quarta-feira, 19 de abril de 2023

Durango, paçoca e tranca-portas

De nada adiantou, semana passada, o comunicado do gabinete do líder espiritual do Tibete, Dalai Lama, 87 anos, com o pedido oficial de desculpa diante da revolta de internautas do mundo inteiro com o vídeo em que o budista beija um menino na boca e, em seguida, pede que lhe chupe a língua. 


Quando soube do ocorrido com o carismático religioso defensor da paz, da compaixão e da solidariedade, meu velho amigo Urtiga lembrou que o clero de Portugal, país fortemente católico, abusou de quase 4.500 crianças desde 1950, segundo uma comissão independente, ao anunciar, no ano passado, suas descobertas após ouvir centenas de relatos de vítimas. 

 

Esses relatos têm surgido com espantosa frequência. O Vaticano anda cada vez mais pressionado a enfrentar com o devido rigor os escândalos, alguns capazes de corar rufião na zona de garimpo na Amazônia.

 

Ele me disse que a coisa vem de longe, não é de hoje. Que havia coroinhas nas igrejas de tudo que é canto do Brasil. Que se orgulha de ter jogado no time durante uns três anos.

 

Reprodução: Redes Sociais

Coroinha é aquele que ajuda o sacerdote no serviço litúrgico da missa. Não sei do que se ocupa hoje em dia, mas não deve ter mudado tanto. Quase não tenho ido à igreja. Apenas em casamentos, missas de sétimo dia e olhe lá. Isso com relação a terceiros. No meu próprio caso, nem considero a hipótese.  

 

Ele me contou que vestia uma batina encarnada e uma espécie de jaleco branco (sobrepeliz) sem nada especial nas missas de rotina. E bordado, em casamentos, Páscoa, Missa do galo e outras efemérides.

 

Tentava cantar músicas cujas letras nunca conseguia decorar, fazendo articulação bucal para fingir (feito as dublagens dos filmes no SBT). Isso quando não encaixava, por conta própria, uma letra qualquer criada ali mesmo. 

 

Não foi a fé que o levou à prática do acólito (calma aí, não é o que parece!). Devotou-se à causa para escapar da mãe, que lhe cobrava estudar o tempo inteiro. Além disso, era um “durango” – menor carente de mesada, duro, liso – e recebia do pároco uns trocados pra comprar paçoca de amendoim na volta pra casa.

  

Na Semana Santa, o arcebispo era esperado para a cerimônia do "lava-pés". Antes da chegada, uma senhora com cara de nojo revisava as unhas dos meninos e avaliava a qualidade do ar conferindo, in loco, a possível existência de fungos entre os dedos dos “apóstolos”. E sempre aparecia um candidato disposto a ocupar a vaga de algum excluído por razões sanitárias.

 

Durante a cerimônia, o bispo jogava água sobre os pés da meninada, encenava uma lavagem numa bacia sem água nem sabonete, em seguida simulava um beija-pés, que na realidade se dava sobre o seu anel. Depois, punha um envelope na manga da túnica contendo determinada quantia (digamos, algo como 100 reais). Os “durangos kids” exultavam.

 

Tudo isso escorreu pelo ralo quando se descobriu que o padre da paróquia vinha pedindo a um daqueles moleques que o ajudasse a fechar as portas, diariamente, após a missa das 19 horas. 

 

Diferentemente de quase todos os “durangos”, o prestimoso menino começou a esnobar, usando boné e tênis Conga, além de andar com cédulas de 10 no bolso.

 

Um dia, dois irmãos gêmeos que pretendiam ingressar na confraria dos coroinhas, porque também eram “durangos”, foram escalados por Urtiga para a missão secreta de investigar o que acontecia naquilo que, à época, chamou-se de “rito do tranca-portas”. 

 

Os intrépidos detetives se esconderam no confessionário, perto da sacristia, ao final da última missa de uma quarta-feira. Ao verem circular na área o moleque ostentador, seguiram-no com a respiração presa, de olhos bem abertos e na ponta dos pés. 

 

Meia hora depois, foram até Urtiga prestar contas da missão: o suspeito, na verdade, apenas ajudava o sacerdote a tirar as vestes eclesiásticas e, em seguida, cerravam as portas da casa paroquial. Nada mais. 

  

Só agora, depois do insólito beijo do líder religioso budista do outro lado do mundo, Urtiga se deu conta de que, dois meses após a investigação, as atividades dos coroinhas foram suspensas por tempo indeterminado. Embora os gêmeos nunca mais tenham se queixado da falta de dinheiro.

 

Quando me relatam um caso, tim-tim por tim-tim, trazendo uma visão panorâmica de todos os ângulos e personagens envolvidos, fico com um carrapato graúdo detrás da orelha. Sei lá!

 

Mas preferi não esticar a conversa. Vai que meu amigo Urtiga, que até hoje não dispensa uma paçoca de amendoim, se ofende.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Cores do jogo

A camisa da Seleção brasileira ainda é tida como uma das mais “pesadas” do futebol mundial, status conquistado por craques lendários e cinco títulos mundiais. Mas nem sempre o Brasil jogou com a “amarelinha”.

 

A primeira era branca, com detalhes em azul na gola e nas mangas. Mas já teve que usar outras, como uma vermelha, em 1917 e 1936, e as do Boca Juniors e Peñarol, numa época em que não havia uniformes reservas.

 

Reprodução: Redes Sociais

Mudou após a trágica derrota para o Uruguai, em 1950, na partida final da primeira Copa do Mundo realizada no Brasil. A CBD (precursora da atual CBF) resolveu trocar as cores e, antes do torneio seguinte, na Suíça, em 1954, um concurso organizado pelo jornal O Correio da Manhã definiu o novo modelo de uniforme, inspirado nas cores da bandeira nacional: camisa amarela com detalhes em verde, calção azul e meias brancas. 

