quarta-feira, 31 de maio de 2023

Resta aprender

Mal começa 2023 e um campeão olímpico posta em sua conta no Instagram uma foto com uma espingarda nas mãos. E não se trata de atleta de tiro esportivo, modalidade presente nos Jogos Olímpicos desde a primeira edição, em 1896, em Atenas. 

Reprodução/Redes Sociais 

Então Wallace de Souza, 35 anos, “astro” do voleibol do Cruzeiro, de Belo Horizonte-MG, abre uma caixa de perguntas para seus seguidores. Logo, um dos fãs quer saber se ele daria um tiro na cara do presidente da República. O atleta retruca: “Alguém faria isso? Sim ou não?”. A "enquete" viraliza. Só é deletada horas depois, quando alguns prints já circulam nas redes sociais.

 

O fato é alvo de repúdio da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e do Governo Federal, através da Advocacia Geral da União.

 

O jogador é suspenso por 90 dias, período que abrange a data da final da Superliga Masculina de Vôlei, o que o leva junto com seu clube a buscarem a suspensão da pena no Superior Tribunal de Justiça Desportiva.


O STJD aceita o argumento e concede liminar. A CBV, porém, vê impasse entre a decisão do Conselho de Ética do COB e a liminar emitida. Aciona então o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, órgão privado que é usado para mediar conflitos. Dá-se razão ao STJD.

 

Na final da Superliga Masculina, o "astro" entra em quadra, marcando inclusive o ponto do título de seu clube. Isso desagrada o Conselho de Ética do COB, que contra-ataca com um duro coice: a suspensão pula de 90 dias para cinco anos. Pune-se também a CBV, que é desvinculada do COB e perde as verbas que recebe do Ministério dos Esportes e do Banco do Brasil. 

 

Entre bravatas e coices, escorrem pelo chão da Pátria amada barris de intolerância política. E tudo deságua numa incitação à violência por parte de alguém supostamente esclarecido, ciente, imagina-se, do grau de discernimento de seus seguidores. 

 

Mas o petardo devolvido pelo Comitê de Ética do COB é descomunal. Querem matar beija-flor com tiro de bazuca. Ou acabar com o carrapato matando o gado. Isto é, no caso, quer asfixiar até quem não deu motivo a nada disso: o vôlei, como modalidade esportiva.


Quando o Banco do Brasil passa a patrocinar a CBV, há 32 anos, as conquistas das seleções de quadra e praia (feminina e masculina) fazem delas protagonistas nas principais competições pelo mundo afora. Rapidamente, o vôlei consolida-se como a segunda paixão nacional em termos esportivos, porém bem mais organizada do que a primeira.

 

Hoje, a primeira paixão do brasileiro agoniza com clubes falidos (exceto uma meia dúzia, que não sobrevive a médio prazo sem o fortalecimento dos demais), calendário desumano, baixa qualidade das partidas, estádios ociosos, violência entre torcidas organizadas, denúncias de apostas envolvendo cartões e pênaltis (leia-se, manipulação de resultados) etc.

 

Quanto à segunda paixão, desde 2001 uma incubadora de talentos instalada em Saquarema-RJ espanta e encanta o mundo. É o Centro de Desenvolvimento do Voleibol, espaço de 100 mil m2 com toda a estrutura necessária à formação de atletas, como ginásio, quadras, salas de musculação, alojamentos e até creche, o que, sem dúvida, explica o salto quântico da modalidade nas últimas três décadas. 

 

De lá para cá, se o futebol conquista as Copas do Mundo de 1994 e 2002, além da medalha de ouro nas Olimpíadas de 2016 e 2021, o vôlei, com bem menos recursos investidos, alcança nove títulos da Liga das Nações. E nos Jogos Olímpicos, três medalhas de ouro (Barcelona, Atenas e Rio de Janeiro).

