quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Quase todo dia

Foi-se o tempo em que uma boa menina, usando capuz encarnado (ressalte-se, sem nenhum viés político-religioso!), seguia pela estrada afora, sozinha, levando bolos e doces para sua querida  vovozinha. Ainda não havia celulares nem redes sociais, mas sua zelosa mãe já recomendava não dar ouvidos a estranhos. Porém caiu na lábia de um lobo perverso que dela conseguiu descobrir o local de destino. E ao chegar lá, a netinha foi recebida com terceiras intenções pelo próprio animal disfarçado, que inclusive já havia comido a vovó (literalmente, o que é pior). O resto você sabe. 

Não parece, mas eu também um dia já fui neto e, entre calçadas, esquinas e praças, ainda sem celulares nem web, provei de quase todos os tarecos, traquinagens e mariolas que a rua oferecia a um representante daquilo que o poeta Jessier Quirino chama de "nação do desassossego". Por isso, eu seria capaz de jurar que já tinha visto de tudo sobre “artes infantis”, mas me enganei. Os tempos são outros e ando vendo assombração quase todo dia.

 

Circula nas redes sociais um vídeo no qual um casal de avós (ele com 70 anos e ela, mais nova) salta do 4º andar de um prédio para escapar do fogo no apartamento onde moram, em Minas Gerais. E tudo começa quando a netinha deles, de 11 anos, contrariada com um castigo aplicado pela avó (dieta digital compulsória), tranca os dois no quarto e toca fogo no sofá da sala de estar.

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

 

Nas imagens, é possível ver o homem convencendo a mulher a pular primeiro de uma janela, não se sabe se por cavalheirismo, desespero, incerteza quanto ao desfecho, pavor ou todas as alternativas combinadas. Em seguida, ele também pula para não morrer queimado ou por asfixia.  

 

A queda é amortecida por colchões colocados por moradores do prédio e ambos são levados para um hospital. A vovó com dores no peito e nas pernas. O vovô não chega a precisar de atendimento médico. A ciência ainda é omissa quanto à eficácia de um remédio para coração partido, ingratidão, essas coisas.

 

Antes de provocar o incêndio, a menina pediu para usar o celular, o que foi negado pela avó, depois de descobrir que ela fizera buscas na Internet sobre rituais de bruxaria. Justamente no mês do Halloween, festa tipicamente norte-americana macaqueada em várias partes do mundo, inclusive aqui, na qual as pessoas se transformam em monstros como vampiros, zumbis e certos políticos. 

 

Houve quem dissesse que a pesquisa feita pela garota, na realidade, se referia à coreografia de uma famosa cantora que lançou recentemente um clipe com pitadas eróticas onde aparece com um microfone nas mãos fazendo simulações orais (acho que você me entende) num beco de comunidade. Não acredito nisso! A vovó teria infartado de forma fulminante e nem haveria os desdobramentos. 

 

Aborrecida, no entanto, a neta se aproveita que os avós estavam no quarto, tranca a porta por fora e risca o fósforo. Poderia ter sido pior, inclusive para a vizinhança. Vai que corta a mangueira do gás de cozinha. O estrago teria outra proporção. Louve-se o equilíbrio dela.


Minutos depois, desconfiando do cheiro de fumaça, o avô resolve arrombar a porta, mas percebe que só conseguiria escapar do fogaréu se rompesse a tela de proteção da janela. Do lado de fora, moradores já estavam a postos para ajudá-los, assustados com o volume de fumaça e o calor das labaredas.

 

Enquanto as chamas se alastram, a menina, que costuma passar o fim de semana com os avós, desce para o playground para brincar de patins, como quem chupa pirulitos. 

 

O síndico do condomínio afirma ter sido aterrorizante o momento em que os vizinhos decidiram colocar colchões no chão, bem próximo à fachada do prédio. Na hora da agonia, é óbvio que ninguém liga para o fato de que o peso de algo em queda livre é calculado pela massa do corpo multiplicada pela aceleração da gravidade. 

 

Moradores das redondezas, ainda chocados, se mobilizaram para ajudar o casal a reconstruir o apartamento destruído. Com uma vaquinha digital, esperam arrecadar parte dos recursos necessários à reconstrução do imóvel. 

