quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Eu sei e você sabe

Ele fingia na maior cara lisa! No Carnaval de 1972, deu a entender que gostava da folia e não largou minha mão nos três bailes, chegando a assobiar, no último dia, “Oh, quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar... É de fazer chorar!”. Na hora, não percebi que o assobio era mais sinal de alívio e ironia.


Filho de um colega de trabalho de meu pai, eu o conheci ainda criança numa cidadezinha do interior, jogando futebol-de-botão com meus primos. Festeira desde cedo, quatro anos depois, naquele Carnaval, pensei com meus brincos e pulseiras: “Taí o cara!”. Se bem que nada rolou além de alguns abraços encabulados. Nem sequer um beijo – na época, matava-se a sede gole a gole –, mas me fez deixar de lado um relacionamento que eu mal começara com um rapaz bem mais velho que eu, que viajou em pleno feriadão. 

 

O “cara” era alto, magro, queimado de sol e faria 14 anos no final do mês. Na madrugada de Quarta-Feira de Cinzas, ele propôs:

– Fale com sua mãe… Passe lá em casa semana que vem, no sábado... 

– Por quê?

– A turma do bairro vai lá curtir os discos de Tim Maia, Roberto Carlos, The Fevers... Comemorar meu aniversário.

 


Dias depois, na base de dois-pra-lá-dois-pra-cá, dançávamos ouvindo a voz rasgada de Tim: “...Vou pedir pra você ficar/ Vou pedir pra você voltar... A semana inteira fiquei esperando/ Pra te ver sorrindo/ Pra te ver cantando...” E ele se fez de sonso:

– Quer?

– O quê? – me fiz inocente, mesmo correndo o risco de vê-lo me oferecer um pastel com guaraná.

– Você sabe...

– Sei não... Fale!

– Namorar…


Passamos o resto da adolescência tentando nos conhecer e fazendo planos. Em nada nos parecíamos. Ele, depois que o pai se foi, aprendeu a beber e a fumar, deixou o cabelo crescer e só estudava o bastante para passar de ano. Em 1974, resolveu trabalhar num banco e em pouco tempo queria se casar. Eu, fingindo não ter pressa, queria ser médica. Mas todos diziam que ele me completava e vice-versa. Mesmo fingindo gostar de dançar, de ir à praia...

 

No Natal de 1976, aos 19 anos, eu escondia a barriga com flores no trajeto entre a porta e o altar da capela. Era a segunda estação de uma viagem com destino incerto. Partimos num trem sem freios, sem padrinhos importantes nem crédito na praça, mas com o coração bem repartido entre a esperança e a razão.

 

Na viagem, demoramos alguns anos em cinco cidades diferentes e conhecemos, pelo menos, outras 45 pelo mundo afora. Entre 1977 e 1984, chegaram nossos três filhos. De 2008 a 2017, nossos seis netos. Queríamos ser pais e avós exemplares, mas fomos e somos aquilo que conseguimos ser. Nada mais.

 

Tem gente que até hoje me pergunta como é possível ficar tanto tempo com a mesma pessoa. Digo que não sei, ninguém sabe, mas imagino (sem muita convicção) que parte do segredo tenha sido nunca contar com a harmonia perfeita. Depois dos desencontros de opinião, é respirar fundo e jogar os dados novamente.

 

Não existe receita pronta. Sou instável, ele também, assim como nossos filhos e netos, o céu, o mar, tudo e todos. Preservar uma relação não é fazê-la morna, insossa, mas respeitar o vento, na tormenta e na calmaria. Os dois precisam arredondar quinas todo dia (e o dia todo, em caso de isolamento social inesperado), aparar as unhas, interessar-se por coisas que jamais teriam pensado em fazer antes do apito de partida do trem.


Acontece que isso requer doses generosas de maturidade, paciência e renúncia, que não se encontram na farmácia ou no supermercado. Vez por outra, pergunto a algumas amigas: há quanto tempo você não tenta conquistar de novo seu homem como se tivesse acabado de conhecê-lo? Por que insiste em falar de quilos e rugas que se vão acumulando desde o começo da viagem?

 


Descobri com o passar das estações que o importante não é ser a primeira mulher na vida de um homem, mas a última, a definitiva. E vice-versa. E até hoje faço de conta que não percebo o quanto ele sabe ser dissimulado, mesmo dizendo não ser poeta. 


