Gostei da notícia de que um pé de pequi, que dá frutos há mais de 10 anos, foi deixado no meio da rua recém-asfaltada pela prefeitura de Araguaína, no estado do Tocantins. Crianças ficaram apreensivas com a possibilidade de a árvore, tida como “de estimação”, ser derrubada na execução do serviço. A prefeitura reconheceu o clamor popular e que o pequizeiro não trará prejuízos ao trânsito. Uma ilha de concreto será instalada ao redor, além de sinalização no local.
Tirante eventual exploração político-marqueteira, é elogiável o incentivo à preservação ambiental, fruto do carinho de uma comunidade para com seu querido pequizeiro. E isso me faz recordar dois casos que já estavam devidamente arquivados no gavetão de minha memória.
Lembrei-me de uma velha estaca de madeira fincada próximo à linha lateral imaginária de um campinho de futebol que serviu de cenário para alguns rachas de minha infância. Fazia-se de surda e nunca ninguém conseguiu convencê-la a mudar de lugar para não atrapalhar os meninos. É verdade que nenhum de nós esbarrou na estaca, tampouco dela sofreu uma rasteira ou coisa parecida. Era como se fosse um árbitro sem apito, sem aborrecer os dois times nem interferir no resultado dos rachas.
Recordei também de uma medida na mesma linha da adotada pela prefeitura de Araguaína, porém de amplitude mais abrangente. Há pouco mais de 20 anos estive numa cidadezinha de oito mil habitantes encravada no Alto Sertão do Pajeú, a 300 km da capital pernambucana, chamada Tuparetama. Além do clima ameno a 500 metros de altitude, vi que defronte de quase todas as casas havia uma árvore, algumas ainda bem pequenas. Procurei saber do prefeito como o município conseguia arborizar as ruas e qual o custo daquela iniciativa, certamente onerosa para o modesto cofre da prefeitura. Respondeu-me, sorrindo, que em cada casa havia uma criança que fora sensibilizada a cuidar de “sua” planta em troca de uma ajuda simbólica – algo equivalente a 10% de um salário mínimo –, desde aguar pela manhã e à tarde, passando pela arranca de ervas daninhas, uso de estrume, até cerca de proteção, se necessário.
Percebi ainda que não existiam muros com pichações e fotografias, comuns sobretudo em campanhas eleitorais. Em lugar de propagandas políticas com imagens e letreiros de gosto duvidoso, foram pintados nas paredes caiadas versos de poetas populares.
Nada muito rebuscado. Poemas simples, enxutos e intensos, extraídos da alma de uma gente humilde, como aquele em que Manoel Xudu relatou:
Mamãe me dava papa,
Me deu leite, me deu bolo,
Ela que me deu consolo,
Me deu carinho, garapa.
Mamãe que me deu um tapa,
Mas depois se arrependeu.
Beijou aonde bateu,
Desmanchou a inchação.
Quem perdeu mãe tem razão
De chorar, porque perdeu.
Ou como rabiscou João Furiba, não se sabe se inspirado numa galinha, numa cabra, numa novilha ou numa donzela, digamos assim:
Eu também estou tristonho
Porque perdi minha bela.
Eu quisera arrumar outra
Pra botar no lugar dela.
Nem precisa ser bonita
Basta ser igual a ela.
Fui-me embora no fim da tarde e nunca mais voltei à cidade. Agora me pego pensando sobre o destino daquelas crianças sertanejas da segunda metade dos anos 1990, tocadas desde cedo pelo amor ao meio ambiente e à poesia. Por que essas comunidades representam ponto fora da curva e viram notícia com aquilo que deveria ser regra natural, como aprender a ler, escrever e contar?
No começo deste ano, numa histórica reunião ministerial, um certo cidadão alertava os demais participantes sobre o que considerava ser uma oportunidade trazida pela pandemia da covid-19. Para ele, o governo deveria aproveitar o momento em que o foco da sociedade e da mídia estava voltado para o novo coronavírus e mudar regras que poderiam ser questionadas na Justiça. Seria a hora, segundo ele, de fazer uma “baciada” de mudanças nas normas ligadas à proteção ambiental. Também nas suas palavras, hora de “passar a boiada”.
Resolvi checar a origem do sujeito e descobri o óbvio: não nasceu em Araguaína nem em Tuparetama. Talvez nunca tenha semeado uma planta ou cometido um poema. Se dedicasse um quarto de hora à leitura de Manoel de Barros, quem sabe descobriria que a importância de determinadas coisas não se mede com fita métrica, balanças nem barômetros, mas pelo encantamento que produzem nas donas do amanhã (as crianças de hoje), para quem plantas e poesias continuarão sendo indispensáveis. Certas criaturas, não. Podem ser trocadas até de “baciada”.