Uns juram que morri, virei pó, há quase meio século. Outros, não. Dizem que vivo em meus filhos, netos e bisnetos. Sei que aqui, sentado à beira do caminho por onde tudo passa, vez por outra retrocedo o filme e posso revê-lo, cena a cena.
Sei que parece difícil de acreditar, mas nunca aprendi a jogar futebol, pedalar, cavalgar ou nadar, mesmo tendo morado quase quatro décadas em pequenas cidades do interior. Nem a abraçar e beijar meus filhos.
Tive que encarar outros medos, como viver longe de meus pais e irmãos menores, do chão onde nasci. Mais tarde, virei bancário, casei-me e pude ver de perto os primeiros passos de meus filhos. Relaxava ouvindo músicas, lendo livros, revistas e jornais. Às vezes, até colecionava figurinhas.
Foi diferente com ele, meu segundo filho. Mal aprendeu a andar e a falar, ganhou uma bola e o afeto recíproco instalou-se entre eles. Não era nenhum Ademir Queixada ou Vavá, mas posso revê-lo correndo no calçamento ou nos terrenos baldios, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar.
Nos anos 1960, quando O Cruzeiro, editora do grupo Diários Associados, encartou nos gibis que distribuía uma coleção de figurinhas de aviões, encontrei o que procurava para estimular em meus filhos o gosto pela leitura. Toda semana, ficava com as figurinhas e oferecia à minha primeira filha os gibis Bolinha e Luluzinha; a ele, Dom Pixote e Pimentinha; ao seguinte, Brasinha e Gasparzinho.
Mais adiante, o susto foi grande quando o vi pedalando, sua bicicleta sem as rodas de apoio, na calçada da rua em que morávamos. Foi como se a vida, duas décadas antes, nos antecipasse a emoção da cena de Spilberg em que um menino foge da polícia e cruza a mata voando com um pequeno extraterrestre no bagageiro, tendo a lua por testemunha.
Depois, ao visitar um sítio, o dono quis apenas ser gentil ao me convidar para um passeio num cavalo selado, manso. Sabia qual seria a resposta de quem nunca montara nem em carrossel de festa natalina. Espantei-me quando ele entrou na conversa e se ofereceu:
– Eu quero!
– Onde você aprendeu a montar?
– Na rua...
– Como?
– Na burra de seu Jorge, da água.
Não havia água potável, encanada, na cidade em que vivíamos. Duas vezes por semana, Seu Jorge, um cafuzo risonho, parrudo, maneta – perdera uma mão numa briga de foice de que nunca contou detalhes, nem perguntei para não reabrir cicatrizes –, trazia água da cacimba de um sítio que arrendara nos arredores, onde plantava hortaliças, inhame, macaxeira e criava galos-de-briga para apostas em rinhas clandestinas.
Revejo agora meu filho perguntando a Seu Jorge se poderia acompanhá-lo até a cacimba onde encheria as latas para suprir potes e garrafas de uma casa vizinha à nossa. Ele não só consente como o ajuda a montar e segurar no cabeçote da cangalha para não cair. Dias depois, o menino, juntamente com alguns colegas de rua, negociava com um fazendeiro o banho de cavalos e éguas. Cobravam pouco: o direito de suar cada animal em meia hora de galope no osso (sem selas nem estribos), tendo por cabresto uma corda laçada no focinho. Montar cavalo selado, manso, virou garapa.
De tanto ir ao rio banhar animais, imerso até a cintura e com inveja do destemor dos colegas, um dia ele arriscou saltar de uma pedra em águas mais profundas, mergulhar, voltar à tona e bater braços até a margem para não se afogar, escondendo dos outros o pavor de cair em buracos e ser engolido pela correnteza ou pelos redemoinhos.
Só quando nos mudamos para a capital e o matriculei num curso de natação ele se deu conta de que aquilo que faziam no interior era rascunho do nado livre ou crawl. Havia outras modalidades de nado como costas, peito e borboleta. Aprendeu a respirar e alternar movimentos de cabeça, tronco, braços e pernas, mas nada que o transformasse em nadador olímpico.
Mesmo assim, revejo que carrega bem vivo na memória seu único triunfo esportivo digno de nota. No verão de 1971, nas provas finais, com as cercanias da piscina do clube coalhadas de gente, não gostou de ver a imensa torcida por um adversário na raia a seu lado, em prova de peito clássico, enquanto apenas mãe e irmãos, sumidos no oceano de cabeças, tentavam encorajá-lo para não passar vexame.
Venceu por uma braçada – sabe Deus como! E, do alto de dois engradados de cerveja que serviam de pódio, engoliu o choro ao receber de minhas mãos, então secretário do clube, a única medalha de natação que pendurou no pescoço. Disseram-lhe que homem não chorava. Nem menino mudando de voz, com pedras nos peitos e pelos até nos sovacos.
Ninguém dá o que nunca teve. Ninguém ensina o que não sabe. Nunca aprendi a jogar futebol, pedalar, cavalgar ou nadar, mas revejo daqui, sentado à beira do caminho por onde tudo passa, que pude dar a meu filho outros saberes. E me faz bem vê-lo agora ouvindo músicas, lendo livros e revistas, vendo filmes, escrevendo crônicas, entre outras brincadeiras que lhe dão prazer.
Revejo ainda que poderia tê-lo abraçado mais, dito o quanto era importante para mim. Ele aprenderia e faria o mesmo com meus netos e bisnetos. Mas, de novo, ninguém dá o que nunca teve, nem ensina o que não sabe.
Quanto a jogar futebol, pedalar, cavalgar e nadar, noto que já não lhe fazem falta, como nunca me fizeram. Dormem no limbo onde ficaram os medos e brinquedos da criança que não fui.