quarta-feira, 27 de março de 2024

Tributo à comédia humana

Sexta-feira, de noite, num desses templos sagrados de delações não premiadas onde, entre um gole e outro, o destino se desenrola em tramas dignas de um roteiro de cinema, meu amigo ítalo-brasileiro Tiberio Bacardi, brilhante cronista ainda desconhecido do grande público, aguardava a namorada que fora ao santuário das toaletes. Foi quando testemunhou uma cena tão hilária quanto reveladora.


Ilustração: ChatGPT

Três amigas, todas na casa dos 40 verões, com a graça de quem aprendeu a surfar no vai-e-vem das marés da vida, trocavam confidências numa mesa do lado, movidas a drinques multicoloridos. Uma delas dominava a conversa (a saga de um pré-encontro amoroso) com a verve de Tatá Werneck, transformando o que seria um simples jantar numa aventura digna de um filme de Almodóvar, com dramas, reviravoltas e uma generosa dose de humor e sensualidade. 

A “nossa” Tatá esmiuçou a preparação para o encontro como um ritual, quase um treinamento para virar um holograma: fingia comer e, na beira do desmaio, se permitia a extravagância de uma fatia fina de queijo e um trio de castanhas como prêmio de consolação.

A importância de cuidar de pés e mãos não foi negligenciada – vai que um fetiche inesperado aparece no meio da noite. Ela brincava: “Quem nunca foi surpreendida com um convite para um jantar japonês e teve que revelar, no desespero, aquele esmalte da semana anterior ainda se agarrando bravamente às unhas, feito gato no carpete em dia de mudança?”

E o protocolo de beleza seguiu mais complexo que a preparação de um desses jogadores de futebol com suas curiosas sobrancelhas e tatuagens. O esforço, dizia ela, valeria a dor física e mental, contanto que resultasse numa aparência arrasadora e poderosa.

No grande dia, não deixou nenhuma ponta solta, nada ao acaso. Logo cedo, após pequenos ajustes depilatórios (ou jardinagem criativa), uma visita estratégica à academia garantiu que cada músculo se fizesse presente, ainda que a medida quase significasse tossir um dos pulmões para fora. 

Viu-se então, em seguida, diante do dilema do guarda-roupa, com considerações que variavam do vestido de gala ao clássico "pretinho básico", mesmo desconfiando de que, no final das contas, o esforço passaria despercebido. Nem ela duvidava de que o interesse primário do sujeito seria outro, longe do tipo de traje. 

Horas diante do espelho, ajustando cada detalhe na esperança de capturar 10% da atenção dele, a decisão sobre a lingerie trouxe novo impasse: conforto versus sedução, batalha que só as mulheres entendem, quando uma certa peça insiste em se acomodar nas reentrâncias mais íntimas. “Talvez te achem linda, mas eles não fazem ideia do trabalho que dá. Pensam que você nasceu pronta, como um efeito especial de cinema” – arrematou.

Os sapatos, escolhidos pela estética, poderiam virar instrumentos de tortura medieval se surgisse uma oportunidade para dançar. Teria que fingir que as lágrimas eram da emoção. Ela inclusive lembrou do filme “Perfume de Mulher”, onde um cego, vivido por Al Pacino, tira uma moça pra dançar que, inicialmente, descarta: “Não posso, porque meu noivo chegará daqui a pouco...” Ao que ele ponderou: “Mas em um momento se vive uma vida!”, conduzindo-a, então, no memorável tango “Por una cabeza”, de Gardel e Le Pera.

Mas se por um capricho qualquer, após todo esse esforço, o sujeito decidisse cancelar o encontro no último minuto? “A única desculpa aceitável para a desfeita seria a morte súbita da mãe, do pai, infarto agudo ou fratura exposta" – “Tatá” pontuou, refletindo sobre a fragilidade dos compromissos modernos.

E mesmo depois de toda a preparação, persistia um grande risco: ele poderia nem notar aquela calcinha de grife que estava sofregamente removendo e que custou a ela novo mergulho na escuridão do cartão de crédito. “Entre abraços e beijos você se dá conta de que acaba de viver mais um episódio da série ‘Todo esse esforço pra porra nenhuma!’" – concluiu.

Ali, distante daquele drama, Tiberio Bacardi anotava as partes mais marcantes, usando o bloco de notas do celular, ao ser surpreendido pela voz de sua namorada:

– Por que essa cara de quem teve uma revelação divina?

