quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

Cinzas de uma Quarta-feira

Nestes catárticos dias de Carnaval pós-Covid-19, lembrei-me do líder político russo Vladmir Putin, que vira e mexe ameaça apertar o botão e deflagrar a terceira e definitiva guerra mundial, determinando o fim da aventura humana na Terra.

Fotografia: Dedé Dwight


Não sei a quem pretende assustar. 

 

Dos mais velhos, como eu, corre o risco de ouvir algo como “já aperta tarde!”. Afinal, ficar por aqui assistindo à onda de catástrofes naturais (ciclones, dilúvios, epidemias, incêndios, deslizamentos de barreiras, terremotos etc.) e antinaturais, como irmãos famintos na fila do osso na porta de açougues em busca de sobras dos mais favorecidos, talvez o confronto generalizado nos poupe inclusive da tristeza do noticiário.

 

Dos mais novos, nem sei se ouvirá alguma coisa, dado que têm preocupações mais substantivas (para eles!) como o alucinógeno da hora, a coreografia da vez ou ouvir de novo “Zona do Perigo”, o pagodão de Leo Santana que me tortura os ouvidos há dias, mesmo de janelas fechadas.

 

E tem ainda a turma da meiuca, faixa intermediária entre 35 e 55 anos, que está na correria, acasalando, procriando, tentando contornar diferenças com seus rebentos em intermitente ebulição hormonal.


Na expectativa de ascensão profissional (ou maiores lucros), essa turma também não está nem aí para o possível Armagedom – segundo a Bíblia, a batalha final de Deus contra a sociedade humana injusta e perversa.

 

Ao lembrar de Putin, me veio à cabeça, como contraponto, o saudoso Lobão, um ser iluminado que tornou inesquecível, há 22 anos, uma Quarta-feira de Cinzas como hoje.

 

 

Lobão, Carnaval e Cinzas

 

Apareceu lá em casa em outubro de 1995. Meus filhos haviam convencido o avô a "financiar" a compra de um filhote poodle. Na loja, optaram pelo mais quieto e frágil da ninhada. “Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome pra lhe dar”, diria Chico Buarque. Mas nada que amor, carinho, vacina e ração de boa qualidade não pudesse resolver.

 


Quando fomos morar em Pernambuco, em 1996, a cada duas semanas levávamos Lobão – homenagem ao vilão de “Os Três Porquinhos”, de Walt Disney – para a praia de Ipioca, em Alagoas, onde filhos e sobrinhos o desafiavam simulando afogamento, ao que aquele magricela corajoso reagia nadando contra a maré até “resgatar” todos os seus “amigos”.

 

Na véspera do Carnaval de 2001, já estávamos morando no Planalto Central, depois de nova temporada na Bahia, quando minha mulher tanto insistiu que embarcamos para Recife para assistir ao “Galo da Madrugada”, que prometia arrastar um milhão de foliões pelas pontes e ruas da cidade no dia seguinte, Sábado de Zé Pereira.

 

Deixamos Lobão em um canil no Lago Norte até a Quarta-Feira de Cinzas, quando voltaríamos, mas fomos obrigados a retornar às pressas no domingo, após a notícia de que havia desaparecido. Da hora que pousamos em Brasília até a terça-feira de Carnaval, vasculhamos cada pedaço daquela região a sua procura, sem sucesso. Como último recurso, resolvemos distribuir cartazes e faixas do tipo “procura-se” no raio de 10 km do local de onde sumira.

 

Na tarde de terça-feira veio o telefonema do canil nos avisando de que ele fora encontrado, ainda no sábado, por um garoto que se divertia com um jet ski no Lago Paranoá. Lobão bem que tentou atravessar aquele "oceano nada pacífico" no rumo da Asa Sul, onde morávamos. Muito debilitado, com todas as articulações lesionadas pelo esforço feito, com infecção intestinal, permaneceu horas debaixo de uma cama onde residia o garoto que o abrigou, praticamente sem alimentar-se, até ouvir alguém chamá-lo pelo nome familiar aos seus ouvidos, descrito nos cartazes e faixas. 

