quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Narizes

Seja arrebitado, de batata ou feito gancho, o nariz é o epicentro do rosto humano. Seu formato depende da genética, mas, a rigor, trata-se de uma adaptação aos odores e ao clima das diferentes regiões do Planeta, segundo um estudo recente, publicado por uma revista científica vinculada à Biblioteca Pública de Ciência dos Estados Unidos (a PLOS Genetics).

 

Pesquisadores se debruçaram sobre uma gama de tamanhos, analisando a largura das narinas, a distância entre elas, a altura, o comprimento etc., e concluíram que as diferenças entre os formatos poderiam ter sido acumuladas ao longo do tempo, além da seleção natural (os mais aptos sobrevivem, reproduzem-se e repassam suas características aos descendentes).

 

“Nariz, ai, meu nariz/ Como falam mal deste nasal, que é tão normal...”, cantava o inesquecível Juca Chaves, que sabia como ninguém se aproveitar de seu “bandeirante” – o primeiro a chegar nos cantos, segundo ele. Aliás, o de Juca precedeu a fama de outros célebres, como os de PC Caju, Fagner, Zé Ramalho e Luciano Huck. 

 


Li na Folha de São Paulo, recentemente, um artigo assinado pela jornalista Dália Ventura, afirmando que a crinolina teria sido uma das roupas mais perigosas já inventadas, mas também uma das mais amadas da história.

 

Para quem desconhece (eu não sabia, confesso! Até pensei ser um parente próximo da creolina), a crinolina é uma armação metálica usada sob as saias para lhes conferir volume, dispensando várias anáguas. A peça marcou o surgimento da moda propriamente dita porque trouxe um avanço: enquanto a estrutura da anágua era feita de osso de baleia, crina de cavalo, vime, madeira ou borracha inflável, a das crinolinas era feita de metal. 

 

O artigo citado revela que, na noite de 31 de outubro de 1871 (Dia das Bruxas, segundo a crença dos colonizadores dos Estados Unidos), as irlandesas Emily e Mary, meias-irmãs do escritor, poeta e dramaturgo Oscar Wilde, foram a um baile. Perto do final, Emily dançava com um de seus admiradores e, num de seus giros perto da lareira, o vestido pegou fogo. Mary tentou socorrê-la, mas também ateou fogo em sua própria roupa. E as irmãs não resistiram às queimaduras, tal como milhares de outras vítimas fatais, ao longo da História, envolvendo uma das roupas mais desejadas de todos os tempos.

 


Desejadas, sim, porque, apesar de várias tragédias 
– apurei que a pior delas ocorreu em 1863, quando milhares de pessoas não conseguiram escapar de um incêndio numa igreja da Companhia de Jesus em Santiago do Chile , a crinolina oferecia melhor mobilidade, ventilação e espaço, conferindo mais autonomia para evitar contatos indesejados e permitindo às mulheres decidirem sobre o que exibir ou esconder. Podiam, inclusive, guardar segredos inconfessáveis, desde amantes baixinhos, contrabando, gravidez, até pernas peludas e tortas.

 

Para desagrado da elite no Reino Unido, a crinolina passou a ser usada por todas as classes sociais, até mesmo por escravas libertas, que evidenciavam com seus dotes físicos força e poder para encarar de forma mais equânime a luta por igualdade social.

 

Fiquei numa dúvida terrível. Para mim, havia outro motivo bem mais razoável para o uso daqueles saiões de filmes e novelas de época. Seria capaz de jurar que, por baixo, nem calcinhas havia. Como não existiam cuecas, bidês nem duchas higiênicas.

 

Além disso, o primeiro papel higiênico do mundo só foi produzido em massa na segunda metade do século XIX, na tentativa de poupar certas partes dos danos causados por jornais, papéis de bodega, sabugos de milho e outros itens improvisados (folhas, gramas, peles de animais etc.) ao longo da aventura humana sobre a Terra.  

 

Penso que, naquela época, a etiqueta de convívio devia exigir um distanciamento social protocolar para não ferir narinas mais sensíveis, sobretudo no inverno europeu em que não se tinha o menor estímulo para o banho semanal.

 

Dizem, aliás, que a ausência de redes encanadas e esgotos era suprida com a utilização de copos e bacias que raramente permitiam o banho de hoje. As pessoas se sentavam numa cadeira enquanto despejavam pequenas porções de água nas áreas a serem asseadas.