 

Sem sequelas físicas – não se apurou a extensão das fraturas na alma, das escoriações na fé –, o avô passou o dia seguinte recolhendo o entulho, com a ajuda de parentes e amigos. Repetia que a neta é "seu xodó", não teve culpa de nada (teria diagnóstico de bipolaridade) e já a perdoou. Avô é avô.


E a garota, que nunca usou chapeuzinho vermelho, mas se travestiu de loba nesta aventura urbana, foi entregue à mãe. Deverá receber proteção do Estado, e o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê acompanhamento social e psicológico.

 

O resto dessa história ainda não está nítido, mas dá para imaginar aonde tudo isso pode chegar. Os tempos são outros e ando vendo assombração quase todo dia.

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Menos, velho!

O velho Jacob é um árabe radicado em Alagoas desde 1967, quando desertou da Guerra dos Seis Dias, no Oriente Médio. Conta ele que sua fuga facilitou a vitória israelense sobre as tropas do Egito, Síria e Jordânia, quando Israel anexou a seu território a Península do Sinai, a Faixa de Gaza, a Cisjordânia, Jerusalém e as Colinas de Golã. 

 

Foto: arquivo pessoal

Um faroleiro incorrigível! Já tentou até me convencer de que um de seus filhos foi aplaudido de pé em pleno Maracanã, depois de marcar um golaço contra o Flamengo de Zico. Mais que isso: jura que o moleque recebeu um passe perfeito de ninguém menos que Maradona, depois aplicou o drible da vaca sobre o goleiro adversário e só não entrou com bola e tudo porque não quis tripudiar. 

 

Há três meses, ainda trabalhava como cozinheiro a bordo de um rebocador (um barco que auxilia as manobras de navios na área portuária) que naufragou devido a uma falha mecânica. Só ele, acreditem, sobreviveu. 

 

O naufrágio foi tão rápido que nenhum dos 20 tripulantes conseguiu chegar à superfície. "Eu tinha ido ao banheiro. Fechei a porta e estava sentado no vaso sanitário quando o barco virou, a luz se apagou e ouvi gritos. Saí, mas não vi ninguém. A força da água me empurrou para uma das cabines e lá fiquei preso..."

 

Ele não imaginava é que aquele jorro seria providencial, o empurrando em direção a uma bolha de ar que permitiu algo improvável: sobreviver por 60 horas no fundo do mar até ser resgatado.

 

Nunca colocara os pés em um navio antes de conseguir o emprego a bordo. Havia sido cozinheiro numa pousada na Barra de São Miguel, no litoral Sul alagoano. A primeira experiência no mar, aliás, não foi nada boa. "Embora gostasse de praia, foram dois dias vomitando e rastejando”. 

  

O rebocador havia estabilizado um petroleiro numa das plataformas de petróleo no Nordeste em meio ao mar agitado. De madrugada, o velho Jacob acordou e foi para a cozinha lavar pratos e panelas até que os reflexos intestinais de uma moqueca do dia anterior lhe fizeram procurar o banheiro.

 

"Afundou ligeiro. Fiquei apavorado, ouvia gritos. Eram cinco e pouco da manhã, muita gente ainda dormia. A água borbulhava enquanto invadia os compartimentos. Depois, veio o silêncio". 

 

Quando a embarcação finalmente encalhou no fundo do mar, 30 metros abaixo da superfície, era o único que escapara, apenas de cuecas, preso num espaço pequeno, escuro e frio, sem comida nem bebida, com água pela cintura. 

 

Em terra, as famílias dos tripulantes foram informadas de que não havia sobreviventes, e a empresa proprietária do rebocador contratou especialistas para resgatar os corpos. Detalhe: se os familiares mantivessem a ocorrência sob absoluto sigilo, evitando redes sociais e a consequente investigação pelas autoridades, todos seriam muito bem recompensados.

 

Três mergulhadores, então, desceram até o fundo do mar numa câmara pressurizada, coordenados por um supervisor que acompanhava as ações por meio de uma câmera de um barco na superfície.

 

O velho Jacob disse que conseguia ouvi-los enquanto quebravam as portas para entrar na embarcação. "Quase não havia mais oxigênio na bolha de ar quando vi o reflexo de uma lanterna. Aí mergulhei, segui na direção da luz e, de repente, vi a água borbulhando. Era um mergulhador."

