quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Uma hora a gente aprende

Pouco antes das oito da manhã de sexta-feira passada, ele varria o calçadão da orla da Ponta Verde, em Maceió. Do peito e da garganta surgiram vibratos poderosos ao cantar um antigo sucesso de Roberto Carlos: “... Como vai você/ Eu preciso saber da sua vida...”

 

Imagem: arquivo pessoal

Não sei o que o mexia com ele. Se a lembrança da mulher amada, que o teria largado em busca de novas emoções, ou estaria em casa à sua espera, cuidando das crianças. Se o time do coração, no sufoco para garantir a permanência na série B do Campeonato Brasileiro, ou se apenas jogava ao vento o seu canto vibrante.

 

Sei que sorria, e qualquer um sabe que a música é capaz de reproduzir, da forma mais perfeita e acabada, a dor que rasga a alma de alguém ou a magia de um sorriso que derrete em questão de minutos rancores incrustados. 

 

Em dado momento, ele fez da vassoura um microfone de pedestal, como se o sol que atiçava o alaranjado de sua roupa fosse os refletores de um palco imaginário, diante de uma plateia apressada. Ainda assim, escorriam alegria e suor da testa às dobras do pescoço. 

 

Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz. 

 

Duvido que tenha tomado um café da manhã decente (quase certo de que não!), antes de pegar no cabo da vassoura e ir à luta. Ou se sabe a hora em que irá lavar as mãos e se sentar numa mesa para engolir a primeira colherada de arroz, feijão, farinha e uma improvável fonte proteica (um ovo quebra o galho nessas horas).

 

Pela leveza do semblante, duvido que viva magoando feridas de uma infância dura, de poucas letras e números, e quase nenhuma esperança. Ou que culpe os pais pelos dissabores da correria de hoje na busca por merecer o salário de fome, no desencontro entre o feijão e o sonho. 

 

Duvido ainda que tenha consciência de que mais de 130 anos já se passaram desde a abolição da escravatura e, mesmo assim, o chão em que veio ao mundo continua longe de virar uma democracia racial. 


Nem desconfia, imagino, de que as marcas da exploração que durou mais de três séculos e a falta de políticas públicas de reparo seguem refletidas no nível de mal-estar da maioria da população, composta por pretos e pardos (quase 60%). 

 

Sei que o tema merece reflexão mais profunda. Mas hoje quero falar apenas de um alagoano que encontrei por acaso, sorrindo e cantando Roberto Carlos, quando talvez devesse cantar Belchior de meio século atrás: “... Quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês...”

 

Deste alagoano que, certamente, pouco entende do sistema democrático e de como funciona, da independência e autonomia entre os três poderes, da importância dos partidos políticos e do debate de projetos no Congresso Nacional. Isso deve ser coisa de brancos e ricos. Tenho dúvida, aliás, sobre se estes últimos de fato entenderiam, pois, antes de entender, é preciso querer.

 

Deste alagoano que, tudo indica, não é daqueles que apreciam o patriarcado secular existente por aqui, que vê como seres inferiores os membros pertencentes a outras "minorias" que não a sua. Daqueles que enxergam o desemprego dos outros, antes de tudo, como preguiça, falta de garra, indolência vocacional e hereditária.

 

Quem canta e sorri desse jeito não pode ser do mal, não pensa assim. Sei disso porque tenho o hábito de guardar a ferrolho e cadeado a primeira impressão sobre as pessoas que conheço, ainda que me frustre mais do que gostaria, sobretudo quando lido com algumas almas confusas, pertencentes às classes mais favorecidas.

 

Segui pelo calçadão, ruminando o meu saco de interrogações sobre a tolice que é me importar (e sofrer) com a opinião alheia sobre o que fiz ou deixei de fazer. 

 

Na volta, não resisti e pedi ao “cantor” para fotografá-lo, como retrato do bem-estar. Parecia que a alma de Drummond estava ali, lembrando: “eu não avisei que ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade?”. Ou a de Verissimo, o pai, garantindo que “felicidade é a certeza de que a nossa vida não está passando inutilmente.” 

 

Definitivamente, não é preciso muita coisa para ser feliz. Até um cabo de vassoura (inclusive de uma bruxa) e uma canção que se ouvia no rádio antigamente têm a magia de despertar coisas belas e adormecidas. 


Leva tempo, mas uma hora a gente aprende que é estupidez achar que os outros têm o poder de nos fazer infelizes para sempre.


quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Dever de casa

Achei interessante uma tarefa escolar de Camilinha, filha adolescente de um amigo meu: entrevistar um idoso que não seja de sua família para saber quais seriam as “12 coisas mais desagradáveis da vida”. Na próxima semana, cada aluno da turma escolherá uma das respostas, para reflexão em sala de aula sobre como lidar com os mais velhos.

 

É incomum o estímulo à conversa entre jovens acerca do lado maçante da vida e suas múltiplas formas de atingir os mais próximos do desembarque. Se der certo, pode acelerar a maturidade deles com o exercício da empatia, de colocar-se no lugar dos outros.

 

Sem muito pensar, e para ajudar a menina linda e bem-educada a fazer, já na sexta-feira, o dever de casa previsto para o fim de semana, apontei “coisas” que me aborrecem bastante, aqui dispostas em ordem meramente alfabética porque troco uma pela outra e dispenso troco. São elas: 

 

– Andar de bicicleta.  Existe uma incompatibilidade séria entre o selim e o último osso da minha coluna vertebral. Outro dia, um amigo ponderou que, com o tempo, a gente aprende a aliviar a área sustentando nas pernas expressiva parte do peso. Mas sob a pressão de meus irredutíveis 98 kg, retruquei numa boa: selim no cóccix do outro é refresco! 

