quarta-feira, 27 de julho de 2022

A mais radical das virtudes

Filho de uma família humilde de operários, ele nasce com paralisia cerebral. Apesar de tetraplégico, aos cinco anos descobre que tem controle sobre seu pé esquerdo e usa giz para rabiscar palavras no chão. Com este único membro “ativo”, muita determinação e a ajuda da mãe, supera as limitações e torna-se pintor, poeta e autor. 

 

Eis a sinopse de My Left Foot (O Meu Pé Esquerdo), filme baseado na obra homônima do irlandês Christy Brown. Sucesso nos anos 1990, acabo de revê-lo e parei para divagar não sobre as restrições físicas do protagonista, mas sobre a circunstância de ser canhoto, tal como um de meus netinhos.

 

Dizem que cerca de 10% da população mundial é canhota, isto é, algo próximo de 800 milhões de pessoas (quase quatro “brasis”). Mesmo assim, aqueles com mais habilidade do lado esquerdo do corpo sofrem para se encaixar num mundo “feito” para a maioria destra.

 

Soa absurdo, mas, na Idade Média, mulheres canhotas foram implacavelmente perseguidas: as acusações de bruxaria se baseavam na relação estabelecida nos textos antigos entre o lado esquerdo e o pecado. Nem parece que a palavra latina sinister (esquerdo) significava “sortudo”. Tanto que italianos e franceses deram ao termo um sentido depreciativo: esquerda, na Itália, é sinistra; na França, gauche é algo desajeitado. 

 

Já na era moderna, pais e mestres forçavam as crianças a usarem a mão direita ao invés da esquerda. Caso emblemático é o do ex-jogador de futebol Romário. Quem o via concedendo autógrafos percebia que se tratava de um canhoto nato. Possivelmente foi obrigado, pelo Seu Edevair de Souza Faria, a “trabalhar” mais a perna direita e “esqueceu” a outra. 

 

Algumas teorias tentam explicar a existência de canhotos. Uma diz que o principal motivo está no ventre da mãe, e a causa seria hormonal. Outra, que se trata de comportamento de origem genética. Que além dos membros, canhotos possuem maior acuidade noutras partes do lado esquerdo, como a visão e a audição. Diz-se ainda que os canhotos possuem melhor noção espacial e são melhores com números e matemática, além de mais criativos e ousados. Da Vinci, Beethoven, Mozart, Einstein, Picasso, Fidel, McCartney, Gates, Oprah Winfrey, Senna, Obama, Fátima Bernardes, por exemplo. 

 
















Quando criança, eu quis ser canhoto ao ver craques como Gérson, Rivellino e Tostão. Já tinha ouvido de meu pai muitas histórias acerca de Pepe. Não penso mais nisso, claro, mas exceto o “maior-de-todos” (Pelé, apesar de destro, conseguia proezas com o pé esquerdo), a lista de canhotos extraordinários só aumentou de lá pra cá: Maradona, Éder, Djalminha, Rivaldo, Roberto Carlos, Alex, Messi, Griezmann, Salah, Marta, Ganso etc.
 

Pelo lado prático, nem imaginei como seria lidar com abridores de lata, maçanetas, zíperes, ou escrever sobre uma carteira escolar com a mesinha do lado direito da cadeira. Pior: teria que deitar o caderno e ficar com a mão toda suja de tinta depois das anotações. E se fosse chamado a resolver alguma questão no quadro, será que a mão viria apagando tudo o que havia escrito? 


Uma hora me dei conta de que craques e pernas-de-pau existem aos montes, destros ou sinistros. Só os obscurantistas veem sentido em aquilatar o valor de alguém a partir do lado mais ativo do corpo ou da mente.  



Marcelo, amigo meu, me contou outro dia que, quando menino, durante meses a mãe o quis ensinar a amarrar os cadarços do Kichute. Em vão. Descobriu depois que o método materno de ensino era para destros e aprendeu em cinco minutos. Simples.

 

Falou também dos transtornos até se acostumar com espirais de cadernos e tesouras. E de quando erguia a mão esquerda para traçar o sinal da cruz diante da capela do bairro ou ao ser apresentado a alguém. Era inevitável o constrangimento.

