terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Vai que dá certo ano que vem

Afague a cabeça de uma gata que ela é capaz de pegar no sono de tanto relaxamento e prazer. Depois de um carinho, até uma onça-pintada cochila com os olhos a meio-pau e a baba escorrendo no canto da boca. 


Milton Nascimento diz que “um cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”. Afinal, dois dedos de atenção e carinho provocam aquele torpor gostoso que muda o dia.

Dia que, em meio ao pacote de motivos que estressam todos os viventes — principal causa mortis, inclusive dos que não sabem chorar como as plantas  — , traz consigo também pequenas coisas que têm o condão de produzir bem-estar não digo indescritível porque aqui estou a conjecturar sobre o assunto.

Falo de coisas simples como sentar à beira-mar e, depois de dois ou três goles de água de coco, cerveja gelada ou seja lá o que forenterrar o dedão do pé na areia úmida e buscar no horizonte algo além do que os olhos podem ver. Ou, por exemplo, tirar um cochilo de meia hora numa rede na varanda, depois do almoço, com um lençol sobre o rosto com cheiro de neto.

Conheço um ex-dirigente de banco que virou fã de um engraxate que trabalhava na entrada da Galeria dos Estados, no Setor Bancário Sul, em Brasília. Dizia ele que sentia calafrios quando o moço colocava em seus pés aqueles protetores de couro entre as meias e os sapatos. Quem sabe por conta disso, quase toda semana sentava naquele “trono” acolchoado, a suprir carências inconfessáveis enquanto fingia só observar na paisagem o vai-e-vem dos transeuntes.

Por falar em pés, lembrei-me de uma vizinha inconformada com a solidão dos sábados à tarde. Num deles, ao ver o marido por horas a fio diante do computador, queixava-se na minha frente de que nunca mais sentira prazer algum exceto quando coçava o entorno das frieiras entre os dedos. Na hora, confesso que tomei um susto medonho com a insólita revelação, mas nem ousei discutir. Quem sou eu para questionar o subsolo das emoções de alguém?

Verdade é que existem coisas tão simples que às vezes nos passam despercebidas. Quem não gosta, por exemplo, de “...um dia frio, um bom lugar para ler um livro...", como sugere Djavan? Quintana dizia que “... o livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado...” 

E do que mais se precisa para que o corpo e a alma entrem em perfeita harmonia? Nem pretendo aqui discorrer sobre a maior e melhor fonte de gozo e prazer dos animais entre o céu e a terra. Dispensa comentários. Mas cinema e música também serão sempre bem-vindos, claro. De bom gosto, por favor!

Os entendidos argumentam que existem vários caminhos para ser feliz proporcionados por um quarteto que mais parece o meio-campo da seleção feminina da Itália: endorfina, dopamina, serotonina e ocitocina. São neurotransmissores que circulam na corrente sanguínea, responsáveis por motivação, bem-estar, tolerância à dor ou confiança. Se entram em desequilíbrio, o corpo reage com insônia, estresse, sobrepeso, mau humor e até depressão.

Acontece que ninguém aguenta mais ouvir falar em comer, dormir e trabalhar apenas o suficiente, praticar alguma atividade física com regularidade e ter muitos momentos de lazer com amigos e amigas, ainda que via “celular”, como pré-requisitos para o equilíbrio do organismo. 

Como conseguir isso? Não sei. Quem conseguiu, imagino, talvez nem se dê conta do modus operandiNão existem à venda na farmácia da esquina frascos contendo cápsulas da felicidade. Simplesmente aprendeu de manhas e manhãs e toca a vida bem devagar porque um dia já teve pressa, diria Renato Teixeira. Enxergou a tempo que não vale a pena tanta correria.

Chega uma hora em que dois dedos de atenção e carinho (dar ou receber, tanto faz!) são as únicas coisas pelas quais vale a pena viver. Nem que seja apenas um cafuné na cabeça ou uma inesperada mensagem desejando-nos feliz ano novo. Vai que dá certo, não é mesmo?

