quarta-feira, 26 de junho de 2019

Só eu sei


Era tarde demais quando percebi que condenava minha mulher e nossos filhos a sofrerem com os transtornos de sucessivas mudanças ao optar por uma carreira marcada por desafios pelo país afora. Só eu sei o quanto isso mexeu com todos nós.

Poderia ter escolhido outra profissão? Claro. Teria sido melhor ou pior? Não sei. Repito o que escrevi outro dia: ser feliz é sobreviver à versão de nós mesmos que decidimos assumir. 

Sobrevivemos, todos. Mas só eu sei o quanto pedi a Deus toda noite para que fossem ao meu encontro todas as pedras atiradas pela vida na direção de minha família. E para que nunca nos faltassem o feijão nem o entusiasmo para sonhar com dias melhores. 


Só eu sei da angústia quando mudamos para Salvador, em maio de 1999, após três anos e meio no Recife. Lídia, filha caçula, tinha apenas 14 anos e chorava dia e noite a ausência de pessoas e lugares que foram ficando pelo caminho. 


Doía tanto quanto doeu para seus irmãos mais velhos quando deixamos Maceió pela primeira vez para morar em Brasília, em 1988. Ou quando voltamos para Alagoas numa situação bem diferente daquela que vivíamos – Dona Madalena, minha sogra, já não estava neste mundo. Duas mudanças ainda aconteceriam até chegarmos a Pernambuco, em 1996.

Pouco depois da virada do século, em abril de 2000, já surgiam rumores de que eu seria transferido de novo, agora da Bahia para o Distrito Federal. E o desassossego reaparecia com todas as suas cores e dores.

Foram momentos de aflição em Salvador até que algumas amigas de prédio, escola e igreja convidaram Lídia para um retiro espiritual num fim de semana. Nos dias que antecederam ao encontro religioso, pediram aos familiares que escrevessem algo para reflexão dos participantes.

Eu precisava daquela oportunidade mais do que ninguém. Em uma hora, se muito, lacrei envelope com uma carta que ela guarda até hoje  onde pedia perdão por tanta dor, mesmo sendo inútil, já que não podíamos retroceder o filme de nossas vidas e vê-lo de outro jeito. 

Em minha cabeça, era como se estivesse escrevendo não só para ela, mas para toda a minha família:


“...Perdoe-me por tê-la arrancado tão cedo de Maceió, do convívio com tios e primos, e a levado à distante e seca Brasília.

Perdoe-me por tê-la feito aprender a ler e a escrever, entre ladeiras e cabritos, na chuvosa e feia Porto Calvo.


Perdoe-me por tê-la levado, da noite para o dia, para a calorenta Recife, fazendo-lhe passar por tantos colégios, cadernos e livros.


Perdoe-me por tê-la feito, inesperadamente, largar seus amigos do Colégio Boa Viagem, abrindo no seu coração uma ferida enorme chamada saudade.


Perdoe-me por tê-la trazido comigo para Salvador, sem poder lhe dar a certeza de que nunca mais nos mudaremos.


Perdoe-me por não ser o pai com a vida pacata que você merece e por não saber abraçá-la e beijá-la, todo dia, como prova do amor e do orgulho que sinto em lhe ter como minha filha.


Se depois disso tudo lhe sobrar piedade, minha filha, peça a Deus que me conceda a chance de dar a sua filha – minha neta –,  quando um dia ela chegar, tudo aquilo que não fui capaz ou não pude oferecer a você até aqui.”


No “Desespero da Piedade”, de Vinicius de Moraes – 1913 a 1980 , quis buscar inspiração para tentar aliviar a angústia que descia sobre nós, como uma nuvem carregada, toda vez que os ventos de uma nova mudança varriam a nossa casa.  

Deu certo. Talvez nem tanto pela carta, mas pela conversa que ela deve ter mantido com todos os santos da Bahia no isolamento daqueles dois dias, pedindo que a tempestade passasse o quanto antes.


Mudamos para Brasília meses depois. As lágrimas secaram apenas quando Lídia concluiu o ensino fundamental, formou-se em Medicina, casou e, em 2008, foi morar com o marido bem longe de casa – primeiro, no Rio de Janeiro; depois, nos Estados Unidos –, onde enfrentaria os primeiros desafios de sua trajetória profissional.