 

– Atrasar-me para um compromisso. Há quem diga que ser pontual e gostar de pia limpa e cheirosa é coisa de velho. Concordo e acrescento lençol e travesseiro. Porém a sala de espera do consultório médico (ou qualquer outra do gênero) provoca mal-estar quinze a vinte minutos depois do horário combinado no pressuposto de que as partes envolvidas merecem mútua consideração.  

 

– Caminhar na areia fofa da praia, na maré cheia, com as panturrilhas doendo. Outro dia, vi o futevôlei na orla e, de repente, senti que a bola vinha pelo alto em minha direção. Pensei em amortecê-la no peito e, com um chute certeiro de peito de pé, devolvê-la aos peladeiros, deixando-os de queixo caído. Mas a bola, ingrata, talvez chateada com o meu sumiço, fugiu sem aceitar o afago de um antigo amor. Humilhado, tive a melhor demonstração das diferenças entre teoria e prática, entre o que sou e o que fui.

 

– Conviver no trabalho com quem se acha a rolha da primeira garrafa de vinho servida na Santa Ceia. Que só enxerga os outros de cima para baixo, quase sempre com um debochado risinho sobre qualquer comentário que conflite com seu ponto de vista.

 

– Faltar água no chuveiro (ou energia, nos dias mais frios em que o banho morno é imperativo) assim que a gente coloca shampoo no que resta de cabelos, isso depois de haver largado no roupeiro camisa, bermuda e cueca. 

 

– Ler um romance (ou uma crônica, para os incapazes de ir além disso) realmente marcante, daqueles que nos remetem à invejosa consulta diante do espelho: “Por que não pensei nisso antes?” 

 

– Lidar com gente que se diz franca, leal, sincera demais, como se isso fosse salvo-conduto para dizer tudo o que vem à cabeça, despreocupada se machuca ou não aos outros. Dá vontade de falar: “Nada disso! Isso é ser rude, desagradável, mal-educada”. Não digo apenas para não ser incoerente.

 

– Participar de reuniões longas, com gente que fala pelos joelhos e cotovelos, dá voltas e nunca chega a lugar algum. Coisas simples são ditas de forma tão complicada que se tornam enfadonhas e insultam a síntese e a objetividade que devem nortear a relação entre seres pensantes. 

 

– Passear a contragosto pelos shoppings lotados, na hora do cochilo após o almoço, entrando aqui e ali, observando vitrines, apenas para não contrariar a cara-metade. Os lojistas desses templos de consumo não fazem ideia de quanto lucrariam se criassem espaço de relaxamento com redes de algodão, penumbra, música instrumental, água gelada e cafezinho, destinado à restauração de maridos em trânsito.   

 


– Relacionar-se com uma pessoa demasiadamente medrosa, avessa a qualquer novidade sob o argumento de que valoriza aquilo que “sempre deu certo”. Que não quer saber de nada que traga algum desconforto em sua miserável rotina, mas se envenena de inveja quando alguém a seu lado se dá bem pela coragem de pular o córrego. 

– Rever, sem poder atacar a faca e garfo, iguarias que remontam a um tempo em que quase tudo era permitido, como: buchada de bode, pastel com caldo de cana, churrasquinho de rua, quebra-queixo, sarapatel, torresmo etc. 
 

– Sentir aquela cólica crescente e trepidante numa manhã de ressaca, no trânsito caótico, sem chance de um pit stop nos próximos dez minutos. Ainda que se evite lembrar das propriedades emolientes do azeite de dendê da moqueca da noite anterior.


 

 

Soube, há pouco, que a escola resolveu suspender a atividade objeto da entrevista de Camilinha. Boa parte de seus colegas não fez o dever de casa. Natural. Nessa idade, todo mundo têm “coisas” mais agradáveis a fazer no fim de semana.

 

 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Ajoelhou? Tem que orar!

No calor das paixões que vêm de dentro, tem muita gente fazendo promessas ousadas para que seu clube alcance um objetivo como a conquista do título, o acesso à divisão superior ou a fuga do rebaixamento. A ansiedade é enorme. Conta-se, como na bela metáfora de Alceu Valença, que um novo tempo, mais brilhante, peito nu, cabelo ao vento, estaria por chegar. 

"Um homem é um homem e um cascabulho de jaca é um cascabulho de jaca!", dizia um delegado de polícia que conheci em Pernambuco. E arrematava: "Um homem não tem que prometer nada a ninguém, mas se prometer, vai ter que cumprir". 

 


Duas semanas atrás, o equatoriano Kevin Josué Mina Quiñónez, jogador de futebol que atua no Club Desportivo Real, de Santa Cruz de La Sierra, assumiu um picante compromisso quanto à situação de sua equipe no Campeonato Boliviano. Contratado para “pegar em armas, se preciso for” na guerra contra o rebaixamento no torneio, o bravo guerreiro prometeu aos torcedores que cortaria o pênis em caso de queda para a 2ª divisão. 

 

"Si yo desciendo me corto el miembro!" recitou o “poeta” numa entrevista coletiva após o dramático empate de 1 a 1 diante do Real Tomayapo. Kevin Mina, inclusive, tinha acabado de balançar as redes a favor de seu clube já nos acréscimos ao tempo da partida. Falava, portanto, embriagado pela adrenalina que sacudia o seu corpanzil de 28 anos, 1,93 cm e 90 kg. 

 

Ainda bem que poupou os torcedores de maiores detalhes sobre como se dará a automutilação. Não se sabe se pretende usar bisturi elétrico, caco de vidro, peixeira afiada ou mesmo um serrote do cabo grosso para cumprir a insólita  promessa. 