  

Os especialistas trouxeram então um equipamento de mergulho e o conduziram com cuidado até a superfície. "Estava tudo cheio de lama, não se via nada. Quando eu entrei na câmara pressurizada e percebi que era o único que havia escapado, desabei no choro”.

 

Depois de 60 horas de agonia, ainda teve que passar mais três dias numa câmara de descompressão para normalizar os níveis de nitrogênio que se acumularam nos tecidos e poderiam causar um ataque cardíaco. Enquanto isso, sua família (esposa e duas netas) era informada de que ele fora encontrado com vida. "Minha patroa chegou a desmaiar. Foi levada às pressas pro hospital..." – comentou.

 

Quando acordou, o médico enfim descobriu o real motivo do desmaio da esposa: a direção da empresa proprietária do rebocador havia autorizado a concessão de uma polpuda pensão vitalícia, além de plano de saúde e bolsa de estudos até a faculdade, para todos os herdeiros das vítimas fatais da tragédia.

 

“Pois é, doutor, na hora decisiva pro futuro de nossas netas, o inútil do meu marido estava cagando! Pode?!” – queixou-se a quase viúva, em compreensível, indignado e justo desabafo!

  


Reprodução: Placar

Como nada encontrei sobre a suposta tragédia na costa brasileira, tudo indica ser mais uma lorota do velho Jacob que, por ser bastante parecido, anda se passando por pai de Givaldo Santos Vasconcelos, o Jacozinho, ex-atacante do CSA nos anos 1980. Mas, o que é real ou ficção no noticiário em tempos de guerra?


quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O outono da vida

Um dos maiores escritores do século passado, Gabriel Garcia Marquez, Gabo (1927–2014), teve sérios problemas de saúde no outono da vida. Primeiro, enfrentou um câncer linfático. Depois, a demência que lhe roubou dois de seus bens mais preciosos: a memória e a capacidade de contar histórias. 

 

(Foto: Tomas Bravo)

Deu tempo, no entanto, de nos legar em seu livro Cem Anos de Solidão uma das expressões mais incensadas da literatura mundial: “O segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão".

 

No primeiro domingo deste mês, passava das 10 da noite quando ela me telefonou e, num fiapo de voz, gemendo, praticamente negava a honradez do pacto a que Gabo se referiu: “Meu filho, me acuda... Acho que vou morrer. Vomitei muito, tô tonta, as pernas fracas...”

 

Logo ela, saudável e vaidosa, que não vai nem à portaria do prédio ou ao mercadinho da esquina sem antes retocar o batom e ajeitar os cabelos no espelho do elevador. Logo ela, que adora boleros e pagodes e não abre mão, pelo menos, de dois bailinhos por mês. 

 

Nos 15 minutos em que troquei de roupas e corri até o apartamento dela, pensei no que leva uma matriarca com 85 outubros, viúva por quatro vezes, mãe de 10 filhos, avó de mais de 20 netos e bisavó de quase 25 bisnetos a pôr em xeque o segredo da velhice agradável de que Gabo falava. 

 

A porta estava entreaberta. Recostada no sofá da sala, rosto pálido, olhos fundos, lábios ressequidos, quis especular sobre o que estava acontecendo: “Quase desmaio sentada no vaso… Acho que minha pressão subiu...”


De cara, pensei em carência de afetos, desatenção de filhos e netos que chuparam a taboca de roletes de cana e agora desprezam o bagaço. Mas não quis chateá-la com metáforas nada doces.  

 

Faz tempo que ela não quer mais dividir sua intimidade com ninguém. Mora só, cuida do próprio alimento, assiste TV, reza e circula nas redes sociais. “Amor pra valer eu só vivi o primeiro, com o pai de meus filhos. Se dependesse de mim, era ele quem eu queria para envelhecer do meu lado...”

 

Nunca foi de ler nem de escrever, um dos grandes regalos da solidão. E já não faz caminhadas à beira-mar, ao entardecer, como até bem pouco tempo. “Não dá mais! Eu caminhava com uma tabica pra espantar maloqueiros, mas morria de medo deles!” – contou outro dia.

 

Reclama que não se alimenta bem porque não sente mais prazer em nada que prepara para si mesma. “Quem gosta são os porteiros, com almoço e janta de graça” – pontua vez por outra. Cansa com facilidade, a esta altura, mas não aceita ajuda (exceto da faxineira, uma vez por semana), desde cozinhar, lavar panelas e pratos, até limpar banheiro. 

