quarta-feira, 13 de março de 2024

No frescor dos novos tempos

Está em discussão no Congresso Nacional um projeto de lei que visa regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos e de empresas por meio de entidades de classe.

 

Com o calorão que anda fazendo ultimamente, há cada vez mais queixas nas redes sociais contra motoristas que cobram adicional dos passageiros que querem viajar com o ar-condicionado ligado. É como se os prestadores do serviço se tornassem os novos mercadores do Egito, onde tudo se compra e se vende, até mesmo a brisa que nos refresca durante a viagem. E veja que não trato aqui de um conto de fadas moderno, mas da triste realidade das plaquinhas que adornam o encosto de cabeça dos bancos dianteiros dos carros, oferecendo o refrigério por certo preço. 


É a cortesia cedendo lugar à cobrança. Balas (ou confeitos) e água gelada foram substituídas por um pagamento antes mesmo de o carro partir. Enquanto alguns defendem a gratuidade da climatização, principalmente em tempos de aceleração do aquecimento global, outros apontam que esse custo não pode recair nas costas dos motoristas, pois o uso do equipamento aumenta muito a conta do combustível. 

 

Conheço um militar reformado que se aventura pelas estradas urbanas como condutor de aplicativos. Ele me contava outro dia, com resignação, que as plataformas têm repassado muito pouco aos motoristas. "Infelizmente é assim. Ah, se eu pudesse oferecer o conforto de antes, sem pedir aos passageiros o reforço por fora...”, lamenta.

 

Aqui deitado em rede esplêndida, ao som do mar e à luz de um sol escaldante, depois de dias e mais dias sem fazer nada de útil à aventura humana sobre a Terra, resolvi perturbar o sossego das plataformas de transporte com minhas indagações de aprendiz de rábula. 

 

Uma delas, em sua sapiência tecnológica e a partir do caso do ar-condicionado, me garante que quando detecta que "o motorista conduz mal uma corrida, pune o desobediente com severa advertência", uma espécie de marca de Caim nos tempos modernos. Nada como uma avaliação ruim para trazer à tona o pior de nós mesmos, não é?

 

Diz mais: que "a cobrança de qualquer adicional por fora representa violação às regras de segurança e podem levar à desativação da conta do motorista parceiro envolvido". 

 

Uma segunda empresa me manda uma mensagem rebuscada, sem nada de novo: “Somos uma empresa de tecnologia voltada à mobilidade urbana e conveniência, que conecta passageiros e motoristas parceiros por meio de seu aplicativo”. E sugere que “motoristas e passageiros decidam juntos sobre o uso do ar-condicionado”.

 

Com a aprovação da lei que regulamentará o trabalho de motoristas de aplicativos por meio de sindicatos, me ocorre propor uma negociação bastante simples para resolver o impasse. 

 

Sem falsa modéstia, a ideia só não é melhor porque é minha. Vejam bem: por que não estabelecer uma taxação mútua? Os passageiros pagariam pelo ar fresco, mas seriam compensados quando fossem obrigados a escutar funk, sertanejo ou dissertações intermináveis sobre preferências clubísticas, políticas ou religiosas.

 

Para os motoristas que insistirem em tentar convencer “convertidos” com suas réplicas e tréplicas, uma penalidade extra seria cobrada: aumento de 50%, com o lembrete de que ficar em silencio é nunca mais precisar ter razão, mesmo em tempos de overdose de informações.

 

A flatulência (e a eructação) também teria cobrança recíproca, apesar da previsível polêmica quanto à autoria de disparos letais silenciosos, sobretudo no caso do transporte compartilhado de passageiros, do meio-dia pra tarde.

 

No fim da corrida, haveria o acerto de contas entre as partes, com razoável chance de a maioria das viagens terminarem com as despesas adicionais anuladas entre si. Elas por elas, digamos assim.

 

Com tanta gente por aí que não se constrange em compartilhar sua estupidez a qualquer hora do dia ou da noite, inclusive espalhando notícias falsas, a taxação mútua, que a princípio pode parecer injusta aos motoristas, teria também um caráter pedagógico e profilático.

 

Sei que na categoria Confort da principal plataforma que opera no Brasil existe a possibilidade, antes da viagem, de o passageiro marcar a opção de não conversar com o motorista e até de definir a opção pelo ar-condicionado, porém me refiro aqui às categorias mais populares, claro, de todos os aplicativos.

 

Não é a solução perfeita, admito, mas ao menos se poderia transformar as viagens em momentos de bem-estar e paz social, ouvindo-se, no frescor dos novos tempos, apenas o barulhinho do ar-condicionado e não monólogos de donos da verdade ou música de qualidade duvidosa para passageiros cujos ouvidos correm o risco de virar penicos.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Elas amadurecem bem antes

Na semana do Dia Internacional da Mulher, andei relendo uma pesquisa realizada há alguns anos, no Reino Unido, sobre diferenças de maturidade entre sexos. Em resumo, chegou-se à conclusão de que o homem permanece emocionalmente imaturo até 43 anos de idade e a mulher atinge a maturidade emocional bem antes: aos 32. O estudo revelou ainda que 80% das mulheres acreditam que os homens “nunca deixam de ser crianças”. 


Certas atitudes não deixam dúvidas sobre a lerdeza da maturidade de alguns homens: recontar as mesmas piadas e achar graça de novo, não se interessar por tarefas domésticas, confundir masculinidade com grosseria, exibir bíceps e tríceps para demonstrar como são fortes, entre outras bobagens.

As mães percebem essa diferença desde cedo, principalmente nas famílias mais numerosas como a que me trouxe ao mundo, com pais, cinco filhos e quatro filhas. Vi isso bem de perto quando uma de minhas irmãs, apenas um ano mais velha que eu, tornou-se adolescente “décadas” antes de mim.

Estamos falando do começo dos anos 1970. Enquanto eu, entre 12 e 13 anos, dividia meu tempo entre dormir, comer, estudar, bater bola, jogar botões (futebol de mesa), ler "Placar" e zoar meus irmãos mais novos, minha irmã já suspirava ouvindo Dio come ti amo, Non ho l’età (per amarti) ou assistindo aos requebros de Elvis Presley. Lia muito fotonovelas e até desenhava seus próprios "quadrinhos", em meio a namoricos movidos a doses generosas de estrogênio e progesterona de ovários fresquinhos.