 

De volta para casa, recuperou-se rapidamente. E a notícia da aventura correu pela Super Quadra Sul 114, na manhã de quinta-feira pós-Carnaval, onde um intrépido Lobão cuidava de remarcar seu território a cada poste que encontrava pela frente. Logo, viu-se apelidado pelos porteiros e zeladores do prédio de “Gustavo Borges”, nadador olímpico brasileiro medalha de prata nos 100 metros livres nas Olimpíadas Barcelona 1992 e nos 200 metros livres em Atlanta 1996, que participou de quatro Olimpíadas.

 

Vítima de edema agudo de pulmão, decorrência de uma gastroenterocolite bacteriana, o velho e destemido Lobão – que já vinha recebendo cuidados especiais na condição de cardiopata e nefropata - tombou no Verão de 2013, aos 18 anos de idade. Foi sepultado com "honras militares e salva de tiros" no quintal de nossa casa, no Jardim Botânico, em Brasília, onde viveu seus últimos dias.

 

Eu sabia que desagradava algumas pessoas naquele tempo, mas juro que estava sendo absolutamente justo e sincero quando afirmava: “Quanto mais conheço o ser humano, mais admiro Lobão!”. Ele nunca foi ingrato, dissimulado, grosseiro ou desleal conosco. Mostrava-se sempre agradecido pelo carinho que recebia, era fiel, solidário e transparente. Um ser do bem, que tornou inesquecível o Carnaval de 2001 e, anos depois, deu o tom acinzentado definitivo, da cor de sua pelagem, à “Síndrome do Ninho Vazio” que se instalava em nossa casa.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Nunca se sabe

Tive a sorte de poder bater papo por 15 ou 20 minutos com alguns personagens de nossa história contemporânea. Isso, claro, por conta de algumas funções que exerci durante mais de 40 anos numa grande empresa brasileira.


A lista é boa e vai do universo artístico-cultural (Altamiro Carrilho, Armando Nogueira, Capiba, Carlinhos Brown, Daniela Mercury, Dona Canô, Gilberto Gil, Herbert Vianna, Ivete Sangalo, Jaguar, Jessier Quirino, João Barone, João Carlos Martins, Lulu Santos, Maria Gadu, Roberto Carlos, Samuel Rosa, Zeca Baleiro e Ziraldo), passa pelo campo esportivo (Bernardinho, Buglê, Cafu, Carlos Alberto Torres, Clodoaldo, Guga, Nalbert, Pelé, Roberto Dinamite, Tande, Zé Roberto Guimarães e Virna), até a classe política (ACM, Marco Maciel e Miguel Arraes). 

 

Conversas que me renderam alguns textos publicados neste espaço. Escritores cascudos, reconheço, produziriam coisas mais interessantes, mas não tiveram o privilégio de assistir (de camarote!) aos fatos, ainda por cima recebendo salários e benefícios rigorosamente em dia.

 

Eu deveria me dar por satisfeito com aquilo que o acaso me reservou de ganhos indiretos, mas é natural querer um pouco mais. E andei pensando sobre quem poderia ter conhecido e não tive oportunidade. Tarde demais? Nunca se sabe.

 

Volto à adolescência, no início da década de 1970. Naquela época, destacava-se em Alagoas o “conjunto” LSD – Luz, Som & Dimensão, sob a batuta de um cantor e guitarrista que embalava as noites mornas de sexta-feira, na AABB Maceió, com os hits do momento. 

 

Antes que Djavan despontasse com seu primeiro álbum (lançado em 1976, o disco trouxe canções como “Flor de Lis” e “Fato Consumado”), vacilei e perdi a chance de conhecê-lo. Era acanhado demais para puxar conversa com o ex-armador do juvenil do CSA, que jogava ao lado de meu amigo Zabelê.

 

Bem mais adiante, se já me conhecesse, não seria tarefa tão complicada perguntá-lo em que praia andou catando palavras tão simples para tecer sofisticadas construções poéticas como:

 

“... Só eu sei as esquinas por que passei... Sabe lá o que é não ter e ter que ter pra dar?”

 

“... Vou andar, vou voar, pra ver o mundo. Nem se eu bebesse o mar encheria o que eu tenho de fundo...”

 

“... Num dia triste, toda fragilidade incide. E o pensamento lá em você, tudo me divide...”

