quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Será bem mais simples

O mundo inteiro ainda bate cabeça procurando um remédio eficaz para acabar de vez com a covid-19 – quando a vacina não resolve –, mas li outro dia que uma descoberta de pesquisadores brasileiros pode mudar o cenário. 

O pessoal da Unesp de Araraquara, São Paulo, revelou à comunidade científica internacional que o veneno da cobra jararacuçu, muito comum em nossas florestas, contém uma molécula com ação antiviral capaz de inibir em 75% a capacidade de multiplicação do coronavírus, dando tempo ao organismo infectado de criar anticorpos e neutralizar o avanço da doença.

O estudo é promissor, já está sendo testado em humanos e tudo leva a crer que o peptídeo é seguro mesmo em concentrações elevadas. Além disso, é fácil de ser sintetizado, o que simplificará a produção em larga escala. 

Já existem outras moléculas encontradas em venenos e secreções animais em remédios para tratar doenças humanas. Do veneno da cobra jararaca, por exemplo, vem o Captopril, droga para tratamento da hipertensão. Da saliva do lagarto monstro-de-gila é produzido o Exenatide, usado contra diabetes. E o Lepirudina, que vem da saliva de sanguessugas e outros lagartos venenosos, controla uma doença autoimune capaz de causar trombose, embolia pulmonar e infarto.


Li também – e esta é a parte “ruim” de gostar de ler – que, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), desmatou-se aqui na terra das palmeiras onde canta o sabiá mais de 8 mil km2 de florestas entre agosto de 2020 e junho de 2021, na maior devastação em uma década. 

 

Continuamos imbatíveis, portanto, nessa corrida sem freios, ladeira abaixo, rumo à extinção de fontes que até outro dia tínhamos como inesgotáveis para descoberta desses insumos farmacológicos.  


Se nada estancar a ganância dos chamados “agrotrogloditas” (como diz Elio Gaspari) e seus protetores de plantão, daqui a pouco só será possível a pesquisa com peçonhas e outras secreções obtidas no meio urbano.  

 

Comentava isso com um amigo quando ele me alertou que talvez seja chegada a hora de atribuir um novo significado para a figura da sogra no seio da família, buscando uma utilidade prática para o veneno que inocula nas veias de genros e noras.

 

Também defendeu que se faça algo a partir de cunhados e cunhadas, principalmente os formados em arquitetura, os quais, em momentos financeiramente inadequados, costumam sugerir reformas estruturais, paisagismos e repaginação de ambientes.

 

Chegou ainda a mencionar aquele tiozão imbecil (desculpando-se pelo pleonasmo) que se mete o tempo inteiro onde não é chamado, cujo veneno escorre pelas narinas de tanto azucrinar sobrinhos com idiotices a granel, além de empréstimos sem qualquer risco.

 

Risco, bem entendido, é a probabilidade de um evento esperado não ocorrer por conta de alguma coisa inesperada, extraordinária. No caso, não existe o menor risco: o tiozão não paga nunca! 

 

Compreendo a acidez de meu amigo, em decorrência, talvez, do pesado fardo de dissabores que teve (e ainda tem!) que engolir, mas não sou pastilha de Hidróxido de Alumínio nem gostaria de trafegar nesse delicado território das encrencas familiares. 

 

No meu caso, aliás, nunca tive do que me queixar em relação a minha sogra, que só me fez o bem enquanto esteve por aqui. Também não reclamo de cunhados e tios. Não convivo com eles a ponto de experimentar os desencantos da proximidade inevitável. O que também é ótima estratégia para eles. 

 

Disse-lhe, contudo, que vejo algum sentido na tese. Penso que cairia bem extrair secreções tóxicas de alguns seres urbanos que circulam por aí – uns possuem até o olhar frio e misterioso dos répteis –, sejam aqueles homens públicos que abusam do direito de infernizar a nossa vida, sejam os que já se arrastam de forma inapelável para a sarjeta da História.

 


Todos esses, para evitar, após a morte, o inescapável voo sem escalas em direção ao quinto dos infernos, poderiam criar para si um providencial pitstop: uma temporada no purgatório, oferecendo, para remissão de seus pecados, gotas de sangue, saliva e suor. 

Sei que será difícil extrair suor de escamas. Suor é coisa que essa gente só vê quando escorre no rosto dos menos aquinhoados pela sorte que lhe serve no conforto de ambientes refrigerados à custa do suadouro alheio.  