Foto: Álbum de família 

Nessa época, a banda LSD – sob a batuta de um certo Djavan – fazia sucesso em Alagoas, animando as noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida. Ela, claro, sonhava em ir à balada toda semana, mas nosso pai era inflexível feito porta de cofre: “só vai se seu irmão for junto!”.

Como ela iria me convencer se, todo dia, no máximo às dez da noite, eu já tropeçava de sono? E se eu fosse à balada, cadê coragem pra dançar com as garotas? Dormir sentado numa cadeira dura, sob a luz negra e o barulho ensurdecedor da banda, inalando fumaça de cigarros até a hora de voltar?


Ela sabia do meu gosto por desenhar e, certa manhã, pediu a um traíra do colégio que me desafiasse a desenhar uma cena de sexo daquelas típicas de revistinhas suecas, fonte de deleite da molecada nos tempos em que se passava mais tempo nos banheiros do que estudando. 

Em pouco tempo, o inocente aqui rabiscou algo com toda carga erótica possível, assinou no rodapé e o traíra ainda insuflou o ego do “artista” dizendo que nunca vira nada parecido a não ser nos "catecismos" de Zéfiro (1921 – 1992). Meia hora mais tarde, lá estava minha irmã triunfante com a "obra de arte" nas mãos: "Como é, vai ou não vai sexta-feira à noite?"

Se me recusasse, meu pai ficaria sabendo do que eu andava “aprendendo” na escola e por certo mudaria a rota em meu GPS com o desgraçado de um cinturão de couro, me inspirando a escrever mais um parágrafo na crônica de minhas surras inesquecíveis.  

Travei, engoli seco e ali também aprendi, na marra, o que era chantagem emocional e suas implicações diretas e indiretas, durante as cinco semanas seguintes. 

Enquanto isso, passei a vasculhar cada centímetro da casa à procura do famigerado desenho. Até que um dia, folheando “Grande Hotel”, revista de fotonovelas favorita de minha irmã, notei que a protagonista de uma história escondera uma carta comprometedora entre o tampo traseiro e a gravura de um quadro de parede. 

Ao encontrar a “obra”, nem cogitei guardá-la em lugar alternativo, seguro. Matei no ninho o aspirante à sucessão de Picasso (1881 – 1973), o gênio espanhol obcecado pelo erotismo. Picotei o desenho, joguei os pedacinhos no vaso e acionei a descarga para ter certeza de que a agonia realmente chegara ao fim. Ainda bem que não havia fotocópias e a digitalização de papéis não existia nem nas revistinhas de "Flash Gordon".

À noite, vestida e maquiada, pronta para chamar o táxi, minha irmã espantou-se quando eu lhe disse que estava cansado e não iria nunca mais, com direito a um risinho de esculacho. Ela então correu ao local onde escondera o desenho e quase subiu pelas paredes ao descobrir que já não dispunha da “arma” pra me convencer. 

Aqui entre nós, penso que nosso pai, mesmo sem nunca ter desconfiado de que o filho vinha sendo vítima de "condução coercitiva", aprovou a "nossa" decisão de não sair. Para ele, não precisava ser toda semana, deixando-o aflito até que a madrugada nos trouxesse de volta.

Essa experiência só reforçou em mim a percepção de que as mulheres amadurecem antes. A sagacidade de minha irmã foi prova viva disso, deixando claro que certas mulheres dominam artes como a manipulação e a camuflagem de sentimentos muito mais do que os homens, esses inocentes que se acham sabidos.


Homens, como elas mesmo admitem, “nunca deixam de ser crianças”. Deve haver um anjo da guarda de plantão para cada um. Caso contrário, viver torna-se perigoso demais.
 

quarta-feira, 6 de março de 2024

Não é certo

Quem sou eu pra falar dessas coisas, mas resolvi navegar no intrigante universo do insulto, essa prática sofisticada para exibir nossa erudição social. Palavras, gestos e atitudes desrespeitosas, verdadeiros mimos linguísticos com o poder de ferir a dignidade alheia. Afinal, quem precisa de flores quando pode presentear alguém com um insulto afiado, daqueles que cortam o coração da pessoa ofendida?

 

O ser humano, esse bicho seletivo por conveniência, ainda luta para superar conceitos primitivos como a ideia de que homens "garanhões" merecem tapinhas nas costas, enquanto mulheres que têm mais de um parceiro são chamadas de "putas". A dualidade dos sexos, tão incensada pela sociedade, permanece uma figura de retórica. Afinal, quem precisa de igualdade quando pode apontar o dedo apenas numa direção?

 

E o que dizer das pérolas linguísticas utilizadas para xingar o próximo? A palavra "vagabunda", por exemplo, uma verdadeira sinfonia de desrespeito quando dirigida a uma mulher, com uma simples troca de vogal pode virar afago no ego masculino. Chamar um homem de "vagabundo" às vezes é reconhecê-lo como “esperto”, “malandro”, capaz de tocar a vida à custa dos outros.

 

No território do caráter relacional, “egoísta”, "farsante", "mentirosa" são termos que refletem a complexidade das relações interpessoais, com destaque para a exploração de traços físicos. Chamar uma mulher de "gorda" atinge o ápice do ultraje, enquanto atribuir gordura a um homem vira e mexe é um elogio cúmplice. Já vi até machão vestindo camisa onde escrito “um homem sem barriga é um homem sem história”. A incoerência nos insultos realmente nos remete à idade da pedra lascada.

 

Ilustração: Umor

E que tal palavrões em tom de brincadeira? Entre amigos ou amigas, o insulto pode ser apenas uma forma de zombar o outro. Mas, olhe lá! A entonação é crucial, pois no contexto errado, a mesma expressão pode passar de uma piada inofensiva para um ataque de proporções épicas. É o caso dos clássicos “pqp!”, “vtf” e “vtnc!” (evito grafá-los para não vulgarizar o texto), desabafos que levam alguns à catarse no desfecho de uma conversa.

 

E quando a ideia é desferir insultos "funcionais", a diferença entre homens e mulheres atinge níveis cômicos. Se um dos piores insultos para elas é ser chamada de "gorda" ou “velha”, para eles alcança o topo da ofensa ser chamado de "broxa" ou “corno”. Torna-se alto o risco de lesões corporais recíprocas.

 

No futebol, outro terreno fértil para insultos a granel, gírias e expressões são comuns aos dois gêneros. "Chinelinho" (quem faz corpo mole, simula contusão ou se machuca com frequência, e só aparece na mídia usando chinelos), "mascarado" (quem se acha a última pipoca do saco), "pipoqueiro" (quem se esconde nos momentos críticos, quando seu time mais precisa). São verdadeiros coices nas canelas das vítimas.

