quarta-feira, 28 de junho de 2023

Casa de farinha

Famintos e com sede, chegávamos à zona rural de Colinas, no oeste maranhense, logo depois do São João de 1967. Ali moravam meus avós paternos, Mãe Sussu e Pai "Simente", alcunha poética para um agricultor de subsistência ou simplificação de "Nascimento", sobrenome português de origem religiosa emprestado a cristãos nascidos em 25 de dezembro.  

 

Mais de meio século adiante, é difícil imaginar como uma família (pais e sete filhos) viajou numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags, por mais de 1.300 km de estradas esburacadas, na lama ou na poeira, a partir do sertão paraibano. Jornada, inclusive, com desfecho épico: a légua final, escorregadia e enladeirada, se deu sobre uma tropa de jumentos.



 

Como esquecer do fim de tarde em que Pai Simente, sentado na porta de casa, ao lado de uma escarradeira, quase infarta por minha causa? Tio Marcelino, que preparava fogos de artifício, deixara próximo da janela algumas tabocas (gomos de bambu cheios de pólvora), enfileiradas como pirulitos num tabuleiro. Buliçoso, encostei uma brasa no estopim de uma delas para ver o que aconteceria.

 

Foguetões subiram assobiando e iluminaram o céu, ofuscando as primeiras estrelas. Meus pais, que raspavam pratos de “Maria Isabel” – arroz puxado no alho com carne de sol picada –, correram da cozinha até a sala onde me encontraram com a cara de sonso, sem atinar para o que poderia ter ocorrido à cobertura de palha de babaçu de todas as casas do povoado.


 

Como não recordar do abraço quente e apertado de Mãe Sussu e do olhar tolerante de Pai Simente, livrando-me de uma surra? Neto é neto no coração dos avós, com ou sem a anuência dos pais.


 

Na manhã seguinte, Bento, meu primo, admirou-se da balinheira (estilingue) que eu trouxera. Ele também usava uma arma poderosa: o bodoque caiçara, arco com dois cordões paralelos, esticados, que arremessavam "balas" de barro. Além do parentesco, em comum entre nós havia apenas o propósito de extinguir as rolinhas “fogo-apagou”.

 

O encanto pelo brinquedo alheio nos levou a trocar as armas, e o que se viu foram polegares e indicadores duramente castigados durante a aprendizagem. Esfolamos os dedos e não acertamos as rolinhas, que devem estar rindo de nós até agora. Os deuses das matas nos pouparam desse remorso.  


O mundo mudaria quando vi pela primeira vez uma casa de farinha. Depois da arranca da mandioca, adultos a descascavam e ralavam até virar massa. Em seguida, extraíam a água numa prensa, antes de peneirar a massa para retirar impurezas. O que sobrava, seguia para ser mexido numa chapa enorme, no fogo a lenha, até virar farinha.



 

Não me deixaram raspar a mandioca no caititu (cilindro com serrilhas metálicas), nem mexer a farinha na chapa quente. Pensei que tinha jeito pra coisa, como achava que usar o moedor de carnes era a coisa mais besta deste mundo, apesar dos nove anos de idade. Soube que a casa de farinha não existe mais. Praga de menino? Minha, juro que não foi. 

 


Triglicerídeos à parte, ali descobri do que uma boa farinha era capaz de provocar quando misturada à água em que cozida a carne ou o peixe: o bendito pirão que me leva, até hoje e sem culpa alguma, a reincidir no pecado capital da gula. 





E como não lembrar dos beijus de tapioca e dos bolinhos de farinha de arroz, servidos com café coado? E das redes espalhadas pela casa na hora de dormir, onde o "dono" de cada uma, depois que as lamparinas eram apagadas, só poderia ser identificado pelo par de chinelas?


Havia nas proximidades do sítio um olho d'água onde algumas mulheres, fiéis à etnia de seus antepassados Timbiras, após lavarem e enxaguarem trouxas e mais trouxas de roupas, tomavam banho nuas em pelo. Pena que alguns adultos, por motivos que desconheço, não me deixaram matar a minha curiosidade, digamos, antropológica. 