 

Ainda bem que toda pena desproporcional tende a ser revista, pelo menos em nações minimamente civilizadas. Afinal, como aprendi quando era criança, "cavalo só dá coice porque não sabe conversar". 

 

E uma conversa aqui, outra ali, chega-se a um acordo. Prego batido, ponta virada! O vôlei, mais uma vez, se revela maior do que as pessoas e as instituições nele envolvidas:

– O responsável pela "enquete" já cumpre novo período de suspensão por 90 dias e está impedido, por 360 dias, de integrar a seleção brasileira (fora, portanto, daquela que poderia ser a sua última Olimpíada, ano que vem, em Paris).

 – O COB não reconhece a validade do resultado da final da Superliga Masculina de Vôlei.

– A CBV, que mantém as suas fontes oficiais de patrocínio, obriga-se a custear programa de valorização da postura ética de atletas nas redes sociais, sob a coordenação do COB. 


Em termos tácitos, porém, o acordo refresca que:

– Cada "astro" é, sim, responsável pelo impacto que a divulgação de sua opinião causa no universo em que atua. 

– Liberdade de expressão não é direito fundamental absoluto. Nem o direito à vida é (prova: o direito à legítima defesa).

– Acima de todas as diferenças, é preciso garantir a convivência pacífica e educada entre elas. 

 

Como bem canta Beto Guedes em Sol de Primavera, “a lição sabemos de cor, só nos resta aprender”. E chega de tentar aparar arestas de opinião na base da espingarda. Ou de coices!

quarta-feira, 24 de maio de 2023

Há rosas que falam

Conheci o cantor e compositor Zeca Baleiro há 10 anos, no CCBB Rio de Janeiro. O projeto Banco do Brasil Covers entraria em cena novamente, pelo segundo ano, com três shows inéditos, trabalhando a ideia de que os ídolos também têm seus ídolos. 

 


Na programação para 2013, além de Zeca Baleiro homenagear Zé Ramalho e Maria Gadú reverenciar Cazuza, quatro ícones do rock nativo (Dado Villa-Lobos, João Barone, Leone e Toni Platão), ao lado de Liminha, produtor musical e ex-baixista de Os Mutantes, diriam de sua devoção aos Beatles.

 


Conversava amenidades com Zeca 
quando toquei em algo que vinha me deixando intrigado: mesmo grandes letristas, ao chegarem na faixa dos 60 anos de idade, não conseguem produzir obras arrebatadoras, inesquecíveis. Não era o caso dele, claro, à época um “menino” de apenas 47 anos.

 

Referia a achados poéticos raros, sem rebuscamentos, alguns lapidados às pressas, sob encomenda, para compor a trilha sonora de um filme ou de uma novela de TV, como:

 

“... Se nós, nas travessuras das noites eternas

Já confundimos tanto as nossas pernas,

Diz: com que pernas eu devo seguir,

Se entornaste a nossa sorte pelo chão,

Se na bagunça do teu coração

Meu sangue errou de veia e se perdeu?”

(Chico Buarque, aos 36, em 1980, ano de lançamento do álbum “Vida”)


"...Um raio que inunda de brilho uma noite perdida.

Um estado de coisas tão puras que movem uma vida.

E um verde profundo no olhar a me endoidecer...

Quisera viesse do mar, e não de você.

Porque seu coração é uma ilha a centenas de milhas..."

(Djavan, aos 32, em 1981, ano de lançamento do álbum "Seduzir".

 

“... Luz do sol
Que a folha traga e traduz 

Em verde novo em folha, 
Em graça, em vida, em força, em luz.

Céu azul que vem
Até onde os pés tocam a terra,
E a terra inspira e exala seus azuis...”

(Caetano Veloso, aos 40, em 1982, ano de lançamento do álbum “Luz do Sol”).

 

Zeca Baleiro discordou. Não poderia ser diferente, pensei. A classe é meio desunida, mas nem tanto. Porém não ofereceu dados que me fizessem mudar de opinião. Nos reencontraríamos mais adiante, num show que fez em Brasília, mas não voltamos ao assunto.