Outro problema é saber se haverá no purgatório espaço suficiente para abrigar tantos candidatos ao estágio. Se não houver, viria aí uma nova temporada de corrupção e mentiras, com compra e venda de vagas no mercado futuro. Tudo em dinheiro vivo, lavado e enxaguado (como diria o bem-amado Odorico Paraguaçu), sem nota fiscal e, ninguém duvide, com transmissão on-line via redes sociais. 


Será bem mais simples cuidar do que resta das florestas.  

 


quarta-feira, 22 de setembro de 2021

O peso do argumento

Tá legal, eu aceito o argumento – diria o mais elegante e gentil dos poetas –, é a alma de nossos negócios! Sim, as reuniões de trabalho têm o seu valor, ninguém pode negar. Se bem que boa parte delas não passa de perda de tempo ou de ganho de escaramuças e úlceras. 

 

Depois que me aposentei, mesmo com agenda livre para esses “animados” encontros – reuniões de condomínio, por exemplo –, sou daqueles que optam por engolir o que for decidido pelos vizinhos a ter que participar. Antes, culpava a fadiga de encarar uma terceira jornada de trabalho no fim do dia; hoje, percebo que o sinal continua fechado. 

 

É difícil juntar meia dúzia de pessoas e fazer as coisas acontecerem de forma rápida e objetiva, mesmo no mundo virtual tão em voga ultimamente. Tem gente que fala demais (ou nada fala), dá palpites em tudo, abre conversa paralela. Tem quem coloca defeito naquilo que diverge um milímetro de sua opinião. Tem até gente distraída que nem sabe o que faz ali. 

 

Aqui se encaixa bem o “nada está tão ruim que não possa piorar”. Quem nunca participou de uma reunião conduzida por alguém carente de atenção, inclusive em sua própria casa? Ou que necessita demonstrar que sabe de tudo sobre os mais variados assuntos? Ou que finge ser flexível, tolerante, desde que seja sua a palavra final sobre o tema que se discute?

 

Antes que me acusem de ser omisso ou apóstolo do voto em branco, vou logo dizendo que minha aversão vem de longe. Desde o tempo em que participava de reuniões onde a tônica era a falta de objetividade e uma briga eterna entre egos inflados pela ambição, envolvendo até pessoas decentes, mas outras bajuladoras, dissimuladas, falsas ou invejosas.

 

Com o branquear dos cabelos, aprendi a antiga lição “tancrediana” segundo a qual reunião boa é aquela em que os assuntos em pauta têm as suas quinas previamente arredondadas, seja no primeiro cafezinho do dia, numa conversa no final da tarde ou até no corredor que antecede a porta de entrada do local do encontro. 

 

Quem trabalhou ao meu lado lembra e não me deixa mentir. Antecipava em 24h uma possível minuta da ata da reunião do dia seguinte, onde nos sentávamos apenas para discutir pontos controversos. É insensatez discutir assuntos em que já se chegou a consenso quanto ao melhor encaminhamento. 

 

Nesses encontros, não tolerava se alguém pedia a palavra e começava com um “na verdade...”. Soava como um salvo-conduto para registrar que tudo o que fora dito até ali era falso ou, no mínimo, que sua versão seria a ponta virada do prego batido para que todos afinal compreendessem do que se falava.

 

E o que dizer de quem apontava para um dos participantes, antes de soltar um constrangedor “você aceita feedback?” Seria bem mais honesto se indagasse: “você me permite falar mal de você na frente de todos e vai ouvir calado até o final?”

 

Enfim, nenhuma aversão nasce da noite pro dia. É processo crônico e tortuoso. Pode ser até que essa minha repugnância tenha outra origem: a assembleia de instalação do condomínio do residencial onde, no início dos anos 80, comprei o apartamento em que pretendia morar o resto de minha vida. 

 

O primeiro síndico tinha dignidade de estátua. Aos 60 e poucos anos, a maior parte servindo às Forças Armadas, fora eleito por aclamação por conta do histórico de cidadão íntegro, conciliador e justo. 


Recebera do representante da construtora a incumbência de buscar a aprovação do regimento interno na assembleia de proprietários emergentes, quase todos, entre 20 e 30 anos de idade, querendo pegar seu lugar no futuro.

 

Em questão de minutos, um dos proprietários quis induzir os outros a derrubarem o artigo que permitia às babás se banharem na piscina, desde que no exercício de suas funções. Argumentava ser inaceitável que sua filha querida compartilhasse a mesma água com mulheres de procedência duvidosa, sujeitando-se às doenças do mundo.