  

Talvez por conta do que o jornalista Nelson Rodrigues chamou de “Pátria de chuteiras”, expressão que, mais tarde, a imprensa e a ditadura militar tomariam emprestada para mobilizar o povo em torno dos semideuses do “País do futebol”.  


Reprodução: Redes Sociais

Ou porque a execução de hinos antes das partidas de Copa do Mundo demarca a origem de cada time, remetendo os torcedores a símbolos nacionais, mesmo aqueles, como eu, que questionam o mofo e a poeira de certas expressões (de “raios fúlgidos”, “impávido colosso” ao “lábaro que ostentas estrelado”).

 

Implico também com as cores do uniforme da Seleção. Inspirado numa bandeira que representa a independência, a soberania e a unidade da Nação, foi concebida, há 133 anos, a partir dos olhos do colonizador português.  

 

O verde vem do escudo da família real de Bragança e não representa mais nossas florestas. O Brasil tornou-se fomentador de queimadas, um dos seis países do mundo (ao desonroso lado de Indonésia, Bolívia, Venezuela, Congo e Malásia) responsáveis pelo desmatamento de 60% da área total de matas que sumiu do Planeta de 1970 para cá. 

 

O amarelo remete à cor da casa de Habsburgo, da imperatriz Leopoldina, e também ao ouro, metal nobre e vil que, atualmente, nos impõe severos prejuízos com o garimpo fora de controle, inclusive nos territórios indígenas remanescentes, devastados pela ação de dragas e retroescavadeiras, resultando erosão e poluição de rios e solos pelo uso de mercúrio. Sem contar a tragédia humana da fome, da exploração sexual e de toda sorte de doenças “brancas”.

 

O azul e o branco, presentes na bandeira do Reino Unido de Brasil, Portugal e Algarves, um dia já traduziu o céu estrelado do Rio de Janeiro, onde agora só se fala de crime organizado e enchentes transbordando cursos d’água assoreados por derramamentos de óleo, além de favelas e condomínios desmatando encostas, num círculo de flagelo anualmente anunciado.

 

Em 2022, a jornalista e escritora Milly Lacombe defendeu em sua coluna no UOL “uma campanha por uma camisa preta... De um preto jamais visto, jamais usado por nenhuma outra seleção... Uma camisa preta que evoque os horrores dos quase 400 anos de escravidão para que, enfim, possamos começar a superá-los. Uma camisa preta que abra espaço para que a verdadeira história desse país seja contada...”.

 

Prefiro a mistura de branco e preto (diga-se, indevidamente chamados de cores), nada mais que a presença ou a ausência de luz. O branco é luz pura, reflexão abrangente de todas as cores. O preto, a total ausência de luz, quando as cores são absorvidas mas não se refletem. 

 

Defendo uma camisa simples, cinza, entre o branco e o preto. Um cinza grafite (inclusive no calção e nas meias) que nos remeta à ponta do lápis que faltou na alfabetização de mais de 10 milhões de brasileiros, segundo o Serviço Social da Indústria (SESI), com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2019.


A identificação do atleta (apelido e número) seria em vermelho, como o sangue derramado há mais de meio milênio de história pelas minorias sociais em situação de desvantagem cultural, econômica, étnica, política e religiosa.

 

Se quiserem uma referência histórica ao colonizador, cairia bem uma faixa branca diagonal atravessando o peito, símbolo das grandes travessias marítimas que levaram ao descobrimento do Brasil. Com uma cruz de malta na altura do coração, evocando o primeiro clube brasileiro a aceitar a participação de negros, pardos e caixeiros viajantes. 


Reprodução: Redes Sociais

Há 99 anos, aliás, esse clube se recusou a excluir pretos e pobres de seu grupo de jogadores, ato que ficou conhecido como “Resposta Histórica” à condição estabelecida para inscrição na Associação Metropolitana de Desportos Atléticos do Rio de Janeiro .

 

Ano que vem, no centenário desse marco histórico, seria arrebatador ver a próxima Seleção brasileira perfilada antes de uma partida eliminatória de Copa do Mundo, cantando, à capela, “Maria, Maria”, de Fernando Brant e Milton Nascimento.

 

Afinal, é a cinza (e o sangue) dessa gente humilde, “que traz na pele essa marca e possui a estranha mania de ter fé na vida”, que pode e vai virar esse jogo sem graça que se arrasta por aqui. No braço, nem que seja no ultimo lance da prorrogação.


quarta-feira, 5 de abril de 2023

Parafuso frouxo

Nada define melhor as coisas do Interior do Nordeste do que o verso e a prosa matuta que brotam no universo popular, refletindo cenários e circunstâncias numa linguagem singular. Em tudo que é lugar existe pelotões de soldados bem fardados no ofício, de repentistas a cordéis. Passam de mil os prosadores (e poetas) nesse pedaço de mundo, muitos de pouca leitura mas dotados de inegável talento.

 

Um deles é Jessier Quirino, “arquiteto por profissão, poeta por vocação e matuto por convicção”, como se autodefine – no que estamos concordes –, que conheci em 1997, quando o convidei para trocar dois dedos de prosa com os gerentes do Banco do Brasil que atuavam em Pernambuco.

 

Paraibano de Campina Grande, Jessier optara por viver em Itabaiana – terra de Sivuca e Zé da Luz, o poeta –, conciliando com as atividades de Doró, como carinhosamente chama sua mulher, arquiteta como ele. 

 

Dotado de uma memória espantosa, o que mais me impressionou nele foi a presença de palco, a debulhar espigas de saberes que iam de uma narrativa matuta, carregada de gíria, humor, neologismo, sarcasmo e sotaque, até cantigas do mais genuíno regionalismo. 

