Você já deve ter ouvido falar dos infames três “P” presentes nos ensaios sociológicos: pobre, preto, da periferia. Antonio Domingos, ou simplesmente Tonho, baiano da gema, daqueles que conhecem cada pedra das ladeiras de Salvador, carregava esse estigma como uma segunda pele. Nascido em 1964, emergiu da barriga da miséria para o mundo em plena “revolução redentora” de um país que falava em milagre econômico e pregava o “ame-o ou deixe-o”.
Ainda menino, Tonho foi apresentado à amargura da exclusão social. Sua mãe, Dona Flor, costureira, equilibrava-se entre agulhas, dívidas e dúvidas para garantir o básico. Ele cresceu ouvindo que o futuro era luxo reservado a outros e que seu lugar no mundo era tão minúsculo quanto o cubículo de sonhos limitados de onde espiava, pela fresta da imaginação, os luxos que nunca experimentaria.
No início da adolescência, enquanto o Brasil se debatia entre a censura e a criatividade, a novela Pecado Capital arrebatava as telas. Escrevendo a trama às pressas para substituir a censurada Roque Santeiro, Janete Clair apresentou ao país as contradições do dinheiro fácil. Carlão, um taxista que encontra uma mala de dinheiro roubado, enfrentava o dilema moral entre devolvê-la ou sucumbir ao sonho burguês de resolver a vida da noite para o dia, em um golpe de sorte.
“Dinheiro na mão é vendaval”, advertia Paulinho da Viola no samba-tema da novela. Uma lição que Tonho aprenderia da forma mais literal possível. Aos 19 anos, em 1983, ele quebrou o estigma dos três “P” ao acertar sozinho na loteria: R$ 33 milhões em valores de hoje. Para um jovem que sobrevivia ao sabor da fome, a fortuna chegou como um milagre – ou uma maldição.
Há quem diga que todo ser humano é a soma não das suas decisões, mas do que, pensando melhor, opta por não fazer. O primeiro ato de Tonho foi exorcizar um trauma antigo. Expulso algumas vezes, pelos seguranças, das cercanias do hotel mais caro de Salvador, resolveu ali ocupar a suíte presidencial por prazo indeterminado, pagando à vista. “Agora é a minha vez de pisar no tapete macio”, teria dito. Mas a conquista não bastava. Como todo vendaval, sua nova vida varreu tudo à frente, deixando um rastro de excessos.
O que se seguiu foi uma saga digna dos três “B”: bacanais, bebidas e beldades. Festas barulhentas, repletas de loiras, morenas e ruivas, incomodavam até os hóspedes mais tolerantes. O gerente do hotel, pragmático, se fazia de mouco: “os azarados que se mudem!”. Roupas de grife, usadas apenas uma vez, descartadas e uma busca desmedida por prazeres efêmeros.
Em uma noite particularmente solitária, Tonho encarou o travesseiro de penas de ganso como se ele pesasse toneladas. Pensou em Dona Flor, ainda curvada sobre a máquina de costura, sob a luz fraca de uma lâmpada, sustentando a mesma realidade de que ele fugira, mas não transformara. Enquanto ele flanava em tapetes macios, ela seguia pisando no pedal da máquina.
Lembrou-se do dia, ainda menino, em que Dona Flor esticou o tecido mais caro da loja para cortar um vestido de festa para uma cliente. Enquanto a tesoura dançava, escapuliu: “Um dia ainda iremos vestir coisa boa, meu filho”. Mas a promessa ficou presa entre a fita métrica e a tesoura, como tudo o que ela nunca teve para si.
E, como todo vendaval, o dinheiro passou. Com a devolução do primeiro cheque sem fundos veio a ressaca. A fonte secou e, com ela, refluíram os delírios de grandeza. Sobraram não apenas os olhares de reprovação, mas também o eco das oportunidades desperdiçadas. Milhares de meninos continuavam marginalizados nos becos e morros da Bahia. O milagre que os orixás concederam a Tonho evaporou como chuvisco no asfalto quente.
Questionado sobre o desperdício, ele retrucava: “Gastei e dei alegria pra muita gente, menos pra quem esperava que eu fosse salvar o mundo”. Mas o peso do travesseiro nunca desapareceu. Dona Flor não teve a casa que sonhava, enquanto seu filho transformava o curto reinado em um desfile de excessos.
Hoje, aos 60 anos, Tonho vive de bicos, inclusive como garçom em festas onde conta sua história com graça e leveza. “Já estive dos dois lados da bandeja”, brinca. Mas a sombra de Dona Flor, agora aos 96 anos, pesa mais que qualquer travesseiro de penas.
Tonho perdeu quase tudo, menos o que o luxo não pode comprar: a certeza de que, durante algum tempo, foi o rei e o bobo de sua própria corte de ilusões. Sua história, que poderia ter sido um ponto de virada, tornou-se um eco abafado na Baía de Todos-os-Santos. Restam o brilho no olhar e o riso fácil – não de quem venceu, mas de quem ousou sonhar.