Quatorze anos após aquele retiro espiritual em Salvador –  “Dia das Mães” de 2014 – ela nos visitaria em Brasília trazendo numa pequena caixa uma grande notícia: uma chupeta, indício de que sua primeira filha estava a caminho.

Eu só precisava daquele pretexto para aposentar, 40 anos depois de minha chegada no Banco do Brasil, como menor aprendiz. Decidi ali mesmo passar boa temporada com Magdala no exterior, ajudando nossa filha em sua primeira experiência como mãe. 

Era a chance que a vida me reservara de fazer pela neta que chegaria no final do ano, em seus primeiros seis meses de vida, o que não fui capaz ou não pude fazer como pai.

Logo depois do Natal de 2014, via o dia gelado clarear pela vidraça da sala de espera da maternidade do Massachusetts General Hospital, em Boston, quando lembrei  "Esquinas" – canção lançada em 1984, ano em que Lídia nasceu –, composta pelo ex-líder da banda LSD (Luz, Som & Dimensão) que embalou algumas noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida do início dos anos 70, época em que, entre 14 e 16 anos, ainda era cedo demais para perceber o que é que a vida queria de mim.

"...Só eu sei as esquinas por que passei. Só eu sei...
Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar! Sabe lá...
E quem será nos arredores do amor que vai saber reparar que o dia nasceu?
Só eu sei os desertos que atravessei. Só eu sei... 
Sabe lá o que é morrer de sede em frente ao mar! Sabe lá... 
E quem será na correnteza do amor que vai saber se guiar?
A nave em breve ao vento vaga de leve e traz toda paz que um dia o desejo levou.
Só eu sei as esquinas por que passei. Só eu sei... (Djavan)

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Antes que as luzes apaguem

Muita coisa no mundo é estranha demais para acreditar, mas nada é tão estranho que não possa ter acontecido. É ficção parte da história que conto aqui, mas que fique bem claro: a semelhança com a realidade não pode nem deve ser encarada como simples coincidência.

Dizem que alguns hospitais são frios porque espelham a alma de seus donos. Não é por acaso. Há 10 anos, um velho amigo meu conheceu Dr. Jacinto Boa Morte, um desses donos, que se empolgou tanto ao falar sobre suas supostas virtudes como administrador que a soberba lhe escorria pelos cantos da boca.

Esse amigo trabalhava no Banco do Brasil e o hospital pretendia financiar a importação de alguns equipamentos de ressonância magnética. Dias depois, passaria a prestar serviços à Cassi, operadora de planos de saúde hoje com mais de 680 mil assistidos e 75 anos de experiência no mercado. Mudava pro outro lado do balcão.

Quando se conheceram, o doutor jactava-se de que iria estabelecer para o ano seguinte metas de desempenho desde a "porta de entrada" (urgência e emergência). Com isso, iria aumentar receitas e, assim, poder substituir equipamentos sofisticados a cada inovação tecnológica lançada, sem precisar de bancos.

Metas do tipo: de 100 pacientes que buscassem socorro, no mínimo 40 teriam necessariamente que se submeter a exames mais complexos e, desses, uns 10 precisariam de algum tipo de internação. Daí para frente, quatro ou cinco seriam direcionados para a UTI. Com chuva ou sol.

Falava que não havia como os planos de saúde negarem autorização para determinados exames ou procedimentos numa hora crítica. Segundo Dr. Jacinto Boa Morte, familiares de pacientes poderiam ser orientados sobre como obter uma decisão liminar judicial se a operadora questionasse a necessidade de alguma demanda.

Eram reflexos dos vícios incrustados em um modelo obsoleto de negócio — o tal do “fee for service” — que ainda hoje prevalece no país, onde as operadoras de planos de saúde, ao autorizarem qualquer internação, não fazem a mínima ideia do tamanho da conta que terá que pagar mais adiante.