 

Fui impactado pelas “imagens” de sua obra, pela fartura de nuances do ambiente, de tramas e personagens entrelaçados, quando o vi declamar “Parafuso de cabo de serrote”, poema onde descrita uma bodega sortida, cujo desfecho nunca esqueci:

 

“(...) Tem cabides de copos pendurados

E um curral de cachaça e de conhaque

Logo ao lado se vê carne de charque

Tira gosto dos goles caneados

Pelotões de garrafas bem fardados

Nas paredes e dentro dos caixotes

Uma rodilha de fumo dando um bote

E um trinchete enfiado num sabão

E o bodegueiro despacha ao artesão

Um parafuso de cabo de serrote (...)”

 

Reprodução: Redes Sociais

Depois da "palestra", quando nos sentamos pra conversar, eu quis saber de seu processo criativo. Ele me contou de sua meninice no Interior, de ser devoto da sabedoria e da simplicidade do sertanejo, coisas que o fizeram um “prestador de atenção das ‘aconteçencas’ do mato”. 

Nunca mais deixamos de nos falar (bem menos do que eu gostaria, claro!). Descobri, inclusive, que sua sogra (Celinha) foi amiga de infância de minha mãe, a ponto de dona Pixitita, mãe de Celinha e avó de Doró, haver tentado, em vão, adotar Doça (Eudócia, minha mãe).

 

Reprodução: Redes Sociais

Com oito livros publicados, Jessier segue intercalando recitais em teatros, escolas, universidades e eventos corporativos, com seu “Papel de Bodega”, canal no YouTube onde, ao pé do balcão, declama poemas autorais, conta causos e recebe figuras caras à cultura brasileira.
 

Conversando com ele, numa tarde dessas, soube de um sujeito com um parafuso frouxo que, toda vez que se entupia de cachaça, ameaçava tomar veneno, cortar os pulsos, furar os olhos, mas nunca chegava às vias de fato graças à intervenção de terceiros.

 

Bêbado e tocado por uma paixão devastadora, certa vez o sujeito sobe numa dessas torres que existem em toda cidade interiorana disposto, numa visão “buarqueana”, a flutuar no ar como se fosse um pássaro, a agonizar no meio do passeio público e a morrer na contramão, atrapalhando o sábado.

 

Em minutos, o povo se aglomera em oração a pedir para que não cometa a desgraça. Ele, no entanto, resoluto como um camicase, faz o derradeiro apelo: que lhe mandem por uma corda alguns pertences de estima.

 

E iça uma gaiola, um rádio de pilhas e uma bicicleta em petição de miséria, parceira de andanças e confidências nos raros momentos de sobriedade.

 

Nisso, surge sua enteada no meio da multidão, de banho tomado, cheirando a água de colônia, trajando um shortinho e uma blusa “tomara que caia”. E, ainda que de longe, estende os braços ao padrasto, tentando evitar a doidice: “Não faça isso com mainha! Desce daí, vamos conversar...”

 

Mas o bêbado, nem-nem! Com o olhar dos desiludidos, prepara-se para o salto no escuro da eternidade. 


É quando aparece sua esposa, uma baixinha da cara de lua cheia, de buço e sobrancelhas grossas, braba feito uma gata parida, gritando: “Se quer morrer, cachaceiro safado, pule logo! Ou pare com essa cachorrada, desça daí e pegue o beco pra casa, agora!”

 

Um doidinho – toda cidade do Interior tem o seu, com um parafuso mais ou menos frouxo –, que a tudo assistia calado, só observando o desenrolar do drama, levanta-se do meio-fio, balança a cabeça, ergue o dedo indicador e opina com a segurança dos letrados no tema: “Oxente! Se nem pra moça ele desceu, vai descer pra essa aí?” 

 

Mas o infeliz desistiu. Jurou à esposa que não quer mais saber do cabide de copos pendurados nem do curral de cachaça da bodega. E foi-se embora costurando a rua, debaixo de vaia da molecada. 

quarta-feira, 29 de março de 2023

Sem motivo, juro!

Você não deve condenar os invejosos. No lugar deles, certamente também iria querer ser você, concorda? Se eu tivesse sido poderoso como meus filhos pensavam, rico como minha mãe achou que eu seria e irresistível como minha mulher ainda tem certeza de que sou, não vou negar: eu teria inveja de mim.

 

Você já ouviu falar na expressão inveja masculina? Pode parecer estranho à primeira vista e o motivo seria que esse sentimento sempre foi associado às mulheres. Nada mais sexista. É outra forma de colocar as mulheres em posição de inferioridade em relação aos homens.

 

Dito de outra forma, é como se a inveja não fizesse parte do acervo de emoções do homem, porque ele seria um ser “completo”. Não é assim. Manifesta-se quando qualquer pessoa se sente ameaçada diante da possibilidade, fantasiosa ou não, de ser preterida na escolha de determinado cargo profissional, ao ver a pessoa amada com outra, essas coisas. 

 

Enfim, estou seguro de que a inveja também é coisa de cabra macho. E nem preciso me reportar às cenas explícitas que testemunhei no mundo corporativo durante mais de 40 anos trabalhando numa grande empresa.

 

Acredite se puder, mas já fui alvo desse sentimento da pior forma possível: vindo de um dos maiores expoentes da música brasileira, praticamente uma unanimidade em termos de qualidade e sofisticação musical. 

 

Não vou citar o nome – você vai acabar descobrindo – para não reabrir feridas mal cicatrizadas no coração de um cara que sempre admirei, ainda inconformado com algo ocorrido há exatamente 10 anos. 

 




Talvez você o conheça como maestro, pianista, compositor e cantor, tão apaixonado pela Mata Atlântica que deixou transbordar todo o seu amor à natureza em belíssimas composições, que ganharam o mundo na voz de grandes intérpretes. 