 

O embaraço persistiu ao lidar com a alavanca das colheres de sorvetes, que exige esforço adicional dos canhotos. Tal como utilizar o mouse do computador. Aliás, quando ele começou a trabalhar, vivia trocando o lado do teclado com o do mouse, com o chefe a reclamar que não estava fazendo o certo.

 

Contou ainda que até hoje “escuta” a mãe a lhe repreender em sonhos: “meu filho, Nosso Senhor nos diz, entre outras coisas, que a caridade se faz com a mão direita; quando você der esmola, que sua mão esquerda não saiba o que fez a direita”.



Pois bem. Se um de meus netinhos nasceu canhoto, preciso registrar que outro já havia nascido daltônico e não enxerga qualquer diferença entre o vermelho e o verde. E que já aprendi com eles o suficiente para entender que o lado preferido de cada um – esquerda e direita – e as cores que vestem não mudam a sua essência. 


Nesses tempos difíceis que lhes foi dado crescer e amadurecer, sei que o primeiro ar que se respira já contém as impurezas do mundo, mas torço para que preservem essa versão mais pura de encarar a vida e ser feliz, com muitas dúvidas e poucas certezas. A tolerância, afinal, ainda é a mais radical das virtudes.

 


quarta-feira, 20 de julho de 2022

Tem mau cheiro no ar

Antes que a tormenta eleitoral que vem por aí ofusque nossas preocupações particulares e coletivas, é preciso refletir sobre algumas feridas da amada pátria que ora mais parece uma carroça na chuva, descendo ladeira abaixo, sob o "controle" de um pangaré com os cascos encerados. 


Deus é testemunha de que nem mesmo eu boto tanta fé em que só refletir sobre essas feridas vá resolver alguma coisa. É preciso, antes de tudo, uma improvável trégua entre lados opostos (ambos convencidos de suas verdades imutáveis), como cicatrizante das diferenças de opinião.

 

Claro que, se recebesse um mandato divino, eu mesmo sairia por aí a fazer justiça com minhas próprias mãos, distribuindo pão e terras aos famintos e mal pagos, além de compaixão e generosidade para os mais abonados, até para contradizer quem acha que Ele “é um gozador, adora brincadeira, pois pra nos jogar no mundo tinha o mundo inteiro, mas achou muito engraçado nos botar cabreiros e na barriga da miséria nascemos brasileiros”.

 

Acontece que a amada pátria, ainda estarrecida com a barbárie de dois crimes repugnantes (fadados ao esquecimento daqui a pouco), vê explodir toda semana novos mísseis devastadores, daqueles que não só destroem prédios e pontes, mas também o que resta de dignidade de uma nação.

 

Discutia-se nos bares e lares a diferença de duas abordagens policiais: a de um homem negro, pobre, que trafegava sem capacete numa motocicleta e acabou morto por asfixia no porta-malas de uma viatura em Sergipe. A outra, de um homem branco, que estuprou uma mulher em seu mais sublime momento, anestesiada – dopada talvez fosse o termo mais apropriado – durante o parto. Parecia que o segundo estava sendo convidado a tomar um chope num quiosque qualquer da Barra da Tijuca.

 

Nisso, logo após a derrota do Flamengo no jogo de ida contra o Atlético-MG pela Copa do Brasil, no Mineirão, um jogador rubro-negro, ainda no gramado, declara algo inesperado partindo de um ídolo esportivo de vulneráveis: "Lá eles vão conhecer o que é inferno!". Referia-se ao ambiente que se deveria criar no Maracanã no jogo de volta. 

 

O Galo não jogou nada e o Urubu nem precisou ser espetacular para vencê-lo: bastou empenhar-se do começo ao fim, atacando em bloco com velocidade, marcando firme e contando com mais uma atuação de gala de um uruguaio humilde e talentoso, autor dos dois gols da vitória. Mas, e se o Flamengo perdesse, como reagiria a massa contra os adversários ou mesmo em relação a seus próprios ídolos?   

