quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Nada mais justo

Nas redes sociais e nos grupos de WhatsApp, houve um verdadeiro tiroteio de acusações entre políticos e influenciadores de direita e esquerda sobre a taxação dos prêmios dos atletas brasileiros que ganharam medalhas nas Olimpíadas de Paris. A guerra virtual foi tão intensa que chegou ao Congresso Nacional, onde parlamentares propuseram isentar essas premiações de impostos.


Na arena digital, o ministro da Fazenda virou alvo da oposição, sendo criticado e alvo de memes que o acusavam de querer "uma parte do prêmio dos medalhistas". Seus defensores contra-atacaram, citando a legislação que regula a taxação de prêmios esportivos e lembrando que o governo anterior arrecadou cerca de R$ 1,2 milhão em impostos dos atletas medalhistas dos Jogos de Tóquio 2021.

No meio da confusão, surgiram acusações de que a taxação de prêmios esportivos foi introduzida pelo governo atual, quando, na verdade, a Lei 7.713, de 1988, já regulamenta essa cobrança. A discussão esquentou ainda mais após a ginasta Rebeca Andrade conquistar a medalha de ouro.

Com suas conquistas – duas pratas (individual geral e salto), um bronze (equipe) e um ouro (solo) – Rebeca embolsará em prêmios do Comitê Olímpico Brasileiro R$ 826 mil e teria que pagar cerca de R$ 227 mil em impostos sobre os prêmios recebidos, conforme prevê a Lei, que estipula uma taxação de 27,5%.

Além dos prêmios em dinheiro, surgiram boatos de que as próprias medalhas olímpicas seriam taxadas. A Receita Federal esclareceu que as medalhas trazidas pelos atletas não estão sujeitas a tributação, de acordo com a Lei 11.488, de 2007, e a Portaria MF 440/2010. “Entrar no país com a medalha olímpica é um processo rápido e fácil, sem burocracia. Os campeões brasileiros podem ficar tranquilos”, garantiu o comunicado da Receita.

Para colocar um ponto final na confusão, o presidente da República editou uma medida provisória isentando os atletas olímpicos de pagar imposto de renda sobre prêmios em dinheiro, beneficiando também atletas que ganharam competições anteriores, como Rebeca.

Medalhas e troféus já eram isentos de impostos federais, valorizados mais pelo seu simbolismo do que por sua expressão monetária. No entanto, as quantias recebidas como prêmio normalmente são declaradas no imposto de renda. A nova medida isenta especificamente as premiações pagas pelo COB e pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), mas pagamentos de confederações, federações, patrocinadores ou clubes dos atletas continuarão sujeitos à taxação de até 27,5%.

Enquanto o Congresso Nacional discute a aprovação da medida, penso em Dona Eudócia, minha mãe. Ela não é Rebeca Andrade, que brilhou nos Jogos de Paris e se tornou a maior campeã olímpica da história do Brasil, e eu não sou nenhum profeta ou vidente, mas tenho o pressentimento de que minha mãe também deixará de ser tungada em 27,5% de imposto de renda sobre sua pensão, o prêmio que meu pai lhe deixou quando partiu. Se as medalhas e os prêmios em dinheiro de Rebeca são isentos, as conquistas da minha mãe também devem ser.

Medalhas, ela tem de sobra, guardadas para sempre na sala de troféus de nossa existência. Mas, ao contrário das medalhas olímpicas, suas vitórias não receberam o brilho dos holofotes, nem vieram acompanhadas de prêmios em dinheiro. Foram conquistas silenciosas no calor de cada dia, na luta para seguir adiante após a perda precoce de meu pai. Portanto, é uma questão de isonomia de tratamento. Ela é uma vencedora desde que nasceu e sobreviveu no Brejo paraibano.

Vi você vencer, mãe, quando ficou viúva aos 33 anos, com a espinhosa missão de cuidar de nove filhos (além do sobrinho, que assumiu como se fosse sua décima cria) numa cidade desconhecida, todos encaminhados por você no trilho da retidão de caráter e da paz, nenhum corrupto ou ladrão. Vi você vencer quando, entre panelas, pratos e cabos de vassouras, nunca fez corpo mole na peleja diária por filhos e netos. Vejo você vencer todo dia quando compartilha o que come com os porteiros do prédio em que mora, inspirando a todos que te conhecem. Vejo você vencer a toda hora quando acolhe no colo cada novo bisneto que te chega.

