quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Existirmos: a que será que se destina?

Fruto da saudade que sente de um grande amigo, Caetano Veloso há quase meio século questiona o propósito da vida logo no primeiro verso de sua marcante canção "Cajuína".  

Agora, aos 81 anos, anuncia que vai tirar um período de “férias radicais". Uma pausa para descansar, por prazo indeterminado, após uma série de três shows na Bahia que fizeram parte da turnê "Meu Coco". 

Pede a "amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos" que não o incomodem. “...Não me convidem para atividades públicas, participações, conceder entrevistas ou emitir opiniões, gravar vídeos, escrever releases e outros textos ou qualquer outra atividade, sobretudo àqueles que sabem que mais me tocariam com seus chamados…”.

 

Milton Nascimento, também aos 81 anos, tem aproveitado “radicalmente” sua aposentadoria dos palcos para ver televisão, encontrar amigos e viajar. Fez a última turnê da carreira em novembro do ano passado e, desde então, vive noutro ritmo, sendo descrito por seu filho como um aposentado convicto.


Virada de ano é época de reflexão.  

  

Eu ainda não tive o privilégio de chegar aos 81, mas já gozo “férias radicais” há algum tempo, com toda convicção. E neste calorão de chamuscar orelhas às sete da manhã, saio pra caminhada sob o olhar atento de uma coruja-buraqueira e só penso na volta pra casa, no banho refrescante do jeito que Deus me mandou ao mundo, debaixo de um chuveirão próximo da aroeira-salsa do quintal. 

 

Se hoje o que prevalece é o “aqui e agora”, como pregam os céticos quanto à vida eterna, esse calorão anda derretendo sem dó, noite e dia, milhares de almas pecadoras. Tudo indica Deus baixou uma ordem de serviço, em papel timbrado e com firma reconhecida, determinando ao Tinhoso que aplique em vida as penas cabíveis aos merecedores por pensamentos, palavras e obras, aliviando a sobrecarga de trabalho no Juízo Final.

Ilustração: ChatGPT

 

Por mim, trabalho nunca mais! É triste que a única coisa que uma pessoa possa fazer oito horas por dia seja trabalhar. Não consegue comer, muito menos beber ou namorar por oito horas seguidas. Nem mesmo dormir, ainda que de barriga cheia, com as contas em dia e sem muriçocas zumbindo nos ouvidos ou crianças tossindo por perto. 

 

Mas não sou radical. Queria ser pago para dormir. Seria o emprego dos sonhos, porém nunca sequer fui convidado para uma entrevista. Confirma-se que a única coisa que uma pessoa consegue fazer por oito horas é trabalhar. O pior: para alguns, não fazer nada pode ser fatal. O tédio fica só espreitando nas sombras, sabe-se lá com que intenções.

 

Fato é que sempre desconfiei dessa coisa de que cada dia é um presente. Se fosse assim, haveria um balcão em algum lugar onde se poderia devolver segundas-feiras. Era inaceitável, para mim, que toda segunda-feira estivesse tão longe da sexta-feira e sexta-feira tão perto da segunda-feira. 

 

Quem não me conhece pode pensar que fui (ou sou) um irresponsável. Nada disso! Trabalhei por mais de quatro décadas. Portanto, não tenho nada de pessoal contra o trabalho, principalmente quando realizado, silenciosa e discretamente, por meus sucessores. 

 

Pena que só agora, após a aposentadoria, percebo que um sujeito sozinho pode ser um burro completo, mas para se alcançar a plenitude da asnice coletiva, nada supera o trabalho em equipe (o território da terceirização das culpas!). Neste ponto, começo a acreditar em reencarnação porque certos níveis de estupidez não podem ter sido acumulados numa única existência. 

 

Hoje, considero a preguiça uma grande virtude, pois é o único pecado que nos impede de cometer outros. E quando tentam me convencer de que trabalho é saúde, inclusive mental, digo que a vida toda fui solidário para com “amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos” (como classifica Caetano). Logo, se trabalho é saúde, renuncio a parte que me cabe em favor dos carentes de saúde.

 

E quando reencontro antigos colegas de trabalho ainda estressados com prazos de entregas, dou razão a Millôr Fernandes, para quem “o que o dinheiro faz por nós não é nada em comparação com o que a gente faz por ele.” Ou, como pontuou certa vez, “...quando o Criador criou o homem, os animais todos em volta não caíram na gargalhada apenas por uma questão de respeito”.   

  

Enfim, volto ao ponto de partida. Existirmos: a que será que se destina? Penso que para cometer todos os acertos e desacertos possíveis numa breve janela do tempo, esse “compositor de destinos, tambor de todos os ritmos”, como bem lembra Caetano noutra bela canção. Nem tudo relacionado a trabalho, claro!

 

Minha lista particular, no entanto, é tão comprida que, ao chegar aos mesmos 81 anos que ele e Milton, ainda estarei bastante atrasado. Portanto, não devo morrer tão cedo. 

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Bolachas e marmotas

Todos os anos, pertinho do Natal, eu esperava na estação ferroviária o som do apito e o facho de luz que trariam minha avó materna, a quem chamava de Mãe (diferente de mamãe) porque ela nunca quis o prenome de “vovó”. Ficava por duas ou três semanas no Sertão paraibano, longe do sítio onde vivia, no Brejo, a duas léguas e meia de Itabaiana, onde nasci.

 

Ela chegava com o coração dividido, não entre a esperança e a razão, como na canção Borbulhas de Amor, cuja versão brasileira recebeu letra de Ferreira Gullar e imortalizada na voz de Fagner. Dividida, isto sim, entre matar a saudade da filha e dos netos e deixar para trás seu primo e marido, meu avô, que não arredava o pé do chão onde nascera por nada no mundo. 

 

Devia lhe doer também afastar-se do ti-ti-ti (espécie de aboio para galináceos) com que espalhava milho e xerém ao redor da casinha de chão batido. Ainda era tempo de galinhas, pintos e pardais, de verde nos quintais, em que havia frutos num pomar qualquer de se tirar do pé, como Sivuca, seu vizinho de cerca durante a meninice, e Paulinho Tapajós diriam mais adiante noutra bela canção.

 

Ela não podia dar presentes caros aos netos, mas nunca deixou de levar uma sacola de broas escuras e cheirosas, embrulhadas num papel grosso, a que chamava de bolachas de leite. Evitava outros nomes pelos quais se conhecia a iguaria na região: bate-entope, bolacha preta, engasgador, mata-fome, soda ou sorda. 