 

E no meio militar, hein?! Tá o maior bafafá em Brasília desde que um certo general, ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente da República em 2022, foi alvo de uma operação da Polícia Federal que mira articulações ideológicas de extrema direita (gostaram do eufemismo?). 


Mensagens obtidas nos celulares confiscados revelam que o general insultou integrantes das Forças Armadas que não aderiram às “articulações”. Numa delas, ele se refere ao então comandante do exército com o epíteto de “cagão” e pede (não se sabe a quem) que a cabeça dele seja oferecida. 

 

Claro, não falava de um desarranjo intestinal do velho companheiro de farda e quepe. Mas cheguei a pensar que estávamos prestes a assistir a um duelo meticulosamente orquestrado entre ambos, em campo aberto, na presença de testemunhas representativas dos três poderes da República, com armas escolhidas pelo ofendido para desagravo de sua honra. Uma espécie de revival medieval confrontando dois nobres da corte.

 

Descobri, no entanto, que duelos estão proibidos desde a época colonial, uma proibição confirmada logo depois da independência do Brasil, com a constituição outorgada por Pedro I em 1824. Melhor assim, sem melodramas. Afinal, lavar a honra com sangue suja a roupa toda, como diria Stanislaw Ponte Preta (19231968).

 

Soube ainda que, há pouco tempo, num inquérito administrativo contra uma militar mato-grossense acusada de ferir moral, ética e disciplina, os xingamentos proferidos, inicialmente considerados como pressão psicológica sobre um recruta, foram perdoados. 

 

Argumentou-se que certos insultos, extraídos de um dicionário de gírias e jargões militares, são inofensivos e funcionam apenas como meio de animar a tropa a dar o melhor de si. Bisonho, cagão, caga pau, coisa, cu de tropa, mocorongo, morcego, molambo, perebento, pulha, rolha, tapado, entre outros… Ótima forma de incentivar a equipe! Como nunca pensei nisso!?


Convicções pessoais e xingamentos à parte, aos que estranharam a ocorrência verde-oliva em Brasília, recordo aqui um certo personagem criado nos anos 1970 pelos cartunistas Cláudio Paiva, Hubert Aranha e Agner, em tirinhas publicadas na última página de O Pasquim. Avelar, o general que não aderiu ao golpe de 1964  um linha dura que apanhava da esposa em casa –, vivia repetindo, resignadamente: “Não ia dar certo mesmo...”

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Vai passar?

Nomes não vêm ao caso, mas no Carnaval deste ano os mandachuvas de uma grande rede brasileira de TV resolveram escalar influenciadores digitais e apresentadores novatos para a cobertura jornalística na Marquês de Sapucaí, no Rio. E o que aconteceu? Uma enxurrada de críticas devido ao baixo nível da transmissão, com muitas queixas sobre a qualidade das entrevistas, que mais pareciam bate-papos de boteco do que jornalismo sério.


Enquanto a TV se esforçava para entreter a massa carnavalesca, eu surfava na internet em busca de fatos dignos de uma crônica e nada. Na verdade, uma maré de notícias triviais e sem graça. Nem mesmo o vexame da Seleção Brasileira, atual bicampeã olímpica de futebol que ficará fora dos Jogos de Paris, teve algo de novo no feriadão. Só mais um fracasso da CBF.

 

Em meio à monotonia, recebi de um velho amigo um artigo interessante sobre os estudos de um doutor espanhol, de 39 anos, especialista em gerontologia (cuida do envelhecimento nos aspectos biológicos, psicológicos e sociais), confirmando que uma vida sexual ativa faz um bem danado à saúde. Além de animar o coração, a mente e fortalecer o sistema imunológico, é um verdadeiro elixir para o humor. A intimidade libera substâncias no cérebro que nos deixam mais contentes que cachorro com dois rabos. Claro, não é remédio para a depressão, mas certamente melhora o astral.

Tem mais! Ele garante que reduz o estresse e melhora o sono, tudo isso, bem, com um pouquinho de amor, carinho e as finanças sob controle. Parece até que tem efeito contra o coronavírus. Se é verdade ou não, não me cabe atestar, mas há outros especialistas, iraquianos, sugerindo que relações íntimas três vezes por mês podem nos proteger do coronavírus. 

Falando em proteção, fizeram uma pesquisa com 16 mil participantes em 33 países, divididos em dois grupos. O primeiro mantinha uma frequência de pelo menos três relações por mês, enquanto o segundo não chegava a tanto. Quatro meses depois, viu-se que 77% dos membros do primeiro grupo não foram infectados pela doença, mesmo que o tamanho da amostra estatística não seja lá grande coisa. 

Sobre tamanho, aliás, um ex-ator pornô brasileiro, de 69 anos de idade, conhecido por um atributo bem específico, anda fazendo propaganda para uma das maiores redes de fast food que operam no Brasil. Causou furor, inclusive, ao anunciar uma oferta de dois sanduíches por 25 reais, com o lembrete provocativo de que "tamanho é documento, sim!". 

O assunto dominou os Trending Topics do X (ex-Twitter), no segmento de comidas. Os internautas foram à loucura, uns achando engraçado, outros uma insanidade absoluta, por causa das criaturas inocentes que têm acesso às redes sociais e que ainda acreditam que a principal função de uma bengala é aumentar a base de apoio, melhorando o equilíbrio do vovô.

E sem ter uma escola de samba pra desfilar este ano, uma famosa atriz de novelas, de 44 anos, teceu comentários abertamente sobre o órgão do marido num canal de TV por assinatura. A declaração sobre “quão duro ele é" pode ter atiçado o complexo de inferioridade de muita gente, sobretudo porque a moça arrematou beirando o esculacho, com enorme naturalidade: "Além de grande e grosso, é duro, tipo madeira...". 

Bem, agora imaginem que cena poderia ter virado a grande notícia do Carnaval 2024! Um animado bate-papo num boteco entre o espanhol e o casal de brasileiros. Chope vai, chope vem, croquetes pra cá e pra lá, ao som dos hits “Macetando” e “Perna Bamba”, com a prosa descambando para uma mistura de temas anatomicamente sensíveis. Nisso, alguns fregueses mais sóbrios, com garfos e facas de mesa nas mãos, exigem do trio a suspensão do desfile de "dados científicos" a partir de suas respectivas habilidades, sob pena de ultraje ao pudor em plena apoteose. 