 

Fala-se também que, mais remotamente, na falta de sabão, os babilônios misturavam gordura animal e cinzas vegetais para diminuir o cheirume. Entre os egípcios, a receita era até um pouco mais elaborada: levava também argila e bicarbonato de sódio. 


O cheiro característico das partes íntimas, afinal, remonta ao dia do despejo do Paraíso de Adão e Eva. O casal, imagina-se, não teria levado nem uma mísera sacola de bugigangas (cotonetes, creme e fio dental, desodorante, escovas, lenços umedecidos, protetores íntimos, sabonetes, essas coisas). 


De modo que minha dúvida persiste, mas estou seguro de que a crinolina, apesar de seu trágico histórico, prestou inestimável serviço às referências olfativas e ao formato atual das fossas nasais humanas, livrando de certos odores que deixaram de ser inalados. Ou não. 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O olhar de Marieta

Um olhar nunca é só um olhar. Possui mistérios e sutilezas que apenas outro olhar (até de um inocente curioso como eu; mais curioso do que inocente, alguém diria!) pode ver. Existem flagrantes que dispensam legendas. Falam por si sós.

 

Foto: Reprodução 

Este olhar, não tenho dúvida, traduz na justa medida a admiração, o amor, o carinho, a cumplicidade e o cuidado na escolha de alguém com quem partilhar planos, prantos e pratos.

 

O dramaturgo Aderbal Freire-Filho, que fez por merecê-lo de Marieta Severo, deixou este plano na última quarta-feira, aos 82 anos. 


Ela desabafou sobre como reagiu após vê-lo sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico, em 2020. “Foi mais do que sofrido, foi inacreditável”, disse em entrevista a um site de notícias.

 

“É uma consciência da precariedade da vida que tomou conta da minha. Por mais que a gente saiba dela na teoria, quando ela se apresenta, muda tudo. Estávamos em Nogueira, na região de Petrópolis, no Rio de Janeiro, com as minhas netas, por causa da pandemia. Ele ia para o Rio resolver uma questão do imposto de renda e voltaria no dia seguinte. Nos falamos três vezes depois que ele saiu”, arrematou.

 

O interessante da relação entre eles é que não dividiam o mesmo teto. Marieta explicava que, como se casou pela primeira vez muito nova (com Carlos Vergara, em 1964), nunca teve um espaço para chamar de seu. 

 

Ela, portanto, nunca precisou sacudi-lo às seis da manhã, sorrir um sorriso pontual nem dizer pra ele se cuidar. Nem lhe fazer com açúcar e com afeto o seu doce predileto. Viviam muito bem, cada qual sob seu teto. 

 

Ela, que começou a se relacionar com ele depois dos 50 anos, disse certa vez que a história desse amor era bastante madura, porque cada um já vivera experiências antes de se encontrarem (após dois anos com Carlos Vergara, foi casada com Chico Buarque durante 33 anos).

 

Na época, não vou negar, fiquei triste com o fim do casamento de Marieta e Chico, depois de amargarem um exílio juntos (quando estiveram na alça de mira da ditadura militar) e de trazerem ao mundo três lindas filhas. Certos casais a gente sempre acha que são “para sempre”.

 

Queridos do público, bem-sucedidos, para muitos eles personificavam o “para sempre”. A notícia da separação intrigou os fãs, que teimam em não aceitar que a rotina cotidiana de astros, assim na Terra como no Céu, também se desgasta. 

 

Ainda bem que da união com Chico, além de Silvia, Helena e Luiza, brotaram lindas frutas como a amizade, o respeito e a admiração mútua. Sem contar as parcerias no teatro.

 

Em 2004, cinco anos após o divórcio, Marieta fez revelações interessantes numa entrevista. “Vejo casais que se separam e não se falam mais e fico chocada…  O Chico é meu melhor amigo, a primeira pessoa com quem vou falar numa situação difícil”. 

 

E disse mais sobre a vida a dois: “Não tinha glamour nenhum. Era dor de dente, briga com as crianças que deixaram tudo fora do lugar, com quem não fez a lição... Eu saía de casa para ir trabalhar, deixava as crianças com a babá e tinha culpa, sim. Como qualquer outra mulher. Ah, o glamour! A gente na banheira, com rosas em volta... Que banheira?! Não dava tempo nem de tomar banho direito!”. 