Imagens: álbum de família 

Os anos sessenta passaram ligeiros. Queiramos ou não, tudo passa. Coisas ruins, devagar. 
 

Do moleque de ontem, buliçoso, chorão e contador de histórias (em que nunca se sabia onde acabava a realidade e começava o sonho), sobrou quase nada, exceto o gosto pelo exagero ao contar o que via ou ouvia, o que levou sua avó, certo dia, a questionar: 

– Repare, minha filha, esse menino é cheio de marmotas! A quem será que puxou? 

– Não sei, Mãe, só sei que ele é assim... – arremedou, sem saber, Chicó, personagem da peça teatral O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

 

Marmota, no caso, não era o mamífero roedor comum na América do Norte, Ásia e Europa, que vive em tocas no subsolo e hiberna durante o inverno. Era uma gíria usada para se referir a alguém atrapalhado, esquisito, presepeiro, dado a artimanhas. Nada a ver comigo, mas quem "desrespeitaria" a opinião dos mais velhos?

 

No Natal de 1976, elegantemente penteada, vestida e cheirando à colônia Contouré, lá estava Mãe na Capela do Bom Pastor, em Maceió/AL. Assistiu da primeira fila ao neto ajoelhado aos pés da Santa Cruz com a namorada, que tentava esconder a barriga com um buquê de flores. Poderia ter dito: “Eu não falei que ele era cheio de marmotas?”. Mas silenciou.

 

Doze anos mais tarde, eu já morava em Brasília/DF, vi meus filhos aos beijos e abraços com minha sogra, a avó deles, ganharem alguns brinquedos eletrônicos. E me dei conta de que a felicidade não era maior do que a minha quando diante das bolachas de leite.

 

Em pouco tempo, chegou a notícia de que Mãe falecera de repente (uma forma antiga de não determinar a causa). Já fora até sepultada. O travo na garganta e duas ou três lágrimas não preencheram o vazio que se instalou dentro de mim. Mas passou. Queiramos ou não, tudo passa. 

  

Outro dia, descobri na Feira de Ceilândia – espaço criado no Distrito Federal, em 1971, para reduzir a ocupação de áreas próximas ao Plano Piloto – que as bolachas que tornaram bem mais doces meus primeiros dezembros ainda são fabricadas artesanalmente no Nordeste e não levam uma gota de leite sequer. São feitas de farinha de trigo, mel de rapadura, manteiga e especiarias (cravo, canela e gengibre). 


Já na primeira mordida, a mesma sensação de quase seis décadas atrás, com um ingrediente adicional: a lembrança do gesto largo com que Mãe, com seu olhar cintilante sob duas respeitáveis sobrancelhas e seu sorriso iluminado, abraçava cada neto na fronteira entre a expressão de um amor incondicional e a fratura de costelas inocentes.

 

Chega um dia em que a nossa lista de desejos para o Natal se reduz a cada ano, até que tudo aquilo que queremos é alcançar o próximo dezembro com as dores e os rancores sob controle, o que não se consegue no shopping nem parcelando no cartão de crédito.

 

É quando nos damos conta de que não existe amor mais despretensioso e puro do que o de uma avó por seus netos. Por isso, Mãe, o meu único desejo agora é bem modesto: que a senhora, de onde estiver, possa ver o quanto uma bolacha de leite ainda é capaz de mexer com o coração de um neto já cheio de netos, e ainda cheio de marmotas.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Certas perguntas

 “Atenção, tripulação, preparar para o pouso!”. Mais uma vez, acordo com este velho anúncio, vindo da cabine de comando do avião que iniciava a manobra de aterrisagem. 

Volta e meia querem saber de mim como alguém que nasceu na Paraíba, foi criado em Alagoas, morou em Pernambuco e na Bahia, gosta tanto de Brasília. 


Digo que não sei. É o tipo de questionamento que pressupõe que as pessoas costumam se sentir mais felizes quando moram perto do mar, com o benefício da umidade e de alguns espaços associados ao prazer e à preguiça. 


Certas perguntas não devem ser feitas! Sobrevoando Brasília, essa miragem de curvas, retas e mistérios debaixo do céu do Cerrado, volto sem gravata, paletó nem sapatos, para fazer o que mais gosto ultimamente: nada, exceto contar histórias, tateando na nebulosa fronteira entre o testemunho e a fantasia.

 

“Meu Deus, mas que cidade linda!”, cantava Renato Russo em sua épica “Faroeste Caboclo”, quando aqui cheguei pela primeira vez, em 1981, para participar por 100 dias de um curso de aperfeiçoamento profissional. 

 

Fotografia: Dedé Dwight

Daqui de cima, revejo a ponte sobre o Lago Paranoá, ligando o Setor de Clubes ao Pontão do Lago Sul, e me vem à memória a figura risonha e robusta de Luiz Arnaud, que morava por perto e com quem convivi nos primeiros dias de trabalho sete anos mais tarde, em 1988.

 

Certa manhã, numa conversa à toa regada a café com pão de queijo, ele me dizia da preocupação de sua esposa, Valéria:

– Olhe só, Arataca, ela quer saber com quem ando aprendendo este vocabulário de jardineiro – disse, numa óbvia alusão ao palavreado e ao sotaque do novo colega.

– Porra, bicho! Ela não pode ser injusta assim com o coitado do jardineiro, que já ganha uma mixaria e ainda querem que fale como se tivesse nascido com trancelim de ouro! – devolvi, recorrendo à interjeição mais usada pelos nativos das nações de língua portuguesa, a quarta mais falada no mundo. 

 

Ele passava horas contando das descobertas de sua escadinha de filhas: Juju, Bebel e Didi. Falava da casa hipotecada no Lago Sul, onde aos sábados lambia os dedos roliços enquanto preparava a galinhada numa panela de barro. Da loja de vinhos que abrira com um parceiro no ainda despovoado Lago Norte. Do tanto que tudo mudara desde que virou bancário em Conceição do Mato Dentro (MG). 

 

Todo dia, às oito, já folheava os classificados do Correio Braziliense em busca de “achados” (oferta de compra ou venda de veículos, imóveis, linhas telefônicas etc.). E gargalhava lendo anúncios de garotas de programa, que atendiam em quitinetes ou em prédios comerciais com áreas adaptadas ao exercício de uma das mais antigas profissões.