Reprodução/Redes Sociais

Sua luta, mãe, embora sem o glamour das competições olímpicas, é igualmente digna de reconhecimento. Este país, que tantas vezes deixa de valorizar seus verdadeiros heróis, está à beira de uma convulsão social há muito tempo. Só ainda não aconteceu de o grotão subir para o asfalto para cobrar parte de uma dívida social secular porque, tudo indica, Deus de fato fala português. Se não, essa gente que troca farpas nas redes sociais para criar ou tirar direitos dos outros talvez nem estivesse aqui fazendo confusão, pois se o grotão subir, a conta será cobrada na bala ou na ponta da peixeira.

Se a isenção fiscal concedida não for apenas mais uma cortesia com a carteira alheia – afinal, o dinheiro é nosso, percebem?! –, você também certamente terá vaga no time. Porque mesmo com a sala de troféus de nossa existência repleta de medalhas, mãe, aos 85 anos você continua batendo um bolão e marcando seus golaços.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Entre coices, closes e mordidas

Na última semana do mês passado, uma mulher, com mais desejo de fama do que bom senso, tentou tirar uma foto com um cavalo da Guarda Real em Londres e acabou com uma mordida no braço. A cena, digna de uma comédia de erros, foi registrada em vídeo e publicada no YouTube, onde se vê a mulher se aproximando do cavalo e, em um esfregar de olhos, o animal abocanha seu braço. Assustada, ela escapa e se junta aos demais visitantes. Não se sabe o que um teria dito ao outro, antes da mordida.


Reprodução/YouTube

Na sequência da cena anterior, vê-se a mulher estendida no chão, cercada por turistas. Uma delas, com um leque em mãos, tenta reanimá-la, enquanto os policiais chegam para avaliar a situação. Fiquei sabendo que um dos agentes, após conversar com a vítima, se dirigiu ao guarda, acariciou o cavalo e, quem sabe, discutiu a questão da mordida sob a ótica equina e psicanalítica. 

O cavalo, já notório por sua disposição dentária, havia tentado morder outra pessoa pouco antes. Uma moça de vestido rosa foi a primeira corajosa a se aproximar do animal, que prontamente virou a cabeça em sua direção e tentou morder seu antebraço. Ela conseguiu escapar, mas a segunda turista, não tão sortuda, acabou se tornando a protagonista dessa história.

Curiosamente, uma placa ao lado do intolerante cavalo advertia sobre os riscos: "Cuidado. Cavalos podem dar coices ou morder. Não toque nas rédeas. Obrigado". Mas parece que as advertências foram ignoradas em favor de um flagrante perfeito no celular, a ser compartilhado nas redes sociais.

Nos comentários sobre a notícia, a internet, sempre ácida, teve seu momento de glória. Um usuário observou que não havia sangue, explicando que cavalos não mordem propriamente, porém mascam, resultando numa sensação semelhante a um beliscão poderoso. Outro foi cruel, dizendo que a mulher teve os "quinze minutos de fama que queria" e deveria ter lido a placa. Um terceiro ponderou que quem vai tirar fotos com os cavalos deve estar ciente dos riscos, afinal, são animais que agem por instinto e têm humores tão oscilantes quanto os humanos. Sobretudo, admito, quando fardados ou investidos em funções de mando no universo corporativo. Cavalos e homens, claro.

O mais curioso, talvez, seja que ninguém percebeu que, no fundo, o incidente não configura propriamente uma notícia: notícia seria se a mulher tivesse mordido uma das orelhas do cavalo. Cavalos mordendo turistas é quase uma rotina global, "na Oropa, França e Bahia", como diria Alceu Valença, o menestrel pernambucano.

Notícia ou não, lembrei-me de um episódio ocorrido em 1978, quando o então presidente Ernesto Geisel indicou o general João Baptista Figueiredo para ser seu sucessor. O governo iniciou uma campanha para popularizar a imagem do chefe do SNI, chamado um tanto forçadamente de “João do Povo”. Mas a iniciativa fracassou, em boa parte devido à personalidade do general. Em uma entrevista, concedida em agosto daquele ano, ao ser questionado se gostava do “cheiro do povo”, Figueiredo respondeu: “O cheirinho do cavalo é melhor”. O amor pelos equinos era tanto que Myrian Abicair, dona de um dos mais badalados spas do Brasil (o “Sete Voltas”, em Itatiba-SP), décadas depois assumiu publicamente um romance extraconjugal com o general, afirmando que a coisa mais valiosa que ganhou dele foi um cavalo. Nada a admirar.