– Nada, nada demais...  Tô aqui pensando num compromisso marcado pra amanhã à tarde... – respondeu, optando por uma resposta neutra ao invés de compartilhar uma possível construção literária em andamento.

– Com quem... Posso saber?

– O proctologista.

–  Ah, bom…

Esse desfecho, não só selou uma noite de observações, mas também deixou meu amigo Tiberio Bacardi convicto de que, na vida, como no bar, as histórias mais fascinantes são aquelas compartilhadas entre um gole e outro, onde cada um de nós, entre um gole e outro, protagoniza sua própria comédia humana. 

quarta-feira, 20 de março de 2024

O metaverso de Nozinho

– E aí, Nozinho, o motor tá bom mesmo?

– Vai-te lascar! Eu mexo com isso desde menino e lá vem você perguntar besteira?

– Calma! Perguntei por perguntar...

– Pois me pague, pegue o carro e vai-te embora daqui...


Nozinho era assim, um paraibano que mais parecia esculpido numa tora de pau-ferro, com acabamento à base de machado. A natureza caprichou no design e na acidez. Era conhecido lá em Itabaiana como “Biliro” (de bilro, peça de aço ou madeira usada para confecção de renda, graças à silhueta esguia e a cabeça volumosa).


Mecânico e motorista de mão cheia (sem largar o volante!), apesar de enxergar menos que morcego ao meio-dia, seu par de óculos com lentes esverdeadas era tão icônico que ganhou o apelido de “Sprite”, gozação com sua forma nada refrescante de ver o mundo. E mesmo sem saber ler nem escrever, detinha saberes que deixavam muitos doutores comendo poeira na estrada.

 

Do tipo que nunca levava desaforo nem pra oficina, talvez fosse sua forma de navegar nas águas turbulentas de uma sociedade que valoriza mais as letras do que a sabedoria de vida. Ou porque gostava de encrenca, se questionassem suas teses sobre inovações tecnológicas “desnecessárias” nos automóveis. “Pra que pé esquerdo se não tem mais pedal de embreagem? Não serve nem pra apagar cigarro ou matar barata!” – dizia dos veículos automáticos.

 

Me lembrei dele ontem enquanto lia sobre o Vision Pro da Apple, aqueles óculos de realidade virtual com preço pra lá de salgado, acima de R$ 17 mil. Apple que resolveu se fazer de desentendida e não quer chamar o brinquedinho de “metaverso”, talvez para não embarcar na mesma nave que o bilionário Zuckerberg e sua turma da Meta (empresa que atualmente controla as redes sociais), que até agora não decolou.

 

Reprodução/Redes Sociais

Se estivesse entre nós, Nozinho desdenharia desse “computador espacial revolucionário”, com a autoridade de quem, desde o começo dos anos 1970, já fazia mágica juntando peças do motor de um carro como quem brinca de Lego. Diria que esse negócio de realidade virtual não passa de conversa pra jumento cochilar ruminando na sombra. 

 

O homem era tão brabo que, numa prova de habilitação para dirigir veículos de carga, ao invés de identificar as peças de três motores em caixas distintas (de fusca, chevette e caminhão), misturou tudo, desafiando a lógica do teste. “Só jegue não sabe fazer!” – esculachou. Em seguida, com a perícia de um relojoeiro, montou os motores e saiu do recinto, não sem antes oferecer à banca avaliadora, que o reprovara por ser analfabeto, conselho de especialista em chaves de fendas e de bocas: “Vão tudinho tomar bem no 'mei' da arruela!”

 

Acreditem, rola lentamente até hoje na Câmara dos Deputados, em Brasília, projeto de lei para alterar o Código de Trânsito Brasileiro, permitindo aos iletrados tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e, pelo menos, mudar o patamar de miséria. 

 

Há coisa de 20 anos, num domingo, enquanto Nozinho bebia e contava seus casos no boteco, um de seus sobrinhos achou de recordar do que a irmã dele (sua mãe) fizera poucos meses antes: a saga de uma gata grávida e o destino cruel que lhe foi reservado. 

 

Eu, calado no meu canto, prestava atenção ao que dizia o sobrinho, que nos comoveu a todos, entorpecidos por várias cervejas naquele começo de tarde.

– Não quero essa gata aqui de jeito nenhum! – teria decretado a dona da casa.