 

Em 1962, eu tinha apenas quatro anos de idade, crescia no Sertão paraibano como qualquer moleque cabeçudo, desdentado e feio. Não sabia nada do que estava acontecendo no Rio de Janeiro quando ele e um certo poeta, amigo dele, batendo pernas na orla de Ipanema, se depararam com uma cena trivial: uma menina que caminhava pela areia a caminho do mar.

 

Digo trivial porque outras pessoas devem ter visto a cena e não enxergaram nada de mais, porém as curvas e os traços daquela menina flecharam o coração do invejoso e de seu amigo poeta, que decidiram ali mesmo compor uma canção para eternizar o instante no mais famoso bairro da Zona Sul carioca.  

 


A garota se tornaria nacionalmente conhecida somente em 1964, quando iniciou sua carreira de modelo trabalhando para revistas e agências de publicidade. Depois, chegou a participar de novelas de televisão e apresentou o programa “Ela”, nos idos de 1984. Atuou ainda como empresária e escritora de sua autobiografia.

 

Você deve estar curioso sobre o porquê o invejoso, que se mudou para o outro plano em 1994 – onde encontraria o seu amigo, desaparecido havia 14 anos –, teria inveja de mim, um reles bancário que nunca morou no Sudeste nem aprendeu a tocar um mísero instrumento musical, fosse cuíca, prato, reco-reco ou tuba.

 

Em verdade vos digo que tudo não passou de um lamentável mal-entendido por parte dele. Torço pela chegada do momento em que, pessoalmente, poderei explicar o ocorrido, mas que fique bem claro: que isso se dê daqui a 30 anos, no mínimo.  

 

Falando sobre ele, aliás, há pouco tempo a citada garota, numa entrevista na TV, revelou que foi pedida em casamento na época da criação de “sua” música. E confessou que ficou balançada com a proposta, mas teve medo. Ela contou:

 

"Ele era casado e eu falei: ‘Mas como?’. Ele disse que sua vida sentimental não estava muito boa e que não parava de pensar em mim. Eu, então, disse que não podia me casar com ele porque era virgem! Olha a minha inocência na época. Achava que ele queria se casar para tirar minha virgindade"

 


Pois bem. Há 10 anos, em pleno Carnaval de 2013, no Rio de Janeiro, eu fui apresentado a ela – agora, uma distinta madame, vivendo no eixo Rio/São Paulo –, a paixão mal resolvida do invejoso, que lá no céu deve ter movido os seus pauzinhos, invocando os privilégios conferidos aos músicos e poetas de boa vontade, para mergulhar nos pensamentos dos viventes aqui embaixo. E deve ter visto algo que lhe deixou furioso, transtornado.

 

Digo isso porque uma repórter-fotográfica, que por acaso registrou o nosso encontro naquela noite, cochichou nos ouvidos dela (eu ouvi!), querendo saber sobre quem estava do lado, talvez imaginando que a imagem pudesse render algum dinheiro junto às revistas de fofocas. 


Ela ficou calada. Mas o semblante risonho e enigmático certamente deixou o cara aborrecido. Sem motivo, juro! Eu já tinha uma garota (das praias de Alagoas) desde os anos 1970.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Segue o baile

Meu filho, hoje quarentão, outro dia compartilhou comigo a nova grade de aulas complementares de meus netos, ambos no 1º ano do ensino Médio de um colégio no bairro do Tatuapé, em São Paulo.


Não sou do ramo, longe disso, mas fiquei animado. E não só por conta da titulação rebuscada das cinco trilhas de aprendizagem no contraturno escolar de segunda a quinta-feira. Veja: Gestão de negócios e consumo sustentável; Paz, justiça e instituições eficazes; Saúde e bem-estar; Ação contra mudança global do clima e Escola de negócios: crescimento econômico global. 

  

Há quatro décadas, já membro, a contragosto, da “elite” pagante de mensalidades escolares, me indignava com a excessiva mercantilização da educação. No começo de cada ano letivo, cobrava-se dos pais de alunos desde rolos de papel higiênico até caixa de fósforos, passando por barbantes, bolas de isopor, canudos, garrafas, pregos, velas etc., numa lista interminável de materiais “escolares”. 


Ficava intrigado: se todos os alunos cumprissem aquela demanda, a escola teria de possuir um depósito bem superior à biblioteca, e precisaria de uns três empregados só para classificar, organizar e armazenar o material. Parece que não era o caso.

 

Cansei de me chatear também de ver meus filhos mexendo com as mesmas coisas que foram exigidas de mim 20 e poucos anos antes, como ler soletrando sílabas ou somar, diminuir, multiplicar e dividir na ponta do lápis, como se as calculadoras que surgiam fossem bugigangas dispensáveis.

 

Como acontecera comigo, deles ainda seria cobrado decorar que “atmosfera é a camada de ar que envolve a Terra” ou que “duas ou mais retas paralelas só se encontram no infinito”. E, heresia das heresias, que "todo número diferente de zero elevado a zero é igual a um". Não sei o que isso mudou minha vida ou a deles, salvo pensar na triste solidão das retas.

 

Na época, sonhava que a escola fosse além de noções de disciplinas clássicas como Ciências, Geografia, História, Língua Portuguesa e Matemática. Queria tê-la ao meu lado auxiliando na formação humanística de meus filhos.

 

Queria que me ajudasse a ensiná-los a se sentar ao lado das pessoas que se sentiam vulneráveis, perdidas. A encorajar almas mais fragilizadas. A não se arrepender do bem que fizeram. A não guardar mágoas e ressentimentos, esse saco de pedras, mais ou menos pesado, que muita gente carrega nas costas. 


Poderia ter recebido boletins de avaliação de meus filhos em alguns "deveres de casa" como: Compaixão, Generosidade, Indignação, Inveja, Resiliência, Solidariedade etc. Quem sabe, daria tempo retocar projetos de gente em andamento.