 

Pouco antes de conhecê-lo, eu havia assistido ao documentário Vinícius, bela reconstituição da vida e da trajetória artística do diplomata, poeta e letrista Vinícius de Moraes, com depoimentos de alguns amigos dele, como: Tom Jobim, Chico Buarque, Francis Hime, Carlos Lyra e Ferreira Gullar. 

 

Em certo trecho, Chico recorda que, já próximo do desembarque, convidaram o Poetinha para mais uma noitada nos bares de costume. Ele recusou sob o insólito argumento de que iria assistir Baretta, um seriado policial norte-americano dos anos 1970 protagonizado por um detetive trapalhão que tinha um caso de amor com uma cacatua. Sinal de que Vinicius já não pensava em obras arrebatadoras e inesquecíveis (faleceria em 1980, aos 66 anos).

 

Domingo passado, contei essa história a um amigo, que me deixou preocupado com suas justificativas: “Tem a ver com a motivação. Quando jovens, temos muitos sonhos, muitos objetivos, muitas lutas a serem travadas e, o principal, amores em curso. Com o tempo, as emoções se acalmam, a alma sossega e a produção intelectual diminui. É substituída pela cautela, pela paz interior que antecede a morte...” 

 

Contei a outro, que foi menos fatalista, mas cruel: “Veja o caso de Roberto e Erasmo Carlos: as canções do último quarto de vida não chegam aos pés das antigas. Caetano entrou numa fase de experimentalismo com letras que parecem aqueles quadros abstratos que só o autor entende. Alceu vive do passado. Milton, nem se fala. Fagner ficou bobo e de mal com a vida. O Chico ainda faz algo bom, mas nada inesquecível...” – queixou-se.

 

Quase convencido de que sempre estive certo em minha tese de mesa de boteco, somente agora me vieram à cabeça Cartola e “As Rosas Não Falam”.

 

Conta-se que Dona Zica, sua esposa, ganhou algumas mudas de rosas e resolveu plantá-las no jardim. Dias depois, ao abrir a porta bem cedinho, ficou em êxtase com a quantidade de flores que desabrocharam. Chamou então o marido e quis saber:

– Cartola, por que nasceu tanta rosa assim?

– Não sei, Zica. As rosas não falam… – ele respondeu, sorrindo. 

 

E ficou mastigando a frase, como se fosse um palito. Quando faltavam três dias para completar 65 anos, nasceu a “criança”. Cartola, que faleceu em 1980, aos 73 anos, dizia que a canção havia sido presente de Deus. 

 

Sobre a obra-prima, aliás, Paulinho da Viola conta que, em 1973, quando trabalhava na TV Cultura, em São Paulo, num programa que apresentava pessoas ligadas a escolas de samba, recebeu a visita de Cartola, que lhe pediu para mostrar uma de suas composições. E comoveu-se quando ouviu, pela primeira vez, a inesquecível declaração de amor de um poeta popular sessentão:


“... Queixo-me às rosas...
Que bobagem! As rosas não falam.
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti...”

 

Da próxima vez que encontrar Zeca Baleiro – difícil, mas não é impossível –, prometo que direi que estava enganado. Ele tinha razão. 

quarta-feira, 17 de maio de 2023

O povo esquece

Trouxeram até o Chefe uma mulher apanhada em adultério. Propuseram que fosse apedrejada (ou recebesse cacetadas) até a morte ou até ser desfigurada para que nunca mais despertasse, nos semelhantes (e nos diferentes também), desejos libidinosos. 

 

Reprodução/Redes Sociais

O Chefe sentiu a rapaziada disposta ao massacre. A vida daquela mulher não tinha a menor importância. Ninguém estava nem aí para as condições que a levaram a pecar. Também ninguém questionou o que a teria levado a vacilar, mesmo sabendo que a pena capital seria aplicada em caso de flagrante.