Caso resolva introduzir trilha sonora no vídeo a ser veiculado nas redes sociais, o cearense Belchior, se fosse vivo, diria que, considerando o tempo de sonho, de sangue e de América do Sul, um tango argentino vai bem melhor que uma cumbia boliviana.

 

Confiante na força de seu cajado, Mina parece seguro de que evitará o golpe fatal assinalando mais gols e obtendo novas vitórias para seu time. Não está morto quem peleia, dizem alguns galegos de olhos azuis deste meu Brasil brasileiro, terra de samba, pandeiro e preconceitos mil.

 

Não sabe o corajoso Mina que, em qualquer guerra, a paz só dá as caras quando se deixa de criar expectativas sobre o que não se consegue controlar. Que é tolice supor que a cabeça de seu centroavante cavernoso será capaz de raciocinar e mexer na marcha da história independente dos demais membros (os outros jogadores do time, bem entendido!). 

 

Note-se que o Club Desportivo Real, quando da promessa de Mina, ocupava a penúltima colocação do Campeonato Boliviano e restavam apenas dez jogos para evitar a queda. E segundo os resultados do último final de semana, a situação continua inalterada. 

 

Se fosse no campeonato nacional russo ou norte-coreano, envolvendo os times preferidos de Vladimir Putin e Kim Jong-un, Mina talvez tivesse sido mais parcimonioso. Arriscaria, se tanto, o dedo mindinho de um dos pés, que aliás hoje se presta apenas a topar com mesinhas de centro, sofás e cadeiras. 


Afinal, desde que o Australopithecus afarensis, ancestral do ser humano, vagou pela África caminhando (e não se pendurando em árvores) há 3,2 milhões de anos, o dedinho do pé só vem perdendo prestígio. Como, aliás, uma certa ave da família Ramphastidae que vive nas florestas tropicais das Américas, conhecida por ter um bico longo, duro e cortante, que já fez muito sucesso por aqui.

 

Não sou oráculo para desvendar o que está vindo por aí – se fosse, estaria dando gargalhadas dos institutos de pesquisa, tão seguros quanto aqueles que ainda acreditam no tratamento precoce da covid-19 à base de cloroquina –, mas desafio aqui algumas pessoas para que também assumam, de papel passado e com firma reconhecida, compromisso semelhante ao que motivou o destemido equatoriano.

 

Começo pelo dândi Neymar, principal jogador da Seleção Brasileira, caso frustre de novo a expectativa do povão em conduzir seus “parças” à conquista do hexacampeonato mundial no Qatar. Se topar o desafio e quiser preservar seu delicado membro (para ninfetas que o viram amiúde; o duplo sentido fica por conta do leitor), basta não exagerar no cai-cai ao menor esbarrão com os zagueiros adversários, como aconteceu na Rússia há quatro anos. 

 

Deve também evitar os chiliques típicos de sua prolongada adolescência para não ser expulso quando o time mais precisar dele. E, em caso de novo fracasso, nem pensar na terceirização da culpa, atribuindo-a ao conluio de árbitros e jornalistas comunistas e invejosos.

 

Desafio também o candidato a presidente da República que venha a ser derrotado no 2º turno das eleições, seja Bolsonaro ou Lula, a encarar o mesmo autoflagelo com coragem e resignação, assumindo em cadeia nacional a promessa de Mina: "Se eu cair, corto meu membro!" 

 

Ajoelhou? Tem que orar! Ao perdedor, restará o golpe (veja bem, leitor, falo no sentido literal, cortante e republicano do termo!) fatal. Em caso de hemorragia incontrolável, não seja surpresa se no rito de extrema-unção aparecer o prestativo padre Kelmon. Nunca se sabe.

 

Ao vencedor, coitado, já se proferiu outra dolorosa sentença em caráter liminar: juntar os cacos de uma nação à beira do rebaixamento civilizatório, no vale-tudo dos insultos trocados entre os filhos de uma pátria nada gentil ultimamente. Oremos! 

 

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Não ia dar certo

Eu até me acho um sujeito decente e quase todo mundo também se enxerga assim. Reconheço, porém, que tenho certa facilidade em despertar antipatias: às vezes amanheço de mau humor, guardo fisionomias mas esqueço nomes, sou meio desatento (sobretudo quando estou na rua, “rascunhando” um texto na cabeça, sem lápis nem papel, e olho, mas não vejo, quem passa por mim).

 

Aconteceu há poucos meses, na área de embarque do aeroporto de Maceió. Vi um senhor de certa idade, nem alto nem baixo, barrigudo, cabelos de algodão, rosto largo. Lembrava um famoso médium dos anos 70, chamado Zé Arigó, mas com um bigodinho mais fino. Senti que o conhecia de algum lugar. Ele também deu sinais de me reconhecer. Parei para lhe cumprimentar, trocamos algumas palavras, enquanto eu me esforçava para localizá-lo nos desvãos da mente.


"Lembrava... Zé Arigó"

Fui ficando angustiado. Todo mundo que já viveu esse constrangimento sabe a que me refiro. Para disfarçar, tratei-o da maneira mais simpática que pude: “Que bom revê-lo, o senhor tá muito bem, corado...” Isso que a gente diz porque é como oferecer água ou chá de camomila: não faz mal a ninguém.


Depois que nos afastamos é que me ocorreu que talvez ele é que não tivesse me reconhecido. Afinal, o encontro se deu em Maceió, mas já morei no Recife, em Salvador e Brasília. E só me dissera palavras mais ou menos vagas, não me lembrava de que ele tivesse pronunciado meu nome.