 

Fotografia: Dedé Dwight

Só mais tarde me dei conta de que não se desenha por completo os filhos. Se muito, rascunha-se os traços básicos. Eles mesmos fazem a arte final a partir de suas conexões com o mundo.

  

Durante a pandemia, não tive febre, dor de cabeça, tosse seca ou qualquer outro sintoma da doença, mas tive meu delírio. Imaginei que, se sobrevivêssemos como nação à catástrofe sanitária, todo brasileiro com idade superior a 15 anos um dia estaria alfabetizado. 


No auge do meu delírio, vi Paulo Freire, um dos pensadores mais notáveis da história da pedagogia universal, explicando melhor às novas gerações uma de suas conclusões geniais: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.

 

Aprender a identificar notícias falsas e desinformação era tão importante quanto a Matemática. Tanto que constava do currículo escolar a disciplina obrigatória “Alfabetização midiática”. 

 

Exigia-se da molecada que editasse seus próprios vídeos, como forma de perceber como é fácil manipular informações. Em seguida, discutia-se como e quando certos textos foram escritos e quais eram os objetivos reais ou surreais. 

 

Desde cedo, já se aprenderia em sala de aula como assimilar notícias, enxergando a diferença entre o que veria nos aplicativos de mensagens e o que estaria nos meios de informação. Não teria como saber o que são fake news se não soubesse distinguir jornalismo de mídias sociais.

  

Aprenderia também que é bem menor o esforço do processo cognitivo (percepção, pensamento, linguagem, memória etc.) nas mídias eletrônicas, o que torna a meninada mais vulnerável às notícias falsas ou incapaz de identificar mentiras disfarçadas de verdades. 

 

Mesmo a criançada tendo crescido em paralelo à evolução das mídias sociais, isso não significa que saiba como identificar e se proteger da desinformação. Aliás, a fase de ebulição hormonal é justamente quando se está mais propenso a acreditar em meias verdades (ou mentiras completas!).


Repito, não sou do ramo, longe disso, mas fiquei animado com a grade de aulas complementares de meus netos. É mais um passo no tanto de chão que os brasileiros têm pela frente para construir uma nação decente, digna, digamos assim, de nossos bisnetos.

 

E segue o baile. Que essa molecada que está na pista acerte o passo e entre na dança com tudo. Senão dançaremos todos.



 

quarta-feira, 15 de março de 2023

Tá pensando o quê?

É, meu amigo “Charlie” – assim você era chamado, numa referência boba àquela velha canção popular, lembra? –, lá se foram três anos que suas cinzas foram lançadas sobre as águas de um braço da lagoa de Pituaçu, próximo ao condomínio onde você morava, na Bahia. 

 

A morte em si não melhora (nem piora) ninguém. Você, meu amigo, continua sendo uma das maiores reservas de caráter que conheci.

 

Apesar da dúvida quanto à existência de Deus. Afinal, você nunca engoliu essa história de “poucos com tanto e tantos com tão pouco” como desígnios divinosOu de suas esquisitices terrenas, algumas inexplicáveis. Por exemplo, detestava “barbudinhos vermelhinhos”, como você dizia.

 

Talvez resquício da primeira metade dos anos 1960, quando, vindo do interior paulista, você servia à Polícia do Exército no Rio de Janeiro. Ou porque, diferentemente de outras pessoas, você não tinha motivos para idolatrar Marx, Fidel, Guevara e outras barbas icônicas. 

 

Um dia, você virou bancário. Doeu, mas teve que renunciar ao cargo de professor universitário de educação física. Mais tarde, tornou-se um dos melhores analistas de projetos da empresa. 

 

E justamente nos anos 1970/80, quando o Brasil apostou alto na sobrevida do planeta Terra, criando o Proálcool, o mais bem-sucedido programa de substituição em larga escala dos derivados de petróleo. O álcool de cana, frente à gasolina, reduziria em 90% a emissão de gases do efeito estufa. 

 

Lembra daquele usineiro que, quando soube da aprovação do projeto de financiamento para implantar uma destilaria, quis agradecer pela velocidade do desfecho do estudo? Aquele mesmo que mandou alguém até a sua casa, levando, de presente, uma TV “do tamanho de uma parede”!

 

Ilustração: Umor

Puto nas calças, você subia pelos muros, cuspindo abelhas, pois nada fizera além do seu trabalho limpo, de rotina. E saiu aquele esbregue antológico no coitado do portador, antes de atirar a caixa de papelão no olho da rua, debaixo de chuva. “Tá pensando o quê, cambada de…”.

 

É, meu amigo, você era raro, singular. Pena que nosso convívio deu-se apenas entre 1983 e 1993, em Alagoas e na Bahia. Pouco? O bastante, agora percebo. 

 

Depois que se aposentou, você mantinha contato apenas com meia dúzia de amigos (e me escalou no time!), a quem brindava com múltiplos saberes sobre cinema, economia, esportes, literatura, música, política etc.    

 

Com os rancores e as dores do decorrer do tempo, mais adiante você passou a evitar polêmicas, sobretudo envolvendo política partidária, embora nunca tenha perdido a capacidade de se indignar.

 

Desiludido e pessimista com os rumos tomados pelo governo, você deixou claro aquilo que sentia: “esses barbudinhos vermelhinhos traíram miseravelmente as suas origens”. 

 

Não sei quem você apoiou nas eleições presidenciais de 2018, pouco antes de sua partida, mas dá pra imaginar. Pena que já não havia entre nós a mesma proximidade de antes, com o desvelo esperado no caso de antigos parceiros de copo, de crenças e de cruz.

 

Se existe outra dimensão onde o seu espírito esteja assistindo à novela que hoje se desenrola por aqui, dou por visto o tamanho de seu desencanto, vendo irmãos discutindo obviedades do tipo: será que existe mimo desinteressado, sem intenções ocultas, desde uma flor sem cheiro até uma gargantilha de brilhantes que se dê de presente a alguém?