Voltemos ao episódio da mulher que tentou tirar uma foto com um cavalo da Guarda Real em Londres e acabou mordida no braço. Esse evento ilustra bem o dilema das grandes cidades turísticas, nos dias de hoje, que tentam equilibrar a necessidade de receitas do turismo com o bem-estar dos moradores. Em Barcelona, manifestantes têm borrifado água nos turistas em áreas populares. Veneza introduziu uma taxa para limitar os visitantes de um dia. No Japão, o Monte Fuji sofre com o lixo e o mau comportamento turístico. Kyoto, famosa por seu distrito de gueixas, tem enfrentado problemas com turistas invasivos. E Seul, com milhões de visitantes, também luta para manter a ordem.

Na minha visão quase sempre distorcida dos fatos – começo a aceitar a correlação entre a idade e a rabugice –, estou convencido de que nem os cavalos aguentam mais o turismo de massa, predatório, especialmente porque envolve as famigeradas selfies, essa prática que transforma a interação humana em uma busca incessante pela melhor imagem de si mesmo. Nunca alcançada, diga-se.

Tudo bem, alguns escolados no assunto dizem que as selfies são uma forma de autodescoberta e redefinição de identidade. Se é assim, alguém precisa avisar os cavalos para, entre coices, closes e mordidas, serem mais tolerantes com a estupidez humana. 

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Por todos os séculos

Existem momentos que dispensam palavras. Falam por si mesmos, desde o princípio, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos. Para a escritora Fernanda Young, por exemplo, “Coração quebrado tem cura: A paz de não precisar mais aguardar a perfeição que não existe”.

Anteontem, uma celebração entrou para a posteridade após repercutir nas redes sociais. Gabriel Medina enfrentou Kanoa Igarashi, que o derrotara nas Olimpíadas de Tóquio, mas em Paris ele queria reescrever a história.

No terceiro dia de competição em Teahupo'o, uma vila na costa sudoeste da ilha do Taiti, Polinésia Francesa, Medina começou com uma onda pequena, preparando o tom para o que estava por vir. Menos de dois minutos depois, ele pegou a maior onda do dia, obtendo 9,9 dos juízes, a maior nota da história do surfe nas Olimpíadas. Dois dos cinco jurados chegaram a dar 10.

O êxtase de Medina produziu outro momento singular: ele saltou da prancha, ergueu o dedo indicador sinalizando o número 1 e o equipamento voou em paralelo, enquanto o fotógrafo Jérôme Brouillet registrava o fato. “As condições eram perfeitas, as ondas mais altas do que esperávamos”, disse Brouillet ao The Guardian. “Eu não podia vê-lo até que ele apareceu, tirei quatro fotos e uma delas era esta. Não foi difícil tirar a foto, foi mais sobre antecipar o momento e saber onde ele começaria a onda.”


Fotografia: Jérôme Brouillet



A imagem é extraordinariamente linda e natural. Um tapa na cara dessa coisa chamada Inteligência Artificial que intriga e assusta a quase todos ao retocar tudo ultimamente.  

Eliminado por Medina nas oitavas de final do surfe na Olimpíada de Paris 2024, Igarashi comentou uma publicação feita pelo brasileiro nas redes sociais. Na segunda-feira (29), após a vitória por 17,40 a 7,04, o vencedor postou a foto que viralizou da sua comemoração após uma onda praticamente perfeita, com a legenda: “Tudo posso naquele que me fortalece”. Entre os inúmeros comentários, um chamou a atenção. Em português, o japonês “reclamou” que Medina não deixou passar nenhuma onda. “Pô! Nem deixou uma para a gente (é rir para não chorar)”, escreveu.


Embora o surfista brasileiro tenha dado mais um passo em direção ao seu objetivo da medalha olímpica, ele certamente sentiu que os juízes poderiam ter sido mais atenciosos com seu esforço. “Senti que era um 10”, disse o tricampeão mundial da WSL. “Já fiz uns 10s antes e pensei: é definitivamente um 10”.


Ainda que o desempenho nas águas possa não ter merecido nota 10, a foto de Jérôme Brouillet foi certamente a imagem da perfeição. A imagem de Medina levitando sobre o mar me remete à figura de Hermes, o deus mais controverso e polêmico da mitologia grega, filho de Zeus com uma ninfa chamada Maia. Era conhecido como o mensageiro dos deuses do Monte Olimpo, que levava mensagens para diferentes locais usando sandálias aladas que facilitavam o seu deslocamento, além de responsável por fazer com que as pessoas sonhassem enquanto dormiam.


