quarta-feira, 7 de maio de 2025

Linha cruzada com o passado


Fotografia: Dedé Dwight

Esses dias, do nada — ou do tudo que mora entre o suspiro e o tédio — me veio à cabeça uma antiga namorada do começo dos anos 1970. Lembrei dela não pelo cheiro do perfume ou pela caligrafia nos bilhetes, mas por causa de um número: 3-4426. Quatro algarismos precedidos por um “3” que parecia arrastar os pés. Simples, não? Um número que hoje, se digitado num celular, talvez acione uma central de televendas ou um mototáxi na cidade onde vivo.


Naquele tempo, telefone era artigo de luxo, quase um troféu exposto perto da porta da sala. Na casa dos meus pais, a linha não chegava nem com promessa aos céus. Quando a urgência apertava — uma dor de dente, uma notícia, um amor — eu batia na porta da vizinha, que exibia um orgulho mal disfarçado da linha dela, ou atravessava a rua até a padaria, onde o dono emprestava o aparelho como quem concede um mimo ao filho da cliente mais assídua no caderno de fiado.


Tinha também o orelhão, cinza e solitário, instalado a um quilômetro de casa, no posto de gasolina. Era preciso coragem para encarar o acostamento da avenida larga e sorte para achar fichas, aquelas relíquias metálicas que funcionavam como moedas mágicas. Três delas podiam invocar vozes distantes. Às vezes, dava certo. Às vezes, só dava ocupado. E a fila atrás de você, impaciente, formada por outros personagens tentando escrever seus próprios capítulos nas novelas da vida.


Um dia, a vizinha me chamou no portão:
— Corre aqui, tem ligação pra você!


Fui. Lá estava ela, plantada na sala, fingindo ajeitar a cortina, mas com os ouvidos mais esticados que os varais do quintal. Já sabia — ou pressentia — que se tratava de um namoro em ponto de ebulição. Queria o calor do espetáculo na primeira fila.


Atendi, disse “alô” com aquele nó que dá na garganta quando se tem quinze anos e medo de perder o que mal começou. Do outro lado, silêncio. E então, como num roteiro meloso de novela das sete, soou uma voz:
— Como vai você? Eu preciso saber da sua vida…


Era Roberto Carlos, mensageiro de luxo do adeus, entregando o que minha namorada não teve coragem de dizer. Depois da serenata telefônica, apenas um clic. Fim de chamada. Fim de capítulo de uma breve novela.


Fiz cara de quem só acabara de ouvir uma pesquisa de satisfação da companhia telefônica, agradeci a prestimosidade da vizinha e saí. Como quem esconde o coração no bolso e finge que foi uma ligação sem importância alguma.


Naquela época, telefone era ponto de encontro — e de embate. A linha principal ficava na sala de estar, por onde os fios entravam como raízes buscando a alma da casa. Depois vieram os ramais, e com eles os riscos: alguém podia erguer outro fone e se intrometer na conversa. Às vezes por acidente. Outras, de propósito. Mas quase sempre dava confusão. O anonimato das linhas cruzadas era tentador — e, confesso, vez por outra me rendia à molecagem. Mesmo sabendo que a vida já se encarregava de pregar as suas.


Semana passada, vejam só, me peguei com um pensamento intrusivo desses que chegam sem convite e se instalam feito espinho de peixe na garganta em véspera de festa: e se eu discasse aquele número de novo? Claro, acrescentaria os dígitos da modernidade — DDD, nove, talvez até um código interestelar. Mas e se alguém atendesse? E se fosse a própria voz da memória, perguntando por que demorei tanto a dar sinal de vida?


Fiquei com o dedo suspenso sobre o teclado do celular por alguns segundos, mas não apertei. Porque há números que, se discados, não chamam fora — chamam dentro. Não alcançam outro aparelho. Alcançam a gente.


Cada dia que passa, estou mais convencido de que o passado é um bairro onde a gente até pode voltar pra rever a paisagem, mas não deve tentar morar de novo. Algumas casas ainda estão de pé, mas os moradores se mudaram. Ou desapareceram na poeira do tempo. Ou estão escondidos dentro da gente, ocupando um quartinho com janela aberta pro coração.


E não adianta procurar orelhão. O que mais faz falta, mesmo, é alguém do outro lado da linha querendo ouvir a gente perguntar:
— Como vai você?

Linha cruzada com o passado

Fotografia: Dedé Dwight Esses dias, do nada — ou do tudo que mora entre o suspiro e o tédio — me veio à cabeça uma antiga namorada do começo...