Há menos de três semanas ela e eu traçávamos planos modestos para a noite de Natal de um ano pra lá de medonho, ano que não acabará tão cedo em nossas cabeças torturadas pela agonia de cada dia.
Tudo dentro do que planejamos, comida apenas para um casal resignadamente confinado há nove meses: frango com recheio de quatro queijos, arroz de lentilhas, cuscuz marroquino e batatas ao murro. Ela e eu, pela primeira vez em quase 49 anos de mútua tolerância, sem pais, irmãos, filhos, netos nem amigos por perto, diante de nossa ceia de Natal, tocados pela esperança de que duas picadas em cada um de nós possam redesenhar este cenário com cores, sons e cheiros diferentes no ano que vem.
Nem a pressa ditada pela fome de quem almoçara ao meio-dia me impediu de, antes da primeira colherada, esquentar os pratos no forno por volta de nove da noite. Enquanto isso, conversávamos com filhos e netos debruçados nas janelinhas do aplicativo de encontros virtuais dos dias de hoje, satisfazendo, no que possível (imagem e som), o desejo de revê-los em carne, osso e pele.
O celular me alertou de que, rapidamente, transcorreram quinze minutos. Entretido na prosa, demorei-me, se muito, mais dois ou três minutos, certo de que nada de relevante aconteceria em tão pouco tempo. Esqueci de que havia preaquecido o forno, a 200 graus centígrados.
De luvas, ao retirar os pirexes, o primeiro deles explodiu em minhas mãos, espalhando frango, molho, queijo derretido e estilhaços de vidro de tudo que é tamanho sobre o que havia nos arredores: outros pratos, fogão, pia, chão da cozinha, da sala de jantar, além de minhas canelas cada vez mais finas e lisas.
Não sou bombeiro nem especialista em resistência de materiais, mas creio que a causa provável do estouro tenha sido o acúmulo de gordura fervendo num dos lados do recipiente, que estava desequilibrado na única prateleira do forno. A roldana da segunda prateleira quebrou-se há três ou quatro meses e resolvi não consertá-la, por enquanto, para evitar terceiros na bolha asséptica em que se transformou o apartamento na quarentena. Quando chacoalhei e quis distribuir o molho no refratário como um todo, devo ter provocado um choque térmico.
Na hora, me veio à cabeça tentar dar um jeito na situação e aproveitar o que fosse possível de nossa tão cheirosa e esperada ceia de Natal. A julgar pela aparência crocante do frango borbulhando no chão da cozinha, eu não via a menor chance de ali existir ativo o já nem tão novo coronavírus. Logo, quem sabe fingindo que nada ocorrera...
Mas existiam cacos de vidro por todos os cantos no raio de dez metros do epicentro da explosão, inclusive em meus pés onde brotavam gotas de sangue. A primeira providência de minha mulher foi passar água e sabão nos ferimentos, seguidos de algodão e desinfetante. As luvas que eu usava certamente me protegeram de ter que ir a um hospital para suturar algum corte mais profundo, com todos os riscos de contágio que nos assombram nestes tempos traiçoeiros e sombrios.
Ela e eu, pela primeira vez em quase 49 anos de mútua tolerância, sem pais, irmãos, filhos, netos nem amigos por perto, tivemos que nos contentar com as sobras requentadas do almoço, com o nada luxuoso reforço de algumas fatias de pão com manteiga na chapa. Era o que tínhamos para o jantar, isso duas horas após intensa atividade braçal-natalina à base de vassoura, pá, aspirador de pó, água sanitária, desengordurante, pano, rodo e alguma paciência que ainda nos resta.
Logo, matávamos o que nos estrangulava aos poucos – a fome! –, quando pensei: quantas pessoas dariam um dedo (mindinho, vá lá que seja!) para comer aquilo que jogamos no lixo, independentemente do risco de ingerir estilhaços de vidro ou de contaminar-se com a sujeira do chão? Mas como sair e procurar alguém se lá fora uma besta-fera invisível e cruel ainda nos espreita e obriga a ficar em casa? Daria para argumentar com a desgraçada que era Natal ou teria que entornar o caldo de vez, partir para a briga e ver em duas semanas o resultado disso? O medo de nocaute no primeiro assalto me venceu.
Voei mais alto em minhas elucubrações e me perguntei: quantas pessoas dariam um rim para ter ao lado a sua cara-metade que essa ventania que varre o mundo carregou sem piedade para bem longe daqui, sem direito nem mesmo a merecidos adeuses? Muitas, imagino, ainda que essas pessoas tivessem que passar pelo mesmo sufoco que passamos neste Natal, ela e eu, juntando cacos de vidro por todos os cantos, agora no raio de vinte metros do epicentro da explosão, numa luta que parece não ter fim.
Vidas e vidros que seguem. “Vai que dá certo ano que vem”, diz um velho conhecido meu que, toda noite, me encara no espelho e me cobra coragem e fé para juntar os cacos e seguir adiante no dia seguinte.