 

Demorou pouco a aprontar comigo, que havia comentado sobre a intenção de adquirir um carro usado. Numa tarde, depois do almoço, ele sumiu por alguns minutos da sala onde trabalhávamos, após colocar furtivamente um bilhete sobre a minha mesa dizendo: “Não quis deixar recado. Pede retorno pelo telefone…”. 

 

Disquei supondo que fosse o dono de um Passat em que eu estava de olho. Tive então que ouvir insultos e ofensas partindo de uma jovem morta de sono que passara a madrugada de terça para quarta-feira trabalhando duro, envolvida de alma e corpo com a inesgotável demanda do submundo parlamentar.

 

Ano e meio depois, retornei para o Nordeste (Porto Calvo, interior de Alagoas). Trocávamos cartas e telefonemas. Não havia e-mails nem videochamadas. Um dia, ele riu quando lhe contei de um rebanho de cabras com chocalhos, salivando, que invadira a sala de visitas de minha casa, atraídas pelos cachos de uvas verdes artificiais que enfeitavam a mesa de centro. 

 

De repente, muda o tom de voz e se queixa:

 – Nem sei por que estou rindo tanto. Se você me encontrar não vai me reconhecer...

– O que houve?!

– Tá difícil... Perdi metade do peso. O Arnaud que você conheceu não existe mais. O tratamento tá acabando comigo.

– Puta que pariu! – gritei, mesmo sem saber ao certo da extensão da doença – Mas você é novo, forte, tem plano de saúde e quatro “meninas” pra cuidar. Vai resistir, sim! 

– Só elas me fazem continuar na briga...

 

A briga não demorou. O nocaute foi inevitável.

 

Quase 10 anos depois, em 2000, voltei a morar em Brasília, mas nunca mais soube do paradeiro de Valéria, Juju, Bebel e Didi. Nem o Google, que surgiria entre nós a partir de 2005, me ajudou.

 

E agora me pego pensativo, revendo Luiz Arnaud a caminho de casa, atravessando aquela ponte sobre o Lago Paranoá. Como teria sido sobreviver por suas "meninas" de lá até aqui? Do que estaríamos rindo agora, numa conversa à toa regada a café com pão de queijo? 

 

Certas perguntas não devem ser feitas nem a mim mesmo. Nunca sei as respostas.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Novas noites tropicais

Há 20 anos, quando li “Noites Tropicais – solos, improvisos e memórias musicais”, obra do jornalista, compositor e escritor Nelson Motta, fiquei só imaginando como teria acontecido um duelo doido, emocionante e técnico, no Festival de Jazz de Montreux, na França, em 1979. Bem depois pude ver as imagens, com a criação da plataforma de vídeos YouTube.

 

A gaúcha Elis Regina era a grande estrela da “Nuit brésilienne”. Ao lado do maestro paulista César Camargo Mariano e de um grupo de músicos, ela montou sua apresentação com grandes sucessos, embora quase nada de cunho político e, apenas por conta da exigência dos organizadores do festival, um pouco de Bossa Nova (a sua voz forte não batia com cantar baixinho e suave do movimento criado pelo baiano João Gilberto).   

 

Hermeto Paschoal, alagoano de Lagoa da Canoa, arranjador e multi-instrumentista reconhecido nos meios jazzísticos até por Miles Davis (um dos mais influentes músicos do século XX), fez a abertura do evento. E arregaçou: foi aplaudido de pé por vários minutos. 

 

Meia hora depois, Elis entrou no palco. Cantou com a categoria de costume, mas sem ousar muito. Para os experts no assunto, o repertório era conhecido, os arranjos discretos, a performance com técnica apurada, mas de emoção contida. Ainda assim, todos ficaram encantados com sua afinação e seu timbre de voz. Muitos aplausos também, menos, é verdade, do que aqueles oferecidos a Hermeto. 

 

Hermeto, aliás, que assistira ao show de Elis na coxia, voltou ao palco, atendendo aos apelos vindos da plateia. Recebido com uma espetacular ovação, sentou-se soberanamente ao piano. Elis sabia que o brilho do “bruxo” fora bem mais intenso. Aparentemente frustrada, ela também retornou, disposta a provar quem de fato era a grande estrela no céu da “Nuit brésilienne”. 

 

“...Silêncio total, piano e voz. Hermeto começa a tocar Corcovado e, quando Elis começa a cantar, suas harmonias começam a se transformar, dissonâncias surpreendentes começam a brotar do piano, é cada vez mais difícil para Elis – ou para qualquer cantor do mundo – se manter dentro da tonalidade, tantas e tão sofisticadas são as transformações que Hermeto impõe... E Elis lá, respondendo a todos os saques do bruxo com uma precisão que o espantava e o fazia mudar ainda mais os rumos de uma canção não ensaiada. Na corda bamba e sem rede, Elis cantava como uma bailarina, como uma guerreira... Hermeto arregalava seus olhos vermelhos atrás dos óculos. Elis crescia a cada nota, a cada frase de seus improvisos e scats, a cada compasso... Foram delirantemente aplaudidos...”, assim escreveu Nelson Motta.

 

Quando Hermeto veio de Garota de Ipanema (que a gaúcha não gostava e dizia que jamais a cantaria), Elis acusou a pancada. “Mas logo se recuperou e cantou, com todo vigor, como se fosse a última música de sua vida, improvisou como uma negra americana, virou a música pelo avesso, provocou Hermeto, voou com ele diante da plateia eletrizada...”, garantiu Nelsinho.

 

Com o público em transe, as duas estrelas partiram para a apoteose de Asa Branca, “o baião de Luiz Gonzaga em ambiente free-jazz... harmonias jamais sonhadas se cruzando com fraseados audaciosos de Elis, trocas bruscas de ritmo e de andamento, propostas e respostas, tiros cruzados, arte musical de altíssimo nível protagonizadas por dois virtuoses”, concluiu Motta. 

 

Passados 44 anos da “Nuit brésilienne” em Montreux, circula agora um vídeo nas redes sociais, reproduzido por vários sites noticiosos, que está causando furor entre os internautas. Nele, a cantora paulista Linda Mel, criada em Pernambuco, vocalista da banda Top do Brasil, aparece “servindo” cachaça coada na peça mais íntima de seus trajes.
 
Ilustração: Umor

 

Em resumo, a artista chama para perto do palco uma fã que assiste ao show, abaixa a calcinha, filtra e derrama sobre ela a bebida destilada, em meio a uivos e urros do público, cantando a trilha sonora da hora: o hit “Cachaça na Calcinha”.