 

Naquele mesmo ano, Aderbal chegou até Marieta como quem chega do nada, não lhe trouxe nada, também nada perguntou. Vai ver pegou em sua mão e antes que ela dissesse “não”, instalou-se feito um posseiro dentro de seu coração. Bem feito pros dois!

 

Dezesseis anos mais tarde, ele sofreria o acidente. Aderbal ficou mais de dois meses internado. Ao deixar o hospital, os dois passaram a compartilhar a mesma casa pela primeira vez. Mas ele nunca mais se recuperou das sequelas do derrame.

 

O velório aconteceu no teatro Poeiras, repleto de amigos e tomado pela emoção, principalmente quando as netas de Marieta cantaram em homenagem a Aderbal. O corpo foi cremado quinta-feira passada, em cerimônia íntima, no Memorial do Carmo, no Caju, Rio de Janeiro, com a presença apenas da viúva e de algumas pessoas que trabalham no teatro.

 

Marieta contou que, assim que a equipe médica lhe disse que o quadro era irreversível, conversou com a amiga Andrea Beltrão (uma das responsáveis pela criação do teatro Poeiras, ao lado do casal) sobre a possibilidade de enterrar no teatro as cinzas do marido. 

 

Uma placa será colocada com o nome de Aderbal no muro do canteiro, espaço em que foi enterrada a urna com suas cinzas. E uma árvore será plantada no local, marcando assim a presença, para sempre, daquele que um dia fez por merecer o olhar de Marieta.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Figurinhas repetidas

Carnaval de 2058. Apago minha 100ª velinha e ainda me sinto disposto, tesão de seminarista, trabalhando e mentindo como nunca. Apenas uma dorzinha aqui na coluna lombar, fruto das travessuras com minha velha (lá vou eu criar problema, gratuitamente!) parceira de chuva, suor e sucos.

 

Não sei onde estava com a cabeça, por volta de 2024, quando voltei a trabalhar na mesma empresa onde passei uma primeira etapa de mais de quatro décadas ouvindo dizer que seria privatizada porque muda de rumo a cada quatro anos, sujeita-se a ingerência política, a regras da concorrência pública, não remunera tão bem seus funcionários, essas coisas.

 

Talvez tenha sido a curiosidade de experimentar tecnologias transformadoras como a Inteligência Artificial, que se impôs em definitivo sobre as relações humanas e de mercado. O metaverso, aliás, após uma aposta pesada de grandes corporações como centro de inovação e consumo, já se tornou arcaico, obsoleto. A vida como ela acontece, sempre.

 

Imagem: Dedé Dwight

Sim, houve um salto quântico nos modelos de negócios e nos processos de trabalho, mas nem tanta mudança assim no mosaico de almas, apesar de os cérebros poderem se conectar diretamente à nuvem de dados para transferência da memória ou troca de informações. 

Como diria um antigo poeta carioca, falecido há mais de seis décadas (ele também estaria agora completando 100 anos), tenho visto o futuro repetir o passado, esse museu de grandes novidades.

 

Reencontrei uma figura com quem trabalhei na primeira etapa de minha vida profissional. Costumava protelar tarefas, pelo menos até a primeira reiteração, dizendo: “eu só tenho certeza de que algo que me pedem precisa mesmo ser feito quando me cobram”.

 

Há algumas semanas, quando reiterei uma encomenda pela terceira ou quarta vez, seu desabafo me fez refletir: “Calma aí! Tu sabes por que o Criador fez o mundo em sete dias? Porque não tinha registro de entrada e saída no serviço nem chefe perguntando se a merda já estava pronta!”   

 

Quem permanece muito tempo numa mesma organização — no dizer de uns, falta de ambição profissional, de coragem ou até comodismo —, consegue listar sem dificuldade algumas figuras especiais. Eu mesmo guardo um time daquelas que se repetiram nas duas etapas do jogo.

 

A “Cara-de-Pau”, por exemplo, finge não escutar uma boa ideia oferecida por um subordinado para, logo em seguida, com alguns ajustes cosméticos, lançá-la em público, como se fosse “pai (ou mãe) da criança”.