Há sete anos, por exemplo, pouco antes de me aposentar, arrumava as gavetas num fim de tarde (por coincidência, meu aniversário) quando recebi uma mensagem com link para uma canção de Tom/Vinicius que acabou virando trilha sonora dessa viagem ainda com destino incerto (ouça aqui).

 

“...Eu sei e você sabe

Já que a vida quis assim

Que nada nesse mundo

Levará você de mim

 

Eu sei e você sabe

Que a distância não existe

Que todo grande amor

Só é bem grande se for triste

 

Por isso, meu amor

Não tenha medo de sofrer

Que todos os caminhos

Me encaminham pra você

 

Assim como o oceano

Só é belo com luar

Assim como a canção

Só tem razão se se cantar

 

Assim como uma nuvem

Só acontece se chover

Assim como o poeta

Só é grande se sofrer

 

Assim como viver

Sem ter amor não é viver

Não há você sem mim

E eu não existo sem você”

 

Esta semana faz 50 anos que estamos juntos. Ele nunca diz que me ama. Eu finjo que duvido.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Tiro no pé (descalço!)

No final do ano passado, a deputada federal Talíria Petrone (Psol-RJ) apresentou projeto de lei que deverá ser apreciado pelo plenário da Câmara nos próximos meses mas já provoca intensa troca de farpas nas redes sociais. A proposta, se acolhida, altera o artigo 155 do Código Penal, isto é, descriminaliza o “furto por necessidade” e define o que é “furto insignificante”.

 

O crime de furto é a subtração de parte do patrimônio de alguém sem o emprego de violência. O Código Penal prevê cadeia de um a quatro anos e multa. A lei ainda admite o aumento da pena para quem furta durante a noite, horário em que as pessoas costumam dormir. Mas quando se trata de pequeno valor, permite a redução da pena ou até o perdão, aplicando-se apenas multa.

 

A justificativa para desqualificar o crime de furto é o recrudescimento da miséria nos últimos anos. O projeto caracteriza furto por necessidade quando “algo for subtraído em situação de pobreza ou extrema pobreza para saciar a fome ou necessidade básica imediata (água, remédio, por exemplo) do responsável pelo ato ou de sua família”. 

 

E será considerado furto insignificante se a perda do ofendido for irrelevante em relação a seu patrimônio total (algo como um bilhão de dólares, no caso do dono do Facebook). 

 

No documento, que já se encontra na Comissão de Justiça e de Cidadania desde 04/02/2022, a deputada pondera que o crime de furto corresponde apenas a 11,7% da população encarcerada, mas aumenta a superlotação nas prisões. E põe o dedo também na ferida do encarceramento seletivo brasileiro, onde negros e pobres têm bem mais dificuldade de acesso à defesa no sistema prisional.

 

Na contramão desse retoque cosmético na lei, que pretende tornar menos injusta uma das nações mais desiguais do planeta, li outro dia que nos últimos três anos a quantidade de armas em circulação no Brasil aumentou mais de 300% depois que se facilitou o acesso a elas. 

 

Ou seja, ainda que o projeto de lei seja aprovado, já está aberta a porteira para o revide a bala por parte daqueles que se julgam ofendidos por essa modalidade de furto, mesmo que não haja ameaça, violência ou qualquer tipo de arma. O ladrão de galinha (se é que sobrou algum), coitado, pode ser liminarmente condenado à morte, em ato de pretensa legítima defesa do dono do galinheiro.

 

Pouca gente se deu conta de que o Brasil já atingiu a marca de mais de 1,85 milhão de colecionadores de armas, atiradores esportivos e caçadores, segundo os institutos Sou da Paz, de São Paulo, e Igarapé, do Rio de Janeiro.

 

E pior – se é que pode piorar! – é que possuem licença especial para comprar. A lei permite que adquiram até 60 armas, sendo que metade delas de uso restrito, como um fuzil capaz de produzir 750 disparos por minuto. Além da compra anual de até 180 mil balas. 

 

Morro sem entender o que pretendem esses colecionadores e atiradores esportivos, admitindo-se que faça algum sentido em relação aos caçadores (menos para a caça, óbvio!).