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

A falta que elas me fazem

Quando ganhei de presente de Natal minha primeira bola “oficial nº 5”, senti pelo peso do embrulho que não era uma couraça daquelas com câmara de ar em que se passava sebo nos pontos para protegê-la de arranhões nos campinhos de terra batida ou no calçamento da rua.

Era de material plástico (vinil), grosso. Doía demais quando batia nas costelas, na boca do estômago ou nas coxas. Devo ter corrido pela calçada com a “dente-de-leite”, superando adversários imaginários, tentando fintá-los um por um até a esquina.

Finta, para quem esqueceu, é aquela jogada individual em esportes como futebol, vôlei, basquete, handebol, boxe ou capoeira, em que bastam duas ou três gingas de corpo para desvencilhar-se do adversário. É fazê-lo acreditar num movimento de ataque ou defesa que não irá acontecer, dificultando sua reação ao que de fato vem em sua direção. 

Meu irmão Dula (Hélder), baixinho, canhoto, ligeiro, quatro anos mais novo que eu, era mestre na arte da finta, com um requinte cruel: o escárnio sobre os adversários que queriam parti-lo em pedaços após sofrerem com suas fintas e risinhos de deboche. Só não conseguiam por conta da providencial cobertura de três anjos da guarda maiores e afeitos a brigas de rua: seus irmãos mais velhos.  

Por falar em finta — que imortalizou gênios do quilate de Carlitos, Garrincha e Muhammad Ali em diferentes campos artísticos —, com o tempo percebi que se trata, na verdade, de uma dança lúdica que algumas crianças já nascem sabendo seus passos de cor e salteado, assim como choram, dormem, mamam ou urinam. Nunca fui bom nisso!

Esse “vou-não-vou... fui!” era aperfeiçoado na mais tenra idade. Quando o sol esfriava e desaparecia no horizonte, na porta de casa surgia sempre uma mãe cansada e impaciente com uma chinela na mão a dar seu ultimato, o que obrigava a molecada a correr para o chuveiro no melhor da brincadeira.

Muitas vezes, o medo de molhar-se levava a dona da chinela — espécie de zagueira sem jogo de cintura — a desistir da perseguição, mas não da advertência de um jeito capaz de diluir a cera dos ouvidos daqueles que se faziam de surdos: "Tire o grude das orelhas, cabra safado, senão eu lhe pego depois..."

Além de motivar as primeiras fintas diante dos obstáculos da vida, a chinela tornou-se instrumento pedagógico bem mais razoável do que, por exemplo, a palmatória ou o cinturão. De ruim apenas o constrangimento quando a lapada na bunda acontecia ainda na calçada, sob o riso de uma plateia de maloqueiros da vizinhança nada solidária.

Ainda assim, com todo respeito a quem pensa diferente, devo admitir que a chinelada continha inegáveis atributos psicológicos: restabelecia limites esquecidos e estreitava laços de afeto entre mães e filhos. Tanto que, dos sons que todos nós guardamos na memória, um dos mais nítidos é, sem dúvida, o daquele corretivo nas nádegas. 

Sim, era necessário que fizesse o barulho clássico que todo mundo um dia já ouviu, sob pena de o corretivo não surtir o efeito desejado nem ficar retido na lembrança. O estalo inconfundível dava partida na trilha sonora do choro sentido que na maioria das vezes desaguava num abraço pleno de amor, lágrimas e remorso materno.

Voltando a minha primeira bola, há quem jure que são necessários pelo menos quatro séculos para que um objeto de plástico se decomponha e desapareça para sempre do meio ambiente. Se essa conta for verdadeira, exerço aqui o meu sagrado direito de interrogar a mãe-natureza: onde foi parar a minha primeira “amiga do peito”? 

Nunca ninguém me contou que fim ela teria levado. Se houve crime — furto? roubo? —, está prescrito, perdoado e vida que segue. No trem que partiu da estação de minha infância, há mais de meio século, só me deixaram trazer algumas imagens que vagam nas sombras de minhas recordações. 

