quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Adeus, "Charles Brau"

Duas semanas depois da publicação da crônica Carpenters em Alagoas (reveja aqui), onde falei sobre Braulino, meu amigo “Charles Brau”, ele partiu levando consigo o punhado de histórias e sonhos que deveria compartilhar com seus bisnetos quando eles crescessem. 



Já vinha sofrendo com um quadro gravíssimo da chamada síndrome hepatopulmonar 
 doença no fígado que provoca dilatações nos vasos sanguíneos dos pulmões —, o que lhe obrigava a usar oxigênio quase o dia inteiro. 

O transplante de fígado seria a única solução para o problema, não fossem seus 76 anos de idade. Apareceram feridas nas costas que acabaram virando porta de entrada para bactérias, resultando numa infecção generalizada.

Um pesado coquetel de antibióticos ainda lhe permitiu sair uns poucos dias da UTI. Recuperava-se na medida do possível quando foram descobertos alguns cálculos renais, parcialmente retirados. Mas passou mal no dia seguinte, voltou à terapia intensiva com sinais de nova infecção e de lá não saiu com vida.

Nem teve tempo de ler o texto de Luís André, seu filho caçula, escrito justamente no dia da retirada dos cálculos renais:

“(...) O que esperar do tempo? Esperar 90 a 94 anos para despedir-se? Seria bom... Esperar que em 15 dias a felicidade volte a habitar nosso interior, já que há dois anos ela vem diminuindo aos poucos?
São 76 anos de amor, dedicados a sua família e poucos amigos, mas todos fiéis e retos, assim como ele.


Esperar que uma vida de bons exemplos, retidão e broncas merecidas retornem? Não sei o que esperar.
Um momento de desilusão... de tristeza profunda. Na verdade, um silêncio que grita para que, se pudesse, Deus desse um pouco de minha saúde para ele. Se pudesse, lhe fizesse o que ele sempre fez comigo... netos e bisnetos.


Nada de voltar no tempo. Eu queria mesmo é que o tempo parasse lá atrás, quando tudo estava dando certo para meus pais e para mim. Assim..., aproveitaria mais sua presença até certo ponto militar — mesmo sendo professor e bancário —, a transbordar de cuidados e de amor por mim, por todos nós.

Um tempo que nos traiu, nos levou a crer num possível Alzheimer, pela saúde e pelo porte físico avantajado de seus 1,90 metros de altura e 110 kg, hoje reduzidos a míseros 80kg. 

Nunca imaginei o que estamos passando. Uma dor seca, diferente da dor de coluna que me retorcia na cama ou na minha ex-cadeira de dentista. Uma dor seca que não há remédio que diminua sua intensidade... este abismo dentro de mim. Uma dor "molhada", trata-se; mas a dor seca, ... essa nos mata.

Meu herói está combalido, suas forças reduzidas não o deixam pular para fora de uma simples cama de hospital. Na realidade, suas forças já vinham sendo drenadas por uma síndrome rara.


Nunca, jamais entenderei os planos de Deus, mas os aceitarei (...)”

Naqueles dias de angústia, incerteza e esperança, Dayse recebeu do marido um bilhete curto com orientações bem claras e objetivas:

“Em caso de morte: 
    1. Que meu corpo seja cremado e as cinzas, se forem entregues, pouco importa onde serão jogadas.
    2. Que no ato crematório, se possível, sejam executadas duas músicas:

a) Adagio for strings, de Samuel Barber. (ouça aqui)

b) Requiém – Lacrimosa, de Mozart. (ouça aqui)

Onde você estiver, meu amigo “Charles Brau”, quando encontrar o poeta Mário Quintana, lembre-o de que ainda faz todo sentido o que ele andou pregando por aqui no mundo dos vivos: “uma vida não basta ser vivida; ela precisa ser sonhada...”

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Onde anda Ana Maria?

Voltava ao Sertão paraibano às vésperas do São João de 2002. Havia morado na cidade de Patos a partir de 1961, aos três anos de idade, até mudar para Alagoas sete anos depois, seguindo meu pai em sua jornada nômade de funcionário do Banco do Brasil.

Ele, que nos anos 60 trabalhara na extinta Creai (Carteira de crédito agrícola e industrial) da agência daquele município, seria homenageado pela AABB, cuja diretoria resolveu batizar o ginásio de esportes com seu nome: Agostinho Torres da Rocha. 

Eu teria assim a chance de rever o Colégio Cristo Rei, onde aprendi a ler e a escrever; a rua Bossuet Wanderley, os armazéns da Sanbra (Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro) com seus fardos de algodão, próximos à estação ferroviária;  o campinho de futebol da Cica (Cia. Industrial, Comercial e Agrícola), à margem do Rio Espinharas. 


