quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Ô mundão desigual!

Deu nos jornais, semana passada, que o presidente Lula concedeu o mais alto grau da Ordem do Rio Branco à primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja. 

 

Reprodução/Redes Sociais 


A Ordem de Rio Branco foi instituída em 1963, pelo então presidente João Goulart, em homenagem ao Patrono da diplomacia brasileira. A maior condecoração dada pelo Governo Federal é destinada àquelas pessoas que, por benemerência, trabalhos meritórios ou virtudes cívicas, se tornaram merecedoras da honraria.

"Acho que medalhar a esposa é uma forma de Lula mostrar a ela o quanto ela tem valor como parceira dele de todas as horas... Ele não pode confiar em ninguém. É ela quem dá o ombro para ele. Além disso, ela tem capacidade e discernimento intelectual. Eu acho justo esse reconhecimento!", escreveu a gaúcha Gaya Becker no Painel do Leitor da Folha de São Paulo. 

 

Depois de ruminar a notícia na Barbearia do Onofre, uma das mais tradicionais da Asa Norte, em Brasília, enquanto aparava o resto de fios grisalhos de sua avantajada cabeça, meu amigo Chico Caixa d'Água foi de uma sinceridade constrangedora com os amigos presentes no recinto: “Sem querer ser injusto, nem negar minha origem de esquerda, não entendo como um cidadão acorda certo dia e, do nada, resolve conceder uma comenda deste calibre a alguém com quem divide a alcova e a escova matinal”.  

 

Estranhei o tom, mistura de desencanto e indignação, pois o noticiário trouxe também a condecoração de outras mulheres de vulto sob o céu tropical: Lu Alckmin (casada com o vice-presidente), as ministras Anielle Franco (Igualdade Racial), Aparecida Goncalves (Mulheres), Esther Dweck (Gestão e Inovação), Luciana Santos (Ciência e Tecnologia), Margareth Menezes (Cultura), Simone Tebet (Planejamento) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas). E não somente elas, também se concedeu a honraria, de forma póstuma, às cantoras Elza Soares, Gal Costa e Rita Lee.

 

Puxei conversa para entender melhor o raciocínio, quando ele me saiu com um inusitado ângulo de observação do fato: a desigualdade de meios para se alcançar o cessar-fogo num conflito conjugal. Coisa de diplomata em tempos de guerra! 

 

Ele foi bem didático, por sinal. Começou dizendo ser natural que todo mundo um dia pise no tomate, vacile perante sua cara-metade. Mas adiantou que não se referia àquela situação em que o sujeito, até de modo pueril, vai a uma cerimônia e compara o vestido de sua mulher com o de outra no local, argumentando que preferia vê-la de forma menos espalhafatosa, mais elegante e sóbria.

 

Nem àquela em que o marido, desligado de nascença, entulha roupa suja no chão do banheiro e deixa toalha molhada em cima da cama. Se bem que, para Caixa d'Água, toda esposa sabe desde o início da relação que a maioria dos homens um dia morou com mãe, tia ou mesmo avó, quando as roupas podiam ser largadas em qualquer lugar da casa até aparecerem cheirosas e bem passadas na gaveta do armário.

 

Disse ainda que não falava do companheiro que, ao menor espirro ou filete de coriza, transforma uma virose numa tragédia sem precedentes na evolução humana sobre a Terra, por conta, de novo, da mãe (tia ou avó) que, só de ouvir um gemido, seguido de uma expressão facial de quem estaria prestes a se acabar, cobria de mimos a criatura fragilizada, em vias da extrema unção.

 

Foi além. Também não se referia àquele camarada que, sem noção do quanto viver segue perigoso demais, esquece que circula de mãos dadas com a namorada (ou a esposa) e não consegue segurar o giro do pescoço – por si, um movimento antinatural para cabeçudo como o meu amigo, o que já caracteriza a infração – quando se vê diante de um decote generoso ou de um short estilo embalagem a vácuo, ainda que a cobiçada não lhe tenha reservado nem um olhar de desdém.

 

Na verdade – garantiu, como faz todo mundo que abre um comentário negando o que antes fora dito por outras pessoas –, ele se refere a casos mais complexos, com reflexos nas semanas e até nos meses seguintes. Como o da madame que, após relutar meses diante do espelho, decide cortar cinco dedos das madeixas e o maridão (que já não se senta frente-a-frente com ela nem no jantar, poupando-se do constrangimento do olhos nos olhos) nada percebe. 