 

“... Viver é todo o sacrifício feito em seu nome... Por ser exato, o amor não cabe em si. Por ser encantado, o amor revela-se. Por ser amor, invade e fim...”

 

Outro que eu gostaria de conhecer é o escritor e jornalista Ruy Castro. Autor de vários livros, entre eles biografias essenciais (Estrela Solitária – Um brasileiro chamado Garrincha; O Anjo Pornográfico, sobre Nelson Rodrigues; e Carmen Miranda – Uma biografia), esbanja ao mesmo tempo um estilo leve e duro, mordaz e sutil, em textos bem-humorados sobre comportamento, futebol, política e história, que me fazem refletir e rir. Muito.


Todas as vezes em que me meto a escrever, penso no que me diria se estivesse a meu lado. Quem sabe me daria dicas cruciais, até mesmo para não brincar com coisa séria, pôr um ponto final no que ando fazendo e desistir de minhas exclamações, interrogações, reticências e vírgulas nada essenciais.

 

Reprodução: Redes Sociais


Dois caciques em suas respectivas tribos. Posso até imaginar que Djavan, no fundo, esconde uma alma vascaína, da mesma fonte de energia de onde emanou Paulinho da Viola e Aldir Blanc. Ruy Castro também. Poderia, aliás, escrever a versão definitiva da linda e inclusiva história do Vasco, com as tintas de sua paixão pelo social.

 

No campo político, gostaria de conhecer alguém que defenda uma tese bastante simples com a qual eu e você, leitor, nos identificamos totalmente. 

 

Quando uma criatura eleita esquecesse dos compromissos de campanha, o eleitor poderia revogar seu próprio voto (exercício do direito de arrependimento), anulando-o, via internet, no site do TSE. E se, em até 120 dias da posse, um razoável conjunto de decepcionados fizesse a mesma coisa, a figura perderia o mandato.

 

Sabe-se que eleições existem também para remissão de pecados, isto é, ninguém se obriga a votar de novo em quem desonra compromissos. Mas por aqui essa lógica nunca funciona. A memória é curta e fugaz.

 

Uma vez no picadeiro, sob os holofotes, o palhaço ri da plateia e se reelege sucessivas vezes, submetendo-se, se tanto, à habitual dança de poltronas entre cargos legislativos e executivos, federais, estaduais ou municipais.

 

Acontece que a criatura que gostaria de conhecer ainda não veio ao mundo. E nem sei se vai nascer, crescer e arejar o cenário político, antes que o País ingresse de vez com um pedido de recuperação de múltiplos órgãos perante o Juízo Final, sem muita chance de sucesso. 


Tarde demais? Nunca se sabe. Mas, enfim, não estou proibido de sonhar. Até os mortos, imagino, sonham que a vida continua.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

O jogo das coisas que são

Esta semana meus primeiros netos completaram 15 anos. Mesmo de longe, acompanho a odisseia deles desde a época em que o tempo se media – e se celebrava! – em gramas, até que a fé na vida suplantasse a dúvida e o medo. 



Hoje, vê-los sorrindo é suficiente para reabastecer o meu tanque de esperança e seguir viagem. Sem pressa.

 

Vingou a vida, brotou o avô que hoje conta histórias. Como esta compartilhada neste espaço há mais de três anos.

 

 

A vida pede passagem

 

Em sua crônica “Antes que eles cresçam”, o escritor e poeta mineiro Affonso Romano de Sant’Anna foi muito feliz ao dizer que “(…) O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco (…)”

 

Com apenas 27 semanas de gravidez, Renata teve que se submeter a uma cesariana bem antes da hora para receber meus primeiros netos, Breno e Camila. O rompimento acidental da bolsa, aliado à perda de líquido, a colocava com os filhos em extremo risco de infecção se nada fosse feito.

 

Ao nascer, cada bebê pesava menos que 1 kg e ambos poderiam ser transportados numa caixa de sapatos. Eram o que chamam de prematuros extremos. Médicos dizem que bebê que nasce antes das 36 semanas é considerado prematuro. Antes de completar 28, como meus netos, é prematuro extremo – os órgãos já estão formados, mas são muito imaturos.