 

Na noite seguinte, Cássio, 35 anos, o maior goleiro da história do Corinthians, sofreria uma voadora, pelas costas, de um torcedor santista que, inconformado com a desclassificação de seu time, invadiu o campo da Vila Belmiro. Chateado, ele repetiu numa entrevista aquilo que está cada dia mais óbvio (ululante, no dizer de Nelson Rodrigues): "Falta pouco para uma tragédia"

 









Sabe que poderia ter sido vítima fatal se o agressor estivesse com um canivete, um caco de vidro ou um pedaço de vergalhão. Vai-se ver lembrou de que em fevereiro o ônibus da delegação do Grêmio Porto-alegrense – clube onde começou sua carreira – fora apedrejado pela torcida do Internacional ao chegar no estádio Beira-Rio e alguns jogadores ficaram feridos. O meio-campista chileno Villasanti chegou a ser levado ao hospital, sob suspeita de concussão.

 

"A gente tá duvidando que isso possa acontecer", arrematou Cássio. Logo ele que, também em abril passado, teve de registrar boletim de ocorrência policial por haver recebido ameaças pelas redes sociais, num momento adverso de seu clube. O resultado das investigações? O mesmo do inquérito aberto pelo STF para investigar a existência de fake news na cena política brasileira.   

 

Quem acompanha futebol mais de perto recorda que, no começo deste ano, durante a partida entre Palmeiras e São Paulo pela Copa São Paulo de Futebol Júnior, um atleta do Verdão encontrou uma faca no gramado, invadido por torcedores do Tricolor. Claro, não era um utensílio de trabalho esquecido pelo jardineiro da Arena Barueri.

 

Esses casos estão cada vez mais frequentes e absurdamente ousados. Medidas como torcida única nos jogos mais importantes ou proibição de bandeiras nos estádios, soluções adotadas em São Paulo, mostram-se ineficazes e só evidenciam a má-vontade do poder público e dos dirigentes de clubes em resolver o problema.

 

O embrutecimento generalizado é mais preocupante porque, noutras esferas tão explosivas quanto futebol e religião, incentiva-se abertamente o clima de guerra, desacreditam-se as instituições e incitam-se potenciais criminosos por meio do afrouxamento de regras mínimas de civilidade como o controle de armas. 

 

Como o pior do clima futebolístico está presente nos aspectos mais importantes da vida nacional, recorro de novo a Nelson Rodrigues, citado por Ruy Castro na Folha de S.Paulo de 16.07.22: "Quando os amigos deixam de jantar com os amigos por causa da ideologia, é porque o país está maduro para a carnificina".

 

Cássio está certo: tem mau cheiro de tragédia no ar.  

quarta-feira, 13 de julho de 2022

Botinas, afagos e batinas

Andei lendo sobre o Brasil de dois séculos atrás, nos primeiros anos de independência, quando a Igreja abriu centenas de processos com pesadíssimas acusações contra o clero e inúmeros religiosos. As denúncias mais corriqueiras eram sobre crimes de fornicação (ato sexual que acontece entre não cônjuges), concubinato (união sem reconhecimento legal) e interpretação tendenciosa das escrituras em assuntos relacionados a sexo.

 

A bagunça era tanta que um certo dom Antônio Viçoso, bispo de Mariana, Minas Gerais, só faltou ajoelhar-se aos pés de seus superiores na arquidiocese da província: “Peço o socorro de suas orações a favor de um pobre bispo que passa pela aflição de ver paróquias entregues a lobos vorazes mesmo sem peles de ovelha”. Referia-se a seu próprio rebanho: seminaristas, padres e párocos.

 

É verdade que a própria formação do clero contribuiu para esse estado de coisas. Os seminários eram vistos pelas famílias como porteira de acesso de seus rebentos ao ensino superior e à elite. Vocação à parte, era bem mais em conta do que bancar estudos de filhos no Velho Continente.  

 

Também havia dificuldades de recrutamento por força das restrições impostas para o celibato eclesiástico. Isso levou a Igreja a afrouxar os cadarços de sua pregação moralizadora, especialmente durante os ciclos do açúcar e do ouro de nossa história. 

 

O caso de José Barradas foi emblemático. Em 1795, três padres que avaliavam o seu ingresso no seminário argumentaram que era “público e notório” que ele era “concubinário e com filhos”, além de autor de “alguns latrocínios”. No entanto, o pároco da região mineira de Mariana, João Borges, concluiu que tudo não passava de “ouvir dizer e não havia prejuízo causado a qualquer pessoa”. 

 

Difícil imaginar que latrocínio não prejudicasse alguém, mas, enfim, foi a conclusão. Parece que as águas de Mariana, impregnadas de minérios, não eram lá muito bentas. 