 

Parece que foi ontem. Aos sábados, nos anos 1980, os filhos (com noras e genros) se juntavam na casa da matriarca para beber e comer, chorar derrotas e cantar vitórias, e ouvir de novo o seu grito chamando à mesa posta com um panelão de guisado, mesmo depois de casados e dos primeiros filhotes de uma nova geração. 

 

Quando da morte de um de seus filhos, em 1991, vítima da ruptura de um aneurisma cerebral, pensou-se que ela tombaria junto. Claro, difícil entender como uma mãe suporta enterrar um pedaço de si sem enlouquecer de dor.

 

Deve ter aprendido ali que a morte não chega com a velhice. O que chega é a chatice de ver que, em silêncio, o fim se aproxima. De que é preciso segurar a ansiedade e viver semana a semana, sem fazer planos para o mês que vem ou para o próximo Natal.

 

No primeiro domingo deste mês, ela acusou o golpe, claramente chocada com a notícia de que outro de seus filhos (após meio século de cigarros e uma cirurgia de laringe) aguardava o resultado de uma biópsia. E lá fomos nós pelas ruas desertas, a caminho do hospital. 

 

Apesar da letargia da recepção e da triagem, foi rápido o atendimento: “a pressão tá dentro do esperado, mas ela tá muito desidratada. Vou fazer soro e pedir alguns exames de sangue, urina, tomografia..." – disse a plantonista.

 

Às 4:30 da madrugada de segunda-feira, de posse do resultado dos exames, a doutora concluiu: “Tá com anemia moderada. Já foi hidratada, precisa agora tomar esses medicamentos (um protetor estomacal e um remédio para náusea) e procurar especialistas para tratar da anemia e da tontura".

 

Na terça-feira, procurei saber dela, depois da notícia de que o quadro de seu filho não é tão grave quanto parecia de início. “Tá melhor... Já brincou até de esconde-esconde com os bisnetos...” – disse uma de suas netas.

 

Longe de mim questionar a construção literária de Gabo, mas o segredo de uma velhice agradável não pode ser apenas a assinatura de um pacto com a solidão. 


Parte do segredo é saber como regar a conta-gotas o jardim de contatos (inclusive virtuais) com quem sente prazer de nos contar novidades e de ouvir o que ainda temos a dizer. 

 

E que não morram antes de nós quem amamos. Impossível? O que seria do querer se não pudermos sonhar fora da bolha? Desejar apenas o possível é optar pela mediocridade. Tanto mais no outono da vida.

quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Ainda bem, Jaguar!

Velho vive repetindo histórias porque ninguém sabe o valor de um momento até que se torne uma memória. Quando repete, no entanto, nem a história nem ele são os mesmos. Ainda bem.

Jaguar, um dos maiores cartunistas brasileiros, chorava numa sala de cinema em Brasília, cidade onde morava em 2006 com Célia Regina Pierantoni, pós-doutora em saúde coletiva. Tinham acabado de assistir ao documentário Vinicius, de Miguel Faria Jr., reconstituição da vida e da trajetória artística de Vinicius de Moraes, reunindo imagens e depoimentos de amigos em comum com o Poetinha: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar. 

Vendo-o cabisbaixo, comovido, alguém tentou puxar conversa: "Já lhe disseram que o senhor é a cara do finado Jaguar?" E as lágrimas secaram no mesmo instante, sob uma estridente gargalhada: "Mulher! Eu morri e ninguém me contou nada!"


Quem me contou foi o próprio Jaguar, sete anos mais tarde, numa manhã de domingo, enquanto aguardávamos o transfer que nos levaria ao aeroporto, na recepção de um hotel na Bahia.


Foto: Luciana Whitaker

Menos conhecido como Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, Jaguar foi escriturário do Banco do Brasil por mais de 15 anos. Seu primeiro chefe, Sérgio Porto (1923 – 1968), o Stanislaw Ponte Preta, publicou vários livros, todos ilustrados por ele: Tia Zulmira e Eu; Primo Altamirando e Elas; Rosamundo e os Outros; Garoto Linha Dura; Febeapá – Festival de besteiras que assola o País; Febeapá 2; Na terra do Crioulo Doido; Febeapá 3; A máquina de Fazer Doido e Gol de Padre.