 

Ou discutindo os porquês de um certo reino árabe oferecer, de mãos beijadas (no plural mesmo!), “bijuterias” no valor de R$ 16,5 milhões a uma rainha consorte, além de doar ao rei um estojo com caneta, relógio, abotoaduras, valendo cerca de R$ 400 mil. 

 

Ou o fato de a alfândega confiscar apenas o pacote mais robusto, em que pese o esforço do rei apaixonado, prestes a desocupar o trono, querendo liberar o presente oferecido à rainha consorte. 


Há quem diga que o amor, algumas vezes, não só é míope, como é mouco, mudo e estúpido.

 

Discute-se inclusive os porquês de milhares de súditos fanáticos tomarem chuva e sol, por mais de dois meses, em acampamentos nas portas de quartéis, a pedirem a Deus por um golpe militar em favor da família real.

 

Onde você estiver, meu amigo “Charlie”, imagino que já não veja tanta diferença assim entre os “barbudinhos vermelhinhos” e aqueles que se barbeiam todo dia, na maior cara dura (e lisa!). 

 

"Tá pensando o quê, cambada de..." – diria você, puto nas calças com o escândalo que temos pro jantar. 

quarta-feira, 8 de março de 2023

Amor que fica

Era comum, antigamente, a pré-estreia de filmes nas salas de cinema do interior. Algumas personalidades eram convidadas a pagar um ingresso especial para, em primeira mão, assistir aos filmes que entrariam em cartaz nas semanas seguintes.

 

Meu pai insistiu para que minha mãe fosse com ele à pré-estreia de Love Story, que se tornaria um dos maiores clássicos de bilheteria de todos os tempos. O filme narra o drama de um estudante de direito que se apaixona por uma estudante de música. Logo depois de casados – contra a vontade da poderosa família dele –, ela descobre que não consegue engravidar e que sofre de uma doença grave, irreversível.

 

Minha mãe, cansada da faina diária envolvendo nove crias, no escurinho do cinema não viu nem a abertura das cortinas. Acordou com o choro convulsivo de uma moça a seu lado:

– O que foi, filha, tá passando mal?  

– Que tristeza... – soluçava a moça.

 

Esses dramas não eram corriqueiros na União dos Palmares – berço de Jorge de Lima, o príncipe dos poetas, autor de “Poemas Negros” – onde morei no final dos anos 1960, dos 10 aos 12 anos de idade. Mas havia outras tragédias.

 

Lá, por exemplo, não tinha água potável, encanada. Duas vezes por semana, seu Jorge, um simpático cafuzo, parrudo e maneta – mutilou-se, ainda criança, na colheita de cana-de-açúcar – vendia água da cacimba de um sítio que arrendara. Também plantava verduras, raízes e criava galos-de-briga para apostas em rinhas tornadas clandestinas por Jânio Quadros.  

 

Certa vez, perguntei se poderia acompanhá-lo até a cacimba onde abasteceria suas latas para suprir uma casa próxima da minha. Não só permitiu como me ensinou a segurar firme na cangalha para não cair. 


Montado numa velha burra pelo de rato, chamada Mimosa, eu me sentia em completo êxtase, o próprio Django dos faroestes das matinês do Cine Imperatriz.

 

Fotografia: Afonso Loureiro

Seu Jorge também fornecia água destinada a outros usos domésticos, imprópria para consumo humano. Coletava-a no rio Mundaú, cujas águas serviam a lavadeiras, pescadores e vendedores ambulantes como ele. E me deixava vê-lo trabalhando. 

 

Em pouco tempo, combinei com sitiantes das redondezas, ao lado de outros moleques, um preço justo para banhar cavalos e éguas: o direito de, antes do banho, suar cada animal em meia hora de galope no osso (sem selas nem estribos), tendo por cabresto apenas um laço de corda no focinho. 

 

De tanto levar os bichos pro rio, um dia arrisquei mergulhar mais profundo, voltar à tona e bater braços e pernas até a margem, vencendo o medo de ser engolido pela correnteza ou pelos redemoinhos.

 

Se não fosse seu Jorge, aprender a montar e a nadar teriam sido bem mais difíceis para mim.

 

Eu já não era de pescar ou caçar, como alguns amigos de rua. Tinha o hábito perverso de acertar calangos e lagartixas, aprimorando a pontaria com uma peteca (estilingue, atiradeira, balinheira, baladeira, badoque ou bodoque, noutros lugares fora de Alagoas). A ciência explica como crianças podem ser tão ou mais cruéis do que adultos.

 

Desisti do ofício de exterminador de viventes quando, no Beco do Coité, matei uma lavandeira (ou lavadeira-mascarada, noivinha), espécie de pássaro dócil que vive junto a rios e lagoas e vem com ingênua frequência ao chão em busca de comida. 

 

Pitôta, uma cabocla esguia e risonha que ajudava minha mãe, presenciou a crueldade e foi implacável comigo. Chorei litros ao ouvi-la dizer que “a bichinha estava lavando a roupa de Nosso Senhor”. 


Tangido pelo remorso, quebrei gaiolas e alçapão com que pegava canário, galo-de-campina e papa-capim nos sítios que havia à margem da estrada que dava pro Mundaú.

 

Pitôta era mãe solteira. Como se dizia, perdeu a inocência com Lamparina (a cara do cantor Ataulfo Alves!), músico e militar do Exército brasileiro que, todo ano, preparava a banda do Ginásio Santa Maria Madalena para o desfile de 16 de setembro, celebrando a emancipação política de Alagoas da Capitania de Pernambuco. 


Ele era casado. Nunca quis nada além de meia hora nos braços da mulher que me ensinaria, mais tarde, as primeiras noções de compaixão, de respeito ao meio ambiente.