Mas nada disso aconteceu, é claro. Como se vê, não é fácil preparar uma crônica toda semana, havendo ou não temas palpitantes. 


Reprodução/FaceBook

Já quase desistindo de garimpar um fato que me instigasse a escrever, descobri no FaceBook uma charge em que um casal de meia idade passeia com um garotinho numa calçada sem sinais de chuva, suor nem urina. O pai, talvez interessado em avaliar o legado genético-carnavalesco transmitido ao rebento, indaga: 

– Que escola você queria ver campeã? 

– A pública, pai! – responde o inocente.

 

Mas em meio à batucada, os foliões de hoje e os mandachuvas de sempre, irmanados na política do pão e circo, não parecem interessados em discutir meios e modos de virar de vez essa página infeliz de nossa história. "Ai, que vida boa, olerê! Ai, que vida boa, olará! O estandarte do sanatório vai..." – entoam. 


Vai ver, a charge foi publicada por engano, só para me deixar aqui reflexivo, contrariado, pensando no que vem aí e cairá no colo de nossas novas gerações, quando a ressaca geral passar. 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Teria sido assim

Gilton Della Cella, cantador e compositor dos melhores que conheço, dia desses compartilhou um link de vídeo comigo. Trazia depoimento de Sandro Haick, multi-instrumentista, arranjador, produtor e diretor musical, falando sobre Dominguinhos, figura lendária na MPB. 


Reprodução/YouTube

O trecho final comove. Sandro conta que, com muito tato, consultou Dominguinhos sobre se manteria um baixista que não acertava uma nota sequer para a segunda de três apresentações. O gênio, sorrindo, respondeu “sim”, com uma generosa ressalva: “ele tá precisando...”
(ouça aqui)

 

Lembrou-me de um dito popular nordestino que descreve um político decente que surge de vez em quando, daqueles que existem apenas pra não perdermos por completo a esperança. Os mais humildes o reconhecem: “esse entende de precisão!”. 


Também me veio à cabeça meu sogro, Tertulino, que desde menino, no sertão de Quixeramobim (CE), foi dispensado pelo próprio pai do trabalho no balcão do armazém da família. Por ter o coração mole diante do sofrimento alheio, renunciava parcialmente ao pagamento dos mais necessitados.

  

Compartilhei o vídeo com outros amigos, amantes da boa música instrumental, registrando que Dominguinhos merecia uma biografia escrita por mestres como Ruy Castro ou Fernando Morais, para que nossos netos pudessem conhecer sua história.

 

Dois deles, talvez combinados na brincadeira, sugeriram que eu encarasse a missão, com o argumento meio furado de que conheço a alma nordestina. Um até soltou que poderia ser “o desafio, a obra de minha vida”. O outro, ponderando que “esses medalhões não vão topar”, me recomendou a leitura do livro “A vida por escrito – Ciência e arte da biografia”, onde Ruy Castro divide segredos, técnicas e truques sobre o assunto.

  

Confesso que quase caio na conversa, mas estou seguro de que essa missão exigiria alguém mais dedicado do que eu, disposto a pesquisar a fundo, fazer perguntas difíceis e tirar conclusões lógicas de onde ninguém mais vê lógica.

  

Deus sabe que já fiz a obra da minha vida quando ajudei minha mulher a trazer ao mundo e a criar nossos filhos na justa medida de minhas limitações, cada qual com seus acertos e desacertos, mas todos tocados pela mais nobre das virtudes: a prontidão para servir aos mais frágeis. 


Notei que pouco posso acrescentar ao que já foi dito sobre Dominguinhos, tudo acessível na internet. Desde o fato de que era um dos 16 filhos de um casal de alagoanos, mestre Chicão, sanfoneiro e afinador, e dona Mariinha, que migraram pro agreste pernambucano na primeira metade do século passado em busca de vida melhor.

 

Como tantos meninos pelo interior, Neném, como era chamado, tomou gosto pela música com o pai e aprendeu cedo a tocar pandeiro, triângulo e sanfona. Logo se apresentava com dois irmãos em feiras livres e na porta do antigo hotel Tavares Correia, em Garanhuns (PE), onde conheceu Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, que se impressionou com a criança e se ofereceu pra ajudá-la, caso um dia fosse pro Rio de Janeiro.

 

Anos depois, o pai resolveu procurar Gonzagão, no Rio, fugindo das dificuldades enfrentadas no Nordeste, carregando a família, inclusive Neném do Acordeon, aos 13 anos, numa viagem de pau-de-arara que durou 11 dias. 


Foto: Acervo Rio Gráfica Editora

Mais pra frente, já batizado de Dominguinhos por Luiz Gonzaga, voltaria ao Nordeste numa turnê, em 1967, como motorista e sanfoneiro do grupo de músicos. Foi quando conheceu a recifense Anastácia, cantora e compositora com quem foi casado por 11 anos e compôs mais de 200 músicas (as “filhas” do casal, segundo ele).

 

Entrar pro grupo do Rei do Baião deu-lhe maturidade como músico e arranjador. Mais do que aprender, o discípulo inovou a arte do mestre, e se aproximou de artistas famosos (Chico Buarque, Djavan, Gal Costa, Gilberto Gil, Elba Ramalho, Maria Bethânia, Nara Leão, Roberto Carlos etc.), abrindo a porteira para uma carreira que passeou por vários estilos musicais, de Baião, Forró, Xote, até Bossa Nova, Choro e Jazz.

 

Em Lamento Sertanejo, sua canção preferida, em parceria com Gilberto Gil, consta que, "por ser de lá, do sertão, lá do cerrado, lá do interior do mato, da caatinga, do roçado", era uma "rês desgarrada na multidão". 


Dizem que a solidão é a sorte dos espíritos excepcionais, o que talvez explique um legado (506 obras musicais, 34 LPs e 38 CDs) que transcende gerações, tocando corações em todo o mundo.

 

E o reconhecimento veio também de fora. Em 2002, ganhou o Grammy Latino, com o CD Chegando de Mansinho, e 10 anos depois repetiu o feito, na categoria melhor álbum brasileiro de raiz, com o CD/DVD Iluminado

  

Mas aí chegou 2013 e, aos 72 anos, ele não resistiu à luta travada contra um câncer de pulmão. 

 

Não duvido nada ter encontrado, em outro plano, o Criador de tudo, tendo ao lado Gonzagão, a quem Dominguinhos se dirigiu: 

– Mestre... Dá licença? Tô de volta pro meu aconchego, trago saudade, quero um sorriso, um abraço pra aliviar meu cansaço... 