 

 

No dia da volta, chorei bastante. Obrigaram-me a deixar o bodoque caiçara, por falta de espaço no bagageiro da Rural Willys. Ainda faríamos escala em Caxias, já próxima da fronteira com o Piauí, onde meu pai havia morado antes de migrar para a Paraíba. 

 


Ardia de febre quando chegamos. Era o sarampo. Assim como já acontecera em anos anteriores, nas temporadas de catapora (varicela), caxumba (papeira) e coqueluche (tosse-comprida), a doença derrubaria também meus irmãos. Ser o primeiro a contrair teve seu lado positivo: poder tomar guaraná, leite em pó e comer maçã, além de desfrutar do cuidado prioritário de uma mãe de muitos.




O mundo deu muitas voltas de lá pra cá. Tia Cristina, que desapareceria nos primeiros dias da peste que virou o planeta de ponta cabeça meio século depois, antes de partir me contou que o sítio em que viveram Mãe Sussu e Pai Simente já dispõe de energia elétrica e água encanada, além de casas cobertas de telhas, algumas com TV a cabo. 



 

Sei que paredes e medos mudam de lugar, que a gente embrutece e até desaprende a chorar nossas perdas. Mas nada neste mundo apaga as coisas e cores guardadas que a saudade, volta e meia, nos pede pra remexer. 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Fora de controle

O dramaturgo e romancista Ariano Suassuna dizia ser contra as pessoas falarem mal das outras pela frente. “Eu acho uma falta de educação muito grande, não é? Falar mal pela frente constrange quem ouve e constrange quem fala. Não custa nada a gente esperar um pouco as pessoas darem as costas…” Dizia mais: “Eu minto! Vejam bem, não me levem a mal. Não gosto de quem mente para prejudicar os outros. Gosto de quem mente por amor à arte. O mentiroso lírico…” 

 

Bem, o nome aqui não vem ao caso, mesmo porque um cidadão com quem trabalhei nos anos 1980 ainda é vivo e pode achar que estou distorcendo os fatos. Vou chamá-lo de Xaréu (peixe da cabeça grande, olhudo, de águas oceânicas) por causa do par de faróis de jipe que ele carrega sobre um bigode de para-choque.

 

Nascido em berço de prata, tinha em torno de 35 a 40 anos de idade quando o conheci. Nas horas vagas de bancário, praticava pesca submarina no litoral alagoano. Jactava-se de ter descoberto uma técnica para "hipnotizar" tubarões. Dizia até que tirou fotos acariciando um tubarão azul de mais de três metros.

 

Um dia, Xaréu resolveu revelar como colocava tubarões em "transe" para serem apreciados por turistas, sem o estresse da captura. O primeiro passo para imobilizar o bichão era atraí-lo chacoalhando a água e usando sardinhas (a isca ficava numa caixa que permitia sentir o cheiro e até ver a comida, embora não pudesse mordê-la).


Reprodução: bastidores de "Jaws", de Steven Spielberg

Quando o predador se aproximava, ele o induzia a um profundo relaxamento. Colocava as mãos numa certa posição, fazendo com que o animal pensasse que seus dedos eram pequenos peixes. “Provoco o bicho para me morder. Essa é a parte mais perigosa, porque se eu for muito rápido, ele vai embora, e se eu for devagar, ele abocanha...".  

 

Contou que mergulhava protegido por uma roupa feita de um aço especial. Caso fosse mordido, os dentes não perfurariam o traje. “Houve até um caso em que um tubarão mais afoito ficou banguela”, pontuou. 


Antes de morder, o animal abria o bocão, deixando a água entrar para obter oxigênio por meio das guelras. Em seguida, fechava as mandíbulas. “De boca fechada, eu conseguia imobilizar o bicho. Como não estava respirando, era fácil colocar a mão no nariz dele e fazer massagem...".

 

Depois de deixar o bichão “chapado de prazer”, retirava parasitas da pele. “Ele até ameaçava ir embora, mas percebia que havia carinho e respeito; por isso, ficava. Não tem quem não goste de um cafuné, né mesmo?”