 

Pronto! O caminho até o portal do inferno está pavimentado, desde ouvir mágoas requentadas ou novas, até virar alvo da desconfiança de que existe um possível rabo de saia na área, com iminente disputa territorial à vista.

 

“Vai por mim, é nessas horas que o homem perde a paciência e, buscando apaziguar a encrenca, acaba fazendo um sacrifício sobrenatural para provar à mulher que ela está sendo injusta, maldosa, precipitada!” – disse Caixa d'Água.

 

E confessou que foi assim que ele se viu obrigado, numa manhã dessas, a levar a “patroa” a uma liquidação de rodos e vassouras na feira do Paranoá, com a gasolina, o calor e a secura pela hora da morte!

 

Na impossibilidade de conceder uma comenda à companheira com quem divide a alcova e a escova matinal, não lhe restou alternativa. “Ô mundão desigual!” – protestou.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Duro na queda

Outro dia procurei um otorrino para remover o excesso de cera nos ouvidos, além de avaliar a progressão de uma leve deficiência auditiva que, a rigor, considero até conveniente, pois me poupa de ouvir aquilo que não me interessa.

 

Duvidei quando uma educada atendente, na recepção do ambulatório médico, me pediu a carteirinha do plano de saúde e o braço para colocar uma pulseira rosa (nada contra a cor!), com a curiosa ressalva de que faria parte do protocolo interno: indica que o paciente tem risco de queda.

 

Ilustração: Umor 

Quase sofro uma queda, sim, mas de tanto rir. Achei que estava diante de uma daquelas brincalhonas que adoram as bobagens, postagens e tatuagens de Gabigol e outros dândis. Pensei: talvez ela viu meu prontuário e imagina que as linhas tortuosas dos últimos eletrocardiogramas estão associadas ao sobe-e-desce do Vasco. 

 

Sobre futebol, aliás, há pouco mais de uma década, escutei por acaso (com estas fábricas de cerúmen que seguram meus óculos) uma conversa na fila de embarque do Aeroporto JK, em Brasília/DF, envolvendo dois atletas vascaínos por quem nutria grande admiração desde a vitoriosa campanha da Copa do Brasil 2011: o atacante Éder Luís e o lateral direito Fagner. 

 

Em três minutos, a enxurrada de tolices que entrou pelos meus ouvidos poderia ter acabado com a incerteza que persiste em mim sobre se faz sentido continuar sofrendo ou vibrando com o chamado esporte bretão. A coisa é mais grave do que imagino.

 

Mas isso é assunto para outro momento. Eu não deveria cobrar deles a capacidade de desenvolver pensamentos e ideias com a linguagem falada, ainda que, se assim agissem, os dois teriam uma boa chance de contar suas experiências com clareza e algum grau de complexidade. Devo admitir, no entanto, que o mais importante era que continuassem formando uma boa dupla pelo lado direito do Vasco.

 

Não poderia também esperar que os jovens atletas refletissem sobre a própria existência, trocando perguntas do tipo: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Seria bom refletirem sobre os objetivos pelos quais faziam o que faziam. Seria ótimo terem consciência de que jogar (ou torcer) por um clube com a grandeza do Vasco é olhar para os outros e dizer a si mesmo: “sim, eu sou melhor que ele!”.  

 

Mas volto à recepção do ambulatório médico. Não vejo motivo, pelo menos por enquanto, para que uma moça tão simpática olhe para mim e tema uma queda relacionada, por exemplo, a piso escorregadio, atrapalhar-se com sapatos e gatos pelo chão, trombar noutras pessoas, subir e descer escadas ou simplesmente cair da cama sem uma explicação etílica ou sexual (nunca se sabe, não é?). 

 

Não posso aceitar que alguém que me vê pela primeira vez, desconhecendo as minhas queixas da hora e sem prévia consulta a um repositório de informações a meu respeito, possa deduzir que estou velho, escorado em meia dúzia de muletas químicas que me ajudam desde o controle da pressão arterial até o tratamento da próstata aumentada e seus reflexos sobre uma bexiga preguiçosa, com vontade própria. 