 

Não conseguiu. Muitas mães preferiam suas crianças nos braços das babás do que deixá-las a mercê de um salva-vidas na pérgula da piscina. Frustrado, o sujeito  retirou-se da assembleia, por coincidência na hora em que ecoava a vinheta de abertura de um famoso telejornal. 

 

Outro condômino, mais idealista, argumentava ironicamente que só países ricos e poderosos como o Brasil mantinham elevadores de serviço, despensa para guarda de provisões diversas e dependência de empregadas, onerando as despesas com manutenção, água e energia. 

 

E subiu o tom de voz ao criticar a taxa de condomínio proposta, lançando dúvidas quanto à estimativa de gastos orçados para os primeiros meses, além de discordar da divisão equitativa com quem pensava diferente dele.


Ilustração: Arimatéa

Um argumenta aqui, outro ali, mais outro acolá, o efeito estufa prestes a derreter a autoridade do síndico quando ele, no uso de poderes que se atribuiu, acomoda sutilmente seu pesado revólver debaixo da toalha da mesa de apoio em que toca a pauta da reunião e fala consigo mesmo, audível entretanto para alguns: “Não vou ser desmoralizado depois de velho!” 

Antes das onze da noite, o regimento interno e a taxa de condomínio estavam democraticamente aprovados. Por unanimidade, claro! 

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Não volto mais!

Quase dois anos depois, nem todo mundo quer largar o home office e voltar ao trabalho presencial, como pretendem algumas empresas que se aproveitam do avanço da vacinação contra a covid-19 para esquentar as turbinas nesse sentido.  

Conheço quem foi morar longe para ganhar qualidade de vida e se deu muito bem. Outros, atolados numa mistura de ansiedade, fake news e pânico, com ou sem tarja preta adotaram filho, cachorro, gato, papagaio, coruja etc.

 


Sim, teve quem adotou até coruja. Talvez porque seja ave adaptada a viver na escuridão com sua cabeçona, rosto achatado, bico forte e curvado, além de olhos enormes e profundos. Mexe com o imaginário daqueles que só conseguem trabalhar sob o olhar de um chefe para chamar de seu.  

Tirando as grávidas, que não querem (nem devem) voltar à labuta presencial, o empregador tem o direito de exigir a volta as suas instalações. E se algum empregado insistir em querer trabalhar em casa, pode ser demitido por descumprir norma interna. 

 

Mas querer quase nunca é poder por aqui. A lei admite, porém não significa que as empresas farão isso na marra, pagando para ver o que acontece no pós-confinamento. Nem do dia para a noite ou com todos ao mesmo tempo. Quem sabe a decisão é adiada para a virada do Ano Novo ou depois do Carnaval. 

 

Antes de tudo, será preciso apurar se ainda vale a pena ocupar instalações caras (aluguel e infraestrutura), muitas vezes sem sentido, como se viu em alguns casos no auge da pandemia. 


Outro ponto importante, em vários países o retorno vem se dando de forma gradual, na base de três dias de trabalho em casa e dois no escritório. Ou seja, não se fala mais em voltar ao modelo 100% presencial.

 

Já nem se discute se a produtividade em casa aumenta ou não, principalmente por conta do tempo que se perdia no trânsito das grandes cidades com seus semáforos não sincronizados, filas, buzinas e balizas nos escassos estacionamentos.

 

É fato que ninguém apurou com lupa o custo do trabalho remoto, sem mesa e cadeira adequadas nem computador na altura ideal, com problemas de conexão à internet e sobrecarga de ruídos. Aliás, liquidificador e aspirador de pó são novos meios de assédio e tortura psicológica no trabalho.

 

Pelo sim, pelo não, já decidi: não volto nunca mais a trabalhar fora de casa, em ambiente corporativo. E duvido que me demitam! 

 

Nada é melhor que dormir um pouco mais cedo e acordar por volta das quatro da madrugada. Acordo, escovo os dentes, tomo meus remédios e, ainda de pijamas – é bobagem trocar uma roupa confortável por outra –, sigo para o trabalho no quarto ao lado, chova ou tenham estrelas lá fora.

 

O relógio deixou de ser meu opressor silencioso e nem faço ideia de onde se meteu. E mesmo sem estar trancado no meu local de trabalho, ninguém vai me incomodar, desde que não seja emergência. Ou minha mulher, é claro, que não vou criar caso com a ministra do tribunal superior daqui de casa a esta altura da crise. Tenho juízo! 