 

Mais tarde, eu ainda não recordara o nome dele, mas me lembrei de alguns casos que testemunhei ou me contaram.

 

“Adentra ao tapete de madeira desta casa esta lenda viva do Sertão, este indivíduo competente… O relógio marca: três da tarde desta sexta-feira!” – assim narrou meu chefe, a imitar um lendário locutor esportivo, descrevendo a chegada, à superintendência do Banco do Brasil, daquele gerente que trabalhava no interior, mas que todo fim de semana vinha à capital, onde residiam esposa e filhos.

 

A algazarra dos que presenciaram a gozação não inibiu o visitante. Com um risinho maroto e sem deixar a bola quicar, ele emendou: "Devo ter nascido com cara de “priquito”... Todo mundo aqui gosta de mim!"

 

Quando trabalhava como caixa, no início da carreira, ao espirrar de forma mais produtiva e espalhafatosa, ele teria ouvido um cochicho entre duas mulheres que aguardavam atendimento na fila: "Esses homens são uns frouxos! Uma gripezinha de nada já derruba. Qualquer dor de cabeça acaba com a raça deles. Queria ver aguentar a dor do parto!" 

 

Ele prontamente interveio defendendo a classe, com pleno conhecimento de causa, imagina-se: "Como é que é?! Quem diz isso nunca prendeu um ovo no cabeçote de uma cangalha (artefato de madeira, acolchoado, no lombo de burro ou cavalo, para pendurar cargas de ambos os lados)!"

 

Se era espirituoso e muito inteligente, era também daqueles pessimistas ao cubo, revestidos com várias camadas de ceticismo, fonte primária de seu humor ácido. 

 

A fama de pessimista ganhou musculatura quando, apesar do histórico de boas notas na universidade, ele desistiu do curso de Engenharia sob argumento pra lá de inusitado: "No dia em que me formar, a produção mundial de cimento vai entrar em colapso!" 

 

Mais adiante, nos estertores dos anos 70, quando o Planeta vivia a expectativa da queda, em hora e lugar incertos, da “Skylab”, primeira estação orbital da NASA, confessou sua apreensão a alguns colegas de trabalho: "Sou tão azarado que é capaz dessa porra cair no quintal lá de casa!"

 

Vai ver, lia Saramago, para quem “os únicos interessados em mudar o mundo são os pessimistas, porque os otimistas estão encantados com o que há”. Ou Millôr, que registrou que “é melhor ser pessimista do que otimista, porque o pessimista fica feliz quando acerta e quando erra”.

 

Outro sinal de seu desencanto teria ocorrido numa semana em que, mergulhado até o pescoço no saldo devedor do cheque especial, contava nos dedos os dias que faltavam para sacar o salário: "Todo mundo que conheço já recebeu ou vai receber herança... Menos eu!"

 

No olho desse furacão financeiro, dizem que convenceu a esposa a cortar o orçamento doméstico de um jeito bem prático:

– Mulher, você concorda que ir ao supermercado de oito em oito dias é a mesma coisa que fazer feira pra uma semana? 

– É… Basta apertar um tiquinho…

– Então… Agora, de dois em dois meses, a gente vai ganhar uma feira...

 

Todos esses casos me vêm à cabeça, menos o nome do protagonista. Resolvo então pedir ajuda a um velho amigo, que me dá a notícia de que Santana (como pude esquecer o nome dele?) nos deixou há mais de 10 anos. Que azar, não?

 

Portanto, não o encontrei há poucos meses no aeroporto de Maceió. Ele agora desfila de alpercatas apenas na esteira de minha memória, como naquelas tardes de sexta-feira em que gozava o vago conforto de estar vivo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

A bem da mentira

Quantas vezes você ouviu numa reunião qualquer alguém replicar outro participante começando por: “A bem da verdade...”? Parece que tudo que foi dito até ali era falso, não? 

Fico encasquetado quando, numa troca de mensagens, alguém me responde assim: “Verdade!”. Nunca sei se é uma forma lacônica de abreviar a conversa ou apenas indicativo de preguiça mental, de falta de tempo. Numa hipótese ainda menos otimista, pode ser que a pessoa queira apenas ser educada, evitando tascar, na minha cara: "Mentira!".

 

Se falta tempo, tudo bem. Cada um gasta o seu como lhe convémTem quem perca minutos preciosos discutindo política, futebol ou religião com fanáticos (leia-se: aqueles que pensam diferente de nós), mesmo sabendo que isso não fará o outro mais tolerante, nem ninguém será convencido a trocar a cor do boné. 

 

Se preguiça mental, característica estritamente humana, faz sentido. Pensar continua sendo tarefa das mais complexas que existem. Talvez por isso poucos se dediquem a ela com afinco, temendo, quem sabe, o derretimento pelo efeito estufa do que resta de neurônios.

 

Terrível mesmo é ver o destinatário de nossa mensagem pisar no freio, com o emoji do dedinho polegar para cima, precedido da expressão: “Verdade!”. É como encerrar conversa na base do “Você tem razão!” antes de você concluir o que tem a dizer.  

 

Mahatma Gandhi afirmou que "a lei de ouro do comportamento é a tolerância mútua, já que nunca pensaremos todos da mesma maneira, nunca veremos senão uma parte da verdade e sob ângulos diversos". Ou, dito aqui com minhas restrições filosóficas, parte da mentira sob múltiplas versões.  

 

Certo é que quero ter opinião formada sobre quase tudo que vejo, mas sei que a minha melhor opinião é aquela em que desconheço o assunto. Tanto que já me peguei com duas ou três opiniões contraditórias sobre o mesmo tema em questão de minutos. 