 

Como o tubarão não pode permanecer muito tempo parado e precisa estar constantemente em movimento para respirar, Xaréu disse que o conduzia à superfície e exibia para os turistas, de quem recebia polpudas gorjetas, inclusive em dólares.

 

Pois muito bem, diria Suassuna. Ao me ver meio cabreiro, desconfiado, Xaréu admitiu que não era possível aplicar a técnica em todos os predadores. Garantiu porém que nunca sofrera um acidente grave. “Às vezes, me vejo no meio de 20 tubarões e procuro descobrir quais são os mais confiantes. Quando acho, atraio um deles...".

 

É fato que “Tubarão”, do cineasta Steven Spielberg, fizera um tremendo sucesso no Cine São Luiz, em Maceió, no final dos anos 1970. No filme, um inesperado ataque sinaliza que a praia de uma pequena cidade americana teria virado o refeitório de um monstro que se alimenta de turistas. O prefeito ainda tenta esconder da mídia, mas o xerife local busca a ajuda de um pescador veterano para eliminar a besta-fera. A tarefa acaba sendo bem mais difícil do que se esperava.

 

Clarinete, chefe do setor em que trabalhávamos, não apostava um cruzeiro nas aventuras de Xaréu, mas, com o semblante sério, perguntou se aquela coragem toda vinha de criança. Ele nem pestanejou. Disse que desde os tempos de escoteiro, sempre que se via diante de animais furiosos, encarava-os com destemor para ter o controle absoluto da situação, “o que deixava os bichos desconfortáveis, por se sentirem desafiados ou ameaçados… E a maioria acabava fugindo”.

 

Se era verdade ou não, difícil saber, a esta altura. Sei que Xaréu, na época, ficou chateado porque a turma fez uma algazarra danada quando Clarinete, em seguida, começou a cantarolar uma canção que fazia muito sucesso no rádio: “olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu passo bem demais...” 


Soube que Xaréu, depois que se aposentou, andou oferecendo seus préstimos à prefeitura do Recife para resolver “um probleminha” no trecho que vai da praia do Pina, na Zona Sul, até a praia do Paiva, no Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana. Mas as negociações não evoluíram. "É por isso que a coisa anda fora de controle por lá", ele teria dito. Liricamente, imagino.

 


quarta-feira, 14 de junho de 2023

Vem aí um novo passaporte?

Descobri que o passaporte se tornou obrigatório nas viagens internacionais apenas no começo do século passado, após a Primeira Guerra. O termo vem do francês arcaico ("passeport"): o papel que autorizava o viajante a passar pelo porto e sair do país.  

Havia certa liberdade editorial em sua confecção, um século atrás. Era uma folha de papel dobrada em oito partes, capa de papelão, trazendo dados básicos (nome completo, data de nascimento, nacionalidade etc.), além de breve descrição física do titular, como olhos claros, nariz adunco e cabelos ruivos; e sinais particulares, como lábio leporino, cicatrizes etc.

 

Ainda bem que a descrição do viajante se limitava aos traços do rosto. Dou por visto o que registrariam a meu respeito na época: cabeçudo, míope, gengivas de macaco, orelhas curtas e sobrancelhas de taturana. As partes íntimas estariam preservadas do escárnio público.

 

E se a coisa tivesse evoluído para inclusão de traços psicológicos? Seria possível agora extrair dos arquivos descrições interessantes, por exemplo, sobre figuras ligadas ao futebol.

 


Dá pra imaginar os responsáveis pela coleta de dados, no final do dia, tomando uma cerveja no boteco e cometendo deslizes ético-etílicos:

– Viu só o Edmundo? É atormentado, encrenqueiro, prestes a explodir... Pior que Almir Pernambuquinho. 

– E o Sávio, aquele que joga no Real Madrid. Triste, depressivo, cai no choro a qualquer instante. É moleque criado com a avó em apartamento, nunca brincou num quintal.

– Pô... E Dodô? Vive rindo não se sabe de quê. Parece que nunca ouviu Frejat cantar que “rir é bom, mas rir de tudo é desespero”.