 

Segundos antes, ansiosa pelo momento em que tomaria o néctar de cheiro e sabor discutíveis, a fã partira com tudo para cima de sua deusa, que pediu moderação: “...Tem que ser com calma! Você quer tirar minha calcinha?”. E a criatura se mostrou ainda mais empolgada, preocupando Linda Mel: “Esta mulher vai me rasgar toda, segurança!”, queixou-se, de maneira não muito convincente, claro.

 

Trecho do fundo musical cita uma certa funkeira que se popularizou por shows com performance nos limites da irresponsabilidade cristã: "Eu e a Pipokinha somos diferenciadas, na hora de fazer amor 'nós gosta de uma lapada'. É uma pancada que nos deixa excitada, bate na nossa bunda. Linda Mel e Pipokinha topa qualquer parada, dá cachaça na calcinha, virote na madrugada...”. 

  

Noves fora o julgamento de cada leitora ou leitor, dinossauros como eu não compreendem bem os meandros dessas novas noites tropicais, suas exultações e seus desvarios. 


A certeza da finitude, no entanto, nos traz o consolo de que seremos poupados de certos asteroides, de algumas cenas grotescas. Mas às vezes não dá tempo. 

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Ô mundão desigual!

Deu nos jornais, semana passada, que o presidente Lula concedeu o mais alto grau da Ordem do Rio Branco à primeira-dama, Rosângela Lula da Silva, a Janja. 

 

Reprodução/Redes Sociais 


A Ordem de Rio Branco foi instituída em 1963, pelo então presidente João Goulart, em homenagem ao Patrono da diplomacia brasileira. A maior condecoração dada pelo Governo Federal é destinada àquelas pessoas que, por benemerência, trabalhos meritórios ou virtudes cívicas, se tornaram merecedoras da honraria.

"Acho que medalhar a esposa é uma forma de Lula mostrar a ela o quanto ela tem valor como parceira dele de todas as horas... Ele não pode confiar em ninguém. É ela quem dá o ombro para ele. Além disso, ela tem capacidade e discernimento intelectual. Eu acho justo esse reconhecimento!", escreveu a gaúcha Gaya Becker no Painel do Leitor da Folha de São Paulo. 

 

Depois de ruminar a notícia na Barbearia do Onofre, uma das mais tradicionais da Asa Norte, em Brasília, enquanto aparava o resto de fios grisalhos de sua avantajada cabeça, meu amigo Chico Caixa d'Água foi de uma sinceridade constrangedora com os amigos presentes no recinto: “Sem querer ser injusto, nem negar minha origem de esquerda, não entendo como um cidadão acorda certo dia e, do nada, resolve conceder uma comenda deste calibre a alguém com quem divide a alcova e a escova matinal”.  

 

Estranhei o tom, mistura de desencanto e indignação, pois o noticiário trouxe também a condecoração de outras mulheres de vulto sob o céu tropical: Lu Alckmin (casada com o vice-presidente), as ministras Anielle Franco (Igualdade Racial), Aparecida Goncalves (Mulheres), Esther Dweck (Gestão e Inovação), Luciana Santos (Ciência e Tecnologia), Margareth Menezes (Cultura), Simone Tebet (Planejamento) e Sônia Guajajara (Povos Indígenas). E não somente elas, também se concedeu a honraria, de forma póstuma, às cantoras Elza Soares, Gal Costa e Rita Lee.

 

Puxei conversa para entender melhor o raciocínio, quando ele me saiu com um inusitado ângulo de observação do fato: a desigualdade de meios para se alcançar o cessar-fogo num conflito conjugal. Coisa de diplomata em tempos de guerra! 

 

Ele foi bem didático, por sinal. Começou dizendo ser natural que todo mundo um dia pise no tomate, vacile perante sua cara-metade. Mas adiantou que não se referia àquela situação em que o sujeito, até de modo pueril, vai a uma cerimônia e compara o vestido de sua mulher com o de outra no local, argumentando que preferia vê-la de forma menos espalhafatosa, mais elegante e sóbria.

 

Nem àquela em que o marido, desligado de nascença, entulha roupa suja no chão do banheiro e deixa toalha molhada em cima da cama. Se bem que, para Caixa d'Água, toda esposa sabe desde o início da relação que a maioria dos homens um dia morou com mãe, tia ou mesmo avó, quando as roupas podiam ser largadas em qualquer lugar da casa até aparecerem cheirosas e bem passadas na gaveta do armário.

 

Disse ainda que não falava do companheiro que, ao menor espirro ou filete de coriza, transforma uma virose numa tragédia sem precedentes na evolução humana sobre a Terra, por conta, de novo, da mãe (tia ou avó) que, só de ouvir um gemido, seguido de uma expressão facial de quem estaria prestes a se acabar, cobria de mimos a criatura fragilizada, em vias da extrema unção.

 

Foi além. Também não se referia àquele camarada que, sem noção do quanto viver segue perigoso demais, esquece que circula de mãos dadas com a namorada (ou a esposa) e não consegue segurar o giro do pescoço – por si, um movimento antinatural para cabeçudo como o meu amigo, o que já caracteriza a infração – quando se vê diante de um decote generoso ou de um short estilo embalagem a vácuo, ainda que a cobiçada não lhe tenha reservado nem um olhar de desdém.

 

Na verdade – garantiu, como faz todo mundo que abre um comentário negando o que antes fora dito por outras pessoas –, ele se refere a casos mais complexos, com reflexos nas semanas e até nos meses seguintes. Como o da madame que, após relutar meses diante do espelho, decide cortar cinco dedos das madeixas e o maridão (que já não se senta frente-a-frente com ela nem no jantar, poupando-se do constrangimento do olhos nos olhos) nada percebe. 

 

Pronto! O caminho até o portal do inferno está pavimentado, desde ouvir mágoas requentadas ou novas, até virar alvo da desconfiança de que existe um possível rabo de saia na área, com iminente disputa territorial à vista.

 

“Vai por mim, é nessas horas que o homem perde a paciência e, buscando apaziguar a encrenca, acaba fazendo um sacrifício sobrenatural para provar à mulher que ela está sendo injusta, maldosa, precipitada!” – disse Caixa d'Água.

 

E confessou que foi assim que ele se viu obrigado, numa manhã dessas, a levar a “patroa” a uma liquidação de rodos e vassouras na feira do Paranoá, com a gasolina, o calor e a secura pela hora da morte!