Quantas diárias serão necessárias? Quais equipamentos serão utilizados? A que preços? A cada internação, as operadoras são obrigadas a colocar um cheque "em branco” nas mãos de gente sem nenhum escrúpulo — com honrosas exceções, é claro! — para que desenhe com as tintas que quiser o futuro dos planos de saúde.

Esse desequilíbrio nessa relação puramente comercial, agravado por uma ganância em doses industriais, transforma numa briga de foice no escuro quando, em um lado do ringue, estão planos que amparam empregados de empresas mais estruturadas que sabem fazer contas, como: Banco do Brasil, Petrobrás e Caixa Econômica. 

Alguns mercadores da saúde raciocinam que se as operadoras quebrarem serão prontamente socorridas pelas empresas patrocinadoras, sem qualquer participação dos demais responsáveis pelo custeio dos planos (os associados). "O governo não deixa falir", argumentam, por ignorância, má-fé ou quem sabe as duas hipóteses combinadas.


Mas como evitar que essa autêntica queda-de-braço acabe em fraturas expostas dos dois lados do ringue? No caso brasileiro, talvez a saída mais óbvia seja a integração de toda a cadeia entre operadoras de planos, hospitais, laboratórios e serviços especializados. Negociação caso a caso não funciona, principalmente quando envolve pequenas operadoras de planos de saúde. 

É claro que integrar esses interesses envolve recursos financeiros expressivos. Por isso, a chamada verticalização — quando as operadoras de planos detém participação acionária em hospitais, laboratórios e serviços especializados de oncologia, cardiologia, ortopedia etc. — pode ser algo interessante inclusive para grandes investidores como os fundos de pensão.

Há quem diga ser arriscado investir na indústria da saúde no Brasil, principalmente para quem precisa assegurar benefícios a longo prazo. Mas um único dado destrói esse argumento na origem: o tamanho da demanda reprimida. Hoje, de 210 milhões de brasileiros, menos de 25% possui planos de saúde, segundo dados da Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS). 

Desde a carta de Pero Vaz de Caminha a Manuel I, "o venturoso" rei de Portugal e Algarves, que se diz que o Brasil é o país do futuro. Já passou da hora de esse futuro dar as caras e, quando acontecer, a demanda prioritária de qualquer sociedade emergente — aqui, na África ou na América do Norte — serão cuidados com saúde e bem-estar. 


Óbvio que esses serviços precisam ser tratados como negócio, provendo justa remuneração aos profissionais da área e aos investidores. Seria muito ruim para todas as partes interessadas uma postura de criminalização, que inibiria investimentos e levaria a caos ainda maior do que o atual. 

O que não se admite é que isso se faça fora de limites minimamente aceitáveis. Garantir esse freio é papel da regulação exercida pelo estado, sob vigilância das partes interessadas, com destaque para a razão de ser do sistema: o consumidor, seu beneficiário final. 

Quando se passa dos 60 anos, cada um encara de um jeito o declínio de status social e profissional, a sensação de que o fim está próximo, o luto dos amigos que estão desaparecendo de modo cada vez mais acelerado e, sobretudo, os problemas com a saúde, seja por conta de doenças crônicas, seja porque, feito carro velho de segunda mão, é um problema atrás do outro.


Mas se existe algo em comum que anda deixando todo mundo em pânico, numa enorme barca furada em mar revolto e sem bóia, é o pavor de precisar recorrer à assistência médico-hospitalar e dar de cara com portas fechadas por litígio com o plano de saúde.

Uma década depois, reencontrei meu velho amigo. Ele jura que o remédio para esse mal, como ponto de partida, é juntar quem paga aposentadorias com quem cuida dos planos de saúde dos  mesmos assistidos.  Pelo menos no caso de Previ, Petros e Funcef, maiores fundos de pensão do Brasil. 


Os três juntos, em nome dos planos de saúde e de seus assistidos, com os necessários ajustes estatutários e regulamentares, cuidariam de ter uma conversa estruturada, de gente grande, com quem anda tirando o sono de seus participantes, discussão que certamente poderá trazer desdobramentos para a indústria da saúde como um todo.


Para meu velho e bom amigo, é bom que isso ocorra antes que as luzes apaguem e muita gente adormeça. Profundamente. 

quarta-feira, 12 de junho de 2019

Que Maravilha!