 

Caçadores, aliás, podem comprar até 30 armas e até seis mil balas. Já para os colecionadores a lei não impõe limites. Diz apenas que podem adquirir até cinco peças de cada modelo de arma e seis mil balas. Como existem centenas de modelos, fico imaginando o tamanho do arsenal que cada “gatilhomaníaco” pode empilhar.


Com esse cheiro de pólvora no ar, outra encrenca séria merece cinco minutos de reflexão: a facilidade de acesso a armas de fogo e a consolidação do desmonte da política de controle que se promoveu nos últimos anos. O assassinato de mulheres em violência doméstica ou por aversão ao gênero da vítima (misoginia) tem como “instrumento” principal o disparo de arma de fogo. Só não enxerga quem, por estupidez ou má-fé, não quer enxergar: arma em casa pode até proteger, mas também arma bandido, inclusive doméstico. 

 

O projeto da deputada, portanto, pode ser um tiro no pé. E também um tiro no escuro (sem trocadilho, por favor!). Para mim, não será surpresa se decidirem aprová-lo com a condição de que também seja acolhida uma proposta do Executivo (PL 3723/2019) que flexibiliza o registro, a posse e o comércio de armas de fogo e munições, escancarando de vez o risco de matança indiscriminada de miseráveis.

 

Talvez até já se cogite abortar o projeto da parlamentar, temendo-se o extermínio em massa de ladrões de goiabas e mangas. Caso contrário, a pretexto de acabar com a fome por outros meios e modos, vai ter neurótico a torto e a direito abatendo beija-flor com tiro de bazuca.


Se ainda estivesse entre nós, o escritor uruguaio Eduardo Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, diria mais uma vez que "A justiça é como uma serpente; só morde os pés descalços". Existem várias formas de se dizer isso, nenhuma com tanto veneno e maestria.


Vai-se ver já existem “sábios” de gabinete discutindo o abrandamento de penas e prazos de prescrição para outros “pecadilhos veniais” como apropriação indébita, desvio de recursos públicos, estelionato, extorsão, falsidade ideológica, formação de quadrilha, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro, peculato, prevaricação, rachadinhas, sonegação e suborno. 

E rindo da cara de bestas como eu, aqui especulando aonde tudo isso vai dar. 

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Golaço de ombro

Mal começa o ano e Roberto Dinamite, com o rosto pálido, olhos sem brilho, anuncia o início de tratamento para tentar derrotar tumores no intestino. E na onda de solidariedade que se forma, aparece Zico, no Instagram: “Bob, amigo... Você sempre foi um guerreiro e vai vencer mais essa luta fazendo um gol de placa... Queremos você sempre com o seu sorriso...”


Conheci Dinamite na noite de 06/10/2013, no Aeroporto JK, em Brasília. Ele, presidente do Vasco da Gama, chefiava a delegação do clube, que acabara de empatar em 1x1 com o Flamengo, no estádio Mané Garrincha. Eu participaria de uma reunião de trabalho na manhã seguinte, no Rio, e aguardava o embarque quando ele se sentou ao meu lado. 

 

Tomei a iniciativa de me apresentar. Logo, ele quis saber se havia como a “minha” empresa patrocinar “seu” clube sem a exigência de certidões negativas requeridas pela Caixa Econômica. Esclareci que a regra valia para todas as estatais envolvidas com marketing esportivo. E tocamos a conversa com amenidades, eu fingindo ser natural estar diante do maior ídolo esportivo de minha vida. 

 

A prosa ganhou cores e dores quando recordei momentos marcantes de sua trajetória profissional – boa parte extraída nas transmissões esportivas da Rádio Globo, no Jornal dos Sports ou na revista Placar. Alguns fatos nem ele lembrava, a ponto de brincar comigo: “Você sabe mais sobre minha carreira do que eu!” E sorriu largo, marca registrada do lendário artilheiro com mais de 700 gols em 1.110 jogos com a camisa vascaína, entre 1971 e 1989. 

 

Não era um centroavante técnico como Tostão, Reinaldo, Careca ou Romário, mas, de sua geração, nenhum fez tantos gols, graças ao porte físico privilegiado, à capacidade de colocar-se bem na área adversária, de antecipar-se aos marcadores e à potência explosiva do arremate, além de, a custo de muito treino, transformar-se em exímio batedor de faltas e pênaltis. 