 

Contei a seu Jorge da reprimenda de Pitôta. No quintal lá de casa, das cinco às seis da manhã, dia sim, dia não, ele bombeava água da cisterna para a caixa de distribuição que ficava sobre a laje. “Ela está certa!”, me disse.

 

Perguntei por perguntar se ele conseguiria levantar 30 kg com o braço decepado. Ao perceber que Pitôta já coava o café, fingindo não ouvir nossa conversa, gabou-se: “Levanto até com a cabeça da Mimosa”. 


Na hora, achei que se referia ao pescoço da velha burra pelo de rato. Enquanto isso, Pitôta se contorcia de tanto rir, aparentemente com conhecimento de causa. 


Hoje, penso que cochilei, perdi parte do filme, feito minha mãe na pré-estreia de Love Story, no Cine Imperatriz. Havia algo no ar além dos gaviões fazendo carreira.


Vai ver começou ali, ao pé da Serra da Barriga, berço do Quilombo dos Palmares, outra mimosa história de amor – o amor que fica! – entre duas figuras inesquecíveis para mim.

 

quarta-feira, 1 de março de 2023

Nao pegou bem!

Apesar de nunca ter visitado a República de Santa Cruz, meu espirituoso amigo Carnaúba, aposentado, morador da Massagueira, distante 15 km de Maceió, me disse certa vez que o melhor dos mundos é quando um comandante de um transatlântico conduz um barquinho entre as ilhas da lagoa Manguaba. E o pior, quando um piloto de teco-teco, numa emergência, é chamado para aterrisar um Boeing 747. 

 

Antiga colônia do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a República de Santa Cruz só obteve sua independência em meados dos anos 1930. Trata-se de uma das menores nações em extensão territorial da África. 

 

Além de ser banhada pelo oceano Atlântico, grande parte do território é coberta por savanas e possui belas paisagens naturais, sendo que as praias e os parques de animais (inclusive antas, jabutis, papagaios, quero-queros e veados) atraem milhares de turistas do mundo inteiro. 

 

A economia é incipiente, já que o país não consegue oferecer trabalho para a maioria da população (10 milhões de habitantes), razão de grandes fluxos migratórios para os vizinhos. A principal atividade econômica é a agroindústria canavieira, que ocupa 70% da população. O limão, a rapadura e a cachaça são os principais responsáveis pelas exportações do país – tudo junto e misturado, claro!

 


A destilaria estatal Caipirinha tem sido a grande mola propulsora do desenvolvimento, responsável pela moagem de toda a cana produzida no território nacional.  

 

Fala-se que Luisito “Onassis”, vencedor das últimas eleições presidenciais, só vai governar por quatro anos, como ele mesmo admite entre amigos, inimigos e correligionários. À sombra dele desde que foi fundado, o PNP – Partido Nacional Popular sabe que precisa de nomes para sucedê-lo. Quem largou na frente foi um certo Ernani Adady, seu ministro da Fazenda e virtual sucessor.   

 
O ministro, no entanto, acaba de disparar um tiro na própria canela, que pode lhe deixar manco na dura caminhada que terá pela frente: ele instalou o desassossego entre os participantes da PESC – Previdência dos Empregados de Santa Cruz.  

 

Em meio às recentes mudanças que promoveu na cúpula da destilaria estatal, ele tinha à sua disposição milhares de participantes, mas escolheu para presidir a PESC um com menos de 15 anos de carreira cujo maior mérito, cedido pela destilaria estatal, foi secretariar por uma década o sindicato dos trabalhadores de Santa Cruz.

 

O ministro jura que o presidente indicado para o fundo de pensão possui as qualificações necessárias para o exercício do cargo. Possui mestrado em História, com ênfase em catequese, conquista espiritual, Mesoamérica, concepções de história e cosmogonia das elites tribais em fontes coloniais. Não entendi bem, mas deve ser coisa boa!

 

A escolha, óbvio, reacendeu os temores de uso político da destilaria estatal, inclusive de seu fundo de previdência, que esteve envolvido em denúncias de fraudes, aparelhamento partidário e má gestão há poucos anos. 

  

Para o ministro, no entanto, tanto faz um homem, um jabuti (o bicho não sobe em árvore; quando lá, é enchente ou mão de gente!) ou um papagaio minimamente treinado para ocupar a presidência da “Caipirinha” ou da PESC. São instituições que, segundo afirma, se modernizaram nos últimos anos com a implantação de várias camadas de controle no processo decisório através de colegiados, imunes a deslizes individuais de conduta. 

 

Os aposentados e pensionistas da PESC discordam. Temem que essa conversa mole não passe de uma crença inoculada no imaginário coletivo, aflorando em metade da população o lado “Velhinha de Taubaté”, personagem do cronista brasileiro Verissimo que ficou conhecida nos anos 1980 por “acreditar no governo”. 

 

Quando soube da notícia, lembrei-me de um ex-ministro brasileiro (cuja nomeação, no começo dos anos 1990, deixou nítida a importância que o então presidente da República dava ao Ministério do Trabalho), autor de três frases memoráveis:

– “A cachorra é um ser humano, e eu não hesitei” (sobre o uso de carro oficial para levar sua cadela ao veterinário).

– “O salário do trabalhador sempre foi imexível e continuará imexível” (neologismo oferecido a um repórter que o questionava se o plano econômico do governo afetaria a massa salarial).

– “Penso muito durante meus momentos de solidez” (sem comentários).

  

No presente caso, não vai pegar nada bem, mais tarde, o atual presidente da República de Santa Cruz argumentar que não sabia de nada. Que andava mais preocupado em discutir a relação entre a Rússia e a Ucrânia. Afinal, a melhor guerra continua sendo aquela que se evita. 