– Mamãe... É só enquanto ela melhora, engorda um tiquinho… Tava passando fome na rua.

– Nem venha com essa conversa mole! Suma daqui com ela, agora, ou deixe que eu mesma vou dar um jeito nisso!

 

Nozinho, que tinha a irmã como segunda mãe e, por isso mesmo, estava cada vez mais curioso, cobrou pressa no desfecho. Balançou a cabeça ao ouvir que a empregada doméstica fora encarregada de misturar cacos de vidro na comida da grávida, para que, contrariada com a hospitalidade, sumisse. 

 

– E você, infeliz, deixou matar a bichinha? Por que não procurou outra pessoa pra tomar conta dela? – apelou o tio, contrafeito. 

– Como, tio? Se demorasse, levaria uns cascudos, uns tapas… Só deu tempo de pedir a moça pra quebrar os cacos maiores em pedacinhos e torcer pra coitada escapar, fugir, sei lá…

 

Acontece que a gestante seguia firme, barrigão arredondando, à espera inocente do dia sublime. 

– E aí… Escapou? – indagou o tio, com dó da gata, vendo o lado do sobrinho, mas também procurando entender sua irmã.

– Morrer não morreu, tio, mas apareceu lá em casa uma ninhada de filhotes, tudinho de óculos verdes!

 

Nozinho se levantou num pulo só e partiu com tudo pra cima do moleque, que escapuliu ligeiro feito um gato, morrendo de rir. 

 

Se fosse hoje, era bem capaz de o gaiato dizer que os bichanos chegaram ao mundo cada qual com seu Vision Pro da Apple, prontos pro espetáculo das sete vidas. E o tio, com a delicadeza de um beliscão de alicate, mandaria o “'fidirapariga' tomar no 'mei' da arruela”. Mesmo com todo respeito que tinha pela irmã.

quarta-feira, 13 de março de 2024

No frescor dos novos tempos

Está em discussão no Congresso Nacional um projeto de lei que visa regulamentar o trabalho de motoristas de aplicativos e de empresas por meio de entidades de classe.

 

Com o calorão que anda fazendo ultimamente, há cada vez mais queixas nas redes sociais contra motoristas que cobram adicional dos passageiros que querem viajar com o ar-condicionado ligado. É como se os prestadores do serviço se tornassem os novos mercadores do Egito, onde tudo se compra e se vende, até mesmo a brisa que nos refresca durante a viagem. E veja que não trato aqui de um conto de fadas moderno, mas da triste realidade das plaquinhas que adornam o encosto de cabeça dos bancos dianteiros dos carros, oferecendo o refrigério por certo preço. 


É a cortesia cedendo lugar à cobrança. Balas (ou confeitos) e água gelada foram substituídas por um pagamento antes mesmo de o carro partir. Enquanto alguns defendem a gratuidade da climatização, principalmente em tempos de aceleração do aquecimento global, outros apontam que esse custo não pode recair nas costas dos motoristas, pois o uso do equipamento aumenta muito a conta do combustível. 

 

Conheço um militar reformado que se aventura pelas estradas urbanas como condutor de aplicativos. Ele me contava outro dia, com resignação, que as plataformas têm repassado muito pouco aos motoristas. "Infelizmente é assim. Ah, se eu pudesse oferecer o conforto de antes, sem pedir aos passageiros o reforço por fora...”, lamenta.

 

Aqui deitado em rede esplêndida, ao som do mar e à luz de um sol escaldante, depois de dias e mais dias sem fazer nada de útil à aventura humana sobre a Terra, resolvi perturbar o sossego das plataformas de transporte com minhas indagações de aprendiz de rábula. 

 

Uma delas, em sua sapiência tecnológica e a partir do caso do ar-condicionado, me garante que quando detecta que "o motorista conduz mal uma corrida, pune o desobediente com severa advertência", uma espécie de marca de Caim nos tempos modernos. Nada como uma avaliação ruim para trazer à tona o pior de nós mesmos, não é?

 

Diz mais: que "a cobrança de qualquer adicional por fora representa violação às regras de segurança e podem levar à desativação da conta do motorista parceiro envolvido". 

 

Uma segunda empresa me manda uma mensagem rebuscada, sem nada de novo: “Somos uma empresa de tecnologia voltada à mobilidade urbana e conveniência, que conecta passageiros e motoristas parceiros por meio de seu aplicativo”. E sugere que “motoristas e passageiros decidam juntos sobre o uso do ar-condicionado”.