– Oxe! Precisa pedir? – responderam, sorrindo, os dois.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A falta que faz uma pomba

Se você espera um texto sobre o luto de alguém, relacionado aos carnavais de outrora, sentindo a ausência de seu cobertor de orelhas "macetando" o apocalipse, bem, sugiro que ajuste seus óculos e prepare-se para uma reviravolta. Não é disso que pretendo falar nesta Quarta-feira de Cinzas.

 

Sábado retrasado, eu seguia pela orla da Pajuçara, de olho nos foliões que se arrumavam para homenagear o “Pinto da Madrugada”, bloco carnavalesco maceioense que acaba de completar 25 anos. Meu passeio me levou até o Memorial Teotônio Vilela, que mais parece uma ode à arquitetura de Niemeyer, com seu vitral patriótico e uma estátua do Menestrel das Alagoas em pleno ato de libertação de uma pomba, símbolo de sua batalha pela pacificação do Brasil após quase 20 anos de ditadura militar. 

 

Esse gesto me fez lembrar da cantora Fafá de Belém, que, um ano após a morte do senador, em 1984, também soltou uma pomba que tinha nas mãos, no histórico comício pelas “Diretas Já”. Tempos duros em que a liberdade era mais valorizada do que dinheiro na cueca ou em paraísos fiscais, onde a sociedade, artistas populares e os políticos de diferentes partidos se uniram em torno de um interesse maior: a redemocratização do Brasil.

Foto: Fafá de Belém, Teotônio Vilela e Fernando Brant (álbum da família Vilela)

 

Falando em pombas, essas criaturas aladas não são apenas mensageiras de paz na Bíblia. São protagonistas de histórias que vão desde a arca de Noé até o batismo de Jesus. Mas, vamos combinar, de uns tempos pra cá elas têm sido rotuladas por muita gente como verdadeiras “ratazanas do céu”.  

 

No palco urbano, onde fazem as vezes de coadjuvantes, seguem ecoando seus arrulhos misteriosos, quer a plateia aprecie ou não o espetáculo. Mas, quem diria, no civilizado Japão da paz (como canta Gil), a trama ganha contornos dignos de uma novela policial, com essas bichinhas alçando voos rumo ao estrelato de vítimas de um crime inusitado.

 

No final do ano passado, Atsushi Ozawa, um taxista de 50 anos, morador de Tóquio, decide que é hora de fazer justiça com as próprias rodas, encenando uma versão motorizada de "O Predador" contra um grupo de incautas pombas. Seu veículo, antes mero meio de transporte, transforma-se na arma do crime contra uma ave que não constava na lista de espécies caçáveis.

 

O enredo se torna denso quando Ozawa, sem uma gota de remorso, declara à polícia que agiu em legítima defesa territorial, alegando que as ruas são domínios humanos e as pombas, simples intrusas que deveriam ter o bom senso de evitar carros, atrapalhando o trânsito. "As estradas são para as pessoas," proclamou, após um episódio de alta velocidade digno de ser narrado por Sílvio Luiz, com direito aos bordões “olho no lance!” e “pelas barbas do profeta!”.

 

O desfecho dessa saga urbana não poderia ser mais dramático. A lei japonesa, pouco acostumada a tratar casos de homicídio avícola, convoca um veterinário para realizar uma autópsia na vítima fatal, buscando evidências de que a morte foi um trágico encontro com o táxi de Ozawa. A conclusão? Um choque cruel, doloso, digno de cadeia.

 

Nas redes sociais, a coisa pega fogo, com pessoas chocadas com o fato de que atropelar uma pomba possa render cadeia, enquanto outras acham que o motorista passou dos limites. Quem diria que esses símbolos pacíficos iriam causar tanta polêmica?

 

A má vontade com as pombas tem explicação: por serem bonitinhas e ordinárias, as pessoas gostam de alimentá-las com restos de comida, algodão doce, pão, pipocas, que são alimentos inadequados e prejudicam a saúde, além de viciá-las.

 

Como já não são mais caçadas por predadores urbanos (os gatos preferem ração de boa qualidade), cresce sem controle a população de pombas e o aumento tornou-se um sério  problema, pois são potencialmente perigosas para a saúde humana. 

 

A Salmonelose, por exemplo, é uma doença infecciosa provocada por bactérias, e a contaminação ocorre pela ingestão de alimentos com fezes (coisa que prefiro acreditar nunca aconteceu comigo ou com você). Ou a Histoplasmose, provocada por fungos que se proliferam nas fezes de aves e morcegos, cuja contaminação se dá pela inalação de esporos (células reprodutoras do fungo).

 

A versão brasileira da novela japonesa será facilitada pela atual concentração da sociedade em dois lados, onde adversários são tidos como inimigos e transgredir as regras é sempre justificável. Quem procura se manter fora desses dois polos, com outras visões e ideias, ou mesmo quem defende que ambas as facções têm acertos e erros, é tratado pejorativamente como “isentão”. E tome insultos e patrulhamento ideológico!




Sem trocadilho, penso que essa gente intolerante e raivosa anda precisando mesmo é de meia hora de pomba (com o relógio parado!). E não estou falando de uma qualquer, mas daquelas que tiveram o privilégio de voar das mãos de Teotônio Vilela e de Fafá de Belém. Se voltaram, não tenho notícia...

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

E o livre-arbítrio, como fica?

Dia desses eu conversava com um amigo baiano, escriba dos bons, que anda meio azedo por conta da dificuldade de encontrar quem goste de ler e escrever. Tem até opinião formada sobre a causa do problema: o ChatGPT! E desabafou, carregando nas tintas: “você sugere um tema qualquer e o computador cospe um texto mastigadinho, feito banana amassada com farelo de aveia. Tá virando drama inclusive para os mercadores de monografias, que estão perdendo a reserva de mercado".

Tentei discordar, mas sem muita firmeza, apenas buscando esticar um papo que me dava retorno reflexivo: "Olhe só, o ChatGPT, assim como a maioria das inovações tecnológicas, veio apenas para facilitar a vida no vale de lágrimas. O problema é a preguiça generalizada, que tem sido a mãe de quase todas as invenções. Até pensar agora é serviço terceirizado. O xis da questão é como usar a ferramenta, para o bem ou para o mal. E essa história de 'livre-arbítrio' é igual a democracia perfeita: é bonita no papel, mas na prática... Sei não, viu?".