Ninguém sabe como Sebastião, motorista contratado para aquela viagem, conseguiu transportar toda a família — pais, sete filhos e malas — numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags, por mais de 1300 km de estradas de lama e poeira que separavam Patos, Sertão paraibano, de Colinas, Oeste maranhense. 

Fato é que, em junho de 1967, chegávamos todos em paz ao sítio “Maravilha”, zona rural de Colinas, onde viviam meus avós paternos, Mãe Sussú e Pai Simente. Jornada épica com arremate de cinema, diga-se de passagem: em trecho esburacado e íngreme a uma légua do destino, mãe e filhos menores foram obrigados a fechar o percurso no lombo de jumentos.


Foram dias maravilhosos, literalmente. Lembro de um fim de tarde em que meu avô, sentado numa cadeira de balanço à porta de casa, quase morreu de um susto. Tio Marcelino, que, além de agricultor, preparava fogos de artifício para festas religiosas — com o auxílio do irmão, tio Leó , deixara próximo à janela dezenas de tubos de papelão cheios de pólvora, enfileirados como pirulitos num tabuleiro. Curioso, achei de encostar um fósforo aceso no estopim de um deles para ver o que aconteceria.

Mãe Sussú
Foguetões subiram assobiando e explodiram no céu, ofuscando o brilho das primeiras estrelas da noite. Mãe Sussu e meus pais, que raspavam os pratos com saudade de “Maria Isabel” — arroz puxado no alho com carne de sol picada —, correram e ainda me encontraram no local da estrepolia com cara de quem, assombrado, não teve tempo para fugir nem sabia do risco de misturar a estiagem, o fogo e a palha que cobria todas as casas do sítio.

O abraço carinhoso de Mãe Sussú, sob o olhar compreensivo de Pai Simente, livraram-me de uma surra exemplar pela traquinagem. Nem "de castigo" fiquei. Neto é neto no coração dos avós, com ou sem o beneplácito dos pais.

Na manhã seguinte, meu primo Bento admirou-se da balinheira  (estilingue, atiradeira ou baladeira) que eu havia trazido de Patos. A “arma” que ele usava também era poderosa: bodoque caiçara, arco de madeira com dois cordões paralelos, esticados, que arremessavam "balas" de barro. Mas havia algo em comum entre nós, além do sobrenome: o propósito de extinguir a espécie Columbina squammata, as coitadas das rolinhas “fogo-apagou”.

O encanto pelo brinquedo do vizinho nos fez trocar as “armas” e o que se viu nos dias seguintes foram polegares e indicadores duramente castigados na aprendizagem recíproca. Esfolamos os dedos e não conseguimos acertar as rolinhas, que devem estar rindo de nós até agora. Deus nos poupou de carregar pro resto da vida o remorso pelo abate dessas criaturas tão inocentes quanto as crianças que éramos.

Mais adiante, endoideci ao conhecer uma casa de farinha. Após a colheita, tiravam a casca e lavavam a mandioca, antes que fosse ralada até virar massa. Depois, a massa seguia para uma prensa onde era espremida e extraída toda a água. Feito isso, era peneirada para a extração de impurezas. O que sobrava seguia para uma grande chapa para ser mexida no fogo até virar farinha seca e torrada.

Os adultos não me explicavam direito porque não queriam a minha ajuda para ralar mandioca ou para mexer farinha na chapa quente, atividades para as quais achei que levava jeito e poderia executá-las muito bem, apesar dos nove anos de idade. Há pouco tempo fiquei sabendo que a casa de farinha não existe mais. Teria sido praga de alguma criança contrariada? Minha, não foi! 

Como esquecer os bolinhos fritos de farinha de arroz que comíamos com café coado? E das várias redes de algodão espalhadas pela casa, onde o "dono" de cada uma delas, depois que as lamparinas apagavam, só era identificado pelo par de chinelos? 


Diziam que próximo à "Maravilha" havia um olho d'água onde algumas mulheres, após lavarem trouxas de roupas e fiéis à ascendência indígena, tomavam banho como vieram ao mundo. Nunca me deixaram conferir se aquilo era verdade ou não. 