 

Para Waldir Amaral, ícone do rádio esportivo, era “Dinamite... A camisa com cheiro de gol!”. Para Zico, "o atacante com quem melhor me entendi em jogos da Seleção". Os deuses do futebol, no entanto, tinham outros planos. Não permitiram que a dupla sequer tentasse evitar o fracasso nas duas Copas do Mundo em que estiveram juntos. 



 

Em 1978, na Argentina, Zico sentiu o peso dos gramados castigados pelos rigores do inverno e, substituído pelo esforçado Jorge Mendonça, viu do banco de reservas Dinamite balançar três vezes as redes adversárias, inclusive na vitória contra a Áustria, que livrou o Brasil de voltar para casa ainda na primeira fase.


E em 1982, na Espanha, Roberto descartado pelo treinador Telê Santana – que apostou no tosco Serginho Chulapa –, assistiu das arquibancadas o Brasil perder para a Itália sem ter a chance de atuar 10 ou 15 minutos ao lado de Zico, Falcão, Sócrates, Leandro e Júnior, craques que em um palmo de campo e uma fração de segundo poderiam com Dinamite explodir a muralha italiana e desviar o rumo da história.

 

A conversa flanava por aí quando ele se referiu a Zico. Os dois são amigos há mais de meio século. “O Galo foi o maior jogador de meu tempo. Nós começamos na mesma época, no juvenil. Não foi só a relação Roberto e Zico. Os pais dele, seu Antunes e dona Matilde, iam sempre ao Maracanã vê-lo jogar na preliminar e os meus pais também iam me ver jogar”.


Disse mais: “Eu não o chamo de Zico, chamo de “Galo”. E ele não me chama de Roberto, mas de “Bob”. É uma relação diferente e a gente até brinca que não precisávamos falar mal um do outro para levar 100 mil, 150 mil pessoas ao Maracanã. Crescemos assim. Adversários em campo, mas, acima de tudo, amigos”. 

Evitei tocar num ponto quase trágico. Em 1972, aos 18 anos, Dinamite apaixonou-se por Jurema, viúva e com um filho, seis anos mais velha que ele. A família dele não aceitou o romance e isso o atormentava bastante. Um dia, então, quase marca um gol contra, segundo a revista Placar: engoliu de uma vez vários comprimidos que sua mulher usava. 


“Eu vinha guardando aquela angústia só para mim. Tomei uma dose reforçada de calmante, mas não tinha a intenção de me suicidar... Só queria dormir uns dois dias seguidos para me desligar do mundo” – declarou à Placar. Jurema, que o levaria às pressas ao hospital naquele dia, morreu em 1984, precocemente, vítima de insuficiência renal crônica, deixando órfãs três crianças.

 

Quase tudo passa. Dinamite casou-se de novo e, mais adiante, em 1993, fechou a carreira de futebolista, virou político (vereador e deputado estadual) e dirigente esportivo. Hoje, aos 67 anos, ocupa cargo honroso e intransferível: avô de Valentina e Bento.

 




O Galo, querido amigo de meu ídolo, sabe quanto um ombro é importante para o gol de placa pelo qual ele torce. Quem sabe assim o velho Bob volte a sorrir largo com as cores, as dores e os sabores da prorrogação do jogo. E aí iremos todos cantar de coração...

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Bagunça das boas

Semana passada toquei no assunto, mas sem maiores detalhes. Durante certo tempo, aos sábados, juntávamos dez irmãos na casa da matriarca para beber cervejas, falar de conquistas e frustrações e ouvi-la de novo a nos convocar à velha mesa onde ajoelhávamos diante do panelão do dia, mesmo depois de casados e da chegada das primeiras crias de uma nova geração. 

 

Etiqueta nenhuma! Quase todos colocavam os cotovelos sobre a mesa. Embora a atitude passasse um ar de desleixo, era importante garantir espaço roubando daqueles que estavam ao lado, sob pena de perder os melhores pedaços. Manter os cotovelos junto ao corpo, apoiando apenas os antebraços ou os punhos, como reza qualquer manual de bons modos, poderia levar o bem-educado a deixar a mesa com fome, procurando reforço de cream crackers

 

Ilustração: Umor

Ninguém usava adequadamente os talheres. Não adiantava a mãe lembrar que o garfo deveria ser usado na mão direita, enquanto a faca descansava na parte superior do prato, com a serra voltada para dentro. Ou que quando precisasse usar faca, o garfo iria para a mão esquerda e a faca para a mão direita. Que a faca não deveria ser usada para ajudar a colocar a comida no garfo etc. 