 


Na agonia daquelas primeiras horas, para mim foi um tiro no pé recorrer a experts no assunto em busca de maior conhecimento. Fiz isso e entrei em pânico ao saber que prematuros extremos têm maior taxa de mortalidade e podem apresentar problemas na visão, dificuldades na alimentação e para respirar, além do risco de contrair infecções, dada à imaturidade do sistema imunológico.

 

Meu filho Leopoldo e sua mulher, Renata, viveram semanas de angústia e incerteza, de luta e esperança. Após o parto, durante o Carnaval de 2008, foram 46 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI neonatal) do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, com toda sorte de intercorrências.

 

Breno não amadurecera por completo o aparelho respiratório e teve até pneumotórax. Camila, o aparelho digestivo. A ponto de, por muito tempo, não digerir sequer uma gota de leite materno.

 

Toda noite pedia em minhas orações que ficasse conosco pelo menos uma das crianças para que o sofrimento de todos não fosse tão pesado, como se a dor pudesse ser repartida, atenuada, se o pior viesse a acontecer. No desespero, não sabia nem rezar direito. Deus que se virasse para entender pedidos tão confusos.

 

Foi quando Zé, um velho amigo mineiro, dotado de muitos saberes, mas leigo em ciências médicas, perguntou como estavam os recém-nascidos e compartilhei com ele aquilo que se passava, inclusive minha pouca fé na sobrevivência dos dois. Então me disse algo mais ou menos nessa linha: “Não fique tão preocupado... a vida quando brota faz de tudo para vingar...”

 

Arrepiei. Impressionou-me o fato de um ateu convicto como ele ter feito um milagre naquele instante: reabastecer meu estoque de esperança, que já andava na reserva. Quando a gente muda o jeito como encara as coisas, o que vemos acaba mudando de lugar.

 

A vida pedia passagem. Já era Páscoa quando Breno e Camila finalmente chegaram em casa, com saúde e em paz. Hoje, quase 12 anos depois, continuam muito bem, a viverem agora em São Paulo no auge da pré-adolescência, com as cores, os amores e os humores da hora.

 

Semana passada toquei no assunto com Zé. Indaguei se, após tanto tempo, ainda recordava de nossa conversa, ao que respondeu que lembrava sim, perfeitamente. Disse ainda que cada vez que vê fotografia dos gêmeos, conscientiza-se do “milagre”, como que reafirmando a força e os mistérios da vida, insondáveis para nós.

 

Garantiu de novo que há coisas que não dominamos, não podemos racionalizar. Que não podemos querer ter o controle de tudo. A vida tem seus caprichos e desígnios. Essa seria sua beleza!

 

"...Todos nós dançamos numa melodia misteriosa, entoada à distância por um músico invisível...", diria o físico Albert Einstein (1879 – 1955).

 

Era madrugada. Fui para a varanda e deitei na rede, a esperar o sol nascer, rever fotografias de Breno e Camila na linha do tempo e a ouvir Caetano Veloso: “(...) o tempo não para e no entanto ele nunca envelhece. Aquele que conhece o jogo, o jogo das coisas que são, é o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão (...)”

 

Logo depois o sol nasceria na hora certa, maduro, como sempre acontece. Na leveza do primeiro sono, cheguei a ver o vulto de meu velho amigo Zé emergindo das águas da praia de Pajuçara, em Maceió, a cantarolar: “(...) Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar (...)”

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Uma estrada e a lua branca

Triste de quem não conserva nenhum vestígio da infância, pontuou certo dia o poeta Mário Quintana. 

Entre oito e nove anos de idade, todo sábado eu ouvia os discos (em especial os de Luiz Gonzaga) que meu pai punha na radiola enquanto encerava nossa casa. Ficava imaginando os cheiros, as cores e os sons do Sertão onde comecei a me despertar pro mundo. 

 

Tudo era simples. Quando dei por mim, tinha decorado Estrada de Canindé, no linguajar de meus avós maternos (clique e escute): 

 

“Ai, ai, que bom,

Que bom, que bom que é

Uma estrada e uma caboca

Cum a gente andando a pé.

Ai, ai, que bom,

Que bom, que bom que é

Uma estrada e a lua branca

No sertão de Canindé.

Artomove lá nem sabe se é home ou se é muié.

Quem é rico anda em burrico,

Quem é pobe anda a pé.

Mas o pobe vê nas estrada

O orvaio beijando as flô,

Vê de perto o galo campina

Que quando canta muda de cô.