Sou volúvel, sei disso. Para mim, o importante não é ser fiel a uma ideia que me serviu de tiro de partida, mas tocar na fita de chegada podendo defender coisas opostas ao mesmo tempo. 

 

Já tive poucas opiniões sobre poucos assuntos. Eram opiniões inflexíveis, reconheço, fruto de um combo de apreço ao umbigo, imaturidade e radicalismo. Penso que me tornei com o tempo uma pessoa melhor, mais elástica, de raras convicções absolutas. Quando, por exemplo, uma pessoa me pede para opinar sobre uma roupa ou uma sandália, tento apenas adivinhar o que ela gostaria de ouvir.

 

No decorrer dos anos, conheci algumas pessoas que se tivessem levado a sério as minhas brincadeiras de dizer verdades, teriam ouvido muitas verdades que insisti em dizer brincando. Para não correr riscos, claro.

 

Nunca quis carregar nas costas a limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido, como pregava Clarice Lispector. Todo mundo precisa da verdade inventada, inclusive para dizer coisas mais reconfortantes do que a realidade crua, dura e insossa. Querer só a verdade é admitir-se incapaz de recriá-la. 

 

Reprodução/Facebook

Dê-se por perdido o dia em que não se minta nem uma vez, nem que seja para si mesmo. Assim como falsa toda verdade que não ande de mãos dadas com a dúvida. “Mentiras sinceras me interessam”, dizia Cazuza, sabiamente. 

Nunca se sabe quando estamos sendo totalmente sinceros. E mesmo que digamos: “agora a coisa vai!”, o “daqui a pouco” não passa de esboço de uma tela a ser pintada. 

 

Aliás, por falar em tela, Pablo Picasso, pintor e escultor espanhol tido como um dos mais influentes artistas do século passado, cunhou sentença maravilhosa sobre a verdade: “Se apenas houvesse uma única, não se poderiam pintar cem telas sobre o mesmo tema”. Mas a mentira do bem, aquela tão inocente quanto o ato de respirar, acaba aqui.

 

Para a corrente filosófica conhecida como relativismo, toda verdade é relativa, isto é, não existe verdade absoluta que se aplique em todas as situações. Depende de questões cognitivas, morais e culturais de cada povo. A verdade, portanto, é produto do meio em que se vive. É aqui que nasce a mentira vil, deslavada, do mal.

 

Divulgar informações mentirosas ou exageradas (o que dá no mesmo!) sempre foi muleta para políticos em campanha eleitoral. As falsas promessas e as distorções da realidade, no entanto, não costumam ser marcas de nenhum governo específico. Vale para todos.

 

Comentei outro dia com dois amigos de correntes políticas antagônicas, via whatsapp, que precisei usar cotonetes (correndo o risco de perfurar os tímpanos, além de prejudicar a produção natural de cera) porque fizeram meus ouvidos de vaso sanitário no deserto de ideias e propostas do horário eleitoral gratuito de rádio e TV e dos debates entre candidatos.  

 

A resposta deles me deixou encasquetado, de novo: “Verdade!”, disseram. Bateu preguiça mental ou faltou tempo para discutir este assunto irrelevante numa nação politicamente evoluída como a nossa? 


A bem da verdade (ou da mentira, sei lá!), não sei. 

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

O último trem para as estrelas

Da varanda, vejo almas que desde cedo se arrastam cansadas a puxarem como podem seus carrinhos de espreguiçadeiras, guarda-sóis, água mineral, coco, milho e pastel, para deleite de turistas em Maceió. Vejo outras entretidas na esquina, debulhando suas telinhas em busca de notícias. E vejo a alma de Cazuza chegar de mansinho, cantando:  

“São sete horas da manhã.

Vejo Cristo da janela,

O sol já apagou sua luz,

E o povo lá embaixo espera

Nas filas dos pontos de ônibus

Procurando aonde ir.

São todos seus cicerones.

Correm pra não desistir

Dos seus salários de fome.

É a esperança que eles têm

Neste filme, como extras,

Todos querem se dar bem.

Num trem pras estrelas...

Depois dos navios negreiros

Outras correntezas...”

 

Imagem: Dedé Dwight

Outra correnteza chega pela TV e nos atropela a todos. Joga um pote de água fria sobre o sol que acaba de nascer e revela que quase 37% das famílias alagoanas passam fome. É o que mostra um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN), divulgado quarta-feira passada, 14 de setembro.  

  

A proporção de famintos aqui é mais que o dobro da média federal (16%), já por si um escândalo. Em 2018, cerca de 6% dos brasileiros passavam fome. Dois anos depois, essa parcela subiu para 9%, chegando aos atuais 16% (34 milhões de irmãos). Hoje, a fome desassossega uma a cada três famílias brasileiras com crianças de até 10 anos. 

 

Nesse trágico ranking, Alagoas figura numa vergonhosa dianteira, seguida de perto por alguns estados do Norte/Nordeste: Piauí (34%), Amapá (32%), Pará, Sergipe e Maranhão (todos com 30%). Bem diferente de outros Brasis. A fome, esse infame retrocesso civilizatório, é a mais absoluta degradação social. 


Na sexta-feira, 16, no 205º aniversário da emancipação política de Alagoas da Capitania de Pernambuco, outra correnteza inunda a tela da TV, agora no plano nacional, mostrando criança com a mão carimbada para não repetir o prato na merenda escolar, que tinha como proteína 1/4 de ovo cozido (isso mesmo que você leu: um ovo repartido para quatro seres em construção!).