 

Com a aprovação da lei que regulamentará o trabalho de motoristas de aplicativos por meio de sindicatos, me ocorre propor uma negociação bastante simples para resolver o impasse. 

 

Sem falsa modéstia, a ideia só não é melhor porque é minha. Vejam bem: por que não estabelecer uma taxação mútua? Os passageiros pagariam pelo ar fresco, mas seriam compensados quando fossem obrigados a escutar funk, sertanejo ou dissertações intermináveis sobre preferências clubísticas, políticas ou religiosas.

 

Para os motoristas que insistirem em tentar convencer “convertidos” com suas réplicas e tréplicas, uma penalidade extra seria cobrada: aumento de 50%, com o lembrete de que ficar em silencio é nunca mais precisar ter razão, mesmo em tempos de overdose de informações.

 

A flatulência (e a eructação) também teria cobrança recíproca, apesar da previsível polêmica quanto à autoria de disparos letais silenciosos, sobretudo no caso do transporte compartilhado de passageiros, do meio-dia pra tarde.

 

No fim da corrida, haveria o acerto de contas entre as partes, com razoável chance de a maioria das viagens terminarem com as despesas adicionais anuladas entre si. Elas por elas, digamos assim.

 

Com tanta gente por aí que não se constrange em compartilhar sua estupidez a qualquer hora do dia ou da noite, inclusive espalhando notícias falsas, a taxação mútua, que a princípio pode parecer injusta aos motoristas, teria também um caráter pedagógico e profilático.

 

Sei que na categoria Confort da principal plataforma que opera no Brasil existe a possibilidade, antes da viagem, de o passageiro marcar a opção de não conversar com o motorista e até de definir a opção pelo ar-condicionado, porém me refiro aqui às categorias mais populares, claro, de todos os aplicativos.

 

Não é a solução perfeita, admito, mas ao menos se poderia transformar as viagens em momentos de bem-estar e paz social, ouvindo-se, no frescor dos novos tempos, apenas o barulhinho do ar-condicionado e não monólogos de donos da verdade ou música de qualidade duvidosa para passageiros cujos ouvidos correm o risco de virar penicos.

sexta-feira, 8 de março de 2024

Elas amadurecem bem antes

Na semana do Dia Internacional da Mulher, andei relendo uma pesquisa realizada há alguns anos, no Reino Unido, sobre diferenças de maturidade entre sexos. Em resumo, chegou-se à conclusão de que o homem permanece emocionalmente imaturo até 43 anos de idade e a mulher atinge a maturidade emocional bem antes: aos 32. O estudo revelou ainda que 80% das mulheres acreditam que os homens “nunca deixam de ser crianças”. 


Certas atitudes não deixam dúvidas sobre a lerdeza da maturidade de alguns homens: recontar as mesmas piadas e achar graça de novo, não se interessar por tarefas domésticas, confundir masculinidade com grosseria, exibir bíceps e tríceps para demonstrar como são fortes, entre outras bobagens.

As mães percebem essa diferença desde cedo, principalmente nas famílias mais numerosas como a que me trouxe ao mundo, com pais, cinco filhos e quatro filhas. Vi isso bem de perto quando uma de minhas irmãs, apenas um ano mais velha que eu, tornou-se adolescente “décadas” antes de mim.

Estamos falando do começo dos anos 1970. Enquanto eu, entre 12 e 13 anos, dividia meu tempo entre dormir, comer, estudar, bater bola, jogar botões (futebol de mesa), ler "Placar" e zoar meus irmãos mais novos, minha irmã já suspirava ouvindo Dio come ti amo, Non ho l’età (per amarti) ou assistindo aos requebros de Elvis Presley. Lia muito fotonovelas e até desenhava seus próprios "quadrinhos", em meio a namoricos movidos a doses generosas de estrogênio e progesterona de ovários fresquinhos.

Foto: Álbum de família 

Nessa época, a banda LSD – sob a batuta de um certo Djavan – fazia sucesso em Alagoas, animando as noites de sexta-feira na AABB Maceió, na Praia da Avenida. Ela, claro, sonhava em ir à balada toda semana, mas nosso pai era inflexível feito porta de cofre: “só vai se seu irmão for junto!”.