 

Teve a namorada de um de meus irmãos que tentou explicar aos cunhados mais novinhos – na esperança de sensibilizar também os mais velhos, claro! – que se deveria manusear os talheres com os dedos e cortar o alimento à medida que fossem comendo. Depois que se começasse a comer, “os talheres jamais devem tocar a mesa”, dizia com jeitão de professora de ensino fundamental. 

 

De nada adiantou. Uns não controlavam a ansiedade enquanto a comida não era servida e faziam dos talheres baquetas sobre os pratos transformados em tarol, caixa e surdo de uma banda marcial de desfile escolar até ouvirem a ordem unida da “baliza” com o caldeirão de cozido fumegante nas mãos: “Parem com isso, agora!”. E ai de quem tentasse um dobrado a mais simulando uma corneta com a boca!

 

Também não ouviam a matriarca pedir para que se servissem aos poucos quando a comida chegasse à mesa, que não deixassem o prato transbordar. Não botavam fé nessa história de que, se continuasse com fome após o primeiro prato, poderia repetir. Na hora, ninguém se preocupava muito com terceiros, embora fossem forjados desde cedo a calcular mentalmente quantas porções havia para cada membro da família, não se servindo de forma exagerada a ponto de deixar um irmão com fome.

 

Outro conselho repetido em vão era para mastigar devagarinho, em pequenas garfadas e sempre de boca fechada, ainda que se argumentasse que não haveria uma pausa muito grande até engolir o alimento para poder voltar a conversar. “Quem come devagar fica sem pudim, vó!”, ponderou certa vez um netinho que mal aprendera a falar.

 

Uma vizinha que gostava de aparecer justamente na hora do almoço certo dia alertou: “Jamais gesticulem com os talheres na mão enquanto mastigam ou conversam. Além disso, evitem gestos bruscos. Levem o alimento até a boca e não a boca até o alimento”. Enquanto discursava, quase teve a mão perfurada por um garfo nervoso em busca de uma moela de galinha.

 

E teve outra que pecou pela incoerência: “Não peguem carnes com ossos, como costela de boi, frango e carneiro, com as mãos. Usem garfo e faca. Tirem o caroço de azeitona da boca com a ponta do garfo e coloque-o na beira do prato, nunca sobre a mesa”. Logo depois era vista roendo uma costeleta de porco, para decepção da cadelinha vira-lata que integrava o arranjo familiar e que parecia dizer: "ah, esses animais racionais!" 

 

Ninguém ligou quando a vizinha prosseguiu dizendo que não se deveria cortar o macarrão. “O talharim e o espaguete são servidos inteiros e comidos com garfo. Comecem a enrolar pelas bordas do prato e não pelo centro, senão a garfada ficará grande demais. Ao levar à boca, se alguns fios ficarem pendurados, simplesmente corte-os com os dentes”. 

 

Até uma de minhas irmãs, um dia, achou de orientar os sobrinhos para que dobrassem a alface e outras folhas antes de comer. “Façam trouxinhas e coloque-as na boca delicadamente...” Um deles olhou-a dos pés à cabeça e provocou gargalhadas: “Olhe, tia... Sei não, viu?!”

 

Desde cedo a matriarca exigia que evitássemos ruídos ao tomar caldos, canjas, sopas e outros líquidos. “Nunca levante o prato para tomar até a última gota. E se houver pão para acompanhar o prato, parta e coma com a mão”, ensinava. Mas se alguém lembrasse que ninguém fazia como ela uma sopa de feijão, entregava os pontos sorrindo inclusive com os olhos: “Cê acha? Por quê?  

 

De um dos últimos encontros de que me recordo, ela nos recomendava que qualquer imprevisto que surgisse, como um pedaço de folha de alface grudado no dente, fôssemos discretamente ao banheiro resolver o problema. E uma das netinhas foi logo pedindo maiores detalhes: “Vó, só folha, né? Pode soltar arroto e pum?”