Ao chegar lá, vi que o colégio continua no mesmo local, bem menor, é verdade, do que aquele que guardava na memória. Mas os colegas de infância da rua Bossuet Wanderley sumiram todos. Disseram-me até que alguns se envolveram com drogas, arruaças, e tiveram fim trágico. 

Não encontrei também meus irmãos a fazerem algazarra no quintal ou na calçada da casa onde morávamos. Nem armazéns de algodão ou campinho de futebol. "As coisas mudam no devagar depressa dos tempos" (Guimarães Rosa).

Apesar do calor, soprava um vento morno que deve ter jogado um cisco em meu olho na hora em que ajudava a descerrar a placa de inauguração com o nome dele gravado. Saudade bate, mas a gente disfarça, pensa no que tem por fazer e finge que passa. 



Em breve ritual, fez-se um comovido silêncio entre pessoas que conviveram com aquele trabalhador humilde, calado, de sorriso raro, que nas horas de folga era visto sempre ao lado da esposa e do cacho de filhos. Tinha raros amigos e cabiam todos em sua Rural Willys, mas não gostava de botecos.

O dia passou depressa. Estávamos eu e Magdala, minha mulher, com Sérgio Riede, então presidente da Fenabb (Federação Nacional de AABB). Não havia vagas nos hotéis da cidade, lotados por conta das festas juninas. Fomos então acomodados pelos anfitriões numa casa grande e confortável, com direito a canjica, pamonha, ventiladores e redes no alpendre. 

Caminhamos um bocado após o jantar até o arraial na praça Getúlio Vargas, defronte do Hotel JK, para assistir a apresentações juninas. Exaustos, no entanto, retornamos cedo, por volta das dez da noite. Viajaríamos bem cedinho.

Havia um boteco colado à casa em que iríamos pernoitar. Na porta, um automóvel — bem diferente da velha Rural Willys — com o som nas alturas desde as cinco da tarde. E assim permaneceu até as sete da manhã do dia seguinte, tocando sem parar "Ana Maria" (clique e ouça), carro-chefe do CD "Xote Pé-de-Serra", de Santanna, o cantador. 

“(...) Eu dei um beijo,
Eu dei um beijo,
Eu beijei Ana Maria.
Por causa disso
Eu quase entrava numa fria.

Ana Maria tinha dono e eu não sabia.
Mas quem diria? pra bem dizer
Foi sem querer, mas terminou em confusão.
A solução foi confundir o coração.
Daí então fiquei na vida de ilusão.

Agora adeus, Ana Maria,
Deus te guarde para o amor.
No céu, Santa Maria.
Aqui na terra, o seu amor (...)"

A canção era linda, digna de ícones da música nordestina como Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Nando Cordel, Petrúcio Amorim ou Sivuca. Mas depois de ouvi-la horas a fio, sem conseguir dormir profundamente por 30 minutos sequer, nem tampouco saber onde andava a tal Ana Maria para matar o desejo de um bêbado encharcado de cerveja, aquilo virou motivo de boas gargalhadas entre nós.

Quase 18 anos depois, sempre que nos encontramos — eu e Sérgio Riede , um se antecipa e quer saber do outro: e aí, amigo, saudades de Ana Maria? 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

O coronel que gostava de flores

Às seis da manhã, pontualmente, lá estava ele no portão de sua casa a me esperar. Tinha nas mãos uma pequena flor branca:
— O senhor sabe que flor é esta?
— Não. Não conheço... 
— É um bugarim. Toda manhã, bem cedinho, venho aqui ao jardim colher um para oferecer à minha mulher... Seja bem-vindo, vamos entrar. 


Para mim, que mal distinguia uma rosa de uma orquídea ou de um girassol, o inusitado era ver a delicadeza com que o velho empresário e político dava a entender que seduzia a sua mulher. E para não dizer que não falei de flores, comentei apenas que o cheiro adocicado do bugarim (ou jasmim) talvez explicasse por que ele estava presente em tantos jardins no Sertão pernambucano. 

Petrolina é conhecida como a capital da “Califórnia” brasileira, o Vale do Rio São Francisco. Foi em torno do Velho Chico — apelido carinhoso de um dos maiores rios do País  que a cidade se desenvolveu e passou a produzir frutas em propriedades rurais irrigadas, com destaque para uva, manga, banana, coco-da-baía e goiaba.

