Ele fingia na maior cara lisa! No Carnaval de 1972, deu a entender que gostava da folia e não largou minha mão nos três bailes, chegando a assobiar, no último dia, “Oh, quarta-feira ingrata, chega tão depressa, só pra contrariar... É de fazer chorar!”. Na hora, não percebi que o assobio era mais sinal de alívio e ironia.
O “cara” era alto, magro, queimado de sol e faria 14 anos no final do mês. Na madrugada de Quarta-Feira de Cinzas, ele propôs:
– Fale com sua mãe… Passe lá em casa semana que vem, no sábado...
– Por quê?
– A turma do bairro vai lá curtir os discos de Tim Maia, Roberto Carlos, The Fevers... Comemorar meu aniversário.
Dias depois, na base de dois-pra-lá-dois-pra-cá, dançávamos ouvindo a voz rasgada de Tim: “...Vou pedir pra você ficar/ Vou pedir pra você voltar... A semana inteira fiquei esperando/ Pra te ver sorrindo/ Pra te ver cantando...” E ele se fez de sonso:
– Quer?
– O quê? – me fiz inocente, mesmo correndo o risco de vê-lo me oferecer um pastel com guaraná.
– Você sabe...
– Sei não... Fale!
– Namorar…
Passamos o resto da adolescência tentando nos conhecer e fazendo planos. Em nada nos parecíamos. Ele, depois que o pai se foi, aprendeu a beber e a fumar, deixou o cabelo crescer e só estudava o bastante para passar de ano. Em 1974, resolveu trabalhar num banco e em pouco tempo queria se casar. Eu, fingindo não ter pressa, queria ser médica. Mas todos diziam que ele me completava e vice-versa. Mesmo fingindo gostar de dançar, de ir à praia...
No Natal de 1976, aos 19 anos, eu escondia a barriga com flores no trajeto entre a porta e o altar da capela. Era a segunda estação de uma viagem com destino incerto. Partimos num trem sem freios, sem padrinhos importantes nem crédito na praça, mas com o coração bem repartido entre a esperança e a razão.
Na viagem, demoramos alguns anos em cinco cidades diferentes e conhecemos, pelo menos, outras 45 pelo mundo afora. Entre 1977 e 1984, chegaram nossos três filhos. De 2008 a 2017, nossos seis netos. Queríamos ser pais e avós exemplares, mas fomos e somos aquilo que conseguimos ser. Nada mais.
Tem gente que até hoje me pergunta como é possível ficar tanto tempo com a mesma pessoa. Digo que não sei, ninguém sabe, mas imagino (sem muita convicção) que parte do segredo tenha sido nunca contar com a harmonia perfeita. Depois dos desencontros de opinião, é respirar fundo e jogar os dados novamente.
Não existe receita pronta. Sou instável, ele também, assim como nossos filhos e netos, o céu, o mar, tudo e todos. Preservar uma relação não é fazê-la morna, insossa, mas respeitar o vento, na tormenta e na calmaria. Os dois precisam arredondar quinas todo dia (e o dia todo, em caso de isolamento social inesperado), aparar as unhas, interessar-se por coisas que jamais teriam pensado em fazer antes do apito de partida do trem.
Acontece que isso requer doses generosas de maturidade, paciência e renúncia, que não se encontram na farmácia ou no supermercado. Vez por outra, pergunto a algumas amigas: há quanto tempo você não tenta conquistar de novo seu homem como se tivesse acabado de conhecê-lo? Por que insiste em falar de quilos e rugas que se vão acumulando desde o começo da viagem?
Descobri com o passar das estações que o importante não é ser a primeira mulher na vida de um homem, mas a última, a definitiva. E vice-versa. E até hoje faço de conta que não percebo o quanto ele sabe ser dissimulado, mesmo dizendo não ser poeta.
Há sete anos, por exemplo, pouco antes de me aposentar, arrumava as gavetas num fim de tarde (por coincidência, meu aniversário) quando recebi uma mensagem com link para uma canção de Tom/Vinicius que acabou virando trilha sonora dessa viagem ainda com destino incerto (ouça aqui).
“...Eu sei e você sabe
Já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo
Levará você de mim
Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos
Me encaminham pra você
Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você”
Esta semana faz 50 anos que estamos juntos. Ele nunca diz que me ama. Eu finjo que duvido.