Imagem: Reprodução/Redes Sociais

Hermes era tido ainda como inteligente, furtivo e capaz de eventualmente pregar algumas peças como o deus do comércio, da diplomacia, da fertilidade, dos ladrões, dos rebanhos, da riqueza, da sorte, das viagens e o responsável por encaminhar as almas dos mortos até as margens do rio que levava ao submundo, dentre outros atributos. Quer algo mais brasileiro do que isso?


Medina avançou às quartas de final da competição, oficialmente marcada para ontem, terça-feira (30), tendo como adversário o também brasileiro João Chianca, o Chumbinho. Mas os dois terão que esperar um pouco para se enfrentarem nas ondas gigantes a mais de 15.700 quilômetros de Paris. O Comitê Olímpico Internacional (COI) decidiu adiar as quartas de final do surfe e a disputa por medalhas. As provas estavam inicialmente programadas para as 14h (horário de Brasília), 7h no horário local.


Retorno à icônica imagem do fotógrafo francês, porque ela também me fez recordar de um texto do jornalista Fernando Calazans, publicado há mais de 20 anos numa revista comemorativa dos 50 anos de Zico, o último jogador completo do futebol brasileiro (atenção, flamenguistas: reconhecimento de vascaíno tem peso dobrado, hein?!). Calazans arrematou seu texto lembrando que Zico não esteve em nenhuma das cinco Copas que o Brasil conquistou. “Mas não há o que lamentar. Hoje, do alto dos 50 anos dele, eu posso dizer daqui: se Zico não foi campeão do mundo, azar da Copa do Mundo que perdeu um grande campeão. O que importa é que o futebol ganhou Zico.”


Hoje, 31 de julho de 2024, quando publico este texto, ouso dizer a vocês que, se uma medalha olímpica não repousar sobre o peito de Gabriel Medina daqui a poucas horas (os deuses olímpicos, entre eles Zeus, Apolo, Afrodite, Dionisio e Hermes, sabem disso!), azar dos Jogos Olímpicos. O que importa é que a vida se fez mais leve e linda depois que aquela imagem inspiradora passou a circular pelo mundo, agora e sempre, por todos os séculos dos séculos. Amém!

quarta-feira, 24 de julho de 2024

Ao pé do ouvido

Desde criança ouço falar sobre Guilherme Tell, herói ligado à independência da Suíça. A lenda diz que ele era um atirador excepcional com uma besta, um tipo de arco e flecha. No século XIV, desafiou uma das mais influentes famílias nobres da Europa, os Habsburgos, também conhecidos como a Casa da Áustria, que dominava a Suíça.

Um governador austríaco tirano ordenou que um chapéu com as cores da Áustria fosse pendurado na praça central da cidade onde Guilherme Tell morava. Todos que passassem por lá deveriam saudar o chapéu. Um dia, passeando com seu filho, Guilherme não fez a saudação e foi preso. Como castigo, o governador ordenou que ele atirasse em uma maçã sobre a cabeça da criança. E com uma precisão cirúrgica, ele acertou a fruta, tornando-se um mito e ajudando, mais adiante, na revolta que libertou a Suíça.

Quando escutei essa história pela primeira vez, fiquei impressionado com a coragem e a frieza com que pai e filho enfrentaram o castigo do tirano. Na minha meninice, imaginei fazer algo parecido usando um estilingue e uma goiaba sobre a cabeça de um dos coleguinhas de rua. Como nunca fui muito bom de pontaria e era enorme o risco de levar uma surra memorável, caso não fosse competente como Guilherme Tell, morreu ali a ideia de virar lenda no sertão paraibano dos anos 60.

Sobre ter ou não ter pontaria, aliás, me vem à cabeça o caso de Thomas Matthew Crooks, de 20 anos, que recentemente, a uma distância de apenas 150 metros, de cima do telhado, disparou um fuzil e errou os disparos que fez contra o ex-presidente Donald Trump na Pensilvânia, nos Estados Unidos. Minutos depois, as redes sociais se encheram de especulações e ódio, acumulando milhões de visualizações no X (antigo Twitter). "Parece encenado", escreveu um usuário. "Ninguém na multidão está em pânico!", disse outro.

As teorias cresceram com as primeiras imagens, especialmente uma do chefe de fotografia da Associated Press em Washington, mostrando Trump com o punho erguido, sangue escorrendo da orelha, assumindo o figurino de mártir político com a bandeira norte-americana ao fundo – houve quem dissesse que escapou da morte para cumprir uma missão que, por ser divina, está escrita nas estrelas. Pelo sim, pelo não, o atual presidente Joe Biden botou as orelhas de molho e desistiu da campanha pela reeleição.