 

Posso agora expandir meus conhecimentos na direção que quiser, sem ficar refém da rotina. Gasto boa parte do tempo em reuniões de trabalho com alguns espíritos iluminados (Cony, Nelson, Ruy, Sabino, Ubaldo, Verissimo etc.) que me socorrem a qualquer hora com sábios conselhos. Aprendi, inclusive, que a convivência também é feita de silêncio e distância. 

 

Eu estabeleço minhas metas. E nem discuto se terei de dobrá-las. Se digo que vou terminar uma etapa do trabalho até 10h, consigo. E como sou chefe de mim mesmo, não preciso justificar o porquê atrasei minha chegada à cozinha para lavar pratos ou preparar algo gostoso para comer ao meio-dia. Mais tarde, os ponteiros se acertam em meia hora de cochilo.


Meu trabalho agora não exige contato direto com os clientes na hora de sua execução. Se tanto, em breve troca de mensagens posso definir como entregar, dentro do prazo, o melhor produto. Se não der certo, desligo o computador e procuro outra coisa para fazer. Na madrugada seguinte, volto à caça de palavras e do melhor jeito de misturá-las para dizer o que sinto. 


Enfim, toda quarta-feira preparar e oferecer (com carinho e tempero caseiro) uma iguaria leve a meia dúzia de fiéis leitoras e leitores é coisa que faço em casa sem maiores percalços. Não vejo por que mexer numa receita que vem dando certo. Sem contraindicações.

 


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

O profeta

Antigamente, éramos um país subdesenvolvido e atrasado. Fomos promovidos a emergente – embora volta e meia me venha a impressão de que se trata de um eufemismo modernoso para designar a mesma coisa – e continuamos atrasados. 

Nosso atraso é muito mais que econômico ou social, antes é um estado de alma, uma segunda natureza, uma maneira de ver o mundo, um jeito de ser, uma cultura. 

Temos pouco ou nenhum espírito cívico, somos individualistas, emporcalhamos as cidades, votamos levianamente, urinamos nas ruas e defecamos nas praias, fazemos a barulheira que nos convém a qualquer hora do dia ou da noite, matamos e morremos no trânsito, queixamo-nos da falta de educação alheia e não notamos a nossa, soltamos assassinos a torto e a direito, falsificamos carteiras, atestados e diplomas, furamos filas e, quase todo dia, para realçar esse panorama, assistimos a mais um espetáculo ignóbil, arquitetado e protagonizado por governantes.

Que coisa mais desgraciosa e primitiva, esse festival de fanfarronadas e bravatas, essa demonstração de ignorância mesclada com inconsequência, essa insolência despudorada, autoritária, prepotente e pretensiosa. Então a ideia era submeter decisões do Supremo Tribunal Federal à aprovação do Congresso, ou seja, na situação atual, à aprovação do Executivo. 

E gente que é a favor disso ainda tem o desplante de lançar contra os adversários acusações de golpismo. Golpismo é isso, é atacar o equilíbrio dos poderes da República, para entregar à camarilha governista o controle exclusivo sobre o destino do País. 

Até quem só sabe sobre Montesquieu o que leu numa orelha de livro lembra que o raciocínio por trás da independência dos poderes é prevenir o despotismo. Se eu faço a lei, eu mesmo a executo e ainda julgo os conflitos, claro que o caminho para a tirania está aberto, porque posso fazer qualquer coisa, inclusive substituir por outra a lei que num dado momento me incomode.

Hoje, muito tempo depois de Montesquieu, sistemas como o vigente nos Estados Unidos, cujas instituições políticas plagiamos na estruturação da nossa república, dependem de um equilíbrio delicado e sutil, o qual pressupõe uma formação cívica e cultural que nosso atraso nos impede de plagiar também. Uma barbaridade desse porte é praticamente impossível acontecer por lá. E isso se evidencia até no comportamento e nas atitudes de todos. 

Nenhum deputado americano iria blaterar contra a Suprema Corte e investir contra a integridade do Estado dessa forma. E nenhum dos magistrados sai, como aqui, dando entrevistas em toda parte e tornando-se figurinhas fáceis, cuja proximidade induz uma familiaridade incompatível com a natureza e a magnitude dos cargos que ocupam, intérpretes supremos da Constituição, última instância do Estado, capaz de selar em definitivo o destino de um cidadão ou até da sociedade. 