 

"Os resultados do estudo refletem as desigualdades regionais e evidenciam diferenças entre os estados de cada macrorregião do país", explica o responsável pela pesquisa do Instituto Vox Populi. Nada mais óbvio. Retrato de “Belíndia”, termo cunhado pelo economista Edmar Bacha, para denominar o Brasil de 40 anos atrás, por conciliar no mesmo território as ilhas de bem-estar da Bélgica com os bolsões de miséria da Índia, 

 

Quando ouvi falar pela primeira vez de “Belíndia”, eu era apenas mais um latino-americano que ouvia Belchior, sem dinheiro no banco nem parentes importantes, querendo aprender na Universidade Federal de Alagoas (Ufal). E um velho mestre especialista em planejamento estratégico, professor Lincoln Cavalcante, me garantiu que Alagoas estava chegando “lá”: em breve viraria um paraíso tropical. 

 

Tinha bons argumentos. Pontuava ele que, de todos os estados da região, Alagoas possuía a menor área no Semiárido nordestino. Em sua forma triangular, de um lado era banhada pelo Rio São Francisco e, de outro, pelo Oceano Atlântico. Enorme potencial ainda por explorar pela indústria que mais crescia no Planeta: o turismo. 

 

Apesar da índole concentradora de renda do baronato da agroindústria canavieira, Alagoas ocupava o posto de segundo produtor brasileiro de açúcar e álcool. Tinha brilho e peso na cesta alimentar e na matriz mundial de energia limpa, justamente quando o preço do petróleo estrangulava todos os países que dependiam dessa fonte de energia não renovável. 

 

Tinha mais: o Centro Educacional de Pesquisas Aplicadas (CEPA), local responsável pela formação de jovens, era considerado o maior complexo educacional da América Latina, abrigando 11 escolas públicas estaduais com capacidade total para 8.000 alunos. “É a educação que faz o futuro parecer um lugar de esperança e transformação”, dizia Paulo Freire, pedagogo e filósofo pernambucano.

 

Por pouco, muito pouco mesmo, o meu entusiasmado professor não subiu à mesa e recitou o poema de outro pernambucano, Ascenso Ferreira, que na metade do século passado descreveu uma viagem, de Maceió para Catende, falando de quem fica, do que fica e da vontade de chegar (parte desse poema foi musicada pelo também pernambucano Alceu Valença): 

 

Trem de Alagoas

 

O sino bate,

O condutor apita o apito,

Solta o trem de ferro um grito,

Põe-se logo a caminhar...

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Mergulham mocambos

Nos mangues molhados,

Moleques mulatos

Vem vê-lo passar.

– Adeus!

– Adeus!

 

Mangueiras, coqueiros

Cajueiros em flor,

Cajueiros com frutos

Já bons de chupar...

 

– Adeus morena do cabelo cacheado

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Na boca da mata

Há furnas incríveis

Que em coisas terríveis 

Nos fazem pensar:

 

– Ali mora o Pai-da-Mata!

– Ali é a casa das caiporas!

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Meu Deus! Já deixamos 

A praia tao longe...

No entanto avistamos

Bem perto outro mar...

 

Danou-se! Se move,

Parece uma onda...

Que nada! É um partido

Já bom de cortar...

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Cana-caiana,

Cana-roxa,

Cana-fita,

Cada qual mais bonita,

Todas boas de chupar...

 

– Adeus morena do cabelo cacheado

 

– Ali mora o Pai-da-Mata!

– Ali é a casa das caiporas!

 

– Vou danado pra Catende,

Vou danado pra Catende

Vou danado pra Catende

Com vontade de chegar...

 

Alagoas nunca chegou lá, professor! Ou melhor: a que ponto chegou, hein?! Um trem repleto de famintos, desgovernado, numa paisagem deslumbrante, soltando fumaça e faísca em direção ao precipício.  

 

Culpar apenas os condutores da locomotiva (os governantes de plantão, com suas respectivas bancadas de sustentação) pelo descarrilamento é inútil e pouco inteligente. Não se mexe no passado. Eles não teriam alcançado poder, honra e glória sem o suor e o voto dessas almas que hoje se arrastam, cansadas e esfomeadas, a puxarem como podem seus carrinhos.


Até o apito de partida do último trem para as estrelas. Ou não, se resolverem mexer no roteiro da viagem.

quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Sinuca de bico

Mexeu com muita gente a notícia de que a rotina do influenciador digital Arturo Medeiros, 36, e de suas oito mulheres, teria mudado depois que a mansão onde moram, na Paraíba, foi alvo de vandalismo por causa do estilo de vida que experimentam. 

 

Reprodução/Redes Sociais

Para evitar novos ataques, Arthur, O Urso 
 como ele, que diz manter cerca de 30 relações sexuais por semana, se apresenta nas redes sociais e no OnlyFans  mandou instalar câmeras e cerca elétrica no imóvel e contratou seguranças particulares. 

Ao saber disso, Natália, 41, filha de um velho conhecido meu, confidenciou à sogra Dolores, 63, que nada ultimamente a abala mais do que essas histórias de pessoas que decidiram abrir seus relacionamentos a uma nova disposição geométrica.

 Você me entende, né?  indaga a nora.

 Claro, Nat! Tudo muda o tempo todo no mundo…

 Seu filho, machista que só, tá chateado comigo!

 

As duas de biquíni à beira-mar, pé na areia, caipirinha, água de coco e cervejinha, aguardavam Gustavo, 43 (que surfava com alguns amigos um pouco mais adiante), marido de Natália, para almoçarem naquela preguiçosa tarde de sábado. 

 Acontece com a maioria dos animais  diz Leonor, especulando sobre o que se passava com o casal querido. Nos primórdios da humanidade, homens e mulheres faziam sexo e procriavam com diversas parceiras e parceiros. 