AP Photo/Evan Vucci

Comparações surgiram com o ataque a faca sofrido por Jair Bolsonaro seis anos antes, em Juiz de Fora (MG). O próprio Bolsonaro identificou paralelos, afirmando que "somente pessoas conservadoras sofrem atentados".


Durante um evento de campanha à Presidência, Bolsonaro era carregado por uma multidão de apoiadores quando Adélio Bispo de Oliveira chegou próximo e o esfaqueou. O candidato – que meses depois seria eleito presidente do Brasil – sofreu uma grave hemorragia e precisou passar por várias cirurgias. Adélio foi preso no local do atentado, e uma investigação policial concluiu que ele agiu sozinho, sem mandantes.


Nos Estados Unidos, Thomas Crooks, que atingiu de raspão a orelha do ex-presidente Trump, não teve a mesma sorte: foi abatido no esplendor da vida, antes mesmo de prestar esclarecimentos sobre seu gesto. Se havia uma razão especial, guardou consigo, para sempre.

Alguém deveria ter avisado a Adélio e Thomas que trabalhos estressantes e arriscados exigem intensa preparação. A competência não surge assim de repente. É algo que os outros percebem a nosso respeito e que precisamos manter. Sonhar em entrar para a história matando alguém importante não é para qualquer um. Pode-se sonhar com algo mais simples, como escrever um livro ou tocar piano fumando charutos, feito Tom Jobim, cantando “Luíza” (aquela do “raio de sol nos teus cabelos que explode em sete cores”). 

O problema é que, ultimamente, quase não identifico o que é falso ou verdadeiro no noticiário. Na era das redes sociais, influenciada pelas narrativas midiáticas sobre a percepção pública, tudo fica extremamente volátil. 

Ando me sentindo feito a Velhinha de Taubaté (personagem do genial Luis Fernando Verissimo), que se tornou celebridade por ser a última pessoa no Brasil a acreditar na versão oficial dos fatos. Durante o governo Figueiredo, ela virou uma atração turística. Estandes de tiro ao alvo, venda de estatuetas dela, uma roda-gigante, caldo de cana e pamonha cercavam sua pequena casa de madeira, onde morava com um gato chamado Funaro e morreu convicta de que o Plano Cruzado, do governo Sarney, uma hora ainda daria certo e mudaria de vez a nossa vida.

É por essas e outras que, ao pé do ouvido, aconselho a quem anda sendo facilmente influenciado por intrigas e pegando em armas (seja estilingue, peixeira ou fuzil), a refletir: se você não é um Guilherme Tell, não vale a pena tentar matar nem o seu pior inimigo, quanto mais um candidato à Presidência. Vai que a coisa foge do controle e a história é alterada por absoluta incompetência.

quarta-feira, 17 de julho de 2024

A vida é mesmo muito frágil

Aos 61 anos, Nando Reis continua um dos grandes personagens da música brasileira. Suas canções, imortalizadas por bandas como Titãs, Skank e Jota Quest, além da parceria inesquecível com Cássia Eller, destacam-se por letras enigmáticas e instigantes. Tanto que mantém um canal no YouTube para explicar suas letras.


 

Fui apresentado a ele há 20 anos, nos bastidores do Multiplace Mais, em Meaípe, Guarapari (ES), após um show memorável. "Parabéns, Nando, foi espetacular!" – cumprimentei. E aquela figura humilde e insegura me perguntou baixinho: "Você gostou mesmo?"

 

Na noite anterior, ele não conseguiu terminar a segunda música, praticamente desfalecendo no palco, sob vaias de um público estimado em três mil pessoas. Uma banda local teve que substituí-lo para acalmar a plateia.

 


Recentemente, no programa Maria vai com os Outros do Canal UOL, direto de sua casa em São Paulo, Nando expressou o desejo de viver até os 104 anos: "Quero viver mais de 100. Claro que com lucidez e saúde. Tenho 60, e desperdicei muito tempo bebendo e cheirando. Preciso compensar esse tempo perdido."

 

Eu não tenho mais a cara que eu tinha, Nando, mas posso me adaptar. Bancário aposentado, 66 anos, minha ambição é um pouco mais modesta. Se chegar consciente e bem-humorado aos 88, ficarei satisfeito. Não usei cocaína ou outras drogas pesadas, mas gostava de beber e de fumar. Cada encontro com amigos, cada gole, cada trago, foi um momento vivido em sua plenitude. Não seria honesto, de minha parte, pedir reposição por algo tão bem aproveitado.