 

Este sobrevoo panorâmico me fez recordar de uma conversa que mantive com uma querida amiga gaúcha (já falecida) no final dos anos 1970. Ela me contou que, nos idos de 1941, dois de seus irmãos viram de perto a maior enchente do rio Guaíba, que banha a cidade onde nasceram na zona metropolitana de Porto Alegre. 


O mais velho deles, de 10 anos, saíra cedinho para ver a correnteza arrastando o que encontrava nas margens. As águas subiram rápido, a tarde esfriava e nada de o menino chegar. Em meio aos rumores de que alguns corpos foram vistos boiando rio abaixo, a família cai no choro a pedir aos céus um milagre. 

 

Nisso, o irmão mais novo do sumido aparece na sala e se habilita na possível partilha de bens: “Se ele morrer, o par de botinas é meu!”. Para sua frustração, o quase afogado surge assoviando na porta de casa, no final do dia, e a vida, feito o rio Guaíba, seguiu seu curso.

 

Anos depois, dizendo-se arrependido da falta de compaixão e fraternidade durante a infância, o quase herdeiro das botinas daria a entender que se transformara em homem digno, justo, a serviço do bem: ordenou-se padre e assumiu o trabalho pastoral na própria diocese em que fora batizado.  

 

Porém nunca conseguiu conciliar a vida celibatária com sua canalhice atávica e vocacional, perceptível até nas bochechas e nos olhos empapuçados de safadeza. 


Era daqueles cujas batinas estavam sempre amarrotadas. Vivia a afagar “sem maldade” quase todas as beatas papa-hóstias que se dispunham a auxiliá-lo nas tarefas paroquiais, inclusive uma bem robusta que, mais adiante, lhe faria arfar com a língua de fora propondo casamento, de papel passado e tudo. 

 

Para a sua irmã (a querida amiga a que me reportei), tirando a filha dela, quase todas as sobrinhas haviam sido vítimas de afagos, a pretexto de lhes avaliar o desenvolvimento de mamilos e pernas, tal como fazia com outras meninotas da comunidade, sob velada ameaça de vazamento de segredos guardados desde a primeira eucaristia. 

Ele sempre negou, jurando tratar-se de algo “cruel, injusto e desigual”, como diria meio século mais tarde um certo executivo afastado da presidência de um banco público sob a acusação de assédio sexual e moral.

 




Quanto às meninas mais recalcitrantes, no escurinho do confessionário ele oferecia drops de anis como parte da penitência, desde que elas os escolhessem com as próprias mãos nos bolsos da batina. As mais espertas pulavam de banda quando descobriam, dentre os pacotes de pastilhas, que havia algo de textura um pouco diferente.

 

Depois que largou a batina, casou-se e virou fiscal de rendas na capital gaúcha, não durou nem 10 anos. A diabetes nunca combinou com sua gulodice canina, apesar de se enxergar o próprio garoto-propaganda do Suíta (o primeiro adoçante artificial lançado por aqui, para as pessoas que queriam “entrar na linha”). 

 

Se era para o bem de todos e felicidade geral da comunidade, foi-se. Antes, contudo, teve que quitar a contragosto parte de seus pecados em módicas parcelas mensais: primeiro, foram-se alguns dedos dos pésem seguida, fatias das pernas brancas e gordas; por fim, o saldo da pança, inclusive as bochechas.


Chupando drops de anis, deve agora vagar noutro escurinho, a rever o filme de tudo sentado no colo do capeta.

 

 

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Língua solta

As saias de vinco batiam no meio das canelas das meninas e já foram de várias cores: azul, bege, marrom, vinho. Os internatos femininos dos idos de 1940 a 1970 custavam os olhos da cara. Em troca, ofereciam formação e conduta. As meninas até podiam sair da clausura, mas sob a tutela de religiosas que cuidavam desde a forma de se pentear até os centímetros da roupa.


Era comum uma moça trocar de internato se outro na região oferecesse um horário mais flexível, permitisse uma inocente troca de olhares no café ou chá de casca de laranja com um rapazote, na sala de estar. Apesar dos rigores, divertiam-se. Longe de casa, dividiam quarto com amigas de outras cidades, com quem compartilhavam cochichos de dormitório sobre namorados, virgindade e casamento. 


