No auge do bate-boca sobre se havia entre nós uma gripezinha à-toa ou uma virose de proporções funestas, Pedrinho viu o seu querido sogro se queixar de formigamento nas mãos e nos pés. Embora não fosse do ramo, desconfiou do descontrole da diabetes. Como o velho tinha pavor de hospital, vinha evitando o acompanhamento médico durante a pandemia.
Isso foi ruim. O sogro acabou tendo que amputar um dedo, parte do pé esquerdo e contraiu osteomielite – infecção nos ossos, com muita dor, febre e calafrios. Para a família, a falta de higiene dos enfermeiros nos curativos teria transmitido a bactéria de uma criança internada no quarto ao lado. Deu-se então o pior: ele não resistiu.
Muito apegado ao sogro – que lhe dera abrigo e comida nos primeiros anos de casamento –, Pedrinho sentiu bastante. “Virei um cocô, e queria mais que alguém puxasse a descarga”, disse-me. Nem esse empurrão recebeu dos amigos. Restou-lhe dividir o luto oferecendo o ombro à sogra, à mulher e aos cunhados.
Vieram em seguida os aborrecimentos com o inventário e até hoje não ocorreu o desfecho do arrolamento de miudezas no valor, se tanto, de R$ 250 mil. Por ser bancário aposentado e mais afeito a essas coisas, teve que assumir o leme do barco.
Contou que procurou alguns advogados e o mais barateiro, um amigo de ginásio, pediu R$ 4 mil, contra R$ 12 mil exigidos por “uma tarada jurídica que a sogra lhe apresentou. "Isso porque era amiga da família, veja você!”, me disse.
Quis ajudá-lo apontando um ex-colega de trabalho que inclusive lhe devia alguns favores: Dr. Galdino Lima, vulgo “Dino” – por conta de petições jurássicas recheadas de “destartes”, “entrementes” e “outrossins” –, que hoje advoga na região de Penedo, na foz do rio São Francisco, no sul de Alagoas.
Por e-mail, Dino pede R$ 25 mil. Esclarece que trabalhou na OAB e viu a diferença entre um bom e um mau profissional, que a tabela prevê 10% de honorários. E narra dois casos: primeiro, refere-se a tratamento dentário onde o odontólogo cobra R$ 50 por extração, o prático, R$ 25 e, se o paciente topar sem anestesia, fica por R$ 10. Noutro caso, relata que um bancário se demitiu e emprestou a “indenização” a 8% a.m. Agora, não consegue receber do tomador e as despesas com custas advocatícias e processuais são maiores do que esperava ganhar. E provoca no final: “Não venha me dizer que você não pode pagar por sua sogra!”
Chateado com “a ingratidão, a insensibilidade e o corporativismo improdutivo”, Pedrinho rascunha uma possível resposta em 10 tópicos e pede minha opinião a respeito:
“Dr. Dino,
Primeiro: um dos princípios do Direito é cristalino – “Ninguém poderá alegar em sua defesa a ignorância das leis”.
Segundo: o direito à herança está previsto no Código Civil.
Terceiro: no tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, boa parte da população era analfabeta, necessitando-se de advogados. Agora, não.
Quarto: se um homem morre sem dever nada a ninguém e sua família decide quem fica com o quê, qual o custo de se fazer um simples requerimento ao juiz? Gasta-se tanto em tinta, papel, tempo e fosfato que justifique pagar de 5% a 10% do valor dos bens?
Quinto: você, que foi assessor da OAB, pode ter esquecido, mas vários companheiros seus negociam por menos que os 10% previstos na tabela.
Sexto: de carrinho de pipoca até prédio de apartamentos, o rito judicial é praticamente o mesmo. É justo isso?
Sétimo: você sabe quanto custa ganhar R$ 25 mil? Acha justo que uma viúva, para permanecer com aquilo que juntou a vida inteira de trabalho, economias, de filas e de ônibus, que terá agora que sobreviver com aposentadoria de R$ 350 por mês, pague 10% de tudo que tem para que alguém coloque seu nome e descreva seus bens num formulário padrão em poucos minutos de trabalho e o submeta ao juiz? Ah! – você dirá –, tem o acompanhamento! Isto é, consultar o andamento do processo via Internet ou, na pior das hipóteses, quando o advogado passa no fórum, verificar se o dossiê não foi extraviado ou pedir para que lhe soprem a poeira de cima.
Oitavo: no caso do meu sogro, nem há necessidade de inventário. Basta arrolamento.
Nono: era como os netos dele o chamavam.
Décimo: para mim, o bom profissional é aquele que sabe atribuir valor justo ao que faz. Não é preciso mestrado ou doutorado para se fazer um trabalhinho desses. Está no “bê-á-bá” do Direito. Quem opta por extrair um dente por R$ 10, sem anestesia, sabe do risco. É mais um mesquinho tragado pela avareza, pecado capital em que também incorrem aqueles que emprestam dinheiro a 10% ao mês ou os que querem ganhar muito com pouco esforço...”
Li, reli e propus apenas algumas vírgulas, além de dois ou três ajustes. Pedrinho sabe que há 13 anos já não é obrigatório fazer inventário por via judicial quando não existe divergência na partilha de bens entre os herdeiros e todos são maiores. Mesmo assim, fez questão de responder à mensagem recebida.
Sentiu-se livre e solto, como se gritasse: "Nem podendo, doutor!"