 

Deus me poupe de ficar velho e rabugento como certas pessoas que conheço, mas, pensando bem, desconfio de que isso um dia será inevitável. Volta e meia já ouço uns e outros me chamarem de “senhor” e isso não ocorria com tanta frequência, nem mesmo vindo de filhos, noras, genro e netos. 

 

Agora, se vou ao supermercado, até o fiscal de prevenção de perdas (eufemismo infame para designar o dedo-duro responsável pela escolha aleatória dos torturáveis acusados de furto famélico), querendo ser gentil, me encaminha ao caixa de atendimento exclusivo a idosos onde existe uma placa com um desenho estilizado de um velho corcunda com uma das mãos no quadril e a outra numa bengala (quem foi o “gênio” que criou aquilo?).

 

Logo eu, que já fui comparado por minha mãe a ninguém menos que Antonio Fagundes – reconheço, toda mãe é um tanto cega, muda e surda, mas, claro, fala apenas a verdade. Só que, hoje, obrigado a dormir com uma máscara nasal para encarar a apneia do sono e o ronco, além de um protetor bucal para evitar que o bruxismo destrua o que me resta de dentes, entendo quando minha mulher, no meio da madrugada, se assusta ao acordar do lado de Darth Vader, o vilão da saga Star Wars.

 

Sei não. Há possibilidade de que, em breve, minhas fotos estampem catálogos de fornecedores de medicamentos e utensílios voltados para a saúde em geral. 


Fazer o quê? Da próxima vez que me pedirem o braço para colocar uma pulseira me identificando como paciente sob risco de queda, ficarei calado. Não posso sair por aí distribuindo a torto e a direito bengaladas verbais. 

 

Se a queda for inevitável, vou relaxar e aproveitar, como ensinava uma vetusta sexóloga. Tem sido assim desde que deixei de engatinhar e aprendi a andar, cair e me levantar.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A mão Dele

Os fatos não deixam de existir só porque ainda não fomos capazes de fazer suposições sobre eles. E não pensem que estou ficando louco por dizer o que digo. O que seria da realidade se não fosse a fantasia a tirá-la do sério? 

Tudo é possível. Em algum lugar do universo deve existir um arquivo especial onde Ele – quem sabe, apenas para deleite próprio – guarda em gavetas emperradas fatos que estiveram a ponto de acontecer e que por um motivo qualquer não vingaram. Lá estariam armazenadas versões do que poderia ter chegado a jornais, livros, revistas ou ao diário particular de qualquer um do que poderia ter sido e não foi. 

 

Todo mundo diz que se o “se” – esta inquietante conjunção subordinativa que nos propõe hipóteses, traduzindo nossas incertezas – jogasse futebol, seria o melhor goleiro ou o maior goleador do mundo. 

 

Discordo. Quando escrevo, nunca abro mão do universo de possibilidades contidas no “por que não”, no “quem sabe”, no “talvez”, no “vai que”, sem o qual um texto se torna cartesiano, inflexível, sem a leveza da curva, do desvio.


Quem sabe dizer onde foram parar alguns fatos que não se tornaram realidade por mero capricho sei lá de quem (talvez Dele mesmo, mas não estou aqui para acusar)? Em 1976, por exemplo, quando Roberto Dinamite, no minuto final de uma partida, amorteceu no peito um cruzamento dentro da grande área e, antes de estufar as redes botafoguenses com um voleio, cobriu com um lençol Osmar Guarnelli, o zagueiro interceptou a bola com o braço e o árbitro apontou a marca penal. Nunca existiu, portanto, o gol da fotografia colocada no hall da entrada principal do Maracanã na inauguração do Projeto Memória do Futebol.

 

Reprodução/Redes Sociais

Mas será que o pênalti foi marcado mesmo, ou o árbitro, com a desfaçatez dos sopradores de apito que nos fazem de bestas a toda hora, teria dito que o gesto foi natural, não houve ação deliberada de bloqueio, não viu nada de mais (nem sabia de nada), como alguns cegos e sonsos que figuram na cena política brasileira? 

 

E onde foi parar o gol de empate que o zagueiro brasileiro Oscar Bernardi marcou contra a Itália nas semifinais da Copa do Mundo de 1982? Após receber um cruzamento perfeito, o capitão acertou, à queima-roupa, uma cabeçada indefensável. O goleiro Dino Zoff ainda conseguiu fazer uma defesa monstruosa, mas a bola escapou e cruzou a linha fatal, matando no ninho uma geração de defensores da tese de que jogo bonito é sinônimo de derrota, que vibram com carrinho ou bicão de jogador grosso, na base de “bola pro mato porque o jogo é de campeonato”. 