Ilustração: Umor

Como eu não estava muito seguro daquilo que defendia para convencê-lo, reforcei o argumento citando um
 gênio que segue vivíssimo na memória do povo brasileiro, João Ubaldo Ribeiro. Dizia ele, em resumo, que sem livre-arbítrio, o homem não é nada, não tem dignidade nem responsabilidade. Se queremos um mundo melhor, temos que correr atrás, porque o mundo é nosso. Não dá pra esperar que Deus resolva tudo. 

Consegui convencer meu amigo daquilo de que não tinha tanta certeza, mas fiquei matutando. Então resolvi mergulhar um pouco mais no assunto. Descobri que um tal de Robert Sapolsky, cérebro de primeira grandeza vinculado à Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, andou estudando babuínos selvagens no Quênia e demonstrou como o estresse social afeta a saúde dos animais. Tempos depois, virou neurocientista e concluiu que livre-arbítrio não passa de lenda. "Somos frutos daquilo que não controlamos: nossa biologia, o ambiente, a interação entre eles", ele escreveu.

Faz sentido? – me perguntei – Será que a gente decide alguma coisa mesmo? E se pegar isso de que “somos frutos daquilo que não controlamos”, o que vai ser de nós numa sociedade onde chafurdam elites (com o perdão da palavra!) empresariais, políticas e judiciárias, agindo em benefício próprio com suas artimanhas em produzir verdades a granel?

E quem não quer um pouquinho mais de liberdade nessa vida? Mas será que temos mesmo liberdade de escolha? Falo desde decidir entre café com ou sem açúcar, salsa ou coentro, até os grandes dilemas éticos, morais e políticos.

Essa discussão do livre-arbítrio saiu das mãos dos filósofos e teólogos e caiu no colo dos neurocientistas. E eles agora questionam se realmente a gente escolhe alguma coisa. Dizem que nosso cérebro decide antes de a gente notar. Igual o coração, que tem vida própria, bate quando quer, até que certo dia...  

Mas o que é escolher conscientemente? Filósofos e neurocientistas estão numa disputa danada. Os filósofos acham que os neurocientistas só arranham a superfície da questão. Os neurocientistas respondem apelando para o antigo bordão de compadre Washington, do antigo grupo musical É o Tchan!: “Sabem de nada, inocentes!” 

No futuro, tudo indica que será possível prever decisões antes mesmo de a pessoa saber. Vem aí uma revolução filosófica! 

Decisões complexas, no entanto, como juntar as escovas de dentes com a pessoa amada, escolher uma carreira, cometer um crime ou romper um relacionamento, continuarão um emaranhado de escolhas e reflexões. 

Talvez essa confusão toda seja apenas um nó na nossa compreensão da consciência humana. Afinal, se somos aquilo que não controlamos (a herança genética, o ambiente e a interação incluídos), então o livre-arbítrio “irresponsável” pode nos estimular a cometer sem culpa alguns pecados capitais. A gula e a luxúria, por exemplo.

Quem sabe, quando este mundo for repaginado, a gente pare de tentar convencer os outros daquilo em que nem acredita. Tem tanta coisa que fazemos sem pensar que é pecado, mas ser intelectualmente desonesto está virando prática abusiva, assédio moral, pois pode expor alguém a situação constrangedora.

 

Já desejar a cara-metade alheia, como diz o meu amigo baiano, é injustamente classificado desde que o mundo é mundo. Segundo ele, precisaria ser excluído da lista. “Que seja pecado avançar sem o consentimento, mas só cobiçar de longe, sem tocar num fio de cabelo da criatura, meu Deus, não deve ser pecado. E o livre-arbítrio, como fica?” 

 

Fato é que, mesmo aqueles que não acreditam em livre-arbítrio e acham que está tudo predeterminado, que não se pode fazer nada para mudar o que foi escrito nas estrelas, ainda olham pros dois lados antes de atravessar a rua. 

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

A flauta que fez

Para celebrar o centenário de Altamiro Carrilho (1924 – 2012), o gênio da flauta transversal, a Casa do Choro, no Rio de Janeiro, está lançando um site com o acervo particular do músico, doado pela família à instituição. São gravações, manuscritos, partituras, fotografias, troféus e objetos pessoais, catalogados pelo pesquisador Tomaz Retz, agora ao alcance dos fãs do mais antigo gênero de música popular urbana do Brasil: o choro.


Reprodução/YouTube


Que manhã inesquecível em 1998, no Recife, aquela sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho! De noite, ele se apresentaria para convidados do Banco do Brasil na cobertura do prédio onde a Avenida Rio Branco cruza com o Cais do Apolo. Um lugar iluminado, à beira-rio.

 

Altamiro, com mais de 100 discos, fitas, CDs e sei lá mais o que gravados em 60 anos de carreira, dois anos antes havia participado do Projeto Tom Brasil. Uma ação de marketing cultural que reuniu uma seleção de craques da música instrumental brasileira, incluindo Armandinho, Dominguinhos, Raphael Rabello e outras feras.

 

Dava para notar que, muito mais que um instrumentista famoso, eu estava diante de um cara no ápice da maturidade (74 anos), ainda apaixonado pelo que fazia e de um bom humor contagiante. 

 

Contava histórias impagáveis. Um dia, dizia ele, sofrendo horrores com uma apendicite, foi levado de ambulância ao hospital, no Rio de Janeiro. Lá, enquanto era anestesiado, só pensava em como iria pagar a despesa, já que a situação financeira nunca foi lá essas coisas. Mas quando acordou, o médico, todo sorridente, acelerou sua recuperação ao dizer que a conta já tinha sido paga: ao lado do pai, de quem herdara o gosto pelo choro, ele curtia os discos de Altamiro desde criança. 

 

Gratidão é algo interessante. Geralmente as pessoas preferem retribuir um dano com um coice a agradecer, com o coração, um favor. Talvez porque ser grato pesa mais do que querer se vingar. Poucos enxergam que, ao receber um benefício com gratidão e reconhecimento, já quitam parte da dívida na origem.

 

Mas até as boas conversas chegam ao fim. Quando ofereci de presente a Altamiro uma caneta chique, com a logomarca do patrocinador do evento da noite, ele sorriu e desandou a falar de como se tornara conhecido no mundo todo, depois de rodar países como Alemanha, Egito, Espanha, Estados Unidos, França, Inglaterra, México, Portugal, União Soviética e mais um montão de lugares. 