 

Nada se apurou sobre eventuais promessas feitas ao ouvido da acusada pelo corresponsável pelo crime. Talvez palavras ternas e poéticas, oferecendo o carinho e o cuidado que o marido já não oferecia. Daí, o coração gritou mais alto, quis algo que nunca experimentara e partiu com tudo para a troca de secreções e lesões corporais desejadas.

 

Agora, sem advogado de defesa para assegurar os direitos cabíveis no rito sumário instalado, ali estava diante do Chefe, abandonada, desiludida e envergonhada, na iminência de uma dolorosa morte. 

 

Embora não fosse deputado ou senador eleito pela comunidade, o Chefe surpreende a tropa, sedenta de sangue, proclamando de forma desconcertante: “Quem dentre vocês não tiver pecado que atire a primeira pedra ou dê a primeira cacetada!”

 

Para encurtar a história, uma vida foi poupada, em primeira instância, por motivos óbvios: ninguém ali era ficha limpa. Talvez tenham se perguntado: “Quem de nós, a bem da verdade, nunca pecou? Onde está o justo, o puro, o santo?” 

 

Não demora muito e aparece um espírito de porco fazendo o que se espera de quem se especializa em complicar situações ou causar constrangimentos em certas ocasiões: “Data vênia, Chefe, cabe recurso!”

 

Depois de ouvir a sentença proferida em primeira instância, o próprio espírito de porco interpõe recurso oral, já de posse de uma banda de tijolo, mirando a testa da adúltera: “Eu nunca pequei. Logo...”.

 

– Peraí! – atalha um dos comparsas da alma suína puritana – Você esquece que anda cubando as partes daquela comadre casada, né mesmo? Toda vez que o marido dela sai para fazer entregas no asfalto, lá vem você com aquela desculpa de que anda chateado, insatisfeito com o que tem pra janta dentro de casa, só de olho no cofrinho e no decote da moça, né não? 

– Opa! Sem maldade, só admirar as tatuagens não é pecado. Pra onde caminha a humanidade? – justifica-se, mas desiste do arremesso da banda de tijolo, temendo que os rumores ganhassem maior repercussão e afetassem sua amizade com o compadre.

 

Outro pega um porrete e se habilita a iniciar a execução sumária com novos e robustos argumentos:

– Nunca desejei a mulher do próximo, não matei nem roubei. Sou puro e casto como um cabritinho de dois dias.

– Por falar nisso – diz o Chefe, segurando-o pelo braço do porrete –, lembra de quando era moleque na Baixada e andou se servindo daquela cabra velha? Você, hein?! Dizia na orelha da coitada que ela merecia ganhar um presente, que só não lhe dava um par de havaianas porque os pés eram redondos...

– Eu... Eu era bem mais novo que o senhor, Chefe…

– Ah, é?! Se eu lhe mandasse comer bosta, você comeria? Larga o cacete, vai...

 

Surge um cara fortão, parecendo uma chave inglesa, pega um paralelepípedo e prepara-se para atirar na adúltera, falando grosso: “Eu nunca fiz nada disso. Não tenho o pecado da luxúria, nem da avareza, da gula, da inveja, da ira, da preguiça ou da arrogância. Pelo contrário, sempre fui humilde e generoso...

 

Silêncio geral. O próprio Chefe então toma a palavra: 

– Mas mente que é uma beleza, hein?! Pensa que não sei?

– De quê, Chefe?

– Até vir trabalhar para mim, você colecionava combos de pecados capitais. Escapava da repartição no horário do expediente para beber e fornicar de cabaré em cabaré, exigindo descontos na tabela de preços dos serviços prestados. Isso quando não pendurava a conta no cheque pré-datado! Desista...