– Tá escorrendo rabugice nos cantos da boca de Dunga, percebeu?

– Sim! E o olhar gelado de Romário... Típico do sujeito que enfia um estilete até o cabo e não escorre uma gota de sangue da vítima…

 

Volto no tempo. Dizem que depois que Machado de Assis publicou Dom Casmurro, um funcionário da repartição de passaportes teria caprichado na descrição de Maria Capitulina de Pádua Santiago, mais conhecida como Capitu: “criatura de 14 anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Um tanto leviana e fútil. Desde pequena só pensa em vestidos e penteados, tem ambições de grandeza e luxo, e outros predicados que evito citar para não cair em tentação”. 

 

O chefe, no entanto, ávido por predicados e sujeitos mais picantes (bota picância nisso!), cobra: “Esqueceu daquela história de olhos oblíquos e dissimulados de cigana, do triângulo amoroso relatado no livro pelo próprio Bentinho, o maridão desconfiado?” 

 

“Há controvérsia, chefe!” – pondera o funcionário, com o dedo indicador em riste! – “Não encontrei vestígios de que Capitu e Escobar chegaram às vias de fato. Nem na cortina nem no carpete. Isso é coisa da cabeça do Bruxo do Cosme Velho, instigando os leitores...”.

 

“Vai me dizer que eles não...”

 

“Tá no regulamento, chefe: para fins de emissão de passaporte, pouco importa se Capitu capitulou ou não, como desconfia Bentinho. Aliás, Escobar pode ser carreirista, mas não é paraguaio ou colombiano... Se bem que ninguém precisa cruzar fronteiras para pular a cerca”.

 

Mais adiante, Escobar morre afogado e as lágrimas de Capitu pelo morto deixaram Bentinho transtornado. Tanto que acabou despachando a esposa para a Europa, onde ela viveria seus últimos dias. Com um passaporte, óbvio! 

  

Com o passar dos anos, a fotografia virou mais um elemento de identificação, embora em nada se pareça com a padronização do documento nos dias de hoje.

 

Sem regras claras, as pessoas providenciavam uma foto qualquer. Posavam de chapéu, de véu, tocando piano, chupando picolé ou tricotando. Reaproveitavam até fotografias antigas, recortando o próprio rosto, ou arrancando a imagem de outro documento. 

 

Mas contexto é importante. Um chapéu sobre a cabeça de um matuto, por exemplo, não passa de um simples utilitário de proteção contra o sol. Sobre a cabeça de uma primeira-dama, apenas um adorno numa cerimônia. Na fronte de um cardeal, um símbolo de poder. Na mão estendida de um esmoler, a vergonha (ou o vício) de pedir e a esperança de viver numa nação mais solidária.   

 

Hoje, para confecção do passaporte, deve-se manter uma  expressão neutra e a boca fechada na foto. Foi assim, aliás, que nasceu uma fábrica de monstros. Reveja a sua imagem no seu documento e diga se não tenho razão. 

 

Tudo isso me fez recordar da figura de um baixinho de fraque puído, bigode de broxa, chapéu-coco e bengala, que nunca precisou de passaporte para atravessar fronteiras e ser reconhecido em qualquer lugar. Sem dizer uma palavra, virou cidadão do mundo. 

 

Se ainda estivesse entre nós, Chaplin, em nome dos ambientalistas, diria em gestos, coberto de razão: “Já passou da hora das nações criarem um novo passaporte. Em papel não dá mais!” 


Concordo. Talvez um microchip no dedo mindinho do pé ou na omoplata (finalmente, um deles teria utilidade prática!), com os dados de identidade, biométricos e vistos do viajante, simplifique as coisas neste mundão cada vez mais complicado e dividido. 

 

Fica a dica. O que você acha?

quarta-feira, 7 de junho de 2023

Não sou eu…

Três anos depois de tantos abraços reprimidos, de tanta angústia e de cinco doses de vacina, uma variante sorrateira do inominável bateu à porta e, sem pedir licença, se instalou sobre duas almas rendidas pelo pânico.

