Tá puxado, mas não vou esmorecer. Ando tão descrente de tudo isso que tá aí que me deu vontade de reler um texto publicado aqui neste espaço há mais de dois anos, quando praticamente ninguém antevia o que iria acontecer a partir de um surto viral.
Transcrito adiante, o texto nasceu a partir de uma mensagem recebida de um amigo (Artur Roman) e de uma imagem captada por outro amigo, que fez brotar margaridas no asfalto duro e seco de Brasília:
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Imagem: Dedé Dwight |
Afinal, por que ainda sorrimos?
Anteontem, um velho amigo me escreveu lembrando que vivemos um tempo em que as imagens tomaram conta das redes sociais. O texto escrito estaria se acomodando à função de simples legenda. Para ele, isso se deve à facilidade de se produzir e compartilhar fotografias, especialmente porque imagens exigem menos esforço cognitivo para sua apreensão. Disse, no final, que produzir textos escritos é uma forma de resistência, o que, para mim, soou como estímulo para seguir adiante com os textos aqui publicados.
Dedé Dwight, outro amigo, minutos antes havia compartilhado comigo a imagem de uma mãe, com a filha nos braços, em um ponto nobre do Distrito Federal onde pedia esmolas. Quando delas se aproximou com a câmera na mão, a mãe se preocupou: “a gente vai sair feia...” Ele prometeu que não. Ao ver o resultado, emocionou-se, catou sem pensar os trocados que tinha e perguntou ao "fotógrafo" quanto custou o trabalho dele.
A primeira reação de Dedé Dwight, óbvio, foi rejeitar qualquer pagamento, mas lembrou que a imagem que buscava captar era justamente para falar de dignidade –amor-próprio, consciência do próprio valor, honra, brio. Não lhe restou alternativa senão aceitar a oferta.
Ao opinar sobre a fotografia, eu lhe disse que, em si, é pura arte, crônica sem palavras do cotidiano das grandes cidades. Pena que as pessoas costumam generalizar e rotular como exploradoras todas as mães que se valem de crianças nos braços, sob sol ou chuva, para comover a população e pedir esmolas com maior chance de êxito.
Vi outro dia na TV que em algumas capitais brasileiras, com a proximidade do Natal, a mendicância envolvendo meninos e meninas, expostas a drogas e violência, aumenta em até 80% e existem mulheres que chegam a conseguir R$ 30,00 por dia. É muito difícil extrair dignidade em "escolas" desse tipo.
Evidente que se houvesse oportunidades de emprego, creches e escolas públicas em número compatível com os impostos pagos por todos os brasileiros, seria praticamente impossível para Dedé Dwight conseguir captar aquela imagem.
Mas o fato concreto é que ele conseguiu e aí cabe a pergunta: quanto de bem e de paz um sorriso de criança – onde o acaso congelou emoção numa pequena língua – pode trazer para o coração de uma mãe que não possui quase nada além de um peito cheio de amor e leite?
Por isso o "fotógrafo" considerou o pagamento mais honroso que já recebeu por algo que realizou. Impressionado com a atitude digna daquela mãe, resolveu doar os honorários recebidos à própria pagadora, cuja vida continua num ponto qualquer da capital de uma das nações mais desiguais do mundo.
Pobre nação. Estaria seguramente entre as principais potências econômicas se lhe fosse possível engarrafar e exportar a dignidade, a resiliência e a alegria gratuita de seu povo.
Pois bem. Onde andarão aquelas brasileirinhas? Será que sobreviveram à tragédia político-sanitária que nos embrutece como nação ou ao alargamento do fosso de desigualdades de uma pátria-mãe nada gentil?
Será que aquela mãe pegou o vírus implacável que já matou mais de meio milhão de brasileiros? Se pegou, será que produziu anticorpos suficientes para derrotá-lo ou foi convencida a engolir logo o kit Covid (hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina etc.)?
Se escapou, será que não comprometeu a saúde de sua criança ao cultivar bactérias super-resistentes, segura de que derrotou o vírus com antibiótico (que só deve ser prescrito para infecção bacteriana), em meio à fumaça do obscurantismo tosco que encobre o céu de anil da pátria amada?
Talvez nada disso tenha acontecido. Talvez a imagem que ilustra o texto não passe de uma visão contemporânea de uma santa com uma criança nos braços, encarnadas naquelas figuras frágeis que vagam pelas ruas a pedirem um futuro que nunca chega.
Daquelas que de tanto ver nosso olhar banaliza, vê sem ver, como diria Otto Lara Resende. E deixamos que uma certa indiferença tome assento em nossa sala como se não dependesse de nós pegar pincéis e tintas e dar novas cores à paisagem triste e sem graça que tá aí.