 

E pinta mais um justiceiro, de cassetete na mão, que também desiste ao ser devidamente lembrado de que, alguns anos antes, fora vítima de acusação “sem provas” (corrupção ativa e passiva, charlatanismo, emprego irregular de verba pública, falsificação de documentos, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, leniência e prevaricação), a qual o levaria ao corredor da morte se a sentença não tivesse sido anulada pelos tribunais superiores por conta de deslizes formais nas etapas preliminares do processo.

 

Quando a turba começa a se dissipar, de mansinho o ajudante-de-ordens consulta o Chefe:

– Que lição a gente pode tirar disso tudo, meu iluminado guru?

– Não se deve fazer julgamentos precipitados.

– Sei…

– Bem, se a tentação for grande, também não se deve resistir. Ela pode não voltar. Mas jogue o celular no vaso e dê descarga. 

– Só?

– E negue, negue tudo. O povo esquece logo. 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

O “bem-amado” e as comadres

Ela e ele (um ex-parlamentar, por sinal, muito bem de vida) moram em Curitiba-PR, onde criaram os filhos, os netos crescem e a vida segue, só lhes restando agora, aposentados, implicar um com o outro o dia todo, todo dia. 


Esta semana retomaram uma briga antiga. Diz ela que ele vive dando em cima das mulheres mais jovens que frequentam um pub aconchegante e descolado, com decoração vintage, que serve uns coquetéis e petiscos maravilhosos. Ele nega. Garante que ela está ficando louca, vendo tranças e chifres em cabeça de pulga.

 

Ontem, ela buscou um ombro amigo numa videochamada para sua comadre Márcia, mulher de meu amigo Luizão, que a tudo ouviu porque o tom da prosa foi tão alto que o impediu de cochilar seus 20 minutos pós-almoço.

 

– Ele pensa que sou besta! – dizia ela. – Sou feito aquela que cantava "sinto quando alguém te interessa, mesmo quando finges que não vês..." 

– Calma, comadre! – ponderava Márcia –. Vai me dizer que nunca olha pra ninguém além de seu marido? Olhar não arranca pedaço de ninguém. Lembra quando você me disse que era difícil admitir que Harrison Ford ronca, que Richard Gere arrota, que Brad Pitt peida?

– Epa! Assim, não! Artista não conta...  

– Vai me dizer então que não existe nenhum gatão grisalho no seu prédio? Você não fala nada pra não desagradar o compadre, não é?

– Desagradar, não. Se eu elogiar alguém, na primeira bunda que aparecer na nossa frente ele vai esquecer que estamos juntos há mais de 40 anos. O bicho é safado mesmo. E quanto mais velho, mais sem-vergonha fica!

 

E veio à tona o estopim da encrenca: o noticiário sobre o imbróglio envolvendo o prefeito da cidade de Araucária-PR, que, no frescor de seus 65 anos, acaba de se casar com uma moça de 16. Dois dias antes do casório, ele havia nomeado a mãe da noiva como secretária de Cultura e Turismo. 

 

Imagem: Reprodução/Instagram 

Deu nos jornais que se trata do quinto casamento do insaciável alcaide. Reeleito com 47 mil votos, o bem-amado teria recentemente declarado à Justiça Eleitoral dispor de mais de R$ 14 milhões de patrimônio. Nada mal pra quem está começando uma nova vida a dois.

  

Aqui, legalmente é possível se casar aos 16 anos com autorização do responsável – a menina completou a idade mínima quatro dias antes de se casar. “Mas a ONU considera casamento infantil qualquer união com menor de 18”, argumenta a comadre de Márcia e Luizão. “Isso é uma violação de direitos. Pedofilia, falando português mais claro”, afirma.

 

A suposta prática de nepotismo é que deu visibilidade nacional ao caso. Após a repercussão, o prefeito se viu emparedado e cuidou de exonerar a sogra com menos de duas semanas após empossá-la no cargo.

 

Luizão me conta que, surfando no noticiário enquanto as comadres conversavam, descobriu que o Ministério Público do Paraná investiga a denúncia de nepotismo. Também existe uma análise sigilosa – seja lá o que isso significa – sobre o casamento.