 

Nando agora se cuida para alcançar sua meta, equilibrando suas alegrias e contradições. Em depoimento à revista Piauí, no ano passado, ele se identificou como alcoólatra e falou sobre seus oito anos de sobriedade, motivado a recuperar o tempo possível.

 

Dei mais sorte. Tive outros vícios imperdoáveis, considerados lícitos, como trabalhar inclusive nos feriados e fins de semana. Ainda assim, fiz o possível para estar com minha mulher e meus filhos, e reconheço que o preço não foi tão alto para lidar com a ansiedade e a presunção do dever cumprido.

 

A qualidade de vida que Nando leva hoje o faz refletir: "A angústia que tenho, com a tristeza e tudo mais, me faz querer viver bem... Eu me cuido para viver bem. Adoro a vida, quero viver muito. Tenho projetos, quero ver meus netos crescerem. Por isso me angustia ver o planeta ser destruído."

 

Quem não sonha ver os netos crescerem e se preocupa com os rumos da humanidade? Lembro do que previu o falecido empresário Antonio Ermírio de Moraes, há alguns anos: “nossos netos e bisnetos viverão num crescimento perigosamente desequilibrado, com dois terços do planeta em nações pobres”.

 

A preocupação com o meio ambiente levou Nando a investir num projeto de reflorestamento na fazenda herdada do avô, no interior de São Paulo, sua forma de dar visibilidade a uma causa importante e manter seu vínculo com a natureza.

 

Sorte a dele! Meus avós não puderam me deixar um pedacinho de terra sequer para investir num projeto de reflorestamento. Mas deve existir outras formas de promover a preservação ambiental. Escrever sobre o assunto pode ser uma delas.

 

"Sou apegado aos meus filhos e netos, quero vê-los se casar, quero ver as árvores que plantei em Jaú crescerem. Quero ver meu projeto de reflorestamento. [...] Quero muita coisa”, pontuou Nando.

 

Quem de nós, Nando, com mais de 60 anos, não deseja ver os netos casarem e a vida fluir como um rio rumo ao mar? Quem não teme por eles "quando o segundo sol chegar, realinhando as órbitas dos planetas", como você nos alerta há tempos. Essa história de aquecimento global anda queimando inclusive o nosso juízo e não dá sossego a ninguém. 

 

Você diz que sua meta de viver mais de cem anos é uma forte e constante confirmação de seu desejo: “...É quase uma piada. Gosto de ser enfático e provocativo, mas é meu propósito”.

 

Você tem razão, Nando, quando canta em “Por onde andei” que “a vida é mesmo coisa muito frágil, uma bobagem, uma irrelevância, diante da eternidade, do amor de quem se ama”. Ou ao pedir em “Sutilmente”, composta com Samuel Rosa, que “quando estiver triste, simplesmente me abrace... Quando estiver fogo, suavemente se encaixe... Mas quando eu estiver morto, suplico que não me mate de dentro de ti...”.

 

Se eu tivesse um terço da sua habilidade de compor e cantar, talvez fizesse um requerimento (não em papel timbrado, com firma reconhecida e sob carimbo identificador!) ao proprietário do tempo – fonte de onde tudo emana e para onde tudo se encaminha – pedindo a prorrogação do jogo.

 

Como não tenho, Nando, se chegar lúcido e rindo de mim mesmo aos 88 anos, contando histórias e podendo beber uma taça de vinho ouvindo suas canções, vou-me embora numa boa. Sem queixas. 

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Nao dá pra esconder

Há duas semanas, uma cantora pernambucana interrompeu um show em Mossoró, no Rio Grande do Norte, por um motivo insólito: um pum afastou parte do público da frente do palco durante a festa de São João na cidade. Após notar a dispersão, a artista brincou: "Pensei que fosse uma briga, mas soltaram um peido aí, foi? Tá podre mesmo. Carniça!". E compartilhou em suas redes sociais: "Já parei o show por vários motivos, mas por causa de um peido foi a primeira vez".


Essa situação inusitada me fez lembrar de um velho amigo, poeta matuto paraibano que vive "defendendo sua poesia a golpes de declamações por todo o Brasil em tons solenes e brincativos", como ele mesmo diz, a quem manifestei minha preocupação de vê-lo nessas aglomerações juninas regadas a comidas à base de milho verde, manteiga e leite de coco. 

Ele me tranquilizou ao explicar que, no caso de suas geniais apresentações, um pum pode mudar de um lado pro outro sem maiores consequências para o recital ou para o efeito estufa (camada de gases que envolve o planeta). “Se tem uma coisa que não se esconde é paixão, febre e catinga de peido”, pontuou.