Vai moiando os pé no riacho…

Que água fresca, nosso Sinhô!

Vai oiando coisa a grané,

Coisas que, pra mode vê,

O cristão tem que andá a pé”.

 

Um dia, quando crescesse, faria longas viagens de carro, parando aqui e ali para comer e beber, conhecer lugares e pessoas, ouvir e contar histórias, essas coisas.

 

Enganei-me. Fiz muitas viagens durante a minha jornada profissional, porém apressadas, mais preocupado com a hora da partida e da chegada do que com o caminho em si.

 

Hoje, não me animo a cair na estrada. Alguns sustos entre Alagoas, Pernambuco e Bahia, mexeram comigo. O medo de cochilar ao volante e acordar no purgatório desbotou a coragem e a paciência. 


Passei a viajar menos, de carro. Depois que me aposentei e até antes da pandemia, me acostumei ao corre-corre e ao vozerio de aeroportos, ao barulho das turbinas, a ver o chão lá das nuvens. 


Perdi o direito de ver o orvalho molhando as flores, ou o galo-de-campina mudando de cor, “coisas que, pra mode vê, o cristão tem que andá a pé”, como cantava Gonzagão.

  

Outro dia puxei conversa com meu querido amigo Carlos Bicca, o mais nordestino dos gaúchos, com quem compartilho caros momentos desde 1996, quando nos vimos (no plural, porque alcança Cristina e Magdala, minha mulher), pela primeira vez, no Recife.

 

Bicca me disse que nunca lhe agradou estar entre quatro paredes, mas a necessidade falou mais alto, pelo menos até que pudesse trocá-la por algo mais precioso: o tempo, de preferência ao ar livre. Tanto que se transformou em maratonista dos bons, depois dos 50 anos. 

 

Contou que gosta de estrada desde criança e que nunca escondeu isso nem dele mesmo. Para desassossego de quem se senta no banco do carona, ele garante que “o melhor caminho entre dois lugares é sempre o que tem mais serras, curvas e estradinhas...” 

 

É mais um fã de Niemeyer, para quem “se a reta é o caminho mais curto entre dois pontos, a curva é o que faz o concreto buscar o infinito”. 

 

Depois que se aposentaram, Bicca e Cristina caíram na estrada numa Mercedes Sprinter (com “casa” montada sobre os chassis), levando Maya, cadela de pelos dourados, da raça Labrador, no auge de seus 10 anos.

 

Fotografia: Carlos Bicca

Nos últimos três anos e meio, a experiência de “viver sobre rodas, ao invés de ancorados nos alicerces de um endereço fixo", forjou dois minimalistas convictos, nômades e felizes. Aprenderam a desapegar de coisas, a compartilhar quase 100% da mesma rotina, a suportar estoicamente a saudade dos netos, a compreender que “todos os dias são especiais e tem valido a pena cada quilômetro de estrada percorrido juntos”.

 

Fotografia: Carlos Bicca

E como o viajante da Estrada de Canindé, “oiando coisas a grané”, Bicca virou exímio fotógrafo. Vive provando aos amigos, nas redes sociais, que nem arame farpado retira a beleza de uma cerca. "Fotografar me poupa de explicar com palavras o que vejo". Mas não fotografa. Faz autorretrato – só ele enxerga daquele jeito.

 

Tocado por uma inveja benigna, eu quis saber qual teria sido o lugar mais impressionante que conheceram. O casal não titubeou: Paso San Francisco, na Ruta de los 6 miles. “Cruzamos a Cordilheira dos Andes a quase 5.000 metros de altura... É uma estrada mística para motociclistas, pouquíssimo utilizada por veículos de maior porte como um motorhome”, disse Bicca.

 

Agora quer explorar um pouco mais a América do Sul. Conhecer também alguns rincões escondidos do Velho Continente, a bordo de uma autocaravana que adquiriu em Portugal, em sociedade com outros casais que conheceram em Brasília.

 

Como ainda me sinto “criança” – apesar das dores e dos desencantos da hora –, me pego aqui pensando em viajar um pouco mais. Afinal, coragem é a cor que cada um escolhe para colorir os dias que restam da grande viagem.

 

Quem sabe um dia, quando crescer.