A “Chata" é aquela que vive interrompendo teleconferências! Só faz comentários fora de contexto, desperta alguma compaixão no começo mas, logo depois, rejeição geral e irrestrita.

 

A "Curiosa", antes do “bom-dia”, remexe papéis (sim, eles continuam, inclusive o cheiro de tinta que inexplicavelmente ninguém lembrou de engarrafar!) nas mesas alheias e bisbilhota telinhas e telonas, convicta de que fofoca vestida de informação pode ser arma poderosa nos bastidores corporativos.

 

Já a "Entediante" se acha a rolha da primeira garrafa de vinho servida na Santa Ceia, incompreendida e subestimada por todos. Vive repetindo piadas sem graça, rindo não se sabe de quê.

 

A "Garganta" é de doer! Fala sem parar de si própria (o que já é péssimo) e dos outros (inaceitável!). Quem se enfeitiça com o som da própria voz parece interessante por alguns segundos, mas insuportável minutos depois.

 

E a "Gaveta"? Empurra tudo com a barriga para a próxima semana, sem o menor senso de oportunidade. Nunca se dá conta de que uma máquina lenta é até admissível, mas uma alma, nunca!

 

A "Inflexível", então, não sabe perdoar aos outros (nem a si própria) pelos erros cometidos, nem é capaz de reconhecê-los. Dificilmente aceita um “não”, porque se diz determinada, perseverante etc. A teimosia em pessoa!


Quanto à “Medrosa”, avessa a qualquer novidade (só valoriza o que “sempre deu certo”), não quer saber de nada que mexa com sua insuportável rotina, mas se corrói de inveja quando alguém ousa e se dá bem.

 

Tem a "Petulante", que sempre busca encurtar a altura entre a ponta do nariz e a do queixo. Só enxerga os outros de cima para baixo, com um risinho de deboche para qualquer comentário mais simplório dos mortais.

 

E o que dizer da “Sincerona"?! Vê-se acima do bem e do mal por ser “franca demais”. E vomita tudo o que lhe vem à cabeça, despreocupada se atinge ou não aos outros com a acidez de suas convicções.

 

Há também a "Surda". Não escuta nem aqueles que concordam com seus argumentos. Nem percebe que, mesmo obrigada a filtrar bobagens, se não souber ouvir, perderá por completo a capacidade de lidar com os outros...

  

Acordei aos sobressaltos. A vida eterna continua sendo um sonho instigante, um conceito atraente, apesar do álbum de figurinhas repetidas. 


Pior, bem pior, deve ser não acordar nunca mais, não se queixar de nada, de ninguém. Nem saber das queixas feitas contra mim. 


Melhor levantar e beber meu café que o dia promete.  


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

A cachorrada é grande!

Você deve ter visto na Internet a notícia de que um youtuber japonês, apelidado de "Toco", anda sacudindo as redes sociais após gastar mais de R$ 70 mil numa fantasia hiper-realista de cachorro da raça border collie. O perfil "Eu queria ser um animal", criado em abril do ano passado, já conta com cerca de 32 mil inscritos e 12 milhões de visualizações.

 

Foto: Reprodução/Youtube


O "animal" aparece em vídeos passeando pela calçada, rolando no chão, brincando no quintal ou lambendo uma tigela. Ainda não aprendeu a, de quatro, levantar a pata traseira e molhar os postes que encontra pelo caminho, mas, imagino, uma hora chegará lá.  

 

“Eu morro e não vejo tudo!”, diria minha tia. Que, aliás, ficou livre de ver esta! Já se foi o tempo em que a expressão “vida de cachorro” significava uma existência cheia de problemas. Hoje, muito pior é vida de vascaíno. 


Aos poucos, o cão foi ocupando um lugar de destaque entre os humanos e já figura em segundo lugar na escala afetiva familiar, só perdendo para bebês recém-nascidos. De famílias ricas ou remediadas, bem entendido!

 

Tornou-se comum o cão se humanizar e o homem virar cachorro, se bem que existem muito mais exemplos do segundo caso, sobretudo no mundo empresarial. Quem nunca foi vítima de uma cachorrada que rosne ou atire a primeira pedra!

 

Noto cada vez mais características tipicamente humanas nos cachorros, embora ainda lhes falte andarem armados, matando-se uns aos outros. Ultimamente, aliás, já são avaliados até pelo seu aspecto psicológico. Algumas corporações militares, inclusive, apressam a aposentadoria dos farejadores mais velhos. Deveriam despachar também certos membros da tropa chegados a uma cachorrada.