A ocorrência também me fez recordar dos dias que sucederam o enterro de meu pai, há mais de meio século, quando minha mãe, que até hoje morre de medo de alma penada, convocou os nove filhos a dormirem ao lado dela, espalhados em colchonetes pelo quarto de casal. 

Na terceira noite, após rezar o terço pelas almas do purgatório e a luz ser apagada, um de meus irmãos libertou uma daquelas ventosidades silenciosas que fazem os olhos lacrimejarem e queimam os pelos das narinas dos circunstantes. Nem ele mesmo suportou o ambiente insalubre e se entregou nas justificativas: 

– Mamãe, acho que aquele cuscuz com graxa de galinha no jantar me fez mal... 

– Deixe de conversa! Onde já se viu cuscuz fazer mal a ninguém? Tu tá é podre, miserável! Saia daqui agora e vá dormir lá na sala! – sentenciou, tapando o nariz e levantando-se aos engulhos para abrir janela e porta do quarto.

Esses momentos burlescos escondem uma realidade mais séria sobre os gases que emitimos. Todo animal, inclusive os racionais, produz gases intestinais. Estudos mostram que um humano adulto pode liberar gases até 20 vezes por dia. A libertação de um flato na atmosfera decorre de reações químicas promovidas pelas bactérias que atuam nos intestinos, intensificadas por alimentos como feijão, ovo e repolho. Apesar de ser um processo natural, o "efeito bufa" dos outros é insuportável, especialmente em espaços fechados.

Mas a questão vai além do desconforto imediato. A produção mundial de carne tem uma responsabilidade significativa na emissão de gases do efeito estufa, superando até a quantidade de gases emitidos pelos automóveis. A digestão dos animais libera metano (CH4) na atmosfera, um gás com um potencial de aquecimento global cerca de 25 vezes maior que o do dióxido de carbono (CO2), resultante da queima de combustíveis fósseis.

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

Circula na internet, inclusive, a notícia de que a Dinamarca vai tributar pecuaristas pelos gases de efeito estufa emitidos por seus animais. A medida, acordada entre agricultores, indústria, sindicatos e grupos ambientais, ainda aguarda aprovação parlamentar, mas promete revolucionar a política climática do país. Enquanto especialistas dinamarqueses calculam os impostos, os criadores de bois, ovelhas e porcos terão de pagar 300 coroas (aproximadamente R$ 237) por tonelada de dióxido de carbono equivalente. O valor subirá para 750 coroas (R$ 592) até 2035, com direito a uma dedução fiscal de Imposto de Renda de 60%.

Apesar de se falar muito de CO2, o metano, principal gás emitido pelos animais, preocupa mais pelo seu potencial de aquecimento do planeta. Responsável por 32% das emissões de metano, o setor pecuário se destaca no centro na agenda ambiental global.

Assim, seja no palco em Mossoró, na casa de minha mãe ou nos campos da Dinamarca, o impacto dos gases emitidos pelos viventes, embora muitas vezes encarado com humor, constitui uma ameaça que não pode ser desprezada. 

O pum que dispersou o público em um show ou a bufa silenciosa que causou risos e desconforto em família, ambos são lembretes de nossa natureza animal. Contudo, é importante não perder de vista que esses mesmos gases contribuem para um problema ambiental grave.

Portanto, enquanto brincamos sobre a carniça no São João ou debatemos políticas ambientais na Europa, não podemos esquecer que cada disparo, por mais engraçado que seja, tem um papel crucial na preservação da vida no planeta. Diminuir o consumo de carne e optar por dietas mais sustentáveis são maneiras de cada um de nós contribuir para a redução dos gases de efeito estufa.

Como o poeta diz que, "se tem uma coisa que não se esconde é paixão, febre e catinga de peido", talvez esteja na hora de não escondermos também a seriedade do impacto que cada um de nós pode causar ao meio ambiente, legando para as próximas gerações um planeta melhor. E mais cheiroso.


quarta-feira, 3 de julho de 2024

Galope do tempo

Outro dia, um amigo me mandou uma fotografia de três décadas atrás fazendo uma ressalva que me deixou apreensivo: “Cá pra nós, não estou me dando muito bem com o galope do tempo. Custei a vergar, mas ultimamente...”