Quem já presenciou a abertura de uma sessão da Suprema Corte, em Washington, há de ter-se impressionado com a solenidade majestosa do ato e com a aura quase sacerdotal dos juízes. Aqui, do jeito que as coisas vão, chega a parecer possível que, um dia destes, a equipe de um show de televisão interrompa uma sessão do Supremo para entrevistar os ministros, com uma comediante fazendo perguntas como "que é que você usa por baixo da toga?" e Sua Excelência, olhando para o decote dela e depois piscando para a câmera, dê uma gargalhadinha e responda "passa lá em casa, que eu te mostro".

Soberana, entre as nossas manifestações de atraso, é a importância que damos à televisão. Não conheço outro país onde visitas apareçam exclusivamente para ver televisão na companhia dos visitados, ou onde se liga a televisão na sala e ninguém mais conversa. Hoje está melhor, mas, antigamente, o sujeito era convidado para dar uma entrevista e todos os funcionários da estação ou da produção o tratavam como se ele estivesse recebendo uma dádiva celestial. Do faxineiro à recepcionista, todos eram importantíssimos e eu mesmo já me estranhei com alguns, um par de vezes. 

A televisão é tudo a que se pode ambicionar, todas as moças querem ser atrizes de novelas, a fama é aparecer na televisão, quem aparece na televisão está feito na vida. Briga-se por tempo na televisão, ameaça-se o regime por causa de tempo na televisão e avacalha-se a imagem das instituições através dos que parecem sempre ansiosos por aparecer na televisão. 

Em relação aos ministros do Supremo, creio que todos os dias pelo menos uns dois deles se exibem em entrevistas. Houve a questão do mensalão, mas a moda e o costume já pegaram e qualquer processo no Supremo que venha a ter grande repercussão vai gerar novas entrevistas, pois ministro também é filho de Deus e, se não houvesse seguido a carreira jurídica, teria sido personalidade da televisão.

Quanto aos governados, as chances de aparecer na televisão são escassas e talvez o mais recomendável seja não as ambicionar, porque isso pode significar que teremos sido assaltados ou atropelados, ou vovó esticou as canelas depois de quatro dias numa maca na recepção de um hospital vinculado ao SUS, ou já viramos presunto. Temos os nossos representantes, que podem representar-nos também aparecendo na televisão, são o nosso retrato. 

Continuam a caber-nos as duas certezas que Benjamin Franklin via na vida: death and taxes, morte e impostos. Nossas oportunidades de morte são amplas e diversificadas, de bala perdida a dengue. Em relação aos impostos, estamos a caminho do campeonato mundial. E, finalmente, contamos com o consolo de saber que todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Ou seja, pensando bem, não temos de quem nos queixar.


De propósito, meus queridos leitores e leitoras, evitei colocar aspas neste texto para que vocês não ficassem curiosos sobre sua autoria. Mas chegou a hora de dizer que é da lavra do inesquecível João Ubaldo Ribeiro – autor, dentre outras, da obra-prima 
Viva o Povo Brasileiro –, que o publicou no jornal O Globo, em 5/5/2013, sob o título “Governantes e governados”, um ano antes de sua morte. 

Como foi escrito há oito anos, portanto, não se sabe o que diria hoje o ilustre profeta itaparicano ao povo brasileiro, caso ressuscitasse neste 7 de setembro. Talvez, vendo a mesmice aqui incrustada, chegasse com aquela cara de sono e aquele cheiro da maré da Baía de Todos os Santos, assobiando “eu vejo o futuro repetir o passado...”



quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Fez parte do show

No livro “Cazuza – Só as mães são felizes”, Lucinha Araújo contou que Caetano Veloso subiu ao palco do Canecão, no Rio de Janeiro, em junho de 1983, no lançamento do disco “Uns”, e começou a cantar 'Todo amor que houver nessa vida'.

– Essa música é de nosso filho – ela comentou com o marido, sentado a seu lado.

– Você tá louca? – indagou o pai.

No final, Caetano elogiou Cazuza, dizendo que se tratava do “melhor poeta de sua geração”. Seis meses antes, ficara impressionado ao assistir à apresentação dele liderando o grupo Barão Vermelho, no Circo Voador.

 

Caetano (na plateia) assiste ao Barão Vermelho

Quase três décadas depois, eu e Magdala, minha mulher, fomos ao Rio assistir a um show no teatro Vivo Rio. Logo após o evento, fui abordado por uma amiga:

– Tem uma pessoa que quer te conhecer – me disse Naná.

– Tudo bem. Vamos lá? – respondi, curioso.

 

Naná Karabachian é uma empresária responsável pela criação e direção artística de diversos projetos musicais realizados em todo o País. Naquela noite, havíamos acabado de assistir Lulu Santos, interpretando Roberto e Erasmo Carlos no Circuito Cultural Banco do Brasil.