Renatinho “Perna Curta”, um galego cheio de lorotas que morou no meu bairro nos anos 1970, contava que ensinou seu pastor alemão a, toda semana, buscar O Pasquim na banca da esquina. Um dia, o bicho rosnou, latiu, bateu patas, cravou as unhas no tapete e não foi. Quis deixar claro, segundo ele, que a partir dali só faria cocô e xixi sobre folhas de Fatos e Fotos ou Manchete. Achei um exagero, mas...

 

Com a gradual troca de casas por apartamentos, a educação canina tornou-se imperativa por causa de regras estabelecidas nos condomínios. Afinal, cachorro de apartamento (atenção: não me reporto àquele morador que você acaba de lembrar!) necessita ir à rua todos os dias, marcar território. Bem, é possível que o vizinho ou até mesmo o síndico também tenha de passear umas duas vezes por dia.  


A mãe de Renatinho, voltando ao galego a que me referi, teria comentado na manicure que o pastor alemão de seu filho era até educado demais. Costumava abocanhar só a folha de “classificados” do Jornal de Alagoas e se trancar no banheiro. Vai ver procurava anúncio de uma cadela de programa que assegurasse absoluta discrição desde a primeira farejada no bocal da arenga.


Bem, a última grande cachorrada de que tive notícia aconteceu há poucos meses, após a pandemia de coronavírus. No Brasil, o abandono de animais domésticos cresceu 70%, segundo a AMPARA Animal, uma organização que ajuda às ONGs e aos protetores independentes da causa. Bichos que antes tinham comida, abrigo, saúde e segurança, agora passam fome, medo e sofrem maus-tratos nas ruas de todo o país.


Pra botar ordem na bagunça, um conhecido deputado federal está colhendo assinaturas para apresentar um projeto de lei que obriga o registro de todos os bichos urbanos e proíbe a permanência em áreas sensíveis como bares, cinemas, hotéis, igrejas, órgãos públicos, praças de alimentação, praias e supermercados. Claro, uma nova estatal será criada para tocar o assunto – outra frente facilitadora da velha prática do “toma-lá-dá-cá”.

 

Vai começar pelas 100 principais cidades, onde se pretende exercer uma rigorosa fiscalização. Bicho que for encontrado sem coleira nem documento será preso por vadiagem. E, você sabe, a vadiagem por aqui já passou dos limites – tem gente graúda, inclusive, se sustentando de “vaquinhas digitais” e correlatos. 

 

Caninos e felinos de rua que forem apreendidos ficarão detidos por três dias. Se não aparecerem os donos, serão abatidos e exportados para o Oriente, sobretudo as regiões de Guangxi, Guizhou e Cantão, e em áreas do nordeste chinês, onde vive uma grande população da etnia coreana. 


No caso de bovinos, caprinos, ovinos e galináceos, o prazo de espera dos donos será de apenas 24 horas. A partir daí, a lei facultará a imediata ressocialização dos presos, mas sob a forma de guisados e sopas para os moradores de rua de nossa Pátria amada.

 

Agora falando sério, alguém precisa lembrar ao youtuber japonês que seu dinheiro pode ter destinação bem mais decente, pois 15 pessoas ainda morrem de fome pelo mundo afora a cada minuto. Do Afeganistão ao Zimbábue.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Melhor assim

“Tanto tempo depois, que coisa boa ver vocês dois ainda caminhando de mãos dadas!” – disse uma amiga de minha mulher, contemporânea escolar no começo dos anos 1970, ao cruzar conosco no calçadão da praia de Ponta Verde, próximo ao Marco dos Corais, em Maceió. Achando pouco, completou: “É coisa pra mais de 100 anos!”. E a julgar pelo riso enigmático de minha mulher, gostou da forma pela qual somos percebidos.

 



Ah, essas criaturas misteriosas e sensíveis! Tudo em nome do sexto sentido, da emoção! Não sabe a amiga dela que, antes de “coisa boa”, mãos dadas aqui tem a ver com diminuir o risco de uma queda precipitar o desfecho da caminhada, via concussão cerebral, fratura de bacia, cotovelos ou tornozelos de seminovos com as articulações desgastadas pela malvadeza do tempo, "tambor de todos os ritmos", como diz o poeta. Sem falar dos males crônicos, objeto de interesses conflitantes entre o plano de saúde, o fundo de pensão e a indústria farmacêutica.