Como ela iria me convencer se, todo dia, no máximo às dez da noite, eu já tropeçava de sono? E se eu fosse à balada, cadê coragem pra dançar com as garotas? Dormir sentado numa cadeira dura, sob a luz negra e o barulho ensurdecedor da banda, inalando fumaça de cigarros até a hora de voltar?


Ela sabia do meu gosto por desenhar e, certa manhã, pediu a um traíra do colégio que me desafiasse a desenhar uma cena de sexo daquelas típicas de revistinhas suecas, fonte de deleite da molecada nos tempos em que se passava mais tempo nos banheiros do que estudando. 

Em pouco tempo, o inocente aqui rabiscou algo com toda carga erótica possível, assinou no rodapé e o traíra ainda insuflou o ego do “artista” dizendo que nunca vira nada parecido a não ser nos "catecismos" de Zéfiro (1921 – 1992). Meia hora mais tarde, lá estava minha irmã triunfante com a "obra de arte" nas mãos: "Como é, vai ou não vai sexta-feira à noite?"

Se me recusasse, meu pai ficaria sabendo do que eu andava “aprendendo” na escola e por certo mudaria a rota em meu GPS com o desgraçado de um cinturão de couro, me inspirando a escrever mais um parágrafo na crônica de minhas surras inesquecíveis.  

Travei, engoli seco e ali também aprendi, na marra, o que era chantagem emocional e suas implicações diretas e indiretas, durante as cinco semanas seguintes. 

Enquanto isso, passei a vasculhar cada centímetro da casa à procura do famigerado desenho. Até que um dia, folheando “Grande Hotel”, revista de fotonovelas favorita de minha irmã, notei que a protagonista de uma história escondera uma carta comprometedora entre o tampo traseiro e a gravura de um quadro de parede. 

Ao encontrar a “obra”, nem cogitei guardá-la em lugar alternativo, seguro. Matei no ninho o aspirante à sucessão de Picasso (1881 – 1973), o gênio espanhol obcecado pelo erotismo. Picotei o desenho, joguei os pedacinhos no vaso e acionei a descarga para ter certeza de que a agonia realmente chegara ao fim. Ainda bem que não havia fotocópias e a digitalização de papéis não existia nem nas revistinhas de "Flash Gordon".

À noite, vestida e maquiada, pronta para chamar o táxi, minha irmã espantou-se quando eu lhe disse que estava cansado e não iria nunca mais, com direito a um risinho de esculacho. Ela então correu ao local onde escondera o desenho e quase subiu pelas paredes ao descobrir que já não dispunha da “arma” pra me convencer. 

Aqui entre nós, penso que nosso pai, mesmo sem nunca ter desconfiado de que o filho vinha sendo vítima de "condução coercitiva", aprovou a "nossa" decisão de não sair. Para ele, não precisava ser toda semana, deixando-o aflito até que a madrugada nos trouxesse de volta.

Essa experiência só reforçou em mim a percepção de que as mulheres amadurecem antes. A sagacidade de minha irmã foi prova viva disso, deixando claro que certas mulheres dominam artes como a manipulação e a camuflagem de sentimentos muito mais do que os homens, esses inocentes que se acham sabidos.


Homens, como elas mesmo admitem, “nunca deixam de ser crianças”. Deve haver um anjo da guarda de plantão para cada um. Caso contrário, viver torna-se perigoso demais.
 

quarta-feira, 6 de março de 2024

Não é certo

Quem sou eu pra falar dessas coisas, mas resolvi navegar no intrigante universo do insulto, essa prática sofisticada para exibir nossa erudição social. Palavras, gestos e atitudes desrespeitosas, verdadeiros mimos linguísticos com o poder de ferir a dignidade alheia. Afinal, quem precisa de flores quando pode presentear alguém com um insulto afiado, daqueles que cortam o coração da pessoa ofendida?

 

O ser humano, esse bicho seletivo por conveniência, ainda luta para superar conceitos primitivos como a ideia de que homens "garanhões" merecem tapinhas nas costas, enquanto mulheres que têm mais de um parceiro são chamadas de "putas". A dualidade dos sexos, tão incensada pela sociedade, permanece uma figura de retórica. Afinal, quem precisa de igualdade quando pode apontar o dedo apenas numa direção?

 

E o que dizer das pérolas linguísticas utilizadas para xingar o próximo? A palavra "vagabunda", por exemplo, uma verdadeira sinfonia de desrespeito quando dirigida a uma mulher, com uma simples troca de vogal pode virar afago no ego masculino. Chamar um homem de "vagabundo" às vezes é reconhecê-lo como “esperto”, “malandro”, capaz de tocar a vida à custa dos outros.

