Um estrangeiro que desembarque por essas bandas, Google Tradutor em punho, corre sério risco de se engasgar com a própria curiosidade tentando entender uma simples conversa entre dois brasileiros. Agora, se um for nordestino como eu e o outro, digamos, catarinense, aí o bicho pega: é como pedir pra um vaqueiro matuto dançar uma valsa sob a batuta de um maestro austríaco: falta compasso e sobra tropeço.
Outro dia, num desses restaurantes chiques das entrequadras da Asa Sul de Brasília — a cidade que mais mistura costumes e sotaques brasileiros —, onde até a taça de vinho parece confidente, escutei uma conversa digna de dicionário antropológico, envolvendo uma crise conjugal prestes a virar meme nas redes sociais:
— Depois que caiu a ficha, amiga, enfiei o pé na jaca!
— Foi mesmo? E no que deu?
— Deu que a luz dormiu acesa e ele ficou preso do lado de fora...
Traduz aí pro alemão, pro francês, pro tradutor simultâneo da ONU com pós-doutorado em semiótica brazuca. Qual ficha caiu? A do orelhão, a do crupiê do cassino ilegal ou a do juízo? E a jaca, por que sempre ela? Já virou capacho de tanto pé atolado em descontrole emocional. A luz dormiu acesa? Será que acorda amanhã ou só quando chegar a conta com insônia.
“Preso do lado de fora”, então, é tragédia embrulhada em laço de fita. Ninguém sabe quem trancou, se trancou ou se existia mesmo um lado de dentro. Só se sabe que, naquele instante, ninguém entra, ninguém sai — feito turista tentando embarcar com passaporte irregular.
É que brasileiro não fala: codifica. Nosso idioma paralelo mistura filosofia de boteco com poesia de mesa de trabalho. É língua oficial com senha, QR code e dicionário afetivo de bolso — que, volta e meia, some junto com a paciência.
Veja este clássico: “Tem, mas acabou.” É como se o universo parisse um desejo só pra abortá-lo em seguida. Existiu, sim — mas evaporou feito amizade desinteressada nos corredores do Congresso Nacional.
E o tal do “Escuta só pra você ver”? Ou a pessoa tem superpoderes sinestésicos, ou tá prestes a enxergar um barulho passando colorido na frente dela. Cientificamente, é risível. Literariamente, uma pepita linguística.
E o lírico-geométrico “Tô aqui só cubando você”? Não é espionagem nem vigilância sanitária. É observação com sotaque e julgamento com discrição. Um olhar enviesado que diz: “tô aqui só de olho nos seus pés”.
“Tô com fome de comida.” Fome de quê? De vingança, de protagonismo? Só chamando os Titãs pra explicar: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte.” E as contas pagas, claro, que a vida não anda fácil pra ninguém.
Tem ainda o existencialismo frutado do “Vai ficar aí chorando as pitangas?” Porque não basta sofrer: é preciso escolher a fruta certa. Pitanga é pequena e azeda, mas podia ser acerola, cajá, tamarindo, umbu — vai do grau de amargura de cada criatura.
E o intrigante “Daí peguei e falei”? Pode não dizer nada — ou tudo. Depende do contexto, da entonação e do teor etílico da conversa. Às vezes, é só vinheta antes da apoteose do desfile.
Brasileiro também é mestre em geografia lírica:
— Essa rua vai dar aonde?
— Siga reto, toda vida.
Toda vida. O tempo como direção, o destino como abstração. E ainda que a rua termine numa ribanceira, o que vale é a fé — mesmo quando o GPS alerta que está recalculando.
Quando alguém diz “Tá ficando tarde, vou chegando”, pode esperar: ainda vai pedir a saideira, contar três mentiras e esquecer o celular no banheiro.
E tem o pois, o sim e o não. Separados, são inocentes. Juntos, fazem qualquer gringo patinar no seco. Explica pro cidadão que “pois não” é “sim, senhor” e que “pois sim” é um não disfarçado de ironia:
— Pois sim, espere e verá!
O estrangeiro, pobre alma diplomada, vai franzir a testa, consultar o dicionário... e encontrar só os mistérios insondáveis de uma língua que se recusa a ser domesticada. Uma língua feita de gambiarras poéticas, humor instintivo e metáforas de sobrevivência.
Porque tem coisa que nem brasileiro entende — mas sente. E dura até acabar. Não vê nem o cheiro. Só curte, mesmo vivendo ao Deus-dará, com a esperança e a paciência já em aviso-prévio.
Melhor ficar quieto no meu canto, todo fim de tarde, decifrando palavras e pessoas — só esperando o sol esfriar, se é que um dia esfria.