 

Na impossibilidade de conceder uma comenda à companheira com quem divide a alcova e a escova matinal, não lhe restou alternativa. “Ô mundão desigual!” – protestou.

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Duro na queda

Outro dia procurei um otorrino para remover o excesso de cera nos ouvidos, além de avaliar a progressão de uma leve deficiência auditiva que, a rigor, considero até conveniente, pois me poupa de ouvir aquilo que não me interessa.

 

Duvidei quando uma educada atendente, na recepção do ambulatório médico, me pediu a carteirinha do plano de saúde e o braço para colocar uma pulseira rosa (nada contra a cor!), com a curiosa ressalva de que faria parte do protocolo interno: indica que o paciente tem risco de queda.

 

Ilustração: Umor 

Quase sofro uma queda, sim, mas de tanto rir. Achei que estava diante de uma daquelas brincalhonas que adoram as bobagens, postagens e tatuagens de Gabigol e outros dândis. Pensei: talvez ela viu meu prontuário e imagina que as linhas tortuosas dos últimos eletrocardiogramas estão associadas ao sobe-e-desce do Vasco. 

 

Sobre futebol, aliás, há pouco mais de uma década, escutei por acaso (com estas fábricas de cerúmen que seguram meus óculos) uma conversa na fila de embarque do Aeroporto JK, em Brasília/DF, envolvendo dois atletas vascaínos por quem nutria grande admiração desde a vitoriosa campanha da Copa do Brasil 2011: o atacante Éder Luís e o lateral direito Fagner. 

 

Em três minutos, a enxurrada de tolices que entrou pelos meus ouvidos poderia ter acabado com a incerteza que persiste em mim sobre se faz sentido continuar sofrendo ou vibrando com o chamado esporte bretão. A coisa é mais grave do que imagino.

 

Mas isso é assunto para outro momento. Eu não deveria cobrar deles a capacidade de desenvolver pensamentos e ideias com a linguagem falada, ainda que, se assim agissem, os dois teriam uma boa chance de contar suas experiências com clareza e algum grau de complexidade. Devo admitir, no entanto, que o mais importante era que continuassem formando uma boa dupla pelo lado direito do Vasco.

 

Não poderia também esperar que os jovens atletas refletissem sobre a própria existência, trocando perguntas do tipo: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos? Seria bom refletirem sobre os objetivos pelos quais faziam o que faziam. Seria ótimo terem consciência de que jogar (ou torcer) por um clube com a grandeza do Vasco é olhar para os outros e dizer a si mesmo: “sim, eu sou melhor que ele!”.  

 

Mas volto à recepção do ambulatório médico. Não vejo motivo, pelo menos por enquanto, para que uma moça tão simpática olhe para mim e tema uma queda relacionada, por exemplo, a piso escorregadio, atrapalhar-se com sapatos e gatos pelo chão, trombar noutras pessoas, subir e descer escadas ou simplesmente cair da cama sem uma explicação etílica ou sexual (nunca se sabe, não é?). 

 

Não posso aceitar que alguém que me vê pela primeira vez, desconhecendo as minhas queixas da hora e sem prévia consulta a um repositório de informações a meu respeito, possa deduzir que estou velho, escorado em meia dúzia de muletas químicas que me ajudam desde o controle da pressão arterial até o tratamento da próstata aumentada e seus reflexos sobre uma bexiga preguiçosa, com vontade própria. 

 

Deus me poupe de ficar velho e rabugento como certas pessoas que conheço, mas, pensando bem, desconfio de que isso um dia será inevitável. Volta e meia já ouço uns e outros me chamarem de “senhor” e isso não ocorria com tanta frequência, nem mesmo vindo de filhos, noras, genro e netos. 

 

Agora, se vou ao supermercado, até o fiscal de prevenção de perdas (eufemismo infame para designar o dedo-duro responsável pela escolha aleatória dos torturáveis acusados de furto famélico), querendo ser gentil, me encaminha ao caixa de atendimento exclusivo a idosos onde existe uma placa com um desenho estilizado de um velho corcunda com uma das mãos no quadril e a outra numa bengala (quem foi o “gênio” que criou aquilo?).

 

Logo eu, que já fui comparado por minha mãe a ninguém menos que Antonio Fagundes – reconheço, toda mãe é um tanto cega, muda e surda, mas, claro, fala apenas a verdade. Só que, hoje, obrigado a dormir com uma máscara nasal para encarar a apneia do sono e o ronco, além de um protetor bucal para evitar que o bruxismo destrua o que me resta de dentes, entendo quando minha mulher, no meio da madrugada, se assusta ao acordar do lado de Darth Vader, o vilão da saga Star Wars.

 

Sei não. Há possibilidade de que, em breve, minhas fotos estampem catálogos de fornecedores de medicamentos e utensílios voltados para a saúde em geral. 


Fazer o quê? Da próxima vez que me pedirem o braço para colocar uma pulseira me identificando como paciente sob risco de queda, ficarei calado. Não posso sair por aí distribuindo a torto e a direito bengaladas verbais. 

 

Se a queda for inevitável, vou relaxar e aproveitar, como ensinava uma vetusta sexóloga. Tem sido assim desde que deixei de engatinhar e aprendi a andar, cair e me levantar.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

A mão Dele

Os fatos não deixam de existir só porque ainda não fomos capazes de fazer suposições sobre eles. E não pensem que estou ficando louco por dizer o que digo. O que seria da realidade se não fosse a fantasia a tirá-la do sério? 

Tudo é possível. Em algum lugar do universo deve existir um arquivo especial onde Ele – quem sabe, apenas para deleite próprio – guarda em gavetas emperradas fatos que estiveram a ponto de acontecer e que por um motivo qualquer não vingaram. Lá estariam armazenadas versões do que poderia ter chegado a jornais, livros, revistas ou ao diário particular de qualquer um do que poderia ter sido e não foi. 

 

Todo mundo diz que se o “se” – esta inquietante conjunção subordinativa que nos propõe hipóteses, traduzindo nossas incertezas – jogasse futebol, seria o melhor goleiro ou o maior goleador do mundo. 

 

Discordo. Quando escrevo, nunca abro mão do universo de possibilidades contidas no “por que não”, no “quem sabe”, no “talvez”, no “vai que”, sem o qual um texto se torna cartesiano, inflexível, sem a leveza da curva, do desvio.