Chegava a hora de voltar pra casa. Por falta de espaço no bagageiro, fui obrigado por meu pai a deixar o bodoque caiçara.  Faríamos escala em Caxias, próxima à fronteira com o Piauí, onde ele morou antes de migrar para a Paraíba para trabalhar no Banco do Brasil. Lá ficaríamos na casa de meu tio e padrinho Enoch, um de seus irmãos mais velhos, que o levou da "Maravilha", ainda criança, para estudar. Também iríamos rever tias Antonia, Cristina e Vitória.  

Já sentia dor de cabeça e febre alta quando chegamos em Caxias. Era sarampo. Assim como havia acontecido nas temporadas de catapora (varicela) caxumba (papeira) e coqueluche em anos anteriores,  pegou também meus seis irmãos. Para a molecada, havia o lado positivo de adoecer: era possível tomar refrigerantes, leite em pó, comer maçã e biscoitos à vontade, com uma mãe zelosa por perto.

Todos recuperados em pouco mais de uma semana, na hora da partida minhas primas Eliane e Eline, filhas de Tio Enoch, apareceram com febre. Ele, espirituoso como poucos, sorriu para o irmão e a cunhada, meus pais, e os ameaçou em tom de galhofa: “ano que vem, quando eu for conhecer a Paraíba, vou levar bexiga!”

A bexiga (varíola) era uma doença infectocontagiosa provocada por um vírus descoberto quando cientistas notaram que uma múmia, que viveu entre 1550 a 1307 a.C., apresentava vestígios. Essa descoberta deixava claro que a varíola, mais que a peste negra ou a tuberculose, afetou a humanidade por séculos e séculos.

Surgiam em todo o corpo bolhas cheias de pus que coçavam, provocavam dores intensas e não desapareciam sem deixar cicatrizes feias. Isso sem falar no risco de cegueira quando a córnea era infectada ou de morte por broncopneumonia, com o comprometimento do sistema imunológico.

A doença só foi controlada após 1967, graças a uma série de programas implementados pela Organização Mundial da Saúde em diversos países. Até ali, a imunização no Brasil era bastante precária, inclusive porque a vacina só se mantinha ativa em baixas temperaturas, o que exigia o uso de geladeiras, coisa difícil nos anos 50 e 60, sobretudo no Norte e Nordeste.


Crianças vacinadas, livres da bexiga (varíola), em 1968 migrávamos para Alagoas, onde nasceriam mais duas: Kléber e Dayse. Seis anos depois, Mãe Sussú ficou bastante comovida ao receber no Maranhão os caçulas de seu querido filho Agostinho, que falecera em 1972 e não pôde acompanhar de perto o desenvolvimento deles. 

Mãe Sussú, com sua missão encerrada, em 1988 também partiria ao encontro de Pai Simente e dos filhos que se foram antes da hora, deixando em pedaços o seu imenso coração.


O mundo daria diversas voltas depois daqueles dias inesquecíveis em junho de 1967. Semana passada tia Cristina me contou que, hoje, "Maravilha" já dispõe de energia elétrica, poço artesiano e água encanada, além de casas cobertas de telhas, algumas até com com TV a cabo. 


O mundo mudou, mudamos todos, todo dia, o dia todo. O tempo que passou, passou. Só não quero — nem posso!  apagar as cores, os cheiros e os sons da "Maravilha" de Mãe Sussú e Pai Simente guardados numa gaveta que existe em mim e que a saudade, vez por outra, me pede para remexer. 

quarta-feira, 5 de junho de 2019

Vai um pastel aí?


Era sábado. Cochilei um pouco depois do almoço e, quando acordei, saí de casa de fininho e fui em busca de um dos maiores prazeres que o ser humano, a partir de certa idade – se você me entende! –, pode experimentar: pastel de carne moída e azeitonas.

Já na primeira mordida deveria ter desconfiado do gosto um tanto esquisito, mas a gulodice não me deixou perceber que estava em curso violento atentado à flora intestinal do cristão aqui.

Passei o resto do fim de semana xingando uma certa padaria da Asa Norte, com enjoos, cólicas, perda de apetite, mas nem sinal de diarreia ou vômitos. Havia a esperança da eliminação espontânea do miserável agente causador daquilo.

