses, a gente vai ganhar uma feira...

 

Todos esses casos me vêm à cabeça, menos o nome do protagonista. Resolvo então pedir ajuda a um velho amigo, que me dá a notícia de que Santana (como pude esquecer o nome dele?) nos deixou há mais de 10 anos. Que azar, não?

 

Portanto, não o encontrei há poucos meses no aeroporto de Maceió. Ele agora desfila de alpercatas apenas na esteira de minha memória, como naquelas tardes de sexta-feira em que gozava o vago conforto de estar vivo.