 

O viril burgomestre concedeu entrevista ao jornal "O Popular do Paraná" declarando que o casal está bastante feliz. "Minha esposa me faz muito bem, e eu faço bem a ela...”. Nas redes sociais, ela retribuiu: disse não se importar com a repercussão do caso. "O que importa, sinceramente... É que não nos importamos!".

 

Ai de quem duvidar desses corações apaixonados que decidiram ficar juntos! Arrisca-se, no mínimo, a ser processado por preconceito contra idosos. Afinal, o etarismo (palavrinha na moda, hein?!) pode ser enquadrado como crime de injúria, quando alguém com mais de 60 anos tem a sua honra ou dignidade ofendidas.

 

A mídia, arvorando-se no papel de termômetro social, avalia a temperatura de uma possível investigação por exploração sexual, mas só na hipótese de o Ministério Público encontrar indícios robustos – de novo, seja lá o que isso significa. 

 

Uns dizem que, apesar de esse tipo de união ser legalmente permitido no Brasil, uma menina de 16 anos sequer tem o corpo (e a mente) completamente formado e, por isso, não há que se falar em consentimento. Outros defendem que não se pode acusar de ambição material uma criatura inocente, sem maldade.

 

Mas para a comadre de Márcia, no entanto, "houve, sim, jogo de interesses, pois a mãe da ninfeta foi nomeada pouco antes do casamento. E se o sujeito recompensou a mãe por autorizar a filha a se casar, teve exploração sexual..."

  

Ao perceber que meu amigo Luizão estava acordado, ouvindo o desenrolar da prosa, Márcia tenta envolvê-lo:

– E você, meu bem, o que acha disso?  

– Sei lá! Não vou me meter em conversa de comadres, mas...

– Mas o quê?

– Pode atrapalhar os planos do compadre. Outro dia ele me contou que será candidato a prefeito, aqui na região metropolitana, nas próximas eleições...

– Só capando aquele velho safado! – despediu-se a comadre, lacrando a videochamada. 


E Luizão, enfim, pôde cochilar. 

terça-feira, 2 de maio de 2023

Trocando em miúdos

Celebrou-se em Portugal, na semana passada, o aniversário de 49 anos da Revolução dos Cravos, revolta pacífica que pôs fim ao Salazarismo   governo de inspiração fascista desde os anos 1930, uma das mais duradouras ditaduras da Europa. 

Coincidiu com um momento marcante na vida de Chico Buarque, autor da mais célebre canção brasileira sobre aquele evento histórico, “Tanto Mar. Quatro anos depois do seu anúncio como vencedor do Prêmio Camões, principal honraria literária da língua portuguesa, Chico pôde finalmente recebê-lo no Palácio Nacional de Queluz, em Sintra, a meia hora de Lisboa. 

 

A recusa do ex-presidente Bolsonaro em assinar o diploma de premiação explica a demora. Quem acabou assinando foi o atual presidente Lula, que participou da cerimônia junto do presidente português, Marcelo de Sousa, e do primeiro-ministro, Antonio Costa.

 

O Prêmio Camões foi criado há 35 anos pelos governos de Brasil e Portugal e é escolhido por um júri composto por dois brasileiros, dois portugueses e dois representantes dos demais países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Já premiou nomes como João Cabral de Mello Neto, Jorge Amado, José Saramago, Lygia Fagundes Telles, Mia Couto, Rachel de Queiroz, Rubem Fonseca, dentre outros.

 

Voltei no tempo, aos meus 10 anos, mais precisamente a 1968. Apareceu na radiola lá de casa um compacto simples — pequeno disco de vinil com apenas duas músicas: de um lado, “Bom tempo”; de outro, “Ela desatinou” — de um cantor e compositor desconhecido para mim. 