 

Numa turnê em 1963, um famoso maestro russo ficou encantado depois de assistir a um espetáculo em Moscou e fez questão de cumprimentá-lo no camarim, afirmando que acabara de ouvir um dos melhores flautistas do mundo. Resultado? Teve que esticar a estadia por mais três meses por causa de tantos convites para shows.

 

No último dia, o famoso maestro o convidou para um café da manhã. Os russos são conhecidos pela sua hospitalidade. Gostam de receber amigos e mesas fartas são o atributo principal desses encontros. Mesmo que seja apenas um encontro amistoso, modesto, é comum, ao final, oferecer um mimo ao visitante que seja muito relevante para o anfitrião em termos afetivos. 

 

Altamiro recebeu uma velha caneta-tinteiro, com a ressalva de que ela havia assinado diplomas de grandes músicos russos. “Que presentão, hein!?”, pontuou o flautista brasileiro com os olhos marinando, dizendo que quase se ajoelhou diante do russo.

 

Ao chegar no Rio, um duro golpe: sua mala tinha sido violada e levaram a caneta que ele escondera entre meias e cuecas. E um dos maiores divulgadores do nosso choro, inconsolável, tomou o rumo de casa, onde se trancou no quarto por dois dias e chorou, chorou como nunca, segundo ele.

 

Pensando bem, o que esperar de uma nação que, anos mais tarde, acordaria estarrecida com a notícia de que o mais importante ícone do futebol (o troféu Jules Rimet, conquistado em definitivo após três vitórias em Copas do Mundo, em 1970) havia sido roubado e derretido?

 

A estatueta com 3,8 kg de ouro estava na sala da presidência da CBF, no prédio da Rua da Alfândega, no Rio, onde funcionava a entidade. O vidro à prova de balas da vitrine não serviu de obstáculo aos ladrões, que quebraram a moldura de madeira e levaram inclusive outros três troféus. O roubo foi considerado escandaloso pela facilidade com que os ladrões entraram e saíram do prédio carregando o maior símbolo da história do futebol brasileiro.


Embora a conexão entre um roubo e o outro possa parecer forçada, a comparação com a perda pessoal de Altamiro reflete uma questão cultural e histórica bem mais ampla. Triste Brasil.

 

Mas voltemos à sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho, há 25 anos. Preciso contar que ele esqueceu, na sala em que conversamos, a caixinha com a caneta que ofereci.  

 

Não lhe fez falta, imagino. A que fez, era outra. Tinha a tinta da gratidão e do reconhecimento no bico da pena. 

quarta-feira, 24 de janeiro de 2024

Coisa para poucos

Ultimamente, minha maior aflição tem sido a hora de ir para a cama. Mas antes que alguém insinue que isso tem a ver com a proximidade de meus 66 anos, adianto que são as dores lombares as verdadeiras vilãs dessa novela. 


Ilustração: ChatGPT


Quase todo dia, às quatro da madrugada, minhas costas recusam qualquer tipo de colchão, por mais confortável que seja. Só aceitam de bom grado as curvas de uma rede pendurada na varanda, que se torna o refúgio perfeito, numa afronta à lógica e ao senso comum.

 

Costas, aliás, que se fazem de míopes quando saio para a caminhada matinal, diante de tantas criaturas que dormem ao relento na dureza de papelões estendidos em bancos e nas calçadas, vencidas pelas desigualdades que as ruas escancaram, ainda que a brisa morna queira adocicar a cena. 

 

Costas que reconhecem, inclusive, que na lista das melhores coisas para se fazer nessa vida, duas dependem de um bom local para se deitar. A segunda é dormir, esse deleite ainda isento de impostos, tarifas e taxas. É natural, portanto, que as dores lombares mexam com o humor de qualquer um, e não seria diferente comigo. 

 

Há quem sonhe com um príncipe encantado (ou uma princesa) que leve a sua cara-metade no colo para a cama e, depois de tudo, faça uma faxina na casa enquanto ela tira um cochilo. No meu caso, isso é impensável. A minha não perde um minuto de vigília, e eu jamais ousaria despertá-la para tais façanhas. 


Porém, antes que alguém pense bobagens, registro que considerações sobre meu peso estão educadamente dispensadas. Aliás, minhas dores podem estar com os dias contados, pelo que andei lendo sobre uma espécie de “luxo de dormir” chamada Alaskan King Size, que virou sensação nas redes sociais. 


Esse colosso industrial mede 2,74 metros tanto de cumprimento quanto de largura, fazendo as camas king size brasileiras, de apenas 1,98 m x 1,85 m, parecerem brinquedos de bonecas (nem sei se ainda existem).

 

Curioso é que os tamanhos variam ao redor do mundo, e nos Estados Unidos, levam nomes inspirados nos estados de origem – uma Texas King, uma California King e, claro, a gigantesca Alaskan King, batizada em homenagem ao território glacial no extremo norte do Planeta.


Abro aqui um parêntese: tem líder político mundial afirmando que o Alasca é território russo invadido por norte-americanos e que a Rússia tem todo direito à reintegração. É mais uma manobra para tentar reacender o orgulho em baixa de uma nação e, quem sabe, justificar novas ações colonialistas. A indústria bélica mundial esfrega as mãos, mas não perco mais meu sono com isso.   

 

Volto à cama Alaskan King. Virou curiosidade exótica entre os brasileiros. Não faltam comentários divertidos de internautas: um brinca sobre a necessidade de um Uber para cruzá-la na diagonal, outro ironiza sobre a dificuldade de encontrar lençóis, e um terceiro sugere que, pela "extensão territorial", deva ter seu próprio IPTU, martírio que, junto com o IPVA, nos lembram de que não somos donos de nada nem no capitalismo de mercado.

 

Esse “latifúndio” é vendido como item de luxo ou solução para famílias numerosas, podendo custar o equivalente a um rim ou um pedaço de fígado, especialmente se dotados de personalizações e materiais nobres. A marca Purple, por exemplo, estima que uma cama custe mais de 15 mil dólares – pequeno tesouro, convenhamos. Caso de o sujeito perder o sono, com ou sem dores lombares.

 

Mas tem gente que não se encanta com essa vastidão amazônica. Uma usuária, falando sobre suas relações poliamorosas, lamentou que a Alaskan seja grande demais até para o trisal de que participa, ironicamente refletindo uma realidade moderna onde três salários mal cobrem as contas do mês. “Ela é tão grande que para dormir de conchinha são necessárias umas cinco roladas para alcançar o outro lado”, queixou-se. 