Sei que uma hora dessas o trem vai chegar na última e definitiva estação. Enquanto isso — e tomara que demore bastante! —, seguirei em frente, superando obstáculos imaginários ou não, a driblar a falta que sinto de minha primeira bola e até das chineladas que por sua causa ganhei. 

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Era Natal, ainda bem

Ela me contou que, pouco depois da noite de Natal do ano de 1995, ao ouvir um barulho estranho na porta da frente de sua casa, foi até lá e deu de cara com dois homens desconhecidos. Ficou preocupada com eles:
— O que cês tão fazendo aí fora nesse sereno? Entrem que essa friagem não vai fazer bem. 

Aos 90 anos, quase cega pelo avanço da catarata, vivia num casarão antigo e comprido cujo quintal dava para um rio temporário onde restavam apenas algumas poças barrentas sobre o leito de areia, capim seco e pedras, no Sertão pernambucano. Para cortar caminho até a praça da matriz, os moradores da cidade atravessavam sua casa de porta a porta. 

Ilustração: Dedé Dwigth 
Morava com uma neta solteira na faixa dos 40 anos, cuja mãe, também criada por ela, morreu afogada muito tempo atrás numa rara enchente do rio, ao tentar atravessá-lo pouco antes de uma tromba d’água que surpreendeu todo mundo e devastou boa parte do lugarejo em questão de minutos. 

Quando estive na região por quatro dias avaliando o possível impacto do fechamento de agências bancárias, não foram duas ou três  vezes em que a ouvi perguntar aos que passavam:
— Tá com fome, meu filho? Vá lá na cozinha, fale com minha neta, coma alguma coisa, beba um caneco d’água... Puxe uma cadeira, descanse um pouco...

Vi ainda, numa manhã, acertar contas com o leiteiro. Quem pagava e quem recebia não tinha a menor intenção de enganar ninguém:
— Quanto tem aí? — Ela dizia, ao repassar uma cédula.
— Dez...
— E agora?
— Inteirou vinte... Faltam três.
— Pronto! Pegue mais essa nota.
— Sobrou, comadre. Tá aqui o troco.

Na noite em que os desconhecidos apareceram em sua porta, após acender a luz da sala e convidá-los a sentar, o tom teria sido maternal:
— Estão imundos! Precisam de banho. Venha cá, meu filho, pegue toalha e sabonete, vá pro banheiro. Cuidado para não escorregar!

Em seguida, acariciou a cabeça do outro:
— Coitado... Tá mortinho de fome. Vou esquentar a sobra do jantar. Tem guisado de galinha e macaxeira.

Eles entreolhavam-se sem saber o que dizer quando ela quebrou o silêncio:
— Cês vão dormir aqui na sala, um no sofá e o outro naquela rede. Olhe aqui o lençol. Agora vou rezar no meu quarto antes de pegar no sono. Boa noite!

Era madrugada quando eles acordaram com o bater de asas e o canto do galo no quintal. Na cozinha, a mesa já estava posta: cuscuz, pão, ovos e café com leite. Um quis abreviar a prosa:
— Quer dizer que a vó nem imagina o que a gente veio fazer aqui?
— Deixe de conversa fiada, filho... Deus castiga! Sente aí, coma e mais tarde cuide de procurar trabalho que é o melhor que cê faz. Mas bote chapéu que o sol anda um horror!

Do jeito que chegaram, partiram. Nunca mais foram vistos na região. 
— Esses moços são mal agradecidos. Somem no mundo e nem se despedem da gente. Que coisa, hein?! — queixava-se, a lembrar do ocorrido meses antes.
— A senhora, pelo menos, procurou saber o nome deles? — indaguei, a imaginar o que poderia ter acontecido com ela e a neta naquela noite.
— Carecia mesmo? Era Natal, meu filho... — respondeu, com os olhos opacos e o sorriso mais inocente do mundo sobre o rosto emagrecido. 