 

Passado o susto inicial (nem nos deu tempo de colocar detrás da porta um pouco de sal grosso), eu e minha mulher já estamos bem. Assumimos como inevitável o que aconteceu quando resolvemos deixar o cárcere voluntário.

 

Lembro-me de um livro (“O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati) que ganhei de presente, em 1982, de meu querido amigo João Batista de Almeida. Reli trechos durante o confinamento. Difícil engolir que nunca mais verei João flanando nas livrarias. Nem nos despedimos. 

 

O livro conta de um jovem que deixa sua cidade natal para assumir o posto de tenente numa fronteira desabitada. Tinha a esperança de fazer algo de nobre pelo seu país, que poderia ser atacado pelos Tártaros, a qualquer momento. 

 

Trinta anos depois, velho e doente, após esperar por uma guerra que não veio, o tenente reflete sobre quantos deixam a vida passar esperando um conflito que talvez não venha e, se vier, pode encontrá-los já derrotados. E divaga sobre se a guerra de cada um de nós já não se dá todo dia, embora muitos, em busca de algo maior, nem se deem conta disso.    

 

Em minha guerra particular, parecia fácil acordar às quatro e meia da madrugada e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, tropeçando nas quinas que se metiam no caminho entre a cozinha e a varanda onde os primeiros sinais de luz diziam que a agonia passaria depressa. 

 

Parecia normal trocar o noticiário mórbido da TV pelas canções de ontem, admitindo uma certa alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Diminuía a ansiedade ouvir Simone propor que pegasse aquele feijão preto, colocasse meia dúzia de latas pra gelar e mudasse a roupa de cama que já, já, a vida estaria de volta.

 

Parecia simples preparar a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão, depois de limpar a última ruga da folha de alface ou rúcula, como se ali cochilasse o monstro capaz de acabar com tudo em duas ou três semanas.

 

Fotografia: Magdala Veras

Parecia fácil ver a mulher na varanda, resignada, sem botar os pés na areia havia meses – nem mesmo para afogar nossos netos de abraços e beijos salgados de lágrimas –, longe das franjas de espuma que escorriam na praia, querendo pegar uma cor ou fazer um cabelo bonito pra eu notar. 

 

Ou vê-la disposta a dar uma geral, fazer um bom defumador, encher o cárcere de flor para, de tardezinha, os olhos boiarem diante de uma cena qualquer do seriado da vez.

  

Parecia normal ver tantas crianças longe da sala de aula, cujos pais, prisioneiros de suas próprias incertezas, não sabiam como, sem os dilemas do convívio na escola, lhes ensinar os deveres de casa em matérias críticas como amar e perdoar. 

 

Ou – em meio a tanta mentira, tanta força bruta escorrendo nas redes sociais! – deixar de ir à padaria, ao cinema, ao boteco, ao supermercado ou ao restaurante, onde incautos se infectavam e, não raro, sumiam. De vez.

 

Parecia fácil, normal, simples. É... Parecia.

 

Toda noite, me deitava mais cedo, não para dormir o sono represado dos madrugadores, mas para mergulhar nas águas de oceanos nada pacíficos já navegados por velhos lobos-do-mar como Braga, Cony, Nelson, Ruy, Sabino, Ubaldo e Verissimo.  

 

Mesmo isolado do mundo (que já cheirava, de novo, a fumaça de óleo diesel), me inspirava nesses marujos para rascunhar meia dúzia de linhas e tirar a paciência daqueles que ainda prestavam atenção naquilo que eu tinha a contar.

  

“Talvez o mundo não seja pequeno, nem seja a vida um fato consumado”, dizia Chico, outro marujo calejado. Mas enquanto não chegava o habeas corpus que me libertaria do cárcere, precisava refletir sobre como pegar os novos ventos e velejar bem longe de meu porto seguro até descobrir onde tudo isso vai dar. 

 

Ainda não descobri, mas uma hora chego lá. 

 

Hoje, mais do que ontem (e menos do que amanhã), quanto mais remo, mais rezo. E me contento ouvindo Paulinho, outro velho lobo-do-mar, extrair da viola uma certeza em forma de oração: “Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar”.