Curioso, perguntei sobre a amplitude do “ultimamente” mencionado. Disse-me, no seu gauchês, que é só “o somatório de várias constatações nos últimos tempos: Correr todo duro, sem qualquer molejo; tontear ao abaixar; ficar ofegante a partir do quinto degrau de uma escada; não aguentar mais uma churrascada como antes; querer dormir mais que a cama; esquecimentos frequentes... Isso sem falar da necessidade dos ‘azulzinhos’ para qualquer saliência com minha deusa morena...”

Exagerou, sem dúvida! Aos 68 anos, continua o brincalhão debochado, sarcástico, tocando seu trombone maravilhoso e provocando Deus e o mundo, como quando citou Woody Allen em nossa conversa: “Não é que eu tenha medo de morrer; é que não quero estar lá na hora que isso acontecer.”


Ele sabe que a possibilidade de vida eterna só nos traria problemas, isso sem falar nos transtornos que seria para os nossos planos de saúde e de previdência complementar. O “fim da aventura” sempre foi uma angústia humana, mas serve também de consolo, pois nos desobriga de refletir sobre a dúvida de Caetano Veloso: “Existirmos: a que será que se destina?”.

A crença na vida após a morte, portanto, tem seu lado interessante porque admite a eternidade sem as dúvidas, já que é pouco provável que as divagações metafísicas continuem no outro plano. Lá, sem a necessidade de morrer novamente (exceto para os que acreditam em sucessivas reencarnações), não tem o que especular sobre como toda essa bagunça que reina por aqui um dia vai acabar. 

Resolvi então provocar meu amigo utilizando um tom coloquial, mas explorando conceitos complexos sobre o tempo. Perguntei: você sabe o que é o tempo? Não parece, mas a física moderna revela que o tempo, em grande parte, é apenas uma ilusão – alertei-o.

Não me respondeu até agora. Se o fizer, pretendo recomendar algo bastante simples: imagine que seu relógio em casa marca 7h quando você sai para caminhar e 8h quando retorna. Parece que uma hora se passou, mas na verdade, como você se movimentou, o tempo para você foi um pouquinho mais curto. Uma diferença imperceptível, mas real, como Einstein mostrou. O tempo não é universal; ele é pessoal. Cada um de nós vive sua própria versão. Sentimos o tempo passar, mas essa sensação é mais psicológica.

Essas reflexões sobre o tempo me fizeram lembrar de uma manhã, muitos anos atrás, caminhando à beira-mar. Encontrei uma senhora, no auge de seus 70 anos, usando uma bandana e uma blusa onde estava escrito: “A velhice é uma conquista.” Isso me fez pensar em quantas pessoas não chegam a conquistar essa medalha, muitas vezes derrotadas por um gol contra do destino, como uma complicação besta de uma virose de inverno.

Desde então, interessei-me por envelhecer compartilhando memórias, inclusive as minhas mais doloridas lembranças. E se um dia os neurônios vacilarem – engolidos pelas sombras do esquecimento –, espero que as pessoas que ouviram guardem minhas palavras, distorcidas ou não pelos filtros de meu ego, na versão que lhes contei.

Conto também que jamais perderei a capacidade de engolir seco, de travar a garganta diante das coisas mais banais do noticiário – como uma mãe que agradece a chance de poder catar restos de comida no lixão –, nem tampouco a capacidade de aceitar minhas contradições e meus medos. 

E tenho repetido a mim mesmo que seguirei garimpando velhas e novas preciosidades pelos caminhos que trilhar, sendo menos ranzinza e mais bem-humorado, ácido quando for necessário e, na medida do possível, senhor de minhas vontades. Se não der, que me seja concedido aceitar as limitações impostas pela fragilidade da condição humana.

Já se passou uma semana e meu amigo ainda não respondeu à minha provocação. Talvez ele mesmo tenha se perdido nas suas reflexões ou simplesmente decidido ignorar minhas teorias sobre o tempo. Pensando bem, talvez seja melhor não esticar a conversa. Ou dizer a ele apenas para esquecer essa coisa do “somatório de várias constatações”. 

Afinal, chega uma hora em que começamos a pensar no que dirão no nosso velório, sem que nada possamos fazer a não ser olhar para trás e ver não o que perdemos, mas tudo o que ganhamos ao longo da jornada, com gratidão pelas memórias que construímos, pelas risadas que compartilhamos e até pelas lágrimas que derramamos.

E que possamos seguir em frente, mas reconhecendo a inutilidade de espernear contra o indomável galope do tempo.

Arte ou macacada?

Na última quinta-feira, enquanto tentava acompanhar uma aula por videoconferência, recebi de meu amigo, o espirituoso jornalista e escritor ...