"Tentei descobrir na alma alguma coisa mais profunda do que não saber nada sobre as coisas profundas. Consegui não descobrir", diria Manoel de Barros (1916 — 2014). 

Fui-me embora impressionado com a generosidade dessas mulheres sertanejas. Querer compreender certas coisas só dificulta ainda mais a vida miúda que a gente leva.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Basta um caju

Na flor dos 69 anos de idade, o marido de uma amiga minha, morador do Lago Norte, em Brasília, no mês passado escorregou de uma escada apoiada no muro que dá para o quintal do vizinho, estatelou-se no gramado e fraturou a clavícula, além de sofrer uma forte pancada no rosto. Tentava de forma sorrateira afanar um suculento caju para presentear a amada. 

Inegavelmente, mais que carinho com segundas intenções, ficou claro para mim, de novo, que a criança que hiberna em cada adulto acorda quando menos se espera e apronta das suas. Cheguei a temer pela estrutura óssea do pobre gatuno de meia-idade, apaixonado, que felizmente só amargou alguns dias de tipóia, cama e anti-inflamatórios. 

Como uma coisa puxa a outra, lembrei-me do que aconteceu comigo por volta das quatro da tarde de um domingo, quando morei pela primeira vez na Bahia. Na época, no começo dos anos 90, aos 33 anos de idade, ocupava o cargo de superintendente estadual-adjunto do Banco do Brasil, até ali o maior desafio profissional de minha vida.

Voltávamos eu e meus dois filhos maiores (de 13 e 10 anos) para o estacionamento depois de um raro dia em que o sol resolveu fazer greve na praia de Vilas do Atlântico, em Lauro de Freitas (BA). Eles estavam exaustos dos mergulhos e da comilança à beira-mar; e eu, no agradável torpor de incontáveis cervejas desde as onze da manhã, andava feliz até com domingo chuvoso.

De repente, se tanto a trezentos metros de onde estava o carro, não me lembro por qual motivo bateu a vontade de aprontar uma inocente molecagem, incompatível, óbvio, com o que se espera de um pai mentalmente são: tocar a campainha de uma mansão daquelas do condomínio e sair correndo. De longe, assistiria ao morador, que relaxava na pérgula da piscina, vociferar palavrões enquanto não encontrasse quem lhe chamara ao portão.

Nada falei para meus filhos porque também queria surpreendê-los. Apertei a campainha e corri morrendo de rir, a imaginar o susto que tomariam com minha atitude inesperada. No mesmo segundo, teriam que desabar na carreira se não quisessem ser acusados pela insensatez paterna.

No corre-corre, segundos depois topei numa pedra saliente no meio da rua que quase me arrancou a cabeça do dedão, com unha e tudo. Levantei-me às pressas, com o pé esquerdo em petição de miséria, sangrando, e fui como pude até o estacionamento onde o restante da família me recebeu  com cara de quem pensou mas não perguntou: “Isso é papel de pai?”

Não precisava. Mais tarde, antes de dormir, ouvia a vinheta sem graça de um antigo programa de tevê a decretar a iminente chegada da segunda-feira e não sabia o que latejava mais: o dedo esfolado ou a ressaca moral após a molecagem, com o agravante de que logo cedo teria que vestir terno, gravata, sapato no pé direito e sandália no outro, por conta da liturgia do cargo.

Na primeira reunião pela manhã, ainda tentei convencer alguns colegas de que o curativo teria sido consequência de uma pelada (baba) com os pés descalços, no sábado. Um deles com falsa cara de espanto — participara comigo da farra e sabia de tudo  até cogitou emprestar um par de chuteiras para os próximos rachas. Na maior cara de pau! Cheguei a ver óleo de peroba escorrendo no riso sórdido do miserável!

Mas tudo acabaria bem. Dias depois a ferida estava cicatrizada e nunca mais se falou nisso. Se não fosse o que aconteceu com o marido de minha amiga, talvez nem lembrasse dessas coisas que perturbam o sono leve da criança que cochila dentro da gente e que, às vezes, basta um caju para despertá-la.