Soube por intermédio de meu amigo Chiquinho Neto que, certa feita, madre Perpétua do Socorro, uma paulista de Barretos (capital do rodeio), radicada no Alto Sertão cearense, diretora do internato da cidade onde ele nasceu, decidiu levar suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Para ela, o circo era um lugar mágico, que remetia a vivências e sensações incríveis, fazendo crianças, jovens e até os mais velhos viajarem na beleza das cores, na alegria dos palhaços e nas acrobacias e aventuras dos trapezistas. 

 

A história circense no Brasil se inicia no século 19, período em que muitas famílias europeias chegavam e se reuniam em guetos onde, além de compartilharem vida coletiva, demonstravam suas habilidades circenses. Também com ciganos que, nômades, se apresentavam ao público de diversos lugares mostrando algumas de suas habilidades, como o ilusionismo e a doma de animais bravos.

 

Os espetáculos eram adaptados de acordo com o gosto do público. Se alguma atração não agradava aos espectadores de certa região, deixava de fazer parte da programação para aquele local. O palhaço europeu, por exemplo, na versão original era menos falante e fazia uso da mímica como base para suas apresentações. 

 

Esse modelo não funcionou bem por aqui e precisou ser adaptado para o tipo de palhaço que todos nós estamos acostumados, principalmente aqueles que atuam em circos mambembes, sem a atração de animais: fala alto, volta e meia utiliza instrumentos musicais sem muita habilidade e tenta ser engraçado de forma chula.

 

Mas voltemos àquela tarde em que madre Perpétua em carne, véu e osso, resolve levar as suas meninas para assistirem ao circo que acabara de chegar. Todas acomodadas, algodão doce e pipocas fraternalmente distribuídas, eis que o espetáculo começa com o palhaço a toda corda. À medida que o público aplaude, sobe o tom das tiradas picantes, até descambar ladeira abaixo:

– E o palhaço, o que é? 

– É ladrão de mulher!

– E a mulher, o que tem?

– Carrapato no sedém...

 

Nos rodeios, “sedém” é uma espécie de cinta, confeccionada em lã, crina de cavalo ou espuma revestida de tecido macio, que corre entre o traseiro e a virilha do touro para estimulá-lo a escoicear cada vez mais, a desafiar o equilíbrio do peão. 

 

Talvez lembrando de sua infância em Barretos, no interior paulista, madre Perpétua trata de recolher suas pombinhas inocentes e, em comitiva, busca ajuda junto à principal autoridade da cidade, depois do prefeito, do juiz e do padre: o delegado Tonho Lapada, militar reconhecido como reserva moral nas redondezas, apesar da injustiça de seus tabefes reservados apenas aos ladrões de galinha.

 

Ao chegar à delegacia, a madre superiora foi ao ponto:

– Delegado, o palhaço tá com imoralidades lá no circo. Tive que sair de lá correndo com as moças por causa dos palavrões. Onde já se viu uma coisa dessas? 

 


Ilustração: Umor








Tonho Lapada levanta-se num pulo só, beija as mãos da freira e exprime sua mais profunda revolta com o ocorrido:

– O quê?! Aquele “filadaputa” tá faltando com o respeito ao povo daqui? Vou lá agorinha fechar aquela empanada de merda! E se ele insistir, meto o pau no rabo dele na frente de todo mundo! Será que ele tá pensando que essas divisas aqui – bate os dedos indicador e médio da mão direita sobre o braço esquerdo – foram pregadas com sebo?!


E veio uma onda de suspiros e desmaios, fingidos ou não. 

 

A língua é viva. A maneira de falar se renova mais rápido do que o modo como se escreve, porque a oralidade precede à escrita e é bem mais utilizada. Render-se às mudanças na fala e na escrita é sentir de perto o idioma em movimento. 

 

Chiquinho Neto me conta também que, pouco depois que o circo e o delegado partiram da cidade, madre Perpétua foi vista conversando com uma mocinha que chegava pela primeira vez ao internato, cheirosa e bem penteada, com a saia de vinco batendo no meio das canelas:

– Minha filha, tomara que você traga de berço um linguajar castiço, polido, porque isso aqui tá de lascar! Parece um circo!