 

No território do caráter relacional, “egoísta”, "farsante", "mentirosa" são termos que refletem a complexidade das relações interpessoais, com destaque para a exploração de traços físicos. Chamar uma mulher de "gorda" atinge o ápice do ultraje, enquanto atribuir gordura a um homem vira e mexe é um elogio cúmplice. Já vi até machão vestindo camisa onde escrito “um homem sem barriga é um homem sem história”. A incoerência nos insultos realmente nos remete à idade da pedra lascada.

 

Ilustração: Umor

E que tal palavrões em tom de brincadeira? Entre amigos ou amigas, o insulto pode ser apenas uma forma de zombar o outro. Mas, olhe lá! A entonação é crucial, pois no contexto errado, a mesma expressão pode passar de uma piada inofensiva para um ataque de proporções épicas. É o caso dos clássicos “pqp!”, “vtf” e “vtnc!” (evito grafá-los para não vulgarizar o texto), desabafos que levam alguns à catarse no desfecho de uma conversa.

 

E quando a ideia é desferir insultos "funcionais", a diferença entre homens e mulheres atinge níveis cômicos. Se um dos piores insultos para elas é ser chamada de "gorda" ou “velha”, para eles alcança o topo da ofensa ser chamado de "broxa" ou “corno”. Torna-se alto o risco de lesões corporais recíprocas.

 

No futebol, outro terreno fértil para insultos a granel, gírias e expressões são comuns aos dois gêneros. "Chinelinho" (quem faz corpo mole, simula contusão ou se machuca com frequência, e só aparece na mídia usando chinelos), "mascarado" (quem se acha a última pipoca do saco), "pipoqueiro" (quem se esconde nos momentos críticos, quando seu time mais precisa). São verdadeiros coices nas canelas das vítimas.

 

E no meio militar, hein?! Tá o maior bafafá em Brasília desde que um certo general, ex-ministro da Defesa e candidato a vice-presidente da República em 2022, foi alvo de uma operação da Polícia Federal que mira articulações ideológicas de extrema direita (gostaram do eufemismo?). 


Mensagens obtidas nos celulares confiscados revelam que o general insultou integrantes das Forças Armadas que não aderiram às “articulações”. Numa delas, ele se refere ao então comandante do exército com o epíteto de “cagão” e pede (não se sabe a quem) que a cabeça dele seja oferecida. 

 

Claro, não falava de um desarranjo intestinal do velho companheiro de farda e quepe. Mas cheguei a pensar que estávamos prestes a assistir a um duelo meticulosamente orquestrado entre ambos, em campo aberto, na presença de testemunhas representativas dos três poderes da República, com armas escolhidas pelo ofendido para desagravo de sua honra. Uma espécie de revival medieval confrontando dois nobres da corte.

 

Descobri, no entanto, que duelos estão proibidos desde a época colonial, uma proibição confirmada logo depois da independência do Brasil, com a constituição outorgada por Pedro I em 1824. Melhor assim, sem melodramas. Afinal, lavar a honra com sangue suja a roupa toda, como diria Stanislaw Ponte Preta (19231968).

 

Soube ainda que, há pouco tempo, num inquérito administrativo contra uma militar mato-grossense acusada de ferir moral, ética e disciplina, os xingamentos proferidos, inicialmente considerados como pressão psicológica sobre um recruta, foram perdoados. 

 

Argumentou-se que certos insultos, extraídos de um dicionário de gírias e jargões militares, são inofensivos e funcionam apenas como meio de animar a tropa a dar o melhor de si. Bisonho, cagão, caga pau, coisa, cu de tropa, mocorongo, morcego, molambo, perebento, pulha, rolha, tapado, entre outros… Ótima forma de incentivar a equipe! Como nunca pensei nisso!?


Convicções pessoais e xingamentos à parte, aos que estranharam a ocorrência verde-oliva em Brasília, recordo aqui um certo personagem criado nos anos 1970 pelos cartunistas Cláudio Paiva, Hubert Aranha e Agner, em tirinhas publicadas na última página de O Pasquim. Avelar, o general que não aderiu ao golpe de 1964  um linha dura que apanhava da esposa em casa –, vivia repetindo, resignadamente: “Não ia dar certo mesmo...”