 Devia dar uma confusão medonha, né Dô?! 

 De forma alguma! Não violava princípios morais. Só era difícil se ter certeza sobre a origem de um filho, a não ser pela linhagem materna. 

 

Apesar de ter abandonado a faculdade de Economia no quarto semestre, por causa de uma gravidez de risco, Natália engolia livros e mais livros sobre a história do pensamento econômico. 

 

Dolores, psicanalista tarimbada, esbanjava conhecimento sobre uma época em que ainda não se falava em teste de DNA ou pagamento de pensão alimentícia como mecanismos de resfriamento do tesão. “Não havia exclusividade nas relações, nem se tinha certeza de quem era pai de quem”, pontuava. 

 Jura?! 

 Veja, Nat, a pessoa que defendesse a monogamia como o padrão de comportamento corria o risco de ser condenada por atentar contra os valores da família.

 Pois é... Mas devem ter notado que era mais negócio confinar-se num cercadinho e dali mesmo tirar o sustento, em vez de passar a vida pulando de galho em galho, garimpando como, quando, quem ou o que comer e beber... 

 No meu tempo  puxava a sogra outra linha do novelo , o máximo que se falava era de amor livre, nome dado pelos hippies a sexo recreativo entre pessoas não envolvidas por amor e paixão. Logo depois apareceu a amizade colorida, a partir do movimento friends with benefits, onde também não havia vínculo afetivo nas relações. 

 Quem sabe, Dô, vem daí essa coisa de propriedade privada e um modelo de família compatível com um sistema de acumulação de riquezas. Era só fechar a porteira e garantir o usufruto indivisível de riquezas apenas com os filhos. 

 Isso, Nat! A monogamia foi a base da primeira forma de família não concebida em condições de prazer e luxúria, e sim por imposição econômica.

 Será? 

 

Dolores se anima com o papo, pega o celular e vasculha a internet em busca de mais elementos para sustentar suas teses. E, minutos depois, pausadamente lê algo que julga interessante compartilhar com Natália:  

 

“[...] Com as dificuldades econômicas, hoje em dia as variações ganharam novos arranjos, para os quais surgiram alguns novos conceitos: 

Metamor  O amor do meu amor. É uma pessoa com quem o meu amor se relaciona, mas que não tem relações comigo.

Poliamor  Modelo sexo-afetivo não-monogâmico em que as pessoas envolvidas têm sentimentos profundos. Envolvem várias pessoas, com o consentimento e o conhecimento de todas. Alguns desses relacionamentos possuem nomes geométricos.

Polécula  Molécula poliamorosa. Representação geométrica de redes como a relação em V, o triângulo e o quadrado etc.

Trisal  É uma configuração do poliamor envolvendo três pessoas.

Trisal em V  Formato mais comum quando os poliamoristas são heterossexuais. Um dos membros mantém relacionamento com os outros dois, mas esses dois não têm relação entre si. Nesse caso, o vértice do V é chamado de pivô e as extremidades são conhecidas como braços. Cada braço é o metamor do outro. 

Trisal em triângulo  Cada membro está relacionado com os outros dois. Cada metamor é também amor do outro [...]”.



Natália, que escutava em silêncio, bebe outro gole, enxuga com a língua a espuma sobre o lábio superior, retoma o ponto de partida da conversa e transporta a sogra para a mesma página de seu caso particular:

 Pois é, Dô, o machista de “seu” filho Gugu irritou-se comigo...

 Por que, Nat?

 Diz ele que a ideia de incluir outra pessoa no nosso relacionamento partiu de alguém que perguntou se teria coragem de ficar com mais de uma. Que nunca pensou no assunto, mas ficou interessado. Tanto que, ao chegar em casa, quis logo saber a minha opinião.

 E você?

 Na hora, não vou mentir, fiquei tiririca da vida, Dô! São mais de 20 anos só nós dois dividindo a mesma cama… Depois, até admiti, mas desde que a terceira pessoa fosse amiga dos dois. Aí Gugu ficou puto com minha sugestão... 

 Eu conheço?

 Talvez... 

 Quem é?

 Ubirajara. O Bira Jumentinho.

 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O buraco é mais embaixo

Não posso dizer que me abalou a notícia da morte do brasileiro conhecido como “Tanaru” ou “Índio do Buraco”, que disseram vivia em isolamento voluntário numa mata fechada e era monitorado há 26 anos na região de Guaporé, no estado de Rondônia. Para o movimento de proteção indígena Survival International, a região se destaca como uma pequena ilha de floresta em um mar de pastagens para criação de gado.

 

Antes de tudo, fiquei encasquetado com isso de “isolamento voluntário”. Se nem chegaram a conhecer sua opinião, como saber se era mesmo espontâneo? Talvez só não quisesse o tipo de companhia que lhe aparecia (o que, aliás, seria bastante sábio). Feito o protesto, sigamos. 
 

Reprodução/Redes Sociais

O “Índio do Buraco” foi encontrado morto, no mês passado, por patrulheiros da Funai (Fundação Nacional do Índio) durante uma ronda pela área, dormindo para sempre no fundo de uma rede, numa das palhoças que utilizava de abrigo. Não havia sinais de violência na área, nem outras pessoas nos arredores. 

 
Remanescente de uma etnia indígena desconhecida – massacrada entre os anos 1980 e 1990 –, Tanaru era arisco, hostil com tentativas de aproximação, deixando armadilhas ou arremessando flechas e pedras para se proteger. 
 
Compreensível. Para um servidor da Funai entrevistado pelo jornal britânico The Guardian, fazendeiros ilegais teriam dado açúcar aos índios. Após o consumo do doce veneno e, assim, ganharem a confiança da tribo, os genocidas deram um pouco mais. Daquela vez, misturado com raticida.