Quem sabe dizer onde foram parar alguns fatos que não se tornaram realidade por mero capricho sei lá de quem (talvez Dele mesmo, mas não estou aqui para acusar)? Em 1976, por exemplo, quando Roberto Dinamite, no minuto final de uma partida, amorteceu no peito um cruzamento dentro da grande área e, antes de estufar as redes botafoguenses com um voleio, cobriu com um lençol Osmar Guarnelli, o zagueiro interceptou a bola com o braço e o árbitro apontou a marca penal. Nunca existiu, portanto, o gol da fotografia colocada no hall da entrada principal do Maracanã na inauguração do Projeto Memória do Futebol.

 

Reprodução/Redes Sociais

Mas será que o pênalti foi marcado mesmo, ou o árbitro, com a desfaçatez dos sopradores de apito que nos fazem de bestas a toda hora, teria dito que o gesto foi natural, não houve ação deliberada de bloqueio, não viu nada de mais (nem sabia de nada), como alguns cegos e sonsos que figuram na cena política brasileira? 

 

E onde foi parar o gol de empate que o zagueiro brasileiro Oscar Bernardi marcou contra a Itália nas semifinais da Copa do Mundo de 1982? Após receber um cruzamento perfeito, o capitão acertou, à queima-roupa, uma cabeçada indefensável. O goleiro Dino Zoff ainda conseguiu fazer uma defesa monstruosa, mas a bola escapou e cruzou a linha fatal, matando no ninho uma geração de defensores da tese de que jogo bonito é sinônimo de derrota, que vibram com carrinho ou bicão de jogador grosso, na base de “bola pro mato porque o jogo é de campeonato”. 

 

Vai ver está no arquivo especial o antepenúltimo minuto da partida final do Campeonato Carioca de 2001? Falo do lance em que o goleiro vascaíno Helton conseguiu a proeza de evitar um gol numa espetacular cobrança de falta de Petkovic, que selaria o tricampeonato carioca para o Flamengo, no Maracanã. 

 

A dois minutos do apito final, o time rubro-negro ficava com mais um vice-campeonato em virtude do placar agregado de dois jogos – o Vasco havia vencido a primeira disputa por 2 a 1. No segundo confronto, o Flamengo devolvia o placar, mas esbarrava na vantagem do empate do adversário. E o sérvio bem que caprichou, mas sem sucesso, mudar a história com uma cobrança de falta quase perfeita, à semelhança do que fizera, com êxito, o vascaíno Juninho Pernambucano três anos antes, no Monumental de Nuñez, contra o River Plate, da Argentina. 

 

E o gol que Diego Souza, à época no Vasco, marcou diante do Corinthians do goleiro Cássio, no Pacaembu, conduzindo a bola desde o seu campo de defesa no jogo de volta das quartas de final da Libertadores de 2012? Ali começou a arrancada para a conquista da Copa Libertadores da América. Meses depois, inclusive, pintaram a Terra de branco e preto quando o Gigante da Colina derrotou o Chelsea, da Inglaterra, erguendo a taça de campeão mundial no Japão. 

 

Dá pra imaginar quem teria autorizado a colocação de uma faixa diagonal atravessando o Planeta, evocando as travessias responsáveis pelas grandes descobertas das navegações marítimas. Puseram, inclusive, uma cruz de malta no céu da Mãe África, saudando o primeiro clube-nação de um país (detentor da segunda maior população negra do mundo) a reconhecer o protagonismo de negros e pardos na aventura humana na Terra. 

  

Posso descrever outros fatos engavetados pela mão Dele, mas encerro por aqui seguro de que só são considerados singulares porque tiveram suas rotas alteradas em pleno voo e foram obrigados a aterrissar no território do “quase”.

 

Se estiver correta a minha tese sobre este arquivo especial – onde cada um de nós dá nome a uma gaveta de fracassos e frustrações pessoais e intransferíveis, não restritas à paixão pelo futebol –, é pra lá que pretendo ir quando do acerto de contas. Sem pressa, bem entendido!

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Com o caju na mão

Deu o que falar uma peça publicitária estrelada por uma famosa atriz, mas já saiu de circulação (a peça, bem-entendido!). Mostrava a beldade colhendo um caju. Dois pequenos descuidos chamaram a atenção dos internautas. Além de o fruto estar pendurado no galho de cabeça pra baixo, a árvore não era um cajueiro, que chega a alcançar 10 metros de altura, possui copa larga, tronco tortuoso e galhos pendentes.

 

Reprodução/Tweeter

Tem quem veja o dito-cujo como o fruto do cajueiro quando, na realidade, é a castanha. Nada de mais. Nem sempre aquilo que dá maior prazer é a fruta em si, sobretudo numa fase da vida em que uma caipirinha bem socada, rodela por rodela, desperta as papilas gustativas na língua, no céu da boca, na garganta e até na memória. Tem sido assim desde a mordida de Adão no fruto proibido.

 

A campanha publicitária era de uma marca de cosméticos muito conhecida por usar em seus produtos ingredientes típicos do Brasil, como a bromélia, o capim-limão, a carambola, o mandacaru etc. Os cochilos viraram motivo de intensa zoada na web, rendendo vários memes associados à imagem da pobre moça com o caju na mão. E a peça sumiu rapidinho dos perfis oficiais da anunciante.

 

Logo que o vídeo começou a circular, um internauta criticou os deslizes no processo de aprovação da campanha. "Como deixam isso passar? Geralmente tem uns 20 profissionais envolvidos (do briefing, passando por orçamento, estudo de tendências, escuta de consumidores, desenvolvimento de mensagem, até a escolha de veículos de mídia)", questionou.

 

Outro quis explicar o fato invocando uma questão tão antiga quanto tola: os movimentos separatistas que pregam a independência de regiões brasileiras por motivos culturais, econômicos e políticos, realçando que a maior produção de caju está concentrada no Nordeste. "O vídeo foi feito por um ‘sudestino’ que nunca viu um cajueiro na vida, e o pior é que passou por uma equipe que viu e aprovou, não se deu nem ao trabalho de pesquisar", pontuou.

 

Outra internauta chegou a ser desaforada. Abriu uma “caixa de ferramentas consoantes” que demorei alguns segundos para entender. Parecia uma expressão latina como “vade retro Satana”, ou “afasta-te, Satanás!”. Escreveu assim a garota: “VTNC, bando de analfas!”.

 

Pela “caligrafia”, pensei até na improvável reencarnação de Dercy Goncalves. Vai ver se trata de uma neófita na área acostumada ao linguajar fluente nas redes antissociais, uma boca suja desgraçada a sugerir aos outros destino indesejável para si mesma. “Jovem tem todos os defeitos do adulto e mais um: o da imaturidade”, dizia Nelson Rodrigues. 

 

Não vou negar, um dia eu também já fui desaforado, ali na largada da década de 1980, quando um de meus rebentos me trouxe da escola, todo sorridente, um envelope contendo uma cobrança de mensalidades em atraso, assinada, em tom ameaçador, pela diretora e pela tesoureira

 

Logo eu, que atrasaria qualquer conta – prestação do imóvel, do carro, da linha telefônica etc. –, menos uma que provocasse constrangimentos a quem mal começava a engatinhar sobre os mistérios da vida entre animais sociais.

 

Pior que não havia atraso. A transferência de recursos entre bancos, via DOC (Documento de Ordem de Crédito), fora criada naquela época. Gostei tanto da novidade que, logo que o salário pingava em minha conta, transferia para a escola o valor da mensalidade. Com o tempo apertado, dividido entre a faculdade e o trabalho, deixara de ir à tesouraria do colégio.

 

Eu poderia ter sido mais flexível, tolerante, como todo sujeito que vive nos braços da paz, com salários e impostos em dia. Mas na manhã seguinte achei de revidar a “ofensa” no verso da própria cobrança escrevendo, em negrito/itálico, algo nessa linha

 

“(...) Não devo nada!  Seguem os comprovantes de que transferi para a escola, antes de cada vencimento, os valores das mensalidades que ora me cobram. Dinheiro não cai do céu. Se aparece na conta, procurem identificar a origem no banco para evitar cobrança indevida. E nunca mais me cobrem dessa forma, utilizando portadores inocentes! Senão serei obrigado a mandar vocês enfiarem a cobrança no lugar onde macaco esconde castanha de caju (...)”

 

Assim como imagino que macaco não gosta de abacate (o caroço deve assustar!), eu sabia que “caju” embute um dos monossílabos mais usados pelos brigões no esculacho do futebol. Poderia, portanto, ter sido indiciado por agressão verbal, injúria, misoginia, ou levar uns sopapos (tiros, sei lá!) de um marido bravo, em legítima defesa da honra de sua esposa. E não estaria aqui contando o caso. 

 

Tive sorte. O Código de Defesa do Consumidor (tal como a troca de e-mails entre internautas) surgiria apenas 10 anos mais tarde. Desde então, até um macaco pendurado de cabeça pra baixo no galho de um cajueiro sabe que não se deve criticar o trabalho de ninguém (nem mesmo contestar uma cobrança) citando o lugar onde supostamente esconde castanha. 


Alguns primatas evoluem. Inclusive os espíritos de porco.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Benza-te Deus, Vó!

Trago comigo que o sorriso continua sendo a roupa mais luxuosa que alguém pode vestir, o reflexo de uma alma em movimento ou a curva mais bonita do corpo humano. 

 

Foto: Rosângela Escórcio Lima

Um amigo me manda uma fotografia e pergunta se me lembro de Vó, que vendia jornais e revistas numa banca no 2º subsolo do edifício-sede I (o primeiro!) do Banco do Brasil, em Brasília, na segunda metade do século passado, ao lado do “Bandejão”, onde todo dia se restauravam mais de três mil almas.  No fecho, a boa nova: “esta semana ela completou 100 anos”. 

 

Quis responder, mas me segurei diante da plenitude da imagem. Sou dos que acreditam que a fotografia é uma forma de expressão silenciosa capaz de congelar cenas e cores que a mente uma hora esquece. Que transforma algo comum em extraordinário. Dispensa comentários ou legendas.

 

Até ontem, Vó, eu nem sabia o teu nome completo, e só hoje descobri: Helena Escórcio Lima, mãe de 12 filhos (só metade vive) e bisavó de sete bisnetos. 


Você não faz ideia do quanto me recordo do dia em que te conheci, em agosto de 1982, pouco depois de minha chegada a Brasília, pela primeira vez, para participar por quatro meses de um curso de formação profissional. 

 

A nova capital do país tinha apenas 22 anos. Para milhares de imigrantes domésticos, com destaque para o Nordeste, a história estava só começando, feito uma folha de papel em branco onde cada um escrevia a crônica de uma vida. Tu eras uma dessas cronistas, Vó.


Como me recordo daquela mulher aparentemente frágil, leve, mas forte e determinada, que avistei várias vezes, de manhãzinha, guiando uma kombi nos arredores da Galeria dos Estados, no Setor Bancário Sul, transportando amarrados de jornais e revistas. 

 

Mais tarde, Vó, com os óculos na ponta do nariz, atenta às circunstâncias e aos circunstantes, quase sempre te encontrava em paz, de bom humor. Só perdia a paciência com alguns chatos, a quem mandavas para aquele lugar se zoassem com o “nosso” Vasco da Gama. 

 

O Vasco que tocou teu coração, imagino, foi o mesmo que fez de meu pai um vascaíno raiz, com o time considerado um dos melhores da história do futebol: o Expresso da Vitória, de Barbosa, Danilo e Ademir de Menezes. Depois viriam Bellini, Roberto Dinamite, Juninho Pernambucano, Edmundo, mas isso é outra história.

 

Ah, Vó, bem antes de te conhecer, não imaginas o quanto desejei tomar conta de uma banca de jornais e revistas em minha meninice, ao lado de meu irmão. Poder ganhar alguns trocados e, assim, ajudar na despesa de casa; de quebra, ter acesso amplo e irrestrito a todas as publicações da época. 

 

Até hoje o cheiro de tinta que saía da revista Placar continua intacto em nossas narinas (minhas e dele), como um perfume que embriagava dois obcecados por bola, desde os rachas nos campinhos de terra batida na Gruta de Lourdes, em Maceió, até as noites de domingo, quando a extinta TV Tupi exibia os gols da rodada no programa Ataque e Defesa.  

 

E como esquecer as disputas de times de botão, com “craques” de acrílico feitos por nós mesmos? Bastavam dois discos translúcidos ensanduichando a foto recortada de Placar ou de Manchete Esportiva, o nome de “guerra” e o número (recorte de calendário) que usava na camisa do clube a que pertencia.

 

Um dia, Vó, encontramos numa feira livre um camelô vendendo frascos de uma mistura de álcool comum com gasolina. Com um chumaço de algodão, ele molhava uma folha de papel e, usando o fundo de uma colher, decalcava imagens de revistas velhas, reproduzindo-as, de forma invertida, como se refletidas num espelho. 


Era o que nos faltava para fazer a “cobertura” dos campeonatos de futebol de botão. Com folhas de caderno de desenho e imagens extraídas das páginas das revistas, criávamos "reportagens" para “jornais” reservados a um único leitor: eu lia o dele; ele lia o feito por mim. 

 

Nem jornaleiros nem jornalistas, um dia eu e ele viramos bancários. Quando te conheci, Vó, eu já era homem feito, pai de família, mas ainda cochilava em mim o moleque que a tua banca de jornais e revistas despertou.

 

Hoje, Vó, o número de publicações diminuiu ou sumiu de muitos desses pontos de venda. A crise no meio impresso sofreu o golpe fatal com a pandemia, quando muita gente deixou de comprar aquilo que não pudesse ser descontaminado. E as bancas sobreviventes parecem pontos de camelôs. Vendem de tudo: água mineral, bebidas, cigarros, doces, preservativos, acessórios para celular e sabe-se lá mais o quê.

 

Mas chega de saudade! Como bem disse um poeta, o futuro é uma astronave que tentamos pilotar e que muda a nossa vida, depois convida a rir ou chorar. 

 

Agora, Vó, numa folha qualquer posso até escrever sobre sol amarelo, castelo ou uma linda gaivota a voar no céu. Mas o que queria mesmo é aprender a sorrir assim feito tu. Benza-te Deus!

 


quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Quase todo dia

Foi-se o tempo em que uma boa menina, usando capuz encarnado (ressalte-se, sem nenhum viés político-religioso!), seguia pela estrada afora, sozinha, levando bolos e doces para sua querida  vovozinha. Ainda não havia celulares nem redes sociais, mas sua zelosa mãe já recomendava não dar ouvidos a estranhos. Porém caiu na lábia de um lobo perverso que dela conseguiu descobrir o local de destino. E ao chegar lá, a netinha foi recebida com terceiras intenções pelo próprio animal disfarçado, que inclusive já havia comido a vovó (literalmente, o que é pior). O resto você sabe. 

Não parece, mas eu também um dia já fui neto e, entre calçadas, esquinas e praças, ainda sem celulares nem web, provei de quase todos os tarecos, traquinagens e mariolas que a rua oferecia a um representante daquilo que o poeta Jessier Quirino chama de "nação do desassossego". Por isso, eu seria capaz de jurar que já tinha visto de tudo sobre “artes infantis”, mas me enganei. Os tempos são outros e ando vendo assombração quase todo dia.

 

Circula nas redes sociais um vídeo no qual um casal de avós (ele com 70 anos e ela, mais nova) salta do 4º andar de um prédio para escapar do fogo no apartamento onde moram, em Minas Gerais. E tudo começa quando a netinha deles, de 11 anos, contrariada com um castigo aplicado pela avó (dieta digital compulsória), tranca os dois no quarto e toca fogo no sofá da sala de estar.

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

 

Nas imagens, é possível ver o homem convencendo a mulher a pular primeiro de uma janela, não se sabe se por cavalheirismo, desespero, incerteza quanto ao desfecho, pavor ou todas as alternativas combinadas. Em seguida, ele também pula para não morrer queimado ou por asfixia.  

 

A queda é amortecida por colchões colocados por moradores do prédio e ambos são levados para um hospital. A vovó com dores no peito e nas pernas. O vovô não chega a precisar de atendimento médico. A ciência ainda é omissa quanto à eficácia de um remédio para coração partido, ingratidão, essas coisas.

 

Antes de provocar o incêndio, a menina pediu para usar o celular, o que foi negado pela avó, depois de descobrir que ela fizera buscas na Internet sobre rituais de bruxaria. Justamente no mês do Halloween, festa tipicamente norte-americana macaqueada em várias partes do mundo, inclusive aqui, na qual as pessoas se transformam em monstros como vampiros, zumbis e certos políticos. 

 

Houve quem dissesse que a pesquisa feita pela garota, na realidade, se referia à coreografia de uma famosa cantora que lançou recentemente um clipe com pitadas eróticas onde aparece com um microfone nas mãos fazendo simulações orais (acho que você me entende) num beco de comunidade. Não acredito nisso! A vovó teria infartado de forma fulminante e nem haveria os desdobramentos. 

 

Aborrecida, no entanto, a neta se aproveita que os avós estavam no quarto, tranca a porta por fora e risca o fósforo. Poderia ter sido pior, inclusive para a vizinhança. Vai que corta a mangueira do gás de cozinha. O estrago teria outra proporção. Louve-se o equilíbrio dela.


Minutos depois, desconfiando do cheiro de fumaça, o avô resolve arrombar a porta, mas percebe que só conseguiria escapar do fogaréu se rompesse a tela de proteção da janela. Do lado de fora, moradores já estavam a postos para ajudá-los, assustados com o volume de fumaça e o calor das labaredas.

 

Enquanto as chamas se alastram, a menina, que costuma passar o fim de semana com os avós, desce para o playground para brincar de patins, como quem chupa pirulitos. 

 

O síndico do condomínio afirma ter sido aterrorizante o momento em que os vizinhos decidiram colocar colchões no chão, bem próximo à fachada do prédio. Na hora da agonia, é óbvio que ninguém liga para o fato de que o peso de algo em queda livre é calculado pela massa do corpo multiplicada pela aceleração da gravidade. 

 

Moradores das redondezas, ainda chocados, se mobilizaram para ajudar o casal a reconstruir o apartamento destruído. Com uma vaquinha digital, esperam arrecadar parte dos recursos necessários à reconstrução do imóvel. 

 

Sem sequelas físicas – não se apurou a extensão das fraturas na alma, das escoriações na fé –, o avô passou o dia seguinte recolhendo o entulho, com a ajuda de parentes e amigos. Repetia que a neta é "seu xodó", não teve culpa de nada (teria diagnóstico de bipolaridade) e já a perdoou. Avô é avô.


E a garota, que nunca usou chapeuzinho vermelho, mas se travestiu de loba nesta aventura urbana, foi entregue à mãe. Deverá receber proteção do Estado, e o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê acompanhamento social e psicológico.

 

O resto dessa história ainda não está nítido, mas dá para imaginar aonde tudo isso pode chegar. Os tempos são outros e ando vendo assombração quase todo dia.