 

Ah, claro, isso de governar "somente" por mais quatro anos é conversa para eleitor dormir. Está para ser descoberto o antídoto para a ambição humana. E buscar a reeleição continua sendo a mais cristalina e natural ambição daquele que detenha o poder. 

 


quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Cinzas de uma Quarta-feira

Nestes catárticos dias de Carnaval pós-Covid-19, lembrei-me do líder político russo Vladmir Putin, que vira e mexe ameaça apertar o botão e deflagrar a terceira e definitiva guerra mundial, determinando o fim da aventura humana na Terra.

Fotografia: Dedé Dwight


Não sei a quem pretende assustar. 

 

Dos mais velhos, como eu, corre o risco de ouvir algo como “já aperta tarde!”. Afinal, ficar por aqui assistindo à onda de catástrofes naturais (ciclones, dilúvios, epidemias, incêndios, deslizamentos de barreiras, terremotos etc.) e antinaturais, como irmãos famintos na fila do osso na porta de açougues em busca de sobras dos mais favorecidos, talvez o confronto generalizado nos poupe inclusive da tristeza do noticiário.

 

Dos mais novos, nem sei se ouvirá alguma coisa, dado que têm preocupações mais substantivas (para eles!) como o alucinógeno da hora, a coreografia da vez ou ouvir de novo “Zona do Perigo”, o pagodão de Leo Santana que me tortura os ouvidos há dias, mesmo de janelas fechadas.

 

E tem ainda a turma da meiuca, faixa intermediária entre 35 e 55 anos, que está na correria, acasalando, procriando, tentando contornar diferenças com seus rebentos em intermitente ebulição hormonal.


Na expectativa de ascensão profissional (ou maiores lucros), essa turma também não está nem aí para o possível Armagedom – segundo a Bíblia, a batalha final de Deus contra a sociedade humana injusta e perversa.

 

Ao lembrar de Putin, me veio à cabeça, como contraponto, o saudoso Lobão, um ser iluminado que tornou inesquecível, há 22 anos, uma Quarta-feira de Cinzas como hoje.

 

 

Lobão, Carnaval e Cinzas

 

Apareceu lá em casa em outubro de 1995. Meus filhos haviam convencido o avô a "financiar" a compra de um filhote poodle. Na loja, optaram pelo mais quieto e frágil da ninhada. “Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome pra lhe dar”, diria Chico Buarque. Mas nada que amor, carinho, vacina e ração de boa qualidade não pudesse resolver.

 


Quando fomos morar em Pernambuco, em 1996, a cada duas semanas levávamos Lobão – homenagem ao vilão de “Os Três Porquinhos”, de Walt Disney – para a praia de Ipioca, em Alagoas, onde filhos e sobrinhos o desafiavam simulando afogamento, ao que aquele magricela corajoso reagia nadando contra a maré até “resgatar” todos os seus “amigos”.

 

Na véspera do Carnaval de 2001, já estávamos morando no Planalto Central, depois de nova temporada na Bahia, quando minha mulher tanto insistiu que embarcamos para Recife para assistir ao “Galo da Madrugada”, que prometia arrastar um milhão de foliões pelas pontes e ruas da cidade no dia seguinte, Sábado de Zé Pereira.

 

Deixamos Lobão em um canil no Lago Norte até a Quarta-Feira de Cinzas, quando voltaríamos, mas fomos obrigados a retornar às pressas no domingo, após a notícia de que havia desaparecido. Da hora que pousamos em Brasília até a terça-feira de Carnaval, vasculhamos cada pedaço daquela região a sua procura, sem sucesso. Como último recurso, resolvemos distribuir cartazes e faixas do tipo “procura-se” no raio de 10 km do local de onde sumira.

 

Na tarde de terça-feira veio o telefonema do canil nos avisando de que ele fora encontrado, ainda no sábado, por um garoto que se divertia com um jet ski no Lago Paranoá. Lobão bem que tentou atravessar aquele "oceano nada pacífico" no rumo da Asa Sul, onde morávamos. Muito debilitado, com todas as articulações lesionadas pelo esforço feito, com infecção intestinal, permaneceu horas debaixo de uma cama onde residia o garoto que o abrigou, praticamente sem alimentar-se, até ouvir alguém chamá-lo pelo nome familiar aos seus ouvidos, descrito nos cartazes e faixas. 

 

De volta para casa, recuperou-se rapidamente. E a notícia da aventura correu pela Super Quadra Sul 114, na manhã de quinta-feira pós-Carnaval, onde um intrépido Lobão cuidava de remarcar seu território a cada poste que encontrava pela frente. Logo, viu-se apelidado pelos porteiros e zeladores do prédio de “Gustavo Borges”, nadador olímpico brasileiro medalha de prata nos 100 metros livres nas Olimpíadas Barcelona 1992 e nos 200 metros livres em Atlanta 1996, que participou de quatro Olimpíadas.

 

Vítima de edema agudo de pulmão, decorrência de uma gastroenterocolite bacteriana, o velho e destemido Lobão – que já vinha recebendo cuidados especiais na condição de cardiopata e nefropata - tombou no Verão de 2013, aos 18 anos de idade. Foi sepultado com "honras militares e salva de tiros" no quintal de nossa casa, no Jardim Botânico, em Brasília, onde viveu seus últimos dias.

 

Eu sabia que desagradava algumas pessoas naquele tempo, mas juro que estava sendo absolutamente justo e sincero quando afirmava: “Quanto mais conheço o ser humano, mais admiro Lobão!”. Ele nunca foi ingrato, dissimulado, grosseiro ou desleal conosco. Mostrava-se sempre agradecido pelo carinho que recebia, era fiel, solidário e transparente. Um ser do bem, que tornou inesquecível o Carnaval de 2001 e, anos depois, deu o tom acinzentado definitivo, da cor de sua pelagem, à “Síndrome do Ninho Vazio” que se instalava em nossa casa.