Em 1969, junto com Henfil, Ivan Lessa, Paulo Francis, Millôr Fernandes, Sérgio Cabral (pai), Tarso de Castro e Ziraldo, Jaguar fundou O Pasquim, jornal de sátira política que aprendi a admirar ainda adolescente, em 1972.


Conversávamos sobre as tiradas de Sig, o ratinho-mascote do jornal, inspirado em Sigmund Freud, o criador da psicanálise, quando ele me atalhou: “O rato era meu alter-ego, sempre em crise existencial, apaixonado pela atriz Odete Lara...”


Falamos sobre a editora Codecri (acrônimo de Comitê de Defesa do Crioléu), responsável pelo projeto Disco de Bolso: vender em bancas de jornal compactos onde, no lado A, um nome consagrado na MPB lançaria uma nova canção e, no lado B, desconhecidos ganhariam visibilidade na cena artística nacional. 


O primeiro disco revelou o novato João Bosco, com Agnus Sei, dele e de Aldir Blanc, “apadrinhado” por Tom Jobim com uma obra prima inédita: Águas de Março.  


O segundo trouxe Caetano Veloso no lado A (cantando A volta da Asa Branca, de Luiz Gonzaga) e, no lado B, o iniciante Fagner, apresentando Mucuripe, sua e de Belchior. 


Mas parou por aí. Para Jaguar, “o governo via naquilo algo mais político que musical e deu fim ao projeto”. Tem quem diga, no entanto, que o projeto merecia melhor gestão.

  

Conversamos ainda sobre a “gripe" que atingiu a turma de O Pasquim, ironia com que se justificou a ausência de vários jornalistas presos durante o governo Médici, inclusive sobre o "remédio" aplicado para atenuar os “sintomas”: alguns intelectuais (Antonio Callado, Glauber Rocha, Chico Buarque e outros) se juntaram para, com seus escritos, manter "respirando" o semanário.


Um desses colaboradores foi o poeta e cronista Carlos Drummond de Andrade, que fazia questão de levar pessoalmente seus textos à redação do jornal. Para Jaguar, na verdade “o velho estava de olho numa boazuda com quem fui casado por uns 10 anos”. 


Numa tarde, encharcado de uísque, Jaguar cruzou por acaso com Drummond e "soltou os cachorros”, ameaçando-o, caso insistisse em dar em cima de sua mulher. O poeta nunca mais voltaria à redação, mas continuou mandando sua contribuição periódica para O Pasquim, que seguia sendo mutilado pela censura do governo militar com cortes cavalares de textos, cartuns e charges (até hoje ninguém pagou por esse tipo de crime hediondo cometido contra as gerações futuras!).

 

Jaguar despediu-se de mim com mais uma gargalhada, realçando um cinismo ácido, brilhante e escrachado ao mesmo tempo: “Como fui besta! Perdi a chance de entrar para a história sendo corneado pelo maior poeta da língua portuguesa!”


Besta fui eu (hoje me dou conta disso!), Jaguar, que fiquei constrangido em procurá-lo novamente nas vezes em que, mais tarde, fui ao Rio de Janeiro, apesar de ter recebido convite e guardar o seu cartão de visitas. 


Algum tempo depois, li numa entrevista que você estima haver bebido, em mais de 60 anos, "uma piscina olímpica de cervejas, sem falar nos destilados: uísque, cachaça, conhaque, rum, vodca, absinto, bagaceira, grapa, saquê, tequila..." 

 

Isso, aliás, explica a cirrose e o câncer de fígado que quase precipitaram o fim da estrada para o autor da coletânea de crônicas Confesso que Bebi - Memórias de um Amnésico Alcoólico


A última notícia que tive sua foi há sete anos, através do também cartunista Paulo Caruso, a quem conheci em São Paulo, em 2016, e que nos deixou o ano passado. 


Caruso me contou que você seguia "viciado" em livros e jornais de papel, jazz, futebol, biriba e cerveja... Mas sem álcool, é claro. “Jaguar diz que, quando quer ficar tonto, abraça e gira em torno de um poste...”.


Aos 91 anos, o lendário transgressor ainda resiste de pé feito uma vela acesa na escuridão (e no obscurantismo) da cena brasileira, ainda que a chama e o rugido já não sejam os mesmos. Mas a ironia, a irreverência e o traço continuam afiados. Ainda bem, Jaguar!