Quando apareceram alguns calafrios na manhã de segunda-feira, o pânico veio junto. Febre é febre! Apavorado, chamei um táxi às pressas e fui bater na emergência de um dos maiores hospitais de Brasília. 

O antiespasmódico colocado no soro para atenuar minhas dores abdominais desencadeou quadro clínico que na mesma hora me fez refletir sobre o breve sopro que é a vida.  Não nos manda aviso-prévio do seu fim nem nos prepara para quem iremos deixar por aqui.


Praticamente reduziu a zero o chamado peristaltismo intestinal – movimentos involuntários que ajudam o trânsito do bolo alimentar durante a digestão – e em minutos instalou-se o que os médicos chamam de Geca (Gastroenterocolite aguda).

Mesmo sonolento, ainda deu para ouvir rápido cochicho entre dois deles, ambos com semblantes carregados:
– O que achou da Geca? Será que foi salmonella?– indagou o primeiro.
– Não estou ouvindo sinais de luta... – respondeu o outro...

Como ainda me restavam traços de humor, quis perguntar mas faltou coragem: haveria algum conflito ideológico entre meus órgãos internos? Ou entre cantoras de uma dupla sertaneja de quem nunca ouvira falar? Geca fazia a primeira ou a segunda voz? Nada disso! Apenas um jeito, no dialeto deles, de dizer que não havia  “nó nas tripas”.


Endoscopia, ultrassonografia e tomografia foram realizadas para afastar a hipótese de problema mais grave, como tumor ou coisa parecida. Mas a barriga não parava de distender, a cara amarelava, as mãos e os pés gelavam...
– Vamos ter que transferir o senhor pra UTI. Lá é melhor do que aqui no ambulatório – disse alguém.

O silêncio e a penumbra gelada dos corredores até a UTI meteram em minha cabeça um punhado de interrogações. O que me restava de lucidez alertava que a vida, esse "jogo de culpa que faz tanto mal" – como diria Gonzaguinha – , estava perto do fim. 

Nunca havia deitado numa maca nem para deixar campo de futebol e a primeira vez, poderia ser a última. Era meu corpo carente admitindo que sim – claro, poderia acontecer! –, mas minha alma, inconformada, gritando que não.

Deu para perceber que alguns familiares e amigos chegavam para ver com os próprios olhos o que um pastel de carne moída e azeitonas era capaz de fazer com um cidadão em plena forma, no esplendor de seus 50 anos. 

Ouvi gemidos, gritos e lamentos de outros pacientes enquanto me instalavam monitores, até chegar um moleque com 20 e poucos anos, barba por fazer e jaleco amassado – intensivista estagiário, creio – e me enfiou goela abaixo um catéter que achei que fosse vazar na outra extremidade. 

Santo remédio! Um jorro de vômito escuro inundou a cama. Em poucos minutos, já me sentia bem melhor, levantei e fui ao banheiro tomar um banho restaurador.

Enquanto isso, um porta-voz do hospital foi até a sala de espera e, para desanuviar o recinto, disse em tom de pilhéria, óbvio:

– O pior aconteceu... Ele vai sobreviver! 

Passei ainda a noite inteira com uma sonda nasogástrica no pré-sal de minhas vísceras, sugando tudo o que o desgraçado do agente causador havia feito para impedir que eu testemunhasse o crescimento de meus netos.

De alta hospitalar 72 horas depois, passava em frente a uma lanchonete quando a balconista, quem sabe comovida com minha cara de fome, mas sem saber de meus antecedentes intestinais, quis ser gentil:

- Vai um pastel de queijo ou carne moída aí, moço?

Devo confessar que recusei a contragosto. Minha família me internaria – noutro tipo de hospital, certamente! – se soubesse que ainda cogitei provar a iguaria. Mas era só uma mordidinha de leve, na casca. Nem atrapalharia o almoço.


Há mais de 10 anos ninguém me tira da cabeça que foi o enfeite com salsinha mal lavada que me estragou aquele fim de semana. Pastel é do bem! Não faria uma crueldade dessas com um velho admirador.