 

Vai ver está no arquivo especial o antepenúltimo minuto da partida final do Campeonato Carioca de 2001? Falo do lance em que o goleiro vascaíno Helton conseguiu a proeza de evitar um gol numa espetacular cobrança de falta de Petkovic, que selaria o tricampeonato carioca para o Flamengo, no Maracanã. 

 

A dois minutos do apito final, o time rubro-negro ficava com mais um vice-campeonato em virtude do placar agregado de dois jogos – o Vasco havia vencido a primeira disputa por 2 a 1. No segundo confronto, o Flamengo devolvia o placar, mas esbarrava na vantagem do empate do adversário. E o sérvio bem que caprichou, mas sem sucesso, mudar a história com uma cobrança de falta quase perfeita, à semelhança do que fizera, com êxito, o vascaíno Juninho Pernambucano três anos antes, no Monumental de Nuñez, contra o River Plate, da Argentina. 

 

E o gol que Diego Souza, à época no Vasco, marcou diante do Corinthians do goleiro Cássio, no Pacaembu, conduzindo a bola desde o seu campo de defesa no jogo de volta das quartas de final da Libertadores de 2012? Ali começou a arrancada para a conquista da Copa Libertadores da América. Meses depois, inclusive, pintaram a Terra de branco e preto quando o Gigante da Colina derrotou o Chelsea, da Inglaterra, erguendo a taça de campeão mundial no Japão. 

 

Dá pra imaginar quem teria autorizado a colocação de uma faixa diagonal atravessando o Planeta, evocando as travessias responsáveis pelas grandes descobertas das navegações marítimas. Puseram, inclusive, uma cruz de malta no céu da Mãe África, saudando o primeiro clube-nação de um país (detentor da segunda maior população negra do mundo) a reconhecer o protagonismo de negros e pardos na aventura humana na Terra. 

  

Posso descrever outros fatos engavetados pela mão Dele, mas encerro por aqui seguro de que só são considerados singulares porque tiveram suas rotas alteradas em pleno voo e foram obrigados a aterrissar no território do “quase”.

 

Se estiver correta a minha tese sobre este arquivo especial – onde cada um de nós dá nome a uma gaveta de fracassos e frustrações pessoais e intransferíveis, não restritas à paixão pelo futebol –, é pra lá que pretendo ir quando do acerto de contas. Sem pressa, bem entendido!

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Com o caju na mão

Deu o que falar uma peça publicitária estrelada por uma famosa atriz, mas já saiu de circulação (a peça, bem-entendido!). Mostrava a beldade colhendo um caju. Dois pequenos descuidos chamaram a atenção dos internautas. Além de o fruto estar pendurado no galho de cabeça pra baixo, a árvore não era um cajueiro, que chega a alcançar 10 metros de altura, possui copa larga, tronco tortuoso e galhos pendentes.

 

Reprodução/Tweeter

Tem quem veja o dito-cujo como o fruto do cajueiro quando, na realidade, é a castanha. Nada de mais. Nem sempre aquilo que dá maior prazer é a fruta em si, sobretudo numa fase da vida em que uma caipirinha bem socada, rodela por rodela, desperta as papilas gustativas na língua, no céu da boca, na garganta e até na memória. Tem sido assim desde a mordida de Adão no fruto proibido.

 

A campanha publicitária era de uma marca de cosméticos muito conhecida por usar em seus produtos ingredientes típicos do Brasil, como a bromélia, o capim-limão, a carambola, o mandacaru etc. Os cochilos viraram motivo de intensa zoada na web, rendendo vários memes associados à imagem da pobre moça com o caju na mão. E a peça sumiu rapidinho dos perfis oficiais da anunciante.

 

Logo que o vídeo começou a circular, um internauta criticou os deslizes no processo de aprovação da campanha. "Como deixam isso passar? Geralmente tem uns 20 profissionais envolvidos (do briefing, passando por orçamento, estudo de tendências, escuta de consumidores, desenvolvimento de mensagem, até a escolha de veículos de mídia)", questionou.