 

Meu pai falava de canções mais interessantes do que aquelas dos cabeludos da Jovem Guarda. Tive dúvidas. Eu já começara a escutar no rádio “Eu sou terrível”, “Por isso corro demais”, “De que vale tudo isso”. Mas ouvi um bom conselho e nunca mais deixei de prestar atenção no que fazia Chico. 


Cresci admirando as múltiplas facetas do maior cronista-poeta musical de seu tempo.Tanto mar depois, embora Chico seja reconhecido em várias partes do mundo pelo conjunto de sua obra como cantor, compositor e escritor, com centenas de canções, cinco livros e tantas outras criações artísticas, alguns brasileiros o apedrejam nas ruas, nos bares e nas redes sociais, com a mesma intolerância e ingratidão com que se tratou Geni.

 

Reprodução: Redes Sociais

Lembra as pedras lançadas sobre Pelé, nos anos 1970, porque não usava de seu prestígio para denunciar torturas que aconteciam numa certa nação do faz-de-conta. Foi apedrejado inclusive porque teria dito que seus conterrâneos não estavam preparados para votar. Ironicamente, desde lá,
quem é derrotado nas eleições dá razão a Pelé.

 

Nos anos 1980, João Saldanha, um dos mais respeitados jornalistas esportivos, ao opinar sobre a decisão do então treinador da seleção, Telê Santana, de excluir do grupo o atacante Renato Gaúcho — o jogador caíra na esbórnia às vésperas da viagem para a Copa do Mundo —, foi taxativo: “Eu não preciso dele pra casar-se com a minha filha, mas pra jogar futebol. E esse cara joga pra burro!”.

 

Chico é pelé (cai bem o novo verbete incorporado ao dicionário Michaelis!) no que faz. Mas, como Saldanha, não preciso dele para ser meu genro, pai de meus netos. Nem tenho interesse em suas preferências futebolísticas, políticas, religiosas ou sexuais. 


Meus netos, sim, precisam ouvir antigas estórias de um país do faz-de-conta de casas simples, com cadeiras na calçada, em que na fachada estava escrito que era um lar. Ali morava uma criança que, mesmo sem ter fé, pedia a Deus por sua gente, gente tão humilde que dava vontade de chorar.

 

Com o tempo, essa criança foi vista chegando suada e veloz do batente, trazendo um presente para encabular seu pai. Eram tantas correntes de ouro que faltava pescoço para enfiar. Trouxera até uma bolsa com tudo dentro: chave, caderneta, terço, patuá, lenço e uma penca de documentos pra finalmente o pai se identificar.

 

Criança que cresceu desiludida com o futuro da nação do faz-de-conta. Um dia, bebeu e soluçou como se fosse um náufrago, dançou e gargalhou como se ouvisse música e acabou no céu como se fosse um pássaro. Restou a seu pai uma saudade que dói mais que o revés de um parto ou arrumar o quarto de um filho que morreu.

 

Chico, assim como você e eu, tem o direito de fazer o que bem quiser da própria vida, inclusive de vestir a camisa que lhe pareça mais bonita e confortável. Ainda que as tribos que racham a nação do faz-de-conta só falem a mesma língua num ponto: ou se está com elas ou contra elas. Não têm adversários, têm inimigos.

 

Em tempos de indigência cultural, com tantas obras descartáveis despejadas sobre nós, essas tribos insistem nesse espetáculo dantesco de “olho por olho, dente por dente” que transforma a nação do faz-de-conta num sanatório geral de banguelas e caolhos. 

 

Trocando em miúdos, estou vendo a hora de Chico pedir para deixarem em paz o seu coração — hoje, um pote até aqui de mágoa! — apagar a luz, bater o portão sem fazer alarde e sumir no mundo sem nos avisar. E aquela esperança de tudo se ajeitar... Pode esquecer.

Foi só começar...

Na semana passada, publiquei neste espaço uma crônica sobre códigos e jargões corporativos que fez alguns leitores voarem de teco-teco pelo ...