 
Era a crônica ordinária de mais um extermínio indígena daqueles que vêm acontecendo há 500 anos no Brasil. Tudo para criarem fazendas e mais fazendas de gado, minerações ilegais e explorarem a extração de madeira sem autorização de órgãos (ir)responsáveis. 

 

Há 27 anos, restavam seis índios na tribo. Então, interditou-se a Terra Indígena de Tanaru. A interdição depois foi sucessivamente renovada, por ordem judicial, até ser regulamentada por uma portaria de 2015, que manteve a área nessa condição por mais uma década.

Agora, com dois anos de antecedência, a pequena ilha de floresta vai finalmente virar um mar de pastagens para criação de gado. Sem um pajé para tratar de cárie a malária, nem uma Iracema dos lábios de mel para mitigar as dores da solidão, além da velhice fungando no cangote, não devo lamentar a morte de Tanaru, ainda que ele, mesmo distante, cogitasse permanecer no mundo dos viventes e dos vivíssimos.

 

Desconfio, inclusive, que era indiferente a essa coisa "civilizada" de desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, peculato, prevaricação, rachadinha, sonegação ou suborno. O máximo que se permitia era caçar espécimes da fauna silvestre para saciar a fome.

 

Também nunca se preocupou com aquela cunhada arquiteta que, sem nada saber sobre o saldo da conta bancária do cunhado, resolve passar um feriadão com a família e vai logo sugerindo à irmã uma breve reforma no apartamento. Nem tampouco perdeu a paciência com aquele tiozão casca grossa que tenta lhe convencer de que “na ditadura as coisas funcionam”.   
 
Só por isso resolvi tomar emprestado alguns versos de “Astronauta” (ouça aqui), da obra de Gabriel, o Pensador, para levar dois dedos de prosa telepática com o “Índio do Buraco”, bem assim: 
 
Tanaru, véi...
Tá sentindo falta daqui?
Que falta que isso aqui te faz?
A gente aqui embaixo
Continua em guerra,
Olhando aí pra lua,
Implorando por paz.
Então me diz:
Por que quê cê quer voltar?
Você não tá feliz
Onde cê tá?
Observando
Tudo a distância,
Vendo como o Brasil
É pequenininho,
Como é grande
A nossa ignorância
E como nosso viver
É mesquinho!
A gente aqui no bagaço,
Morrendo de cansaço
De tanto lutar
Por algum espaço
E você,
Com todo esse espaço na mão,
Querendo voltar aqui pro chão?
Ah não, meu irmão!
Qual é a tua?
Que bicho te mordeu
Aí na lua?
 
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu...
 
Ah não, meu irmão!
Qual é a tua?
Que bicho te mordeu
Aí na lua?
Fica por aí
Que é o melhor que cê faz.
A vida por aqui
Tá difícil demais.
Aqui no Brasil
O negócio tá feio,
Tá todo mundo feito
Cego em tiroteio
Olhando pro alto,
Procurando a salvação
Ou pelo menos uma orientação.
Você já tá perto de Tupã, Tanaru!
Então me promete
Que pergunta pra ele
As respostas
De todas as perguntas
E me manda pela internet...
 
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu...
 
É tanto progresso
Que eu pareço criança.
Essa vida de civilizado
Me cansa...
Tanaru, cê volta
E me deixa dar uma volta na nave
Passa a chave
Que eu tô de mudança.
Seja bem-vindo, faça o favor
E toma conta do meu computador
Porque eu tô de mala pronta.
Tô de partida
E a passagem é só de ida.
Tô preparado pra decolagem.
Vou seguir viagem,
Vou me desconectar
Porque eu já tô de saco cheio
E não quero receber
Nenhum e-mail
Com notícia dessa merda de lugar...
 
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu...
 
Eu vou pra longe
Onde não exista gravidade
Pra me livrar do peso
Da responsabilidade
De viver nesse Brasil doente
E ter que achar
A cura da cabeça
E do coração da gente.
Chega de loucura,
Chega de tortura,
Talvez aí no espaço
Eu ache alguma criatura
Inteligente.
Aqui tem muita gente
Mas eu só encontro solidão,
Ódio, mentira, ambição.
Estrela por aí
É o que não falta, Tanaru!
O Brasil é um planeta
Em extinção...
 
Eu vou pro mundo da lua
Que é feito um motel
Aonde os deuses e deusas
Se abraçam e beijam no céu!

 

Se mesmo depois de nossa prosa telepática você, Tanaru, insistir em retornar, por favor ouça o conselho de Caetano: desça de sua estrela colorida, brilhante, numa velocidade estonteante e pouse aqui no coração do hemisfério sul só depois de exterminada a última nação indígena. 

 

Mas chegue impávido que nem Muhammad Ali, apaixonadamente como Peri, sereno e infalível como Bruce Lee. Pois, como anteviu o filho de Dona Canô, aquilo que nesse momento se revelará aos brasileiros surpreenderá a todos não por ser exótico, mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto.

 

Não posso terminar sem mais um protesto (logo hoje, bicentenário do suposto grito de "independência ou morte", não amanheci bem!). Por que “Índio do Buraco”, meu Deus? É muita humilhação! O hemisfério norte já teve “Cavalo Louco”, “Flecha Ligeira”, “Nuvem Vermelha”, “Touro Sentado” etc. Só nome épico, cinematográfico. Aqui me vêm com um pífio “Índio do Buraco”. Queriam o quê? Que ele socializasse com um apelido desses? Haja paciência, cara-pálida!