 

Toda essa história me remeteu ao primeiro grande salto de qualidade em minha dormida cotidiana: quando troquei uma rede, num quarto sem janela nem ventilador, por uma cama de campanha dobrável, revestida em lona verde, com o bônus de uma espiral da marca Sentinela para espantar muriçocas, apesar do risco de morrer carbonizado. Inesquecível, ainda assim, mesmo porque não havia naquela época o menor sintoma de dores lombares.   

 

E enquanto pesquisava sobre um remédio sem contraindicações para a minha maior aflição ultimamente, dei de cara com a propaganda da Alaskan King Size, que foi ganhando corpo como alternativa tentadora para as minhas madrugadas insones.

 

Acontece que o recente reajuste das aposentadorias do INSS, na casa dos 3,7%, recomenda que devo continuar fiel à minha velha rede, no gozo de uma das duas grandes alegrias da vida que dependem de um lugar aconchegante para se deitar.

 

Pois se existe uma coisa que pode dar uma ideia de céu, de bem-aventurança, de paz entre as criaturas de boa vontade, é acordar de um sono profundo e restaurador sem dor alguma, nem na alma. Coisa para poucos.



quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Sábios populares

Deus é testemunha de que não sou de ostentar, não quero ser metido, mas sou nordestino, filho de maranhense casado com paraibana (que um dia me levaram, ainda menino, para viver em Alagoas), de quem herdei a pitada cigana que me deu a graça de ainda virar pernambucano e baiano, mais adiante, antes de mergulhar de cabeça no caldeirão cultural brasiliense. 

 

Nessas andanças todas, colecionei alguns achados incomuns – ditos populares, provérbios e outras expressões sábias que nem o Aurélio, o Houaiss ou o Michaelis explicam. Cada um mais original que o outro, anotados ao longo de décadas de ouvido atento.

 

O linguajar falado no Nordeste tem seu charme único, diferente do resto do Brasil, mas o português continua sendo o fio desencapado que nos une como nação. Nem sou especialista no riscado, mas estou seguro de que essas tiradas linguísticas são a pimenta e o sal que temperam a comunicação de nossa gente.

 

Vou listar aqui algumas pepitas raras que recolhi na grande viagem e guardei no fundo da mala de minhas melhores lembranças. Preparem-se, principalmente aqueles que ainda não tiveram a ventura de experimentar do Nordeste (tudo tem seu tempo, não desanimem!). 

 

Lá estava eu, começando a carreira no setor de cadastro de um banco, onde tinha que apurar antecedentes para firmar juízo sobre a idoneidade dos clientes nos fuxicos de uma cidadezinha


Quando alguém até parecia ser boa pessoa, mas tinha fama de vagabundo ou velhaco, por causa de deslizes de maior ou menor gravidade, eu me via obrigado a buscar nos manuais de serviços termos mais polidos para conceituá-los, mesmo convicto de que seria bem mais assertivo se assentasse aquilo que ouvira:

– É cheiro de canto de unha.

– É de dar caganeira em bode.

– É pior que falta-de-fôlego.

– Não dou nele um dedal de mel-coado.

– Não vale a bufa de uma muriçoca.

– O cabra é cano-de-esgoto.

– Pense numa carne-de-cabeça.

 

Um dia, em meio a uma reunião, escutei alguém criticar o comportamento de um novato que “vivia entrando onde não era chamado” (ou “se metendo em conversas acima do seu nível”). Dizia-se que o sujeito era “atravessado que só pau-de-lata d’água”. Meia hora depois, inconformado com a “insistência” do intruso em permanecer no recinto, alguém soltou: “O cara é feio e saliente que só bico de chaleira. Parece o cão chupando manga!”. 

Ilustração: Jessier Quirino

 

Mais tarde, quando visitava comerciantes vinculados a um programa de apoio a pequenas e médias empresas, ouvi de alguns, invejosos dos “segredos” de seus concorrentes, classificarem “adversários” com frases impagáveis:

– Aquele ensina jumento a deitar com a carga.

– Ele vive dizendo que gosta de ouvir a freguesia. Escuta mais que vizinha solteira.

– Esse aí ensinou rato a tirar manteiga da garrafa com o rabo.

– O preço dele até que é bom, mas o bicho é mais grosso que pescoço de carreteiro.

– Taí um que puxa leite em cabra morta!

 

Conheci um zootecnista que demorava uma vida e meia para analisar um projeto de investimento, procurando pôr obstáculos em tudo. Nada lhe dava maior prazer do que emitir parecer contrário à liberação de uma operação de crédito. Um dia, escutei seu chefe, já sem paciência com a demora na análise de um caso, desabafar: “Esse galego é como barata; não come, mas bota gosto ruim em tudo. Vou ter que arranjar ‘Detefon’ (famoso inseticida de uso doméstico)”.

 

Sobre quem passava por dificuldades financeiras (aliás, não sei hoje em dia, mas antigamente “bancário apertado” era pleonasmo), ouvi comentários que traduziam perfeitamente o aperreio:

– Cantando coco sem saber da toada.

– Fazendo cruz na boca.

– Liso que só bochecha de anjo.

– Não tem um couro pra morrer em cima.

– Tá com o beiço no prego.

  

Já próximo da aposentadoria, estive em várias cidades do Norte/Nordeste, negociando convênios de prestação de serviços com entes da administração pública vinculados aos três poderes da República. 

 

Um secretário municipal, que morria de medo do prefeito, foi bastante sincero ao me dizer que não "daria um pio" sobre nada relacionado a sua área sem antes ouvir o "chefe". Justificou-se: “Em tempos de vassouradas, é melhor ficar do lado do cabo” 


E alguns interlocutores desses entes públicos, na ânsia de conhecerem as “novidades” oferecidas a outros estados e municípios, abriam a conversa alertando que com eles a coisa seria diferente: 

– Besta é coco, que dá leite sem ter peito.

– Bobo é sabonete, que se acaba pra limpar os outros.

– Não mamei em carreira de peitos.

– Quem tem filho barbado é camarão. 

– Quem quer mamar que carregue a mãe na garupa.

 

Louvados sejam esses sábios populares, minha gente! O linguajar de qualquer região lateja neles mais claro, curto e reto, do que se pensa. 


Pelo que escutei, dá para imaginar o que ainda existe de pepitas incrustadas por aí. Só os cegos, moucos e mudos não se deram conta disso.