Eu já a perdoei por todas as mamadeiras de mingau de amido que me serviu depois da chegada de meus irmãos mais novos, quando perdi o direito às tetas maternas. Também por todos os bolos, coalhadas, cuscuzes, omeletes, papas, pastéis, pudins, sorvetes, sopas, tapiocas e tortas com que ela, sem dolo ou má-fé, apostou em mim a sua própria perpetuidade.
Perdoei ainda as horas de quintal e de rua que me foram confiscadas para mexer panelas de doce de leite, caju, goiaba, mamão, ou de canjica e pamonha. É certo que havia algum pagamento em raspas de tachos, mas sob ameaça de castigo – meia hora num canto da cozinha, inalando aquela profusão de cheiros – caso a massa grudasse no fundo da caçarola.
Relevei também todas as vezes em que tive que acordar cedo e ir à padaria comprar pães, ainda que ela fingisse não ouvir quando eu lhe contava que um ou outro caíra do pacote e que, só para não dar gosto ao cão, eu me impunha o sacrifício de comê-lo ainda quente, mesmo sem manteiga.
Esqueci até das cestas e sacolas que carregava nos dias de feira livre, sol e chuva, suor e lama. Eram quilos e mais quilos de frutas, carnes, legumes e verduras, para prover uma Frigidaire cujas heróicas dobradiças, diferente de mim, nunca deram o menor sinal de fadiga.
Também a desculpei por todas as vasilhas que guardava no forno para que eu pudesse almoçar depois do meio-dia, ao chegar da escola ou do trabalho. O corre-corre da tarde passava a rodar em câmera lenta diante da carne-de-sol com arroz de leite, do picadinho ou do sarapatel. E uma banana frita coberta com queijo coalho derretido, polvilhada com canela, repunha cada coisa no seu devido lugar da garganta para baixo.
Nem fiquei ressentido pelos sábados em que voltava ao bairro onde sorri e chorei todas as circunstâncias de minha puberdade. Vinha (agora com esposa e filhos) juntar-me aos irmãos e ouvi-la de novo a nos chamar à mesa onde devoraríamos, sem a menor etiqueta, um panelão de guisado com purê de batatas, arroz, feijão verde e farofa de ovos.
Tenho um amigo mineiro que também já deve ter perdoado a sua mãe – estou seguro disso! – por tudo o que passou nos primeiros anos de vida: doces de leite, em tabletes (“cortados em losangos”), de mamão ralado (“bem durinhos, açucarados”), pudim (“com miolo cremoso, que a gente não comia... chupava”), mexido de queijo (“rapadura derretida na panela, com queijo e farinha”).
E não esquece do arroz cozido com uma pimenta-de-bode, “finalizado com fatias de queijo, cobrindo toda a panela”; lombo recheado, “guardado na lata de manteiga (banha)”; almôndegas, também “envelhecidas” na lata; “sopa” de frango (pirão, com açafrão, alho e cebolinha); mexido de abóbora (abobrinha batida, refogada com açafrão, acrescentando-se farinha, cheiro verde e ovos); pele torrada (pururuca); macarrão “frito” (refogado no tomate bem “reduzido”); “mogango” (um parente da abóbora) cozido; feijão refogado na panela de ferro, na gordura de porco…
Outro amigo, na bruma de sua saudade, quase abre o chorador ao recordar da "bruaca" cearense, uma pequena panqueca feita à base de farinha de trigo, açúcar, leite e ovos, servida com cobertura de mel. “Eu arrancava da mesa na terceira marcha, com uma energia danada para as atividades de pernas, braços e punhos de todo moleque”. Não duvido disso, nem que lhe restem mágoas em relação à mãe.
No meu caso, ao perdoar a minha, ponderei que na origem de tudo ela foi vítima de meu pai. Apaixonado pela ninfeta de 16 anos, ele a dedicou, com amor, carinho e tempero – e outras intenções, naturalmente! –, um exemplar de “Dona Benta”, a bíblia culinária que veio à luz na metade do século passado e que até hoje constitui um raro manual da arte de bem comer e viver.
Sim, ela está perdoada, mas sabe que não tinha o direito de fazer o que fez só por minha causa (e por meus irmãos). Todos os amigos que cruzaram o meu caminho, que tanto deixaram de si e quase nada levaram de mim, mereciam desfrutar da prateleira de cheiros e sabores que experimentei. Ela deveria trazê-los do futuro ao começo da jornada. Toda mãe, protegida que é, consegue quase tudo o que pede ao dono do tempo.
Filhos nascem, crescem e morrem sozinhos. Só quando partilham o que comem (e bebem, é claro!) com amigos do peito é que podem criar a ilusão, ainda que fugaz, de que não estão perdidos na multidão.