 

Outro quis explicar o fato invocando uma questão tão antiga quanto tola: os movimentos separatistas que pregam a independência de regiões brasileiras por motivos culturais, econômicos e políticos, realçando que a maior produção de caju está concentrada no Nordeste. "O vídeo foi feito por um ‘sudestino’ que nunca viu um cajueiro na vida, e o pior é que passou por uma equipe que viu e aprovou, não se deu nem ao trabalho de pesquisar", pontuou.

 

Outra internauta chegou a ser desaforada. Abriu uma “caixa de ferramentas consoantes” que demorei alguns segundos para entender. Parecia uma expressão latina como “vade retro Satana”, ou “afasta-te, Satanás!”. Escreveu assim a garota: “VTNC, bando de analfas!”.

 

Pela “caligrafia”, pensei até na improvável reencarnação de Dercy Goncalves. Vai ver se trata de uma neófita na área acostumada ao linguajar fluente nas redes antissociais, uma boca suja desgraçada a sugerir aos outros destino indesejável para si mesma. “Jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da imaturidade”, dizia Nelson Rodrigues. 

 

Não vou negar, um dia eu também já fui desaforado, ali na largada da década de 1980, quando um de meus rebentos me trouxe da escola, todo sorridente, um envelope contendo uma cobrança de mensalidades em atraso, assinada, em tom ameaçador, pela diretora e pela tesoureira

 

Logo eu, que atrasaria qualquer conta – prestação do imóvel, do carro, da linha telefônica etc. –, menos uma que provocasse constrangimentos a quem mal começava a engatinhar sobre os mistérios da vida entre animais sociais.

 

Pior que não havia atraso. A transferência de recursos entre bancos, via DOC (Documento de Ordem de Crédito), fora criada naquela época. Gostei tanto da novidade que, logo que o salário pingava em minha conta, transferia para a escola o valor da mensalidade. Com o tempo apertado, dividido entre a faculdade e o trabalho, deixara de ir à tesouraria do colégio.

 

Eu poderia ter sido mais flexível, tolerante, como todo sujeito que vive nos braços da paz, com salários e impostos em dia. Mas na manhã seguinte achei de revidar a “ofensa” no verso da própria cobrança escrevendo, em negrito/itálico, algo nessa linha

 

“(...) Não devo nada!  Seguem os comprovantes de que transferi para a escola, antes de cada vencimento, os valores das mensalidades que ora me cobram. Dinheiro não cai do céu. Se aparece na conta, procurem identificar a origem no banco para evitar cobrança indevida. E nunca mais me cobrem dessa forma, utilizando portadores inocentes! Senão serei obrigado a mandar vocês enfiarem a cobrança no lugar onde macaco esconde castanha de caju (...)”

 

Assim como imagino que macaco não gosta de abacate (o caroço deve assustar!), eu sabia que “caju” embute um dos monossílabos mais usados pelos brigões no esculacho do futebol. Poderia, portanto, ter sido indiciado por agressão verbal, injúria, misoginia, ou levar uns sopapos (tiros, sei lá!) de um marido bravo, em legítima defesa da honra de sua esposa. E não estaria aqui contando o caso. 

 

Tive sorte. O Código de Defesa do Consumidor (tal como a troca de e-mails entre internautas) surgiria apenas 10 anos mais tarde. Desde então, até um macaco pendurado de cabeça pra baixo no galho de um cajueiro sabe que não se deve criticar o trabalho de ninguém (nem mesmo contestar uma cobrança) citando o lugar onde supostamente esconde castanha. 


Alguns primatas evoluem. Inclusive os espíritos de porco.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Benza-te Deus, Vó!

Trago comigo que o sorriso continua sendo a roupa mais luxuosa que alguém pode vestir, o reflexo de uma alma em movimento ou a curva mais bonita do corpo humano. 

 

Foto: Rosângela Escórcio Lima

Um amigo me manda uma fotografia e pergunta se me lembro de Vó, que vendia jornais e revistas numa banca no 2º subsolo do edifício-sede I (o primeiro!) do Banco do Brasil, em Brasília, na segunda metade do século passado, ao lado do “Bandejão”, onde todo dia se restauravam mais de três mil almas.  No fecho, a boa nova: “esta semana ela completou 100 anos”. 

 

Quis responder, mas me segurei diante da plenitude da imagem. Sou dos que acreditam que a fotografia é uma forma de expressão silenciosa capaz de congelar cenas e cores que a mente uma hora esquece. Que transforma algo comum em extraordinário. Dispensa comentários ou legendas.