Na noite anterior, após uma reunião com lideranças de classe tentando melhorar a relação estremecida entre produtores rurais, urbanos e o Banco do Brasil, fui abordado na saída do recinto:
— Eu gostaria de recebê-lo em minha casa para o café-da-manhã...
— Talvez não dê desta vez... Preciso viajar bem cedinho pro Recife.
— Você vai fazer uma desfeita dessas comigo?
— Não fale assim! A não ser que a gente se encontre às seis da manhã — ponderei, querendo desfazer o mal-estar e, a bem da verdade, contando que ele não acordaria tão cedo.
— Estarei esperando o senhor às seis.  Aqui está meu endereço — arrematou, com um cartão de visitas.

Poderia ser qualquer um dos filhos de Clementino de Souza Coelho (1885 — 1951), o mítico coronel Quelê, latifundiário e industrial tido como um dos responsáveis pela industrialização da região e um de seus maiores chefes políticos no século passado. 

Assim como outras oligarquias brasileiras, a família  Coelho, alinhada ao regime militar instaurado no país em 1964 e que durou até 1985, migrou dos negócios para a vida pública. Teve como expoentes cinco dos 13 filhos do coronel Quelê: Nilo, José, Geraldo, Paulo e Osvaldo. Nome não vem ao caso, mas foi um deles que me recebeu naquele dia. 

A mesa já estava posta. O anfitrião apresentou-me sua esposa enquanto a ela oferecia o pequeno bugarim que havia colhido.  Sentou-se na cabeceira e lhe serviram macaxeira com linguiça cuja gordura logo escorria no canto da boca e ameaçava, além da gravata, o paletó engomado de linho branco. Em seguida, pode parecer exagero meu, encarou uma tigela de coalhada, meia pamonha, uma tapioca, um pedaço de cuscuz, uma manga em cubinhos, uma fatia de bolo e uma caneca de café preto, onde pingou algumas gotinhas de adoçante  para manter o peso sob controle, esclareceu.

Ainda na mesa, com o suor escorrendo pela cara gorda e vermelha, sacou da algibeira o isqueiro e acendeu um cigarro que tragava com sofreguidão, esfumaçando o ambiente. Parecia cenário daqueles filmes antigos de Hollywood, que manteve ao longo de décadas contratos com a indústria de tabaco para inclusão de imagens em que os atores e atrizes fumassem.

Não demorou muito e foi direto ao ponto que o levou a me convidar na noite anterior: perguntou o porquê de eu não ter dado a devida atenção ao pedido que me fizera por telefone duas semanas antes, no sentido de refinanciar dívidas vencidas de um produtor rural de quem era compadre e avalista.

Esclareci que deveria haver algum engano, pois pedira para examinar o caso e, pessoalmente, havia comunicado o desfecho ao devedor, dizendo-o que não seria possível a renegociação da dívida na forma por ele pretendida. 

O anfitrião esfregou as mãos e contra-argumentou: 
— O “não” não é resposta. Só o “sim” constrói, ajuda quem precisa. O “sim” é como o dia; o “não” é como a noite, escurece tudo. Até as flores perdem a graça... 
— Entendo o que o senhor quer dizer, mas lá no banco a gente lida com o “sim”, com o “não” e com o “depende”. Se o rapaz quiser mesmo negociar de um jeito que fique bom para todo mundo... 
— Mas sei de alguns casos aqui na região em que vocês deram desconto no pagamento. Por que meu compadre, que tá passando um sufoco medonho, não merece?
— Banco é tudo igual, amigo. Não abre mão de um centavo...
— Como assim? 
— Só admite desconto quando não tem mais como receber todo o dinheiro que emprestou, inclusive os juros. Nem que tenha que recorrer à Justiça, se o devedor e o avalista possuírem bens.

E passamos a conversar sobre outros assuntos como o aumento das exportações de manga para os mercados asiáticos, a qualidade do vinho que já estava sendo produzido na "Califórnia" brasileira etc. 

Na despedida, foi gentil e pragmático comigo:
— Quero agradecer muito sua visita a nossa Petrolina. Pode deixar que vou convencer o compadre a melhorar a proposta. Onde já se viu achar que o banco vai dar desconto numa dívida avalizada por mim?

Tanto ele quanto os irmãos aqui citados já não se encontram neste mundo. Se a dívida foi paga, refinanciada ou seguiu para cobrança judicial, não sei dizer. Fui trabalhar na Bahia pouco tempo depois, em maio de 1999. 

Desde então, toda vez que vejo um bugarim branco ou alguém usando adoçante no café para controlar o peso, lembro-me do coronel que gostava de flores.