 

Tudo bem, pode ser ilusório. Digo isso porque não boto tanta fé nos poderes da santa que me segura pela mão, com seus 52 quilos sobre metro e meio da cabeça aos pés, conseguir evitar o tombo do mamute aqui, com mais de seis arrobas há décadas. Isso, mesmo sendo tratado à míngua quanto a bolo “Souza Leão”, caldo de cana, chope, cocada, doce de leite, pão doce, pastel, pirão, pudim, rapadura, tapioca e outras "coisas boas" que é melhor esquecer pra não engolir saliva.

 

Não sabe a amiga de minha mulher o quanto nos custa a caminhada matinal, a começar pela travessia da avenida em direção ao calçadão, sinalizando, feito duas bestas, a intenção de usar a faixa reservada aos pedestres, enquanto alguns motoristas, motoqueiros e ciclistas (filhos de mães solteiras e pais incertos) fingem não perceber e nos ameaçam quebrar canelas e costelas ou, no mínimo, aparar as unhas de nossos pés com suas rodas inquietas e raivosas.

 

Se não infartamos com os sustos provocados por esses miseráveis, nem ainda transferimos aos nossos herdeiros a incumbência de repartir os caraminguás que juntamos em nossa jornada cigana, é provável que já desfrutemos de músculos cardíacos mais robustos por conta do exercício aeróbico diário. Se bem que, a  qualquer hora dessas, entre uma batida e outra do coração, tudo pode mudar.

 

Mas nessa toada, lá se vão mais de três décadas de calçadões. Desde que me vi obrigado a abandonar as peladas – ou elas a mim, nunca sei, quando perdi a esperança de ser convocado pela Seleção Brasileira – e fomos morar no Recife, onde, toda manhã, driblávamos dejetos caninos entre as praias de Boa Viagem e do Pina. 

 

Que fique bem claro, nós nunca encontramos pelo caminho La belle de jour, a moça dos olhos azuis como a tarde de um domingo, decantada por Alceu Valença como a mais linda de toda a cidade, para quem, aliás, escrevera o seu primeiro blues. Talvez porque, insone ou notívaga, sei lá, ela dormia tarde da madrugada e não conseguia acordar cedo. Poetas não mentem; se tanto, aumentam. Muito!


Quando eu era menino – não parece, mas já joguei no time –, ainda em Maceió, trabalhei de office-boy num grande banco, sendo um dos responsáveis pelo intercâmbio de documentos entre setores espalhados por mais de 10 andares. A ansiedade natural dos imberbes e a presunção de que assim agradaria “ao patrão” não me deixavam esperar pelos elevadores, sobretudo se me cobravam celeridade nas entregas. 

 

Na época, andei lendo em Seleções (versão brasileira da revista norte-americana Reader’s Digest) que subir oito lances de escada por dia reduziria em 1/3 o risco de mortalidade precoce. Resultado: subia e descia escadas o dia inteiro, seguro de que, agindo assim, seria visto como Raul Seixas em Ouro de Tolo, isto é, um cidadão respeitável, empregado, ganhando 327 cruzeiros mensais de salários. 

 

Não demorou muito e um colega cascudo, preguiçoso até pra se levantar da cadeira no final do dia, me viu no corre-corre e perguntou, fingindo ter dó de mim: “Você sabia que, em 1853, um americano chamado Elis Otis gastou uma grana preta pra inventar o elevador de passageiros?” E antes que eu confessasse a minha ignorância, disparou: “Deixe de ser besta, rapaz! Você acha inteligente não usar uma coisa boa dessas?” 

 

Tinha razão. Passei a usar também os elevadores. Mas até hoje me lembro daquela figura lerda (que partiu cedo pro chamado descanso eterno) toda vez que, por exemplo, me vejo numa escada rolante sem mover uma pálpebra.

 

Falando em escada, diz minha mulher que, de mãos dadas, quem sobe ou desce não precisa de corrimão. Eu, que não sou besta e disfarço bem minha pouca leitura sobre o que está nas entrelinhas, faço de conta que acredito. 


Melhor assim, a esta altura da caminhada.