 

Até ontem, Vó, eu nem sabia o teu nome completo, e só hoje descobri: Helena Escórcio Lima, mãe de 12 filhos (só metade vive) e bisavó de sete bisnetos. 


Você não faz ideia do quanto me recordo do dia em que te conheci, em agosto de 1982, pouco depois de minha chegada a Brasília, pela primeira vez, para participar por quatro meses de um curso de formação profissional. 

 

A nova capital do país tinha apenas 22 anos. Para milhares de imigrantes domésticos, com destaque para o Nordeste, a história estava só começando, feito uma folha de papel em branco onde cada um escrevia a crônica de uma vida. Tu eras uma dessas cronistas, Vó.


Como me recordo daquela mulher aparentemente frágil, leve, mas forte e determinada, que avistei várias vezes, de manhãzinha, guiando uma kombi nos arredores da Galeria dos Estados, no Setor Bancário Sul, transportando amarrados de jornais e revistas. 

 

Mais tarde, Vó, com os óculos na ponta do nariz, atenta às circunstâncias e aos circunstantes, quase sempre te encontrava em paz, de bom humor. Só perdia a paciência com alguns chatos, a quem mandavas para aquele lugar se zoassem com o “nosso” Vasco da Gama. 

 

O Vasco que tocou teu coração, imagino, foi o mesmo que fez de meu pai um vascaíno raiz, com o time considerado um dos melhores da história do futebol: o Expresso da Vitória, de Barbosa, Danilo e Ademir de Menezes. Depois viriam Bellini, Roberto Dinamite, Juninho Pernambucano, Edmundo, mas isso é outra história.

 

Ah, Vó, bem antes de te conhecer, não imaginas o quanto desejei tomar conta de uma banca de jornais e revistas em minha meninice, ao lado de meu irmão. Poder ganhar alguns trocados e, assim, ajudar na despesa de casa; de quebra, ter acesso amplo e irrestrito a todas as publicações da época. 

 

Até hoje o cheiro de tinta que saía da revista Placar continua intacto em nossas narinas (minhas e dele), como um perfume que embriagava dois obcecados por bola, desde os rachas nos campinhos de terra batida na Gruta de Lourdes, em Maceió, até as noites de domingo, quando a extinta TV Tupi exibia os gols da rodada no programa Ataque e Defesa.  

 

E como esquecer as disputas de times de botão, com “craques” de acrílico feitos por nós mesmos? Bastavam dois discos translúcidos ensanduichando a foto recortada de Placar ou de Manchete Esportiva, o nome de “guerra” e o número (recorte de calendário) que usava na camisa do clube a que pertencia.

 

Um dia, Vó, encontramos numa feira livre um camelô vendendo frascos de uma mistura de álcool comum com gasolina. Com um chumaço de algodão, ele molhava uma folha de papel e, usando o fundo de uma colher, decalcava imagens de revistas velhas, reproduzindo-as, de forma invertida, como se refletidas num espelho. 


Era o que nos faltava para fazer a “cobertura” dos campeonatos de futebol de botão. Com folhas de caderno de desenho e imagens extraídas das páginas das revistas, criávamos "reportagens" para “jornais” reservados a um único leitor: eu lia o dele; ele lia o feito por mim. 

 

Nem jornaleiros nem jornalistas, um dia eu e ele viramos bancários. Quando te conheci, Vó, eu já era homem feito, pai de família, mas ainda cochilava em mim o moleque que a tua banca de jornais e revistas despertou.

 

Hoje, Vó, o número de publicações diminuiu ou sumiu de muitos desses pontos de venda. A crise no meio impresso sofreu o golpe fatal com a pandemia, quando muita gente deixou de comprar aquilo que não pudesse ser descontaminado. E as bancas sobreviventes parecem pontos de camelôs. Vendem de tudo: água mineral, bebidas, cigarros, doces, preservativos, acessórios para celular e sabe-se lá mais o quê.

 

Mas chega de saudade! Como bem disse um poeta, o futuro é uma astronave que tentamos pilotar e que muda a nossa vida, depois convida a rir ou chorar. 

 

Agora, Vó, numa folha qualquer posso até escrever sobre sol amarelo, castelo ou uma linda gaivota a voar no céu. Mas o que queria mesmo é aprender a sorrir assim feito tu. Benza-te Deus!