 

Circuito foi um dos projetos mais interessantes patrocinados pelo BB nos anos 2011 e 2012. Criado e dirigido pela cineasta e produtora cultural Monique Gardenberg, levou às principais cidades do País grandes intérpretes explorando o repertório de seus compositores preferidos, com parte dos ingressos reservada para clientes especiais do banco. 

 

Mas voltemos a Naná, que me apresentou a Mayra Corrêa Aygadoux, cantora, compositora e instrumentista indicada cinco vezes ao Grammy Latino, provocando-a:

– Diga, Maria Gadú, o que você me disse! 

– Tudo bem com você? – tentei quebrar o gelo.

– Tudo... – disse a artista de um jeito tímido, inesperado até – Ano que vem, se o projeto for adiante, eu queria muito participar.

– Quem você imagina homenagear? 

– Renato Russo, Cazuza... Cazuza é mais... Tem o lado da rebeldia e tem coisas muito doces... 

 

Magdala, Naná, Monique e Maria Gadú

Quando Cazuza pegou um trem para as estrelas, em 1990, aos 32 anos, Maria Gadú tinha apenas três. Fiquei então sabendo que, mesmo sem vê-lo de perto, as imagens disponíveis na Internet, os discos e DVDs, contendo mais de duas centenas de canções – sobretudo as compostas nos oito anos de carreira-solo, após ter deixado o Barão Vermelho – mexeram com o coração da menina paulistana.  

 

Grande revelação de 2009, ano em que lançou seu primeiro álbum, Maria Gadú já havia gravado dois álbuns de estúdio (um deles, por coincidência, com Caetano Veloso) em apenas quatro anos de carreira. 

 

No circuito que encantou plateias em várias cidades, Maria Bethânia deu voz a Chico Buarque de forma esplêndida, Sandy revisitou a obra de Michael Jackson e Lulu Santos ofereceu versão mais dançante de parte do repertório da dupla Roberto e Erasmo Carlos. 

 

Com novo nome (BB Covers), voltaria à cena em 2013. Um quinteto de figurões "carimbados" do rock nacional, formado por Dado Villa-Lobos (Legião Urbana), João Barone (Os Paralamas do Sucesso), Leoni (Kid Abelha), Toni Platão e pelo produtor musical Liminha (ex-Mutantes), faria uma homenagem aos Beatles. Zeca Baleiro celebraria a obra de Zé Ramalho e Maria Gadú cantaria algumas das mais belas letras de Cazuza. 

 

A temporada fecharia no primeiro domingo de dezembro de 2013, no teatro Vivo Rio, por acaso o mesmo local onde, para mim, tudo começara. 


Numa triste coincidência, Maria Gadú sobe ao palco para celebrar a obra de Cazuza no dia seguinte à morte de João Araújo, pai do poeta-cantor.

Cazuza, Lucinha e Joao Araújo

João Araújo foi um dos executivos mais importantes da indústria fonográfica. Durante 40 anos, esteve à frente da gravadora Som Livre, das Organizações Globo. Com passagem por Copacabana Discos, Odeon (EMI) e Philips (Universal), era tido como grande descobridor de talentos. Tanto que lançou nada menos que Nara Leão, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Lulu Santos, Novos Baianos e, meio que a contragosto (teve que se render aos fatos), o seu próprio filho, Cazuza, com o Barão Vermelho

De muletas ou sentada num banquinho, Maria Gadú solta a voz delicada e intensa, faísca no palco escuro e faz uma magistral releitura de clássicos dos anos 80, como: "Todo o amor que houver nessa vida", "Ideologia", "Exagerado", "Faz parte do meu show", dentre outros.


De repente, canta 'Codinome beija-flor', e lembra que "...a emoção acabou/ que coincidência é o amor/ a nossa música nunca mais tocou..."

 

Maria Gadú: BB Covers, Rio, dezembro/2013

Ela, que também fazia parte do time da Som Livre, ao falar de coincidência e de amor, oferece ao pai o tributo que prestava ao filho: “Quero dedicar este show a João. Se ele não tivesse entrado em minha vida, tudo poderia ter sido diferente”.

 

Sei que "o império mais poderoso e fatal que existe é o das circunstâncias", como dizia o Marquês de Maricá (17731848). Sei também que é difícil para muita gente acreditar em coincidência, mas para mim é